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229.00 arquitetura e memória ano 20, jun. 2019

Imaginar o passado, com saudade do futuro


Marta Bogéa

229.00 arquitetura e
memória
sinopses
como citar

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original: português
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229
229.01 arquitetura
moderna
O espaço moderno como
fração do infinito
Mies van der Rohe e o
projeto para o campus
do Illinois Institute
of Technology em
Chicago
Rodrigo Queiroz
229.02 crítica
Dan Graham
Dialéticas do vidro e
autoimagem
Michel Nunes Lopes
Masson

Idanha-a-Velha, 2006
Foto Marcelo Ferraz [Brasil Arquitetura / acesso restrito]

“Hoje, de vez em quando, vamos a Idanha-a-Velha, como arquitetos.


Não vamos nostalgicamente relembrar o passado próximo,
encontramo-lo aqui e ali, pelo canto do olho, como encontramos
outros passados mais antigos, de culturas extintas, os romanos,
os visigodos, os árabes e de novo séculos cristãos. Durante o
caminho falamos de Singapura e Hong-Kong, do Koolhaas e da cidade
genérica, da globalização e de como nos situaremos no futuro com
essas novas tradições” (1).

O projeto de intervenção em Idanha-a-Velha, realizado pelo Atelier 15 ao


longo de doze anos (1995-2007), é uma das obras apresentadas neste texto.
A narrativa aqui convocada refere-se a obras que reconhecem o tempo
decorrido nos lugares, sem, entretanto, imobilizá-los em nostálgica
contemplação. Se atem a duas intervenções arquitetônicas em lugares
desarticulados do cotidiano, pois constituíram sua razão de ser em modos
de produção hoje ultrapassados. Ao intervir, os arquitetos buscam
recolocar esses sítios no tecido da vida vivida. São eles: Caminho dos
Moinhos, de Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, no sul do Brasil (Brasil
Arquitetura, 2005-08) e Idanha-a-Velha, de Alexandre Alves Costa e Sérgio
Fernandez, no norte de Portugal (Atelier 15, 1995-2007). Aproximo aos
dois projetos arquitetônicos um filme, Vácuo (Moçambique) de Cris
Bierrenbach, realizado em 2009 (2).

A análise das três obras, guardadas suas singulares diferenças, ocorre


atenta à intervenção que se estabelece em tempo dilatado, e não em um
único gesto presente. Se dá afeito a um modo de rememoração do passado
indissociavelmente tramado as lembranças também de outros personagens.
Por exemplo, será na convocatória de Judith Cortesão que Marcelo Ferraz
descobre os Moinhos; e, será na recuperação histórica da Tecnologia
tradicional do azeite em Portugal, de Benjamin Pereira (3), que melhor se
entende a força do silêncio reivindicado pelo restauro dirigido por Alves
Costa e Fernandez no Lagar de Idanha-a-Velha. Moinhos e Lagares que se
tornaram invisíveis apesar de sua majestosa presença naqueles antigos
lugares. Os projetos então os recuperam, atribuindo-lhes inevitável
memória patrimonial, mas, para além dela, reorganizar através de novos
corpos edificados, inéditos na velha paisagem, outro(s) lugar(es). As
imagens do filme são captadas na viagem realizada com o antropólogo Omar
Ribeiro Thomaz (4). As fotografias enquadram casas fantasmais,
construções em ruínas, descoladas do presente, invisíveis no cotidiano.
Presenças difusas, trazidas pela obra artística para o primeiro plano e
dotadas de nitidez e valor. Bierrenbach as reinventa como potência ao
perceber a relevância do conjunto e tecer a trama que dá nexo àquelas
existências.

A visibilidade – e, no caso dos projetos de arquitetura, o uso – são


reconquistados nas obras, pois invertem o vetor e devolvem certo
protagonismo às antigas construções: as casas e seus desaparecidos
moradores; os antigos Moinhos e as famílias proprietárias que não sabiam
mais muito bem o que fazer com eles; as várias construções em Idanha-a-
Velha, dentre elas o antigo Lagar em relação à atual comunidade. Não
apontam apenas em direção ao passado ocorrido, mas, sobretudo em direção
a um traçado tramado entre a vida ocorrida, o abandono no presente, e sua
presença visível e potente, para então imaginar outra possível, futura,
paisagem.

Vácuo (Moçambique)

“Ficamos hospedados em Inhambane, uma pequena cidade à beira-mar,


e, dia-sim, dia-não, saímos de Inhambane e viajávamos muito tempo
para chegar a Inhassune, onde íamos entrevistar as pessoas [...].
Nessas longas viagens, comecei a ver essas casas, nesse lugar
muito plano, com um céu muito azul, em uma paisagem de savana. As
casas abandonadas apareciam no meio do nada e relativamente
próximas a outras casas, mais precárias, entretanto, ocupadas”
(5).

A artista narra os deslocamentos ocorridos quando esteve em Moçambique


para documentar Inhassune. A paisagem avistada da janela do carro, de
onde se podiam reconhecer as casas abandonadas (6) – todas elas com
certas semelhanças construtivas – afastadas visualmente, mas a uma
distância ainda próxima enquanto deslocamento, de áreas precariamente
habitadas. “Essas casas me intrigavam. Porque, afinal, as pessoas não as
ocupavam?”

Na hipótese do antropólogo com quem compartilhava a viagem as pessoas


mantinham o direito a casa como se pertencessem ainda aos seus antigos
moradores, como se espíritos ainda habitassem o lugar. Um misto entre o
respeito e o medo, nos termos lembrados por Bierrenbach. As casa pareciam
estar ali até desaparecerem completamente.

“A memória da viagem, de andar, andar, ver, andar, andar, ver


[...] e o desaparecimento, foi aí que comecei a desmanchar as
casas no computador, digitalmente, e ao fazer isso, vi que
parecia o mesmo movimento que aparecia na viagem. Comecei então a
desfazer e juntar uma na outra e aquilo começou a fazer sentido
para mim” (7).

Selecionadas dez casas, o trabalho ganharia forma inicialmente através da


ampliação fotográfica em grande dimensão de cada uma das casas isoladas.

“eram para mim como se fossem monumentos falidos daquela guerra.


Cheguei a fazer teste para ampliações muito grandes, monumentais,
mas [...] aquilo não funcionava, de uma hora para outra, nem
lembro bem como foi, o sentido daquilo não era a materialidade
perpétua, era o símbolo do desaparecimento e do percurso, e como
se elas fizessem parte de uma coisa só” (8).

E, será esse reconhecimento, de que cada uma das casas de fato


constituíam, como conjunto, um território comum, a razão do interesse da
obra neste texto. Reconhecer o sistema dota cada uma das pequenas casas
de um sentido mais amplo, coletivo, não apenas circunstancial a uma única
família. Todas elas em processo de desaparecimento lento e gradual. Como
as histórias que abrigavam da vida ocorrida até seu involuntário
abandono. O registro devolve-lhes existência.

O filme é inteiramente realizado a partir das dez fotografias. “A


paisagem resulta da dissolução, eu não acrescento nada”, explica a
artista. Todas as demais imagens resultam do apagamento e reconstituição
artificialmente realizados. Ensejam níveis diferentes de nitidez e de
movimento, de tal modo que fixada uma casa a passagem até o
reconhecimento de outra se dará em um campo cromático semelhante as
imagens borradas, visíveis quando estamos em movimento acelerado.

Apresentada como um looping, a obra constitui paisagem circular que


aprisiona o expectador num ciclo contínuo de dissolução, estabilidade,
dissolução. A partir das fotografias sempre frontais, em enquadramentos
muito próximos as casas se confundem e se contaminam.

Vácuo (Moçambique). Direção Cris Bierrenbach


de Vitruvius

01:48

Vácuo (Moçambique). Direção Cris Bierrenbach

O filme foi realizado sem correção de imagem, abriga a imprecisão


pertinente ao tempo material de coisas em lento movimento de decantação.
Quando perguntada por um fotógrafo porque não corrigiu a horizontalidade
das fotos, diz, “nem sei bem porque, apenas nem me ocorreu corrigir,
parecia uma pergunta tão sem importância em relação ao trabalho”, e,
pondera:

“Talvez hoje eu fizesse isso, a tecnologia te leva a isso, a


ferramenta é tão fácil que parece que tudo deveria ser assim, sem
a distorção do olhar, da empunhadura da máquina, da posição do
fotógrafo. Mas a vista não é assim. Hoje o mundo está ficando
planificado, aplainado, retificado” (9).

O mundo aqui abordado acata, porque reconhece, a imprecisão. Traço humano


que se afasta da idealização abstrata da competência genérica e
matemática das máquinas. Tão humano e por isso dotado de certa beleza
falível que, no mais criterioso rigor, deixa escapar pequenos desvios.

Caminho dos Moinhos

“A história começou com a Judith Cortesão. ‘Vocês precisam ir a


Ilópolis ver os moinhos italianos’, ela disse. ‘Você está no meio
do mato e encontra aquelas coisas maravilhosas!’ Isso foi há
cinco anos. Muito depois, fui ao Sul e resolvi esticar até
Ilópolis sem saber direito o que encontraria. Não imaginava
jamais ver uma arquitetura tão forte de imigrantes italianos, de
transição do século 19 para o 20. Fiquei fascinado. Eram cinco
moinhos. [...] Um grupo se organizou, sem recursos, mas com muito
entusiasmo: Precisamos colocar os moinhos para funcionar
novamente! Criar a rota dos moinhos e trazer gente para visita-
los! Fazer a festa do pão!” (10).

Essa aproximação inicial com a ocupação italiana no sul do Brasil


resultou na intervenção e restauro do Moinho Colognese, situado em
Ilópolis, no conjunto denominado Museu do Pão (2005) dando início a
estruturação do Caminho dos Moinhos com projetos de restauro e novas
construções para os Moinhos Castaman (situado em Arvorezinha), Marca
(situado em Putinga) e Dallé (situado em Anta-Gorda) todos elaborados em
2008 e ainda aguardando construção; muito recentemente, em 2019, e em
fase de Estudo Preliminar, com acesso aos documentos ainda restrito, o
Moinho Borille passou a integrar o conjunto projetado (situado também em
Arvorezinha).
Cartografia dos moinhos no Sul em 2008
Elaboração Brasil Arquitetura
Brasil Arquitetura, caderno de apresentação de projeto: Moinhos Colognese,
Fachinetto, Dallé, Castaman, Marca, Vicenzi em 2008. A região conta com outros
moinhos além daqueles incluídos nas intervenções [Acervo Brasil Arquitetura]

O processo entre reconhecimento, ação de restauro e transformação é


lento, talvez mais lento do que deveria ser considerando o estado de
alguns conjuntos – por exemplo o galpão, antigo silo de estocagem anexo
ao Moinho Castaman, que corre risco de desmoronamento.

Parecem, assim como as casas em Moçambique, em lento processo de


desaparecimento. Nessa perspectiva, se pode compreender a intensa emoção
contida no relato de Ismael Rosset, morador local, responsável pelo
acompanhamento das obras, quase incrédulo, aos arquitetos:

“Ontem o motor voltou a molar!! O rangido suave da força do


homem, antes esperançoso em ver a pedra mó girar, agora gira,
gira moendo grãos!! Grãos de areia até polir a pedra, que dizem
ser mais dura que o grão do milho. Por ora o tom ocre da poeira
se acomoda; em breve, se não logo, a poeira da farinha. [...]
Nunca vi tanta gente, ou equipes de diferentes áreas/capacitação
trabalharem sincronizadas. Parecia véspera de inauguração. Duas
mulheres simpáticas limpando os vidros, outro senhor na parte
mais alta com escadas, três senhores instalando ar condicionado,
um senhor e um menino na instalação elétrica, dois rapazes no
restauro. [...] Muitas ligações telefônicas e muitos contatos.
Curiosos, vários!!! Vários mesmo, que delícia! Algo acontece!“
(11).

O antigo moinho, construído em Ilópolis RS no começo do século passado


por uma família de imigrantes do Vêneto, encontrava-se abandonado desde
1990, hoje é um dos três edifícios do novo conjunto. Moinho, Escola de
Confeiteiros e Museu do Pão constituem uma tríade articulada entre o
passado, o presente e a possibilidade de futuro (12).

Museu do Pão, planta do conjunto, Ilópolis RS Brasil


Imagem divulgação [Acervo Brasil Arquitetura]
Museu do Pão, corte do conjunto, Ilópolis RS Brasil
Imagem divulgação [Acervo Brasil Arquitetura]

Acalentador, nesse contexto, foi reconhecer que a escola de confeiteiros


continua funcionando. Uma visita virtual ao sitio do Caminho dos Moinhos
revela que um concurso de pré-seleção de padeiros e confeiteiros (para
trabalhar junto a Oficina de Panificação no Complexo Arquitetônico do
Museu do Pão) esteve com inscrições abertas entre 20 de abril a 27 de
abril de 2017 (13). Permite verificar que passados quase dez anos da
construção do edifício, aquilo que era promessa de futuro de algum modo,
ainda que lentamente, vem se constituindo.
Museu do Pão, Ilópolis RS Brasil. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz / Brasil
Arquitetura
Foto Nelson Kon
Museu do Pão, Ilópolis RS Brasil. Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz / Brasil
Arquitetura
Foto Nelson Kon

Entre rever o passado (museu), recuperar seu legado (14) (moinho) e


ensejar o futuro (cozinha escola), a aposta, materializada nos três
edifícios articulados no conjunto edificado do Museu do Pão, parece
irradiar esperança para as pequenas cidades vizinhas. Importante notar
que a visão de conjunto não implica no ardil de buscar igualdade. Ao
contrário, trata de realizar um circuito que permita variados interesses
associados a cada um dos antigos moinhos. Estimula desse modo a nomeada
circulação entre as pequenas cidades.

O Moinho Colognese abriga em seu raio de influência cozinha e museu.


Dallé é ainda um Moinho em funcionamento, produz farinha, será mantida
sua produção e associada a ele um apoio de varanda com copa/café para
usufruto do rio, reformando a alterando uso de um antigo chiqueiro.
Moinho Dallé [Acervo Brasil Arquitetura]

Projeto para transformação do chiqueiro em área de café e descanso [Elaboração


Brasil Arquitetura]
O Moinho Castaman acolherá uma pequena pousada com quatro quartos em dois
módulos de nova construção; terá a antiga casinha, e sua preciosa
cozinha, restaurada; o velho galpão (espera-se que se mantenha até a
intervenção!) será lugar de exposição e loja de artesanato de produção
local.

Implantação do conjunto Castaman [Elaboração Brasil Arquitetura]


Detalhes do interior da casinha [Acervo Brasil Arquitetura]
Projeto para nova Casa dos Castaman [Elaboração Brasil Arquitetura]

Projeto para nova Casa dos Castaman [Elaboração Brasil Arquitetura]


Estado atual do Galpão [Acervo Brasil Arquitetura]

O Moinho Marca será o sítio de alojamento para grandes grupos, a serem


instalados em uma nova, inédita construção; a cozinha e o refeitório
adequados a dimensão desses grupos redefinem os usos no antigo moinho
associado a nova torre.
Moinho Marca, documentação fotográfica [Acervo Brasil Arquitetura]
Moinho Marca, plantas do conjunto
Elaboração Brasil Arquitetura

Moinho Marca, cortes do conjunto


Elaboração Brasil Arquitetura

Em todos eles, Colognese, Castaman, Marca, Dallé, novos corpos edificados


convivem com restauros dos antigos edifícios e, em alguns casos, a
transformação ocorre também através de reformas que reinventam espaços e
usos nos edifícios originais. Alguns elementos persistem ecoando entre os
diferentes sítios – por exemplo o detalhe de guarda-corpo, usado nas
novas construções que resulta de um desenho adaptado dentre tantos
desenhos vistos na região. Por outro lado, há traços inéditos ao lugar –
como as lajes jardim ou o uso de concreto nas novas edificações.
Articulam-se como fato presente que associa diferentes dicções em
diferentes tempos. Tramam outro presente, indissociável dos traços do
passado, mas distintos do que efetivamente ocorreu.

O projeto arquitetônico reconstitui os Moinhos à trama cultural do


presente. Em depoimento sobre a região, a antropóloga Manuela Carneiro da
Cunha permite compreender a operação, alerta que cultura só se produz no
contato com o outro, na necessidade de construir uma identidade frente ao
outro. E vai além, afirma que cultura só existe em movimento, nos seus
termos:

“A cultura não é coisa parada, é uma coisa que está sempre em


movimento, e sempre se recriando. Então aqueles ícones de
identidade que são parados no tempo, esses não funcionam, o que
funciona sim, é aquilo que se recria, e que se recria, dentro de
uma certa tradição [...] porque a dinâmica cultural é recriar,
recriar, recriar” (15).

A ação de projeto, que os arquitetos nomeiam “ação arquitetônica”, revela


a atenção a vida, a indissociável relação entre as “gentes” e os lugares.
Uma atenção que faz compreender a arquitetura como amparo material, busca
constituir certo campo imantado a partir do qual é possível ensaiar
outras estratégias de vida. Sem ilusão de soluções inéditas, mágicas, ou
radicalmente transformadoras. Apoiada na serena certeza de que a vida se
constitui passo a passo, e que as transformações irão ocorrer alinhadas
nesses passos, e que, só resultarão de fato, se engajada, porque
reconhecida como pertinente, pela comunidade local.
Interior do Moinho Colognese restaurado [Acervo Brasil Arquitetura]

Idanha-a-Velha

“Idanha é um de nossos lugares, com todos os passados que nos


conformaram e com um projeto de futuro em que podemos colaborar:
transformá-la, justificadamente pela sua imensa riqueza cultural,
num lugar central e, ajudado pela sedução da forma artística,
encontrar nela pretexto para intervir, decomplexadamente, no
debate pós-moderno da cidade contemporânea. O que a distingue de
Singapura é, sobretudo, o seu potencial de nostalgia que torna a
construção do novo ainda mais urgente e a esperança no futuro
mais fundada” (16).

Atelier 15, interior do Lagar-de-Varas


Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]

Idanha-a-Velha, lugar onde está situado um antigo Lagar-de-Varas – local


de fabricação de azeite artesanal – recebe um dos intrigantes projetos do
Atelier 15. Poderia ser lida nos termos propostos por Jorge Figueira na
chave do “primitivista”, “onde confluem livremente o ‘Inquérito’, a
mítica passagem de Sérgio Fernandez por Rio de Onor, e a referência a
Louis Kahn que Alves Costa foi veiculando?” Ou seria, talvez, a obra na
qual confluem as três matrizes (17), de onde seria possível ler, como se
pode ler o conjunto da obra, “numa hesitação afetuosa entre vestir de
branco, mostrar a estrutura, ou regressar aos princípios”? (18). Pois, em
cada uma das intervenções realizadas na pequena Aldeia, uma estratégia
distinta constituirá a premissa de projeto. Num arco de diferenças que
vai da restauração criteriosa (Lagar) até o refazimento de trechos para
reconstrução de Porta Norte, passando pela reconstituição, em outra
materialidade, de trechos da muralha.
Idanha-a-Velha, 2006
Foto Marcelo Ferraz [Brasil Arquitetura / acesso restrito]

Na recuperação do Lagar-de-Varas e a construção do Arquivo Epigráfico


(1995-99) os arquitetos optam por restaurar o velho monumento e construir
um anexo inédito. No Lagar foi proposto um restauro “integral e
rigoroso”, nos termos do memorial: “Reconstruir, refazendo o
irrecuperável, sem nenhum alinhamento e no respeito total por seu valor
documental” (19). A intervenção trata o edifício como documento associado
a um corpo inédito, anexo, onde ficam expostas as epígrafes romanas da
antiga Egitânia.

Em outros termos ocorre a Reconstrução da Porta Norte e Arranjos


Exteriores da Muralha Romana (1995-97). Com intenção de monumentalizar a
Porta, dignificá-la e transformá-la em um dos elementos de identidade do
projeto assumem a reposição “até o limite de segurança”, utilizando
parcialmente silharia romana existente no terreno. “Com plena consciência
do não cumprimento do articulado da Carta de Veneza, foram reconstruídos
os dos torreões semicirculares que ladeiam a porta.” (20) Os autores
refere-se, sobretudo, ao Artigo 12 da Carta:

“Os elementos destinados a substituir as partes faltantes devem


integrar-se harmoniosamente ao conjunto, distinguindo-se,
todavia, das partes originais a fim de que a restauração não
falsifique o documento de arte e de história”(21).

De modo distinto reconstroem trechos e desenham um novo passeio sobre a


muralha através de uma passarela metálica, sustentado por estrutura de
ferro, e que se alarga em varandas semicirculares revestidas em cobre, e
refazem os antigos cubelos cujas fundações foram descobertas. Elementos
que permitem, através de sua materialidade, nítida identificação do novo
frente ao existente. Se na Porta pode-se reconhecer traços de refazimento
realizada com pertinente cautela crítica do presente; na Muralha o que
prevalece é a compreensão do restauro com clara distinção entre original
e a reconstituição de certos elementos (22). É relevante observar que o
artifício adotado pelo Atelier 15 na porta e na muralha revela clara
consciência do debate em voga, e por isso mesmo, alarga a compreensão do
que é prioritário a partir da singularidade de cada caso contribuindo
para o aprimoramento do parâmetro comum (23).
Atelier 15, muralha
Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]

Outra intervenção na aldeia que ocorreu no mesmo período se deu em um


grupo de palheiros, em intervenção intitulada Palheiros de S. Dâmaso
(1995-99). Inicialmente entendido fora do âmbito de proteção, ou seja,
implantados no lado exterior da muralha, foi previsto como base de apoio
aos trabalhos arqueológicos, incluindo laboratórios e hospedagem;
entretanto, durante o processo de escavação foram encontrados um torreão
semicircular e uma área da estrutura da muralha. Essa descoberta levou à
revisão geral da proposta em estudo. A premissa de projeto adotou a
manutenção desses dois tempos construídos, de feições tão distintas,
mantidos em convívio e ambos aparentes, justapostos – é desse modo que a
muralha ganha feição no novo constructo em cobre e reconquistada sua
hipotética altura de origem, avança nesses termos para além do palheiro
mantido em alvenaria e pedra.
Atelier 15, plantas e corte do palheiro
Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]
Atelier 15, palheiros de S. Dâmaso com reconstrução da muralha acima dele em
cobre
Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]
Atelier 15, palheiros de S. Dâmaso, interior [Acervo Atelier 15]

Nessa intervenção os arquitetos revelam um dos aspectos ricos do processo


de intervenção, a memória conta e convoca tantas outras paisagens
similares na medida mesma em que se permite imaginar a paisagem que
desafia o porvir.

“Foi gratificante ter-se encontrado, posteriormente, imagens


semelhantes à desejada, no real construído em Lugo ou León.
Imagens que, certamente estariam subconscientemente memorizadas e
que mais do que confirmação posterior, deveriam ter estado na
própria origem da ideia” (24).

A partir de 1997 duas novas ações ocorrem: o projeto para a Praça do


Espirito Santo e Envolvente (1997-2000) e o Projeto Integrado de
Intervenção na Sé Catedral e Áreas Limítrofes (1997-2006). Com objetivo
de assegurar desenvolvimento pertinente também às novas construções
espontâneas, previsíveis após requalificação da Aldeia, elaborou-se um
Plano de reordenamento da Praça do Espirito Santo e de uma Zona de
Expansão Habitacional. A integração das áreas limítrofes à Sé, também
atenta para a cotidianidade desejada da vida da aldeia – reconfigura o
terreiro imaginando-o, “como uma praça, zona de lazer e descanso, de
passagem e, desejavelmente, de paragem, na visita à aldeia e a alguns dos
seus principais polos de interesse” (25).

O conjunto das intervenções redefine o monumento preservando-o, repõe sua


dignidade e, na mesma medida atenta para vida corriqueira de seus
habitantes buscando reverter a desertificação em curso. O faz ao
qualificar também espaços para o cotidiano de seus moradores, não apenas
para fruição turística. Vislumbra desse modo um futuro que dignifica o
passado animando e ampliando também a vida no presente dos habitantes do
lugar.

O projeto para Idanha-a-Velha, na urgência em retirá-la de sua condição


de isolamento e esvaziamento progressivo, reinventa um futuro. O faz,
usufruindo da curiosidade turística em relação aos lugares arcaicos, para
ser “amorosamente recuperada”, nos termos de Jorge Figueira, e para que a
história volte a se cumprir. A pequena aldeia conta com o privilégio de
intervenção por arquitetos atentos a sedimentação do tempo sem,
entretanto, ficarem imobilizados por nostalgia. Capazes de imaginar tanto
o que um dia esteve lá, algumas vezes materializado em novos constructos,
quando constituir inédita paisagem. Faz de fato sentido dizer que “a
arquitetura moderna é no Atelier 15 uma medida de conserto e não de
rutura; passou de superação da história para intermediária de um
‘continuum temporal’” (26).

A última intervenção é cúmplice dessa visão: a Casa Alves Costa (2005-


08). Em sintonia com o conjunto a pequena casa é reabilitada com conforto
atual, mas mantida sua feição de antiga casa, em alvenaria e pedra. Faz
de um dos arquitetos um morador, ainda que eventual, da aldeia. Essa
pequena e última intervenção, vista no conjunto da obra do Atelier 15
revela-se, se acompanharmos Figueira, como verso e reverso de outra casa,
a Casa em Caminha, de Sérgio Fernandez (1971-74). “Em Idanha-a-Velha, uma
casa arcaica transforma-se em casa moderna, em Caminha deseja-se o
contrário; fundamentalmente deseja-se que deixe de fazer sentido a
distinção (27).

Elucidativo trânsito entre lugares, avistados a partir da produção dos


dois arquitetos associados no Atelier 15, Alves Costa e Fernandez, para
quem os marcos do passado inevitavelmente se imbricam às experiências do
presente, incitados, afinal, por buscar saber, “como nos situaremos no
futuro com essas novas tradições”.
Praça e caminhos em Idanha-a-Velha de onde se avista Arquivo Epigráfico
Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]
Novo volume construído Arquivo Epigráfico
Imagem divulgação [Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez/ Uzina
Books]

Terá tido ela saudade do futuro?

“Da inteligência do sítio, com o prazer de transformar,


indissociável da esperança no futuro, nascerá seguramente um
método, eticamente defensável. Não é tanto a verdade que nos
fascina, mas o processo em que consiste sua busca com a visão
nela do que falta e não do que aparenta” (28).

Esse ensaio alinha-se com a pergunta formulada pelo narrador do livro A


hora da estrela de Clarice Lispector, ao poder ouvir a última frase de
Macabéa: “– Quanto ao futuro...” o narrador pergunta-se: “Terá tido ela
saudade do futuro?” (29).

A pergunta revela-se oportuna também aos nossos arquitetos e artista que


tramam materialmente suas narrativas. São intervenções compreendidas
territorialmente, pois se configuram em uma paisagem alargada para além
do campo específico de cada obra (ou de cada casa, se nos referirmos à
Vácuo), remetem portanto não apenas aquilo que enquadram, mas a tudo que
ocorre na borda desse enquadramento.

Espraiam-se nos territórios: em Portugal por toda a aldeia, no Brasil no


encalço de cada Moinho, em Moçambique em toda a extensão por onde se
avistam as tais casas ao largo da estrada. Ao incitarem visadas a contra-
campo, realizam inéditas possibilidades, passíveis de serem reconhecidas
distintas, ainda que aproximadas.

Como visto, a cada caso, permitem recordar o que ocorreu, mas o fazem com
saudade do futuro, redefinindo usos, inventando materialidades
inexistentes até então, de modo a, para além dos espaços a serem
preservados, impregnar todo um campo irradiado de novos modos de lá
estar. São ações conjugadas no futuro do pretérito, e agem como sistema
de memórias e não como espetáculo de memória, pontual e protegido. E, ao
assim atuar, libertam os corpos edificados da simples contemplação para
tecer renovadas paisagens.

Pode-se dizer que os três autores atuam com saudade, se entendida nos
termos reconhecidos por Eduardo Lourenço em Mitologia da Saudade para
quem “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso;
inventamo-lo” (30). O autor aponta que “Voltar-se para o passado,
lembrar-se, não é nunca um ato neutro” ainda que possa ser vivido apenas
como simples alusão; entretanto, segundo ele, os “regressos” específicos
da melancolia, da nostalgia, da saudade são de outra ordem, pois conferem
um sentido ao passado que por meio delas convocamos. São modalidades,
“modulações da nossa relação de seres de memória e sensibilidade com o
Tempo” (31), e cada uma delas convocará o passado de diferente modo: “a
melancolia visa o passado como definitivamente passado”, “a nostalgia
fixa-se num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de
desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente
recuperável”; a saudade participa de uma e de outra de modo paradoxal,
“simultaneamente passado e presente”. Para Lourenço, “é esse lugar ao
abrigo do sonho, esse passado-presente, que a ‘alma portuguesa’ não quer
abandonar”.
Lagares, assim como os Moinhos, permitem rememorar uma natureza de
arquitetura na qual o edifício fez parte indissociável das engrenagens
que atuaram para a produção, edifícios-máquina, orquestrando uma série de
ações comunitárias e de modos de convívio singulares a cada caso. Por
exemplo, no caso dos lagares, antes da prensa, levavam ao cultivo da
oliveira, a apanha da azeitona, envolvendo tanto o mestre lagareiro
quanto forasteiros que sazonalmente usufruíam e contribuíam com o
trabalho; no caso dos Moinhos, a farinha artesanal que envolvia desde a
colheita do trigo ou milho à produção do pão.

A alguma coisa que se perdeu em nossa voracidade eficiente e ligeira na


qual o trabalho deixa de ser investido de saberes que decantam com o
tempo, de momentos em que acoplam outros obreiros, de edifícios que
endereçam sitios, pois propiciam, pelo trabalho, o cotidiano esperado. As
imagens das escadas no campo para apanha da azeitona, das cubas para
azeitona num descampado até os criteriosos desenhos das ferramentas às
plantas dos edifícios dos lagares no livro “Tecnologia tradicional do
azeite”, de Benjamim Pereira dá a dimensão dessa trama entre vida e o
conjunto edificado, hoje, monumentos. Aponta para o desconcerto dos modos
de viver os lugares, distinguindo labor de lazer, em geral associado a um
turismo contemplativo.

Assim como as casas flagradas por Bierrenbach, Moinhos e Lagares


persistem no tempo como fantasmagorias que guardam certa incompreensão
pela distância com que entendemos a vida. No presente essas obras abrigam
como que duas vidas, ocorridas em um mesmo corpo. Seriam como as vidas
dos personagens Pedro Gouveia e José Buchmann no livro “O vendedor de
passado”?

“Olho para trás, para o meu passado, e vejo duas vidas. Numa fui
Pedro Gouveia, noutra José Buchmann. Pedro Gouveia morreu. José
Buchmann regressou à Chibia” (32).

O primeiro aspirou ser outro homem, fez morrer sua vida anterior, o
segundo forjou uma existência até o momento, para isso tramou falsos
dados de um passado inexistente. Na potente narrativa literária, um
suplantou o outro até o momento em que a vida passada atravessou a nova
vida, a ponto de confundir o homem que ambicionava ser como dois. E
assim, José Buchmann regressou à Chibia carregando consigo as lembranças
de Pedro Gouveia, e, mais que isso, o futuro que só poderia emergir do
passado de Gouveia, que de fato existiu, e, passa a ser, através de
Ângela, o futuro de Buchmann.

“– Tem notícias da Ângela?


– Vou tendo. Deve estar neste momento a descer o Amazonas numa
daquelas barcaças lentas, preguiçosas, que à noite se cobrem de
redes de dormir. Há muito céu por ali. Muita luz na água. Espero
que se sinta feliz” (33).

Segundo Félix Ventura, o personagem que é “vendedor de passados”, há


alguma diferença, se pensarmos bem, entre ter um sonho e fazer um sonho.
Provocada por essa sutil diferença, parece-me relevante observar que,
tecido entre a vigília e a nevoa onírica, a fabricação de sonhos, ao
misturar tantas memórias, promete abrigar renovadas possibilidades,
desobrigadas de serem apenas inéditas ou apenas nostálgicas, apenas
ocorridas ou só imaginadas, porque prenhes de renovadas tradições.

Fotografia de Marcelo Ferraz em visita à Idanha em novembro de 2006 quando após


conhecer o projeto de intervenção apresentado por Sérgio Fernandez em Évora foi
visitar a Aldeia e conhecer o projeto do Atelier 15
Foto Marcelo Ferraz

notas
NA – Este artigo é uma versão revisada e ampliada do ensaio original
apresentado no II Seminário Internacional Espaços Narrados: as línguas na
construção dos territórios Ibero-americanos, ocorrido em jun. 2019, com
realização da Universidade de São Paulo – USP e do Serviço Social do Comércio –
Sesc São Paulo. Texto elaborado com apoio CNPq – Bolsa de Produtividade em
Pesquisa N2
<https://drive.google.com/file/d/1t80P1zWg2zHPfA9Pu6PiiOHdWfA2KY24/view>.

1
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Atelier 15:
Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez. Lisboa, Uzina Books, 2014, p. 57.

2
Vácuo (Moçambique). Direção Cris Bierrenbach. DVD/vídeo – Projeção slides 35 mm
– (Loop) 2 min, sem som. Coleção Centro Cultural São Paulo
<https://crisbierrenbach.com/pessoal/video/vacuo-mocambique/>.

3
PEREIRA, Benjamin. Tecnologia tradicional do azeite em Portugal. Idanha-a-Nova,
Centro Cultural Raiano, 1997.

4
Mais a respeito da pesquisa ver: THOMAZ, Omar Ribeiro. Escravos sem dono: a
experiência social dos campos de trabalho em Moçambique no período socialista.
Revista de Antropologia, v.5, n. 1. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2008,
p.177-214 <http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/27305>.

5
BIERRENBACH, Cris. Depoimento a Marta Vieira Bogea, 16 de mar. 2019.

6
Idem, ibidem. A artista revela que as casas fotografadas são semelhantes a
tantas que se encontram nas cidades próximas. Elas são estranhas ao campo,
surgem muito isoladas, como se estivessem no meio do nada, entremeadas com
ocupações precárias.

7
Idem, ibidem.

8
Idem, ibidem.

9
Idem, ibidem.
10
FERRAZ, Marcelo. In: PEGORIM, Denise (Org.). Francisco Fanucci – Marcelo
Ferraz: Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005, p.181.

11
Em: FERRAZ, João Grinspum (Org.). Museu do Pão, Caminho dos Moinhos. Ilópolis,
Associação Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari, 2008, p. 26-27.

12
Sobre projeto dos moinhos ver <http://brasilarquitetura.com/>. Sobre o Caminho
dos Moinhos analisado junto a outros projetos do escritório em texto elaborado
por esta autora ver: BOGÉA, Marta. Brasil Arquitetura. Uma partilha das
distâncias, construindo convívios. Arquitextos, São Paulo, ano 14, n. 159.01,
Vitruvius, ago. 2013

<http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.159/4844>.

13
Ver: Edital de inscrição para pré-seleção de padeiros e ou confeiteiros, para
prestar serviço junto a Oficina de Panificação no Complexo Arquitetônico do
Museu do Pão. Associação dos Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari – AAMoinhos.
Ilópolis, 19 abr. 2017
<http://www.sitesdovale.com.br/caminhodosmoinhos/fotos/Chamada_de_pre-
selecao_para_padeiros_e_confeiteiros.pdf>.

14
Na recuperação do Moinho Colognese uma pequena história merece atenção. Diante
da necessidade de constituir uma nova abertura, os arquitetos depois de várias
hipóteses e ao descobrir que os janelas teriam que ser todas reconstruídas
optam por construir uma nova janela – a quinta janela até então inexistente. O
fizeram com a convicção de que nos Moinhos o mais relevante é assegurar sua
aparente integridade original. Essa história me foi contada por Marcelo Ferraz
após a leitura do ensaio que deu início a esse texto. Revela que no desafio de
recuperar o passado os regramentos genéricos por vezes exigem criteriosa
revisão pois devem se manter pertinentes dentro das circunstâncias de cada
caso.

15
CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura em movimento (depoimento). O Milagre do Pão.
Direção Isa Grinspum Ferraz. Realização Nestlé Brasil, 2006. 55 min.

16
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 57.
17
Jorge Figueira no texto “Atelier 15: Alterações climáticas” (publicado em
Atelier 15: Alexandre Alves Costa, Sérgio Fernandez, p. 6-13), reconhece três
matrizes oportunas para analisar a obra do Atelier 15: “Para avançar na frente
‘científica’, diria que há três matrizes recorrentes na obra do Atelier 15: uma
modernista, que é quase uma linguagem ‘por defeito’ (centro interpretativo de
Santa Clara-a-Velha, edifícios de habitação em Viana do Castelo); uma
brutalista, que satisfaz o gosto por uma resposta sem excessivas subtilezas
(torre em Castelo Velho, habitação em Moledo); e uma primitivista, onde
confluem livremente o ‘Inquérito’, a mítica passagem de Sérgio Fernandez por
Rio de Onor, e a referência a Louis Kahn que Alves Costa foi veiculando (Escola
pré-primária em Moledo, Lavadouro na Afurada)”. FIGUEIRA, Jorge. In: NEVES,
José Manuel das (Org.). Op. cit, p. 11.

18
Idem, ibidem, p. 12.

19
NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit., p. 62.

20
Idem, ibidem, p. 59.

21
Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos (mai. 1964). Carta de
Veneza. II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos
Históricos. Portal Iphan, Rio de janeiro, s/d
<http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964

22
Poderíamos supor como um Viollet-le-Duc revisitado, sem o exagero de forjar um
passado inexistente, mas disponível a reconstruir assegurando integralidade ao
documento? Diante do desafio de reconhecimento do original agem os arquitetos
na Porta da Muralha de modo semelhante a ação do Brasil Arquitetura ao
construir a quinta janela no Moinho? Vale lembrar que para le-Duc era possível
estabelecer o “modelo ideal” e retornar o edifício a “um estado completo que
pode não ter existido nunca em um dado momento”. A esse respeito ver: VIOLLET-
LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. 3ª edição. São Paulo, Ateliê Editorial,
2007, p. 29. O exercício hipotético realizado aqui mais do que buscar filiação,
neste texto pretende demonstrar que existe, mesmo sem nominações ou referências
diretas, um sofisticado trânsito entre pensar e fazer, entre teoria e prática,
que irrigam-se mutuamente.
23
No contexto desse artigo, é importante observar que, no Brasil, Lina Bo Bardi,
de quem Ferraz foi importante colaborador, revela atenção a essa debate, ainda
que sem citar diretamente documentos de patrimônio ou Gustavo Giovanonni (de
quem Lina, segundo depoimento de Ferraz foi aluna). Ver, por exemplo, o
memorial publicado sobre a Nova Prefeitura de São Paulo (1990-92): “É preciso
se libertar das ‘amarras’, não jogar fora simplesmente o passado e toda a sua
história: o que é preciso é considerar o passado como presente histórico, e
ainda vivo [...] frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar um outro
presente, ‘verdadeiro’”. Ver: FERRAZ, Marcelo Carvalho (Org). Lina Bo Bardi. 4ª
edição. São Paulo, Instituto Bardi/Casa de Vidro / Romano Guerra, 2018, p. 319.

24
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 74.

25
Idem, ibidem, p. 84.

26
FIGUEIRA, Jorge. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit, p. 8.

27
Idem, ibidem.

28
ATELIER 15. Memorial de projeto. In: NEVES, José Manuel das (Org.). Op. cit.,
p. 57.

29
LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro, Rocco, 1998, p. 68.

30
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade: seguido de Portugal como destino. São
Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 14.

31
Idem, ibidem, p. 12.

32
AGUALUSA, José Eduardo. O vendedor de passados. Rio de janeiro, Gryphus, 2004,
p. 190.
33
Idem, ibidem, p. 194.

sobre a autora

Marta Bogéa é arquiteta (UFES, 1987), livre docente (FAU USP, 2018), mestre em
Comunicação e Semiótica (PUC SP, 1993) e doutora em Arquitetura e Urbanismo
(FAU USP, 2006). Professora do Departamento de Projeto da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Na pós-
graduação atua nas áreas de concentração Projeto de Arquitetura e Projeto,
Espaço e Cultura. Pesquisadora CnpQ, Produtividade em Pesquisa n2.

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