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229.00 arquitetura e
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229
229.01 arquitetura
moderna
O espaço moderno como
fração do infinito
Mies van der Rohe e o
projeto para o campus
do Illinois Institute
of Technology em
Chicago
Rodrigo Queiroz
229.02 crítica
Dan Graham
Dialéticas do vidro e
autoimagem
Michel Nunes Lopes
Masson
Idanha-a-Velha, 2006
Foto Marcelo Ferraz [Brasil Arquitetura / acesso restrito]
Vácuo (Moçambique)
01:48
Idanha-a-Velha
Como visto, a cada caso, permitem recordar o que ocorreu, mas o fazem com
saudade do futuro, redefinindo usos, inventando materialidades
inexistentes até então, de modo a, para além dos espaços a serem
preservados, impregnar todo um campo irradiado de novos modos de lá
estar. São ações conjugadas no futuro do pretérito, e agem como sistema
de memórias e não como espetáculo de memória, pontual e protegido. E, ao
assim atuar, libertam os corpos edificados da simples contemplação para
tecer renovadas paisagens.
Pode-se dizer que os três autores atuam com saudade, se entendida nos
termos reconhecidos por Eduardo Lourenço em Mitologia da Saudade para
quem “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso;
inventamo-lo” (30). O autor aponta que “Voltar-se para o passado,
lembrar-se, não é nunca um ato neutro” ainda que possa ser vivido apenas
como simples alusão; entretanto, segundo ele, os “regressos” específicos
da melancolia, da nostalgia, da saudade são de outra ordem, pois conferem
um sentido ao passado que por meio delas convocamos. São modalidades,
“modulações da nossa relação de seres de memória e sensibilidade com o
Tempo” (31), e cada uma delas convocará o passado de diferente modo: “a
melancolia visa o passado como definitivamente passado”, “a nostalgia
fixa-se num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de
desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente
recuperável”; a saudade participa de uma e de outra de modo paradoxal,
“simultaneamente passado e presente”. Para Lourenço, “é esse lugar ao
abrigo do sonho, esse passado-presente, que a ‘alma portuguesa’ não quer
abandonar”.
Lagares, assim como os Moinhos, permitem rememorar uma natureza de
arquitetura na qual o edifício fez parte indissociável das engrenagens
que atuaram para a produção, edifícios-máquina, orquestrando uma série de
ações comunitárias e de modos de convívio singulares a cada caso. Por
exemplo, no caso dos lagares, antes da prensa, levavam ao cultivo da
oliveira, a apanha da azeitona, envolvendo tanto o mestre lagareiro
quanto forasteiros que sazonalmente usufruíam e contribuíam com o
trabalho; no caso dos Moinhos, a farinha artesanal que envolvia desde a
colheita do trigo ou milho à produção do pão.
“Olho para trás, para o meu passado, e vejo duas vidas. Numa fui
Pedro Gouveia, noutra José Buchmann. Pedro Gouveia morreu. José
Buchmann regressou à Chibia” (32).
O primeiro aspirou ser outro homem, fez morrer sua vida anterior, o
segundo forjou uma existência até o momento, para isso tramou falsos
dados de um passado inexistente. Na potente narrativa literária, um
suplantou o outro até o momento em que a vida passada atravessou a nova
vida, a ponto de confundir o homem que ambicionava ser como dois. E
assim, José Buchmann regressou à Chibia carregando consigo as lembranças
de Pedro Gouveia, e, mais que isso, o futuro que só poderia emergir do
passado de Gouveia, que de fato existiu, e, passa a ser, através de
Ângela, o futuro de Buchmann.
notas
NA – Este artigo é uma versão revisada e ampliada do ensaio original
apresentado no II Seminário Internacional Espaços Narrados: as línguas na
construção dos territórios Ibero-americanos, ocorrido em jun. 2019, com
realização da Universidade de São Paulo – USP e do Serviço Social do Comércio –
Sesc São Paulo. Texto elaborado com apoio CNPq – Bolsa de Produtividade em
Pesquisa N2
<https://drive.google.com/file/d/1t80P1zWg2zHPfA9Pu6PiiOHdWfA2KY24/view>.
1
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Atelier 15:
Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez. Lisboa, Uzina Books, 2014, p. 57.
2
Vácuo (Moçambique). Direção Cris Bierrenbach. DVD/vídeo – Projeção slides 35 mm
– (Loop) 2 min, sem som. Coleção Centro Cultural São Paulo
<https://crisbierrenbach.com/pessoal/video/vacuo-mocambique/>.
3
PEREIRA, Benjamin. Tecnologia tradicional do azeite em Portugal. Idanha-a-Nova,
Centro Cultural Raiano, 1997.
4
Mais a respeito da pesquisa ver: THOMAZ, Omar Ribeiro. Escravos sem dono: a
experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista.
Revista de Antropologia, v.5, n. 1. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2008,
p.177-214 <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27305>.
5
BIERRENBACH, Cris. Depoimento a Marta Vieira Bogea, 16 de mar. 2019.
6
Idem, ibidem. A artista revela que as casas fotografadas são semelhantes a
tantas que se encontram nas cidades próximas. Elas são estranhas ao campo,
surgem muito isoladas, como se estivessem no meio do nada, entremeadas com
ocupações precárias.
7
Idem, ibidem.
8
Idem, ibidem.
9
Idem, ibidem.
10
FERRAZ, Marcelo. In: PEGORIM, Denise (Org.). Francisco Fanucci – Marcelo
Ferraz: Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p.181.
11
Em: FERRAZ, João Grinspum (Org.). Museu do Pão, Caminho dos Moinhos. Ilópolis,
Associação Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari, 2008, p. 26-27.
12
Sobre projeto dos moinhos ver <http://brasilarquitetura.com/>. Sobre o Caminho
dos Moinhos analisado junto a outros projetos do escritório em texto elaborado
por esta autora ver: BOGÉA, Marta. Brasil Arquitetura. Uma partilha das
distâncias, construindo convívios. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 159.01,
Vitruvius, ago. 2013
<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.159/4844>.
13
Ver: Edital de inscrição para pré-seleção de padeiros e ou confeiteiros, para
prestar serviço junto a Oficina de Panificação no Complexo Arquitetônico do
Museu do Pão. Associação dos Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari – AAMoinhos.
Ilópolis, 19 abr. 2017
<http://www.sitesdovale.com.br/caminhodosmoinhos/fotos/Chamada_de_pre-
selecao_para_padeiros_e_confeiteiros.pdf>.
14
Na recuperação do Moinho Colognese uma pequena história merece atenção. Diante
da necessidade de constituir uma nova abertura, os arquitetos depois de várias
hipóteses e ao descobrir que os janelas teriam que ser todas reconstruídas
optam por construir uma nova janela – a quinta janela até então inexistente. O
fizeram com a convicção de que nos Moinhos o mais relevante é assegurar sua
aparente integridade original. Essa história me foi contada por Marcelo Ferraz
após a leitura do ensaio que deu início a esse texto. Revela que no desafio de
recuperar o passado os regramentos genéricos por vezes exigem criteriosa
revisão pois devem se manter pertinentes dentro das circunstâncias de cada
caso.
15
CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura em movimento (depoimento). O Milagre do Pão.
Direção Isa Grinspum Ferraz. Realização Nestlé Brasil, 2006. 55 min.
16
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 57.
17
Jorge Figueira no texto “Atelier 15: Alterações climáticas” (publicado em
Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez, p. 6-13), reconhece três
matrizes oportunas para analisar a obra do Atelier 15: “Para avançar na frente
‘científica’, diria que há três matrizes recorrentes na obra do Atelier 15: uma
modernista, que é quase uma linguagem ‘por defeito’ (centro interpretativo de
Santa Clara-a-Velha, edifícios de habitação em Viana do Castelo); uma
brutalista, que satisfaz o gosto por uma resposta sem excessivas subtilezas
(torre em Castelo Velho, habitação em Moledo); e uma primitivista, onde
confluem livremente o ‘Inquérito’, a mítica passagem de Sérgio Fernandez por
Rio de Onor, e a referência a Louis Kahn que Alves Costa foi veiculando (Escola
pré-primária em Moledo, Lavadouro na Afurada)”. FIGUEIRA, Jorge. In: NEVES,
José Manuel das (Org.). Op. cit, p. 11.
18
Idem, ibidem, p. 12.
19
NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit., p. 62.
20
Idem, ibidem, p. 59.
21
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos (mai. 1964). Carta de
Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos
Históricos. Portal Iphan, Rio de janeiro, s/d
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964
22
Poderíamos supor como um Viollet-le-Duc revisitado, sem o exagero de forjar um
passado inexistente, mas disponível a reconstruir assegurando integralidade ao
documento? Diante do desafio de reconhecimento do original agem os arquitetos
na Porta da Muralha de modo semelhante a ação do Brasil Arquitetura ao
construir a quinta janela no Moinho? Vale lembrar que para le-Duc era possível
estabelecer o “modelo ideal” e retornar o edifício a “um estado completo que
pode não ter existido nunca em um dado momento”. A esse respeito ver: VIOLLET-
LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. 3ª edição. São Paulo, Ateliê Editorial,
2007, p. 29. O exercício hipotético realizado aqui mais do que buscar filiação,
neste texto pretende demonstrar que existe, mesmo sem nominações ou referências
diretas, um sofisticado trânsito entre pensar e fazer, entre teoria e prática,
que irrigam-se mutuamente.
23
No contexto desse artigo, é importante observar que, no Brasil, Lina Bo Bardi,
de quem Ferraz foi importante colaborador, revela atenção a essa debate, ainda
que sem citar diretamente documentos de patrimônio ou Gustavo Giovanonni (de
quem Lina, segundo depoimento de Ferraz foi aluna). Ver, por exemplo, o
memorial publicado sobre a Nova Prefeitura de São Paulo (1990-92): “É preciso
se libertar das ‘amarras’, não jogar fora simplesmente o passado e toda a sua
história: o que é preciso é considerar o passado como presente histórico, e
ainda vivo [...] frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro
presente, ‘verdadeiro’”. Ver: FERRAZ, Marcelo Carvalho (Org). Lina Bo Bardi. 4ª
edição. São Paulo, Instituto Bardi/Casa de Vidro / Romano Guerra, 2018, p. 319.
24
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 74.
25
Idem, ibidem, p. 84.
26
FIGUEIRA, Jorge. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit, p. 8.
27
Idem, ibidem.
28
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 57.
29
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 68.
30
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como destino. São
Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 14.
31
Idem, ibidem, p. 12.
32
AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de janeiro, Gryphus, 2004,
p. 190.
33
Idem, ibidem, p. 194.
sobre a autora
Marta Bogéa é arquiteta (UFES, 1987), livre docente (FAU USP, 2018), mestre em
Comunicação e Semiótica (PUC SP, 1993) e doutora em Arquitetura e Urbanismo
(FAU USP, 2006). Professora do Departamento de Projeto da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Na pós-
graduação atua nas áreas de concentração Projeto de Arquitetura e Projeto,
Espaço e Cultura. Pesquisadora CnpQ, Produtividade em Pesquisa n2.
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