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229.01 arquitetura moderna ano 20, jun. 2019

O espaço moderno como fração do infinito


Mies van der Rohe e o projeto para o campus do Illinois Institute of
Technology em Chicago
Rodrigo Queiroz

229.01 arquitetura
moderna
sinopses
como citar

idiomas
original: português
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229
229.00 arquitetura e
memória
Imaginar o passado, com
saudade do futuro
Marta Bogéa
229.02 crítica
Dan Graham
Dialéticas do vidro e
autoimagem
Michel Nunes Lopes
Masson
Mies van der Rohe, S. R. Crown Hall (1950-56). Illinois Institute of
Technology
Foto Rodrigo Queiroz

como citar
QUEIROZ, Rodrigo. O espaço moderno como fração do infinito. Mies van der Rohe e
o projeto para o campus do Illinois Institute of Technology em Chicago.
Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 229.01, Vitruvius, jun. 2019
<https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.229/7416>.

Os projetos para o campus e para vinte edifícios do Illinois Institute of


Technology (1) (1943-56) constituem o maior conjunto edificado do
arquiteto alemão Mies van de Rohe (1886-1969), juntamente com o bairro
projetado em Lafayette Park, Detroit (1959) (2).

Em seu conhecido livro Arte Moderna (3), Giulio Carlo Argan postula que a
arquitetura moderna é resultado da simultaneidade de ações como a
planificação urbana, a industrialização e a abstração construtiva da
forma. Para o historiador italiano, o caráter universalizante da forma
moderna não se exprime somente na forma em si, mas na sua intrínseca
condição de modelo, de elemento de uma totalidade maior definida pela
relação espacial entre essas mesmas formas. Ou seja, enquanto conceito, a
arquitetura moderna já nasce urbanismo e vice-versa, são uma coisa só.

Em um dos seus primeiros ensaios críticos, Arquitetura Modernista: um


espaço sem lugar (4), a também historiadora Sophia Telles aproxima-se da
síntese de Argan ao afirmar que “a arquitetura moderna já é urbanismo no
momento em que se constitui. Ela supõe a série, o standard, a
planificação urbana a partir da perspectiva zero. O Mundo Novo. Esse é o
lema da sua presença: a forma como expressão universal. Modo de
deslocamento do subjetivo e do irracional, modo de fugir à opressão da
natureza, como queria Mondrian.
Segundo Argan e Telles, o propósito moderno ultrapassa necessariamente a
compreensão do edifício como objeto único, como representante da sua
própria singularidade. A arquitetura moderna seria a própria relação
contínua e exponencial entre forma e vazio. A arquitetura moderna é o
espaço moderno.

A transposição imediata do imaginário da produção serial e repetitiva da


indústria para configuração do plano urbano resultou, primeiramente, em
uma espécie de implantação também serial (edifícios iguais e
equidistantes entre si), aos moldes dos modelos iniciais de cidade
propostos pelo urbanista alemão Ludwig Hilberseimer (1885-1967). Contudo,
a repetição formal e espacial, assim como o caráter massificador desse
tipo de implantação com aspecto de linha de montagem condenaria a
arquitetura/urbanismo moderna a um automatismo previsível, tornando a
parte e o todo, ou seja, a unidade e o espaço, em entidades infinitamente
iguais e equivalentes.

Na década de 1960, alguns artistas minimalistas norte-americanos, como


Donald Judd (1928-94) e Walter De Maria (1935-2013), formalizaram o
conceito de repetição serial e equivalência justamente com a finalidade
de extinguir dessas obras as noções históricas de singularidade e de
composição. O objeto único dá lugar à série, geralmente configurada por
elementos em quantidade maior que duas unidades. A repetição serial
elimina todo e qualquer desvio à subjetividade, a critérios artísticos ou
pessoais no ato de dispô-las no espaço.

Donald Judd. “Untitled (Stack)”, 1967. Laca sobre ferro galvanizado. 22,8 x
101,6 x 78,7cm cada peça. Nove peças com intervalos de 22,8 cm entre elas.
Museu de Arte Moderna de Nova York
Foto Rodrigo Queiroz

Mas, afinal, como organizar um espaço balizado pela tríade arganiana


“industrialização, planificação urbana, abstração construtiva” sem se
deixar levar nem pela previsibilidade da repetição serial, nem por uma
organização que retroceda à estruturas compositivas de feição acadêmica
(5) ou muito menos por uma disposição de aspecto aleatório, subjetivo,
ocasional ou lírico? (6).

Coube à inteligência moderna, principalmente a Mies, mas também ao


neoplasticismo holandês, enfrentar essa questão crucial a partir do
desenvolvimento de estratégias de organização do espaço nas quais a
relação entre unidades iguais ou parecidas deixa de ser serial, acadêmica
ou aleatória. Refiro-me à organização exponencial (7), onde se reconhece
a existência da variação, porém submetida à uma lógica de organização
particular. Na organização serial, quem vê a parte compreende de modo
literal o todo pois já sabe de antemão como essa relação entre forma e
espaço continua, mesmo sem a necessidade de experienciá-la fisicamente ou
mesmo visualmente. Na organização exponencial, quem vê a parte apenas
intui o aspecto da organização do todo. É possível compreender o
funcionamento do sistema sem visualizar a exata imagem da sua potencial
expansão (8).

A disposição ortogonal de elementos lineares ou de proporção retangular –


mas com variações na sua locação, a partir do uso de uma retícula que
confere parâmetros espaciais e proporcionais entre as partes – é uma
estratégia identificável tanto nas plantas e nos planos urbanos de Mies
como nas pinturas de neoplasticistas como Theo van Doesburg e Mondrian.

Esquerda: Piet Mondrian. “Tableau n.2 / Composition n.V”, 1914. óleo sobre
tela. 54,8 x 85,3cm. Direita: Theo van Doesburg. “Ritmo da dança russa”, 1918.
óleo sobre tela. 135,9 x 61,6cm. Museu de Arte Moderna de Nova York
Foto Rodrigo Queiroz

A estratégia da expansão exponencial a partir da multiplicação ortogonal


de um mesmo elemento ou de elementos pertencentes a uma mesma matriz
geométrica constitui uma estrutura sobre a qual forma e vazio (figura e
fundo) se articulam em um esquema capaz de se expandir em todas as
direções, ou seja, ao infinito, mas sem o automatismo e a previsibilidade
monótona da repetição serial. Com esse sistema, Mies e os neoplasticistas
aproximaram a lógica industrial do modelo a um modo sensível de organizá-
los mesmo que sobre uma retícula pré-definida, preservando, em certa
medida, o caráter autoral desta relação entre a figura e o fundo ou entre
a forma e vazio.

As plantas de projetos de Mies como a Brick House (1923) e o Pavilhão


Alemão na Feira Internacional de Barcelona (1929) são reconhecidamente
apontadas como exemplares dessa organização ortogonal aberta, como parte
visível de uma totalidade idealmente imensurável. Contudo, acredito que o
projeto para o campus do Illinois Institute of Technology represente o
exemplo mais aprimorado dessa visão pictórica e espacial desdobrada na
escala do urbanismo, pelo menos na obra de Mies. A própria implantação
das duas torres de apartamentos (1948-51) projetadas pelo arquiteto
também em Chicago, localizadas nos números 860 e 880 da Lakeshore Drive,
revelam uma fração dessa organização ortogonal aberta. As torres estão
implantadas perpendicularmente entre si, porém sutilmente desalinhadas.
Elas não se encontram inscritas em uma poligonal fechada.

Mies van der Rohe, 860-880 N Lake Shore Drive Apartments (1949-51) Chicago
Foto Rodrigo Queiroz

Para o arquiteto, tanto o projeto do campus do IIT como dos edifícios que
o integram são consequência de uma mesma decisão espacial: a retícula de
7,30m x 7,30m (24’ x 24’), medida do módulo estrutural mínimo das peças
metálicas utilizadas nos projetos dos edifícios. Notem que o arquiteto
lança mão de um módulo estrutural interno à lógica do edifício para
definir a organização destes no espaço. Para Mies não há diferenciação
disciplinar entre os projetos da arquitetura e do urbanismo. Forma e
vazio desdobram uma métrica comum proveniente da técnica. Tanto as
edificações como os espaços que as envolvem são dimensionados a partir de
um mesmo módulo reticular resultante da relação entre forma
arquitetônica, cálculo estrutural, técnica construtiva e
industrialização.

Já na escala do plano, Mies define a coluna como sua entidade geométrica


mínima: o ponto que resulta do cruzamento ortogonal de duas linhas, à
maneira de projetos anteriores, como nas colunas cruciformes do Pavilhão
Alemão em Barcelona (1929) e da Casa Tugendhat (1928-30). A modulação de
7,30m x 7,30m não traduz apenas o módulo estrutural mínimo como também,
segundo o próprio arquiteto, se presta como dimensionamento de elementos
do programa que se repetem em muitos dos edifícios, como as medidas das
salas de aula (9).

A própria duração do projeto para o campus revela o caráter indissociável


que este estabelece com a arquitetura, não havendo uma separação clara,
seja temporal, seja conceitual, entre os projetos da arquitetura e do
plano. Trata-se de uma ação única. Sua datação se estende por todo o
período em que Mies realizou os projetos dos edifícios do IIT, de 1943 a
1957. O raciocínio de Mies unifica, comprime a trivial cronologia do
plano urbano que antecede o projeto do edifício.

O projeto de Mies para o campus não assume o caráter de um plano diretor


que aponta diretrizes para ações futuras ou simplesmente setoriza
programas de ensino e pesquisa para os edifícios que virão em seguida. No
IIT, plano e projeto são a mesma coisa, são a imagem de um único
pensamento: a forma só se justifica quando projetada e disposta segundo a
modulação espacial do plano, que, por sua vez, só se constitui se
preenchido pela forma cuja linguagem seja a resposta à razão de ser do
próprio plano.

Dos vinte edifícios projetados por Mies no IIT, dois são, sem dúvida, os
mais conhecidos: o S. R. Crown Hall (1956) e a Chapel of St. Savoir
(1952). Mais do que a própria imagem do campus como um todo (só possível
visto do alto, aliás), o S. R. Crown Hall (10) é o símbolo mais
representativo da presença de Mies no IIT, seja como arquiteto dos
edifícios, seja como educador e diretor do College of Architecture, ali
sediado.

De todos os edifícios projetados por Mies no IIT, o S. R. Crown Hall é o


único cuja materialidade é definida apenas pela relação entre a estrutura
de aço e os fechamentos exteriores de vidro, identificável em
praticamente todos os projetos do arquiteto alemão realizados na América
do Norte a partir de 1950, além da Neue Galerie, em Berlim (1962-68).

No IIT, os edifícios projetados anteriormente ao Crown Hall caracterizam-


se pelo uso de três materiais principais: além do aço e do vidro
mencionados acima, o tijolo aparente é utilizado como matéria de
fechamento de parte dos planos exteriores. Na verdade, não se trata do
tijolo comum, tal qual o conhecemos, mas um tijolo tipo clínquer, que
leva calcário calcinado em sua composição, o que confere um aspecto mais
mineral e pétreo ao material.

Em todos os edifícios identificados pelo uso desses três materiais, os


perfis metálicos, pilares e vigas pintados de preto, funcionam como uma
retícula uniforme, imprimindo unidade e proporção às fachadas. Cada um
desses alvéolos retangulares, resultantes dos cruzamentos das tiras
horizontais (vigas) e verticais (pilares), é preenchido por vidro, por
tijolo ou por ambos. Quando o alvéolo é preenchido por ambos, a
superfície de tijolo cumpre o papel de peitoril sobre o qual se apoia o
plano de vidro. Nesses edifícios, inexiste a ideia tradicional da janela
como um orifício envolvido por um plano opaco, solução que abriria um
indesejável precedente à subjetividade. Nessa situação, o problema
passaria a ser a locação da janela no plano da fachada. A trama
estrutural aparente já é, em si mesma, a locação e o dimensionamento da
própria janela. Essa estratégia propositalmente anti-autoral de
organização da superfície está no cerne da linguagem construtiva. Ou
seria possível imaginar um retângulo colorido solto, flutuando no
interior de um dos módulos brancos resultantes do cruzamento ortogonal
das tiras pretas de Mondrian? Claro que não.

De todos os dezenove edifícios de Mies no IIT identificados pela relação


ortogonal entre os perfis estruturais em aço, o vidro e o tijolo, quatro
deles exemplificam com maior clareza a unidade entre esses três
materiais. Refiro-me aos Alumni Hall (1946), Wishnick Hall (1946),
Perlstein Hall (1947) e Siegel Hall (1957). Enquanto solução
arquitetônica, os quatro edifícios são extremamente parecidos. Todos eles
abrigam praticamente o mesmo programa: salas de aula, auditórios e
setores administrativos dos cursos.

O Wishnick Hall e o Siegel Hall, apesar dos projetos estarem separados


por onze anos, são praticamente iguais: possuem três pavimentos, as
mesmas dimensões em planta e não há diferenças evidentes nas soluções
para os perfis estruturais, fechamentos de tijolos e caixilhos em sistema
guilhotina. Já o Alumni Hall possui as mesmas medidas em planta do
Wishnick Hall e do Siegel Hall, porém com apenas dois pavimentos. Além de
um andar a menos, a única diferença aparente do Alumni Hall em relação
aos outros dois edifícios é o sistema de abertura dos caixilhos, que
correm horizontalmente. O Pernstein Hall possui dois pavimentos, mas
praticamente o dobro da área em planta, se comparado aos outros três
edifícios. Os quatro edifícios são múltiplos do módulo mínimo que
organiza todo o campus: 7,30 x 7,30m. A largura dos três edifícios
menores é de 3 módulos de 7,30m e o comprimento mede nove módulos. Já no
Pernstein Hall, a largura é de 5 módulos e o comprimento de 12 módulos.

Mies van der Rohe, Siegel Hall (1957). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz

Mies van der Rohe, Wishnick Hall (1946). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz

Além do uso restrito dos três materiais, a característica que confere


unidade aos quatro edifícios é outra solução tipicamente miesiana: a
autonomia dos elementos que integram a construção: os planos verticais,
os materiais de fechamento e a estrutura. A fresta, enquanto conceito, é
um elemento fundamental para a compreensão dos processos formais que a
vertente construtiva, na arquitetura e nas artes visuais, elabora com o
intuito de desmontar a solidez da volumetria história e consequentemente
o operacional compositivo entre cheios e vazios resultante da manutenção
dessa volumetria. Linha ora de sombra, ora de luz, a fresta é um hiato,
um vazio que justamente evidencia a separação entre as partes que
configuram a forma.

Longe do amálgama formal e material que identifica muitas obras de


arquitetos modernos como Oscar Niemeyer (1907-2012) ou o próprio Le
Corbusier (1887-1965) pós-1947, para arquitetos como Mies ou Gerrit
Rietveld (1888-1964), uma das maneiras de comunicar a condição abstrata e
construtiva da forma é evidenciar a legibilidade de cada elemento que a
define. No caso dos quatro edifícios do IIT (assim como muitos outros
edifícios projetados por Mies), nota-se que uma fresta, um baixo-relevo,
separa os elementos estruturais dos elementos de fechamento. A coluna
encontra-se entre dois planos de fechamento, porém solta. Percebe-se a
mesma preocupação com as colunas localizadas nos cantos. Nesse caso, a
coluna não se constitui como uma continuidade dos planos verticais de
fechamento (o que reafirmaria uma indesejável condição de volume ao
edifício), mas encontra-se recuada em relação a esses planos, como uma
espécie de friso negativo, solução também recorrente nos projetos de
Mies.

Mies van der Rohe, Wishnick Hall (1946), detalhe. Illinois Institute of
Technology
Foto Rodrigo Queiroz

Mies van der Rohe, Wishnick Hall (1946), detalhe. Illinois Institute of
Technology
Foto Maria Isabel Imbronito

Vale lembrar que o uso do tijolo aparente é identificável em projetos de


Mies pré-1929, como as casas Lange e Esters (1927) ou o próprio monumento
dedicado à Rosa de Luxemburgo (1926). Contudo, percebe-se que nesses
projetos, o tijolo pertence às superfícies de um conjunto caracterizado
pelo arranjo compositivo – para não dizer cumulativo – de volumes. Nas
casas Lange e Esters, as aberturas ainda estão inscritas nos planos de
fechamento, como se os planos da fachada se prestassem como molduras para
as aberturas, solução que ainda revela aproximações com determinadas
características históricas da forma, mas que serão paulatinamente
desmontadas a partir de então.
Contudo, quando observamos a relação planar entre as superfícies de
tijolo e vidro separadas pelos elementos estruturais que caracteriza a
maioria dos edifícios projetados por Mies no IIT, a imagem que parece vir
à mente é da fábrica de sapatos ortopédicos Fagus (1911-25), projeto de
Walter Gropius (1883-1969) e Adolf Meyer (1881-1929). Assim como nos
edifícios do IIT, na Fagus há um evidente desejo pela elementarização dos
materiais e dos planos, contudo ainda condicionado à uma volumetria
tradicional, o que resulta em um projeto híbrido (11).

O jogo assimétrico entre o volume de tijolo (mais baixo e em primeiro


plano) e o volume transparente, que identifica o pavilhão fabril em si,
revela uma disposição ao movimento e à ruptura do aspecto maciço da
forma. Porém, o trecho de tijolo caracteriza-se por soluções que ainda
reverberam certa continuidade com a volumetria compósita: a porta
localizada no eixo de simetria vertical da fachada, assim como a escada
que dá acesso à entrada, com os degraus espelhados no mesmo eixo de
simetria. Já no bloco envidraçado, na forma de um pavilhão linear, os
planos de vidro encontram-se salientes, em primeiro plano em relação às
colunas, invertendo a lógica da arquitetura tradicional, na qual as
aberturas (ou a transparência) localizam-se em baixo-relevo, envolvidas
pela matéria opaca e espessa da fachada. Soma-se à solução do plano
saliente de vidro, o fato de que os mesmos envolvem todo o pavilhão, com
exceção das tais colunas recuadas, evidenciando assim a ausência de
colunas nos pontos onde historicamente elas sempre estiveram: nas arestas
do volume.

Assim como Gropius, Mies aponta para a autonomia do plano/matéria ao


separar os fechamentos dos elementos estruturais. Contudo, diferentemente
da sua obra anterior (e da própria Fagus), os edifícios do IIT não
resultam mais da intersecção de volumes e planos em organização
centrífuga, eco do diálogo com o neoplasticismo e com o próprio partido
da planta distendida de Frank Lloyd Wright. No ITT, o sistema de
organização centrífuga (ou exponencial) ultrapassa o âmbito da forma e
define a posição dos edifícios no espaço, mesmo que identificado pela
presença de um eixo longitudinal principal que organiza todo o conjunto a
partir do S.R. Crown Hall.

No projeto da St. Savior Chapel (1949), Mies adota o mesmo partido formal
e material que identifica os Alumni Hall, Wishnick Hall, Perlstein Hall e
Siegel Hall: volumetria em formato de prisma de seção retangular com os
fechamentos exteriores definidos por planos verticais de tijolo e de
vidro. Porém, na capela, os planos de vidro e tijolo não estão separados
pelos pilares metálicos localizados no plano da fachada como nos demais
edifícios. No templo projetado por Mies, as colunas encontram-se
ocultadas pela parede de tijolo que envolve todo o comprimento do volume,
além de parte das larguras, nas fachadas frontal e posterior, de maneira
igual.

O que chama atenção na St. Savior Chapel não é necessariamente sua


arquitetura enquanto elemento de destaque no conjunto, uma vez que ela
reproduz a mesma matriz aplicada em praticamente todos os edifícios do
campus. No fundo, o que desperta o interesse é justamente o fato de ser
um edifício religioso, porém quase que incógnito em meio aos seus pares.
Ou seja, Mies reconhece a capela como apenas mais um elemento padrão
desse espaço universal e potencialmente extensível graças à latente
legibilidade da forma, dos componentes que a integram e do sistema de
organização dos mesmos.

Mies van der Rohe, St. Savior Chapel (1949). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz

É natural que reconheçamos igrejas e outros templos religiosos pela sua


condição de destaque na paisagem, seja ela construída ou natural.
Historicamente, tais edifícios são compreendidos como elementos de
exceção (ou seja, excepcionais) que assumem determinado protagonismo no
contexto onde estão implantados. Ao eliminar esse sentido de
originalidade inerente às edificações religiosas, Mies desmonta a própria
lógica que rege a linguagem desse tipo de arquitetura ao indistinguir
arquitetonicamente o espaço sagrado dos espaços de estudo e de pesquisa,
contrariando assim a histórica e pré-moderna concepção tipológica que
regia a relação disciplinar entre programa e forma, principalmente no
campo da arquitetura religiosa.

Os projetos de igrejas e capelas, no âmbito da arquitetura moderna, se


constituem como uma oportunidade controversa, mas também quase
incontornável de diálogo com a própria história desses espaços rituais,
sua tipologia e suas simbologias. Projetos como a Capela de Notre-Dame-
du-Haut (1947-50), de Le Corbusier, a Igreja de São Francisco de Assis
(1943) e a Catedral de Brasília (1958), de Oscar Niemeyer, assumem postos
de inegável destaque nas obras desses arquitetos e na própria história da
arquitetura moderna pois justamente revelam não apenas a incorporação de
elementos e da espacialidade litúrgica, mas também, ou principalmente, a
tradução desses mesmos elementos – que, no caso de Niemeyer, também
inclui a iconografia católica – pelo léxico abstrato da própria
arquitetura moderna.

Na parte do campus onde encontra-se a St. Savior Chapel estão localizados


quatro edifícios destinados à habitação estudantil, implantados em
formato de “C” e voltados para um gramado quadrado central. Os três
edifícios idênticos (12) do conjunto de quatro foram projetados por Mies
e possuem oito pavimentos-tipo sobre pilotis e planta retangular de
proporção 2/1, com o comprimento medindo o dobro da largura. O edifício
que difere dos outros três possui a planta mais comprida e dez pavimentos
apoiados diretamente sobre o solo, sem o térreo livre. Apesar das
diferenças formais, o quarto edifício preserva semelhanças com os três de
autoria de Mies, como o uso do caixilho sequencial em módulos de quatro
unidades e o tijolo aparente das fachadas cumprindo a função de peitoril.
Porém, nos edifícios projetados por Mies, os fechamentos estão inscritos
na trama estrutural aparente, nesse caso não mais em aço, mas em
concreto. Assim como no projeto das torres 860-880 na Lake Shore Drive,
também em Chicago, nos edifícios de habitação do IIT, Mies desloca os
dois blocos perpendiculares entre si de seus alinhamentos imediatamente
naturais, abrindo aquilo que seria o fechamento virtual caracterizado
pelo prolongamento dos alinhamentos ortogonais.

Mies van der Rohe, Carman Hall Apartments (1953). Illinois Institute of
Technology
Foto Rodrigo Queiroz

Próximo ao conjunto de edifícios habitacionais e à St. Savior Chapel


encontra-se aquele que talvez possa ser considerado o projeto mais
improvável de todos os edifícios que integram o campus do IIT. O trecho
do trilho suspenso que sobrevoa o campus e o divide ao meio é embrulhado
em um tubo de seção oval, revestido em chapa de metal corrugado e apoiado
sobre sete pares de colunas inclinadas. Esse tubo funciona como um
isolante acústico que preserva o campus dos ruídos do trem em movimento.
O projeto dessa proteção acústica, assim como do McCormick Tribune Campus
Center, edifício raso, de perímetro anguloso, cobertura “borboleta” e
fechamentos coloridos, que parece rastejar sob o tubo, são de autoria do
arquiteto holandês Rem Koolhaas (1944). Inaugurado em 2003, trata-se da
primeira obra concluída deste arquiteto em território norte-americano. O
edifício horizontal, cujo perfil dá a sensação de que o mesmo está sendo
quase que esmagado pelo tubo suspenso (o que nos leva a crer, em um
primeiro momento, que o tubo já estava lá e que o McCormick Tribune veio
se acomodar por baixo posteriormente) envolve parcialmente um edifício
também horizontal, térreo, projetado por Mies, chamado The Commons, com
espaços de convivência, café e restaurante. Tal edifício de Mies segue a
relação entre fechamentos transparentes e de tijolos, assim como o uso da
estrutura reticular em aço presentes em outros pavilhões do IIT. Porém,
diferentemente dos demais, The Commons se reduz à uma plataforma
horizontal de um único pavimento.

As angulações em planta definidoras do perímetro do edifício projetado


por Koolhaas contrastam com a ortogonalidade de Mies, mas curiosamente
envolvem dois lados perpendiculares do The Commons, quase como que se
quisesse mordê-lo, ou como uma chave de boca menor que inutilmente
insiste em se encaixar na sua respectiva porca (no caso, quadrada). Os
vazios resultantes do encontro (ou desencontro) entre os lados ortogonais
do edifício de Mies e os planos angulosos do edifício de Koolhaas
configuram uma inusitada sequência de três jardins internos triangulares.

O conjunto de Koolhaas, formado pelo tubo suspenso e o edifício raso


imediatamente abaixo dele, é a única construção do IIT que destoa do
rigor ortogonal das obras de Mies e dos demais edifícios do campus,
projetados por discípulos do arquiteto alemão. Aliás, é muito provável
que um visitante despreparado facilmente reconheça outros edifícios do
campus como sendo de autoria de Mies ou o mesmo o contrário: acredite que
parte dos edifícios projetados pelo próprio Mies seja dos arquitetos por
ele formados.

Rem Koolhaas, McCormick Tribune Campus Center (2003). Illinois Institute of


Technology
Foto Maria Isabel Imbronito

De fato, devemos reconhecer que, com exceção do projeto de Koolhaas, os


demais edifícios do campus são extremamente parecidos com aqueles
projetados por Mies, desde que separados em suas respectivas categorias:
os identificados pela grade estrutural preenchida pelos planos ora
transparentes, ora de tijolos, como os Alumni Hall, Wishnick Hall,
Perlstein Hall e Siegel Hall; e aqueles que desdobram o paralelepípedo
transparente marcado pelo ritmo regular da estrutura e o vigamento
invertido na cobertura, que têm como referência o próprio S. R. Crown
Hall.

Os exemplares praticamente iguais aos edifícios pertencentes à primeira


categoria são o John T. Rettaliata Engineering Center (1968), o Robert A.
Pritzker Science Center (1969) e o Stuart Building (1971), todos eles
projetados pelo arquiteto norte-americano Myron Goldsmith (1918-96), mais
conhecido pelos seus projetos de arenas esportivas, como o Portland
Memorial Coliseum (1960), o Oakland Alameda County Coliseum (1966) e o
Oracle Arena (1966), todos eles como membro do escritório SOM (Skidmore,
Owings and Merill). Contudo, o projeto mais célebre que leva assinatura
de Goldsmith é o telescópio solar McMath-Pierce (1966), no Arizona.

Os dois exemplares da segunda categoria, ou seja, que derivam nitidamente


do partido formal e material do S. R. Crown Hall, são o Grovin Hermann
Hall (1962) e a Paul V. Galvin Library (1962). Esses dois edifícios foram
projetados pelo arquiteto, também norte-americano e também membro
temporário do escritório SOM, Walter Netsch (1920-2008), mas conhecido
por suas obras de feição brutalista, como a Regenstein Library (1970), na
Universidade de Chicago.
Walter Netsch, Grovin Hermann Hall (1962) Illinois Institute of Technology
Foto Maria Isabel Imbronito

Walter Netsch, Galvin Library (1962). Illinois Institute of Technology


Foto Maria Isabel Imbronito

Por mais que compreendamos na arquitetura/plano de Mies para o IIT como a


imagem de um espaço que demonstra a possibilidade de equivalência entre
as formas e entre as formas e o vazio, é inegável que seu projeto para
S.R. Crown Hall assume lugar de destaque neste conjunto, seja pela
arquitetura em si, seja pelo modo como está implantado. Apesar do modelo
de implantação dos edifícios se aproximar do esquema exponencial ou
centrífugo (baseado em uma distribuição definida por uma variação sem
hierarquia espacial, mas também sem repetição), é facilmente reconhecível
a presença de um eixo longitudinal que organiza os principais edifícios
do conjunto.

O S.R. Crown Hall implanta-se justamente em uma das “cabeças” desse eixo,
localizada próxima ao acesso de quem chega ao campus pela estação de trem
35th Bronzeville IIT (13). Vale dizer que essa linha de trem suspensa
passa pelo meio do campus, dividindo-o ao meio. De um lado, estão
localizados os edifícios educacionais e de pesquisa e do outro, os
edifícios destinados às demais atividades do cotidiano universitário,
como edifícios habitacionais, centros de convivência, restaurante e a
própria “The God Box”, a maioria deles também projetada por Mies.

Apesar de se localizar em uma das pontas do eixo principal do campus, o


S.R. Crown Hall não está voltado para esse eixo, ao contrário, dá as
costas a esse espaço de proporção linear que integra os demais blocos
educacionais do conjunto. O acesso principal do edifício localiza-se em
frente à via de pedestres, que se constitui como a continuidade da 34th
St, que corta transversalmente a metade do campus onde se encontram os
espaços de convivência e moradia estudantil.

À primeira vista, causa estranhamento do fato do S.R. Crown Hall dar as


costas para o principal espaço articulador dos edifícios do campus. A
solução mais consequente, mais imediata, seria voltar a face principal
deste edifício para esse espaço de configuração linear. Três das quatro
faces do campus são completamente abertas para a cidade. Apesar do plano
do IIT caracterizar-se pela organização ortogonal de objetos isolados
sobre o solo, o espaço do campus e o espaço da cidade são uma coisa só.
Apenas o limite oeste, delimitado por uma linha férrea de superfície
paralela a uma via expressa, possui um obstáculo gradeado.

O S.R. Crown encontra-se próximo à principal via de acesso ao campus, a


S. State St, localizada à leste. Em que pese a ausência de muros e
portões que poderiam definir acessos específicos, esse edifício de Mies
marca uma espécie de “entrada” no campus do IIT, daí talvez do fato de
seu acesso estar voltado ao alinhamento da 34th St e não o contrário.
Dentro do desenho do IIT, o S.R. Crown Hall funciona muito mais como um
ponto de partida do que como um ponto de chegada. Se assim o fosse,
talvez se justificasse seu acesso voltado para o eixo de edifícios
educacionais, como plano de fundo e destino de um espaço linear e
convergente. Mas o que ocorre é o oposto: passa-se pelo S.R. Crown Hall
para se chegar à esplanada.

Esse edifício é o único projetado por Mies no campus do IIT que não se
caracteriza pelos planos de fachada em trama estrutural ortogonal e com
os alvéolos retangulares preenchidos por vidro, tijolo ou por ambos. O
edifício do College of Architecture no IIT pode ser compreendido como a
síntese mais radical da experiência de Mies nos EUA, pois realiza, ao
mesmo tempo, a forma transparente e o espaço contínuo, livre.

A imagem mais imediata da obra de Mies nos EUA são os edifícios em


altura, como o Seagram Building (1954-58), em Nova York, as duas torres
Lake Shore Drive 860-880 apartaments (1948-51) e o conjunto Federal Plaza
(1959-74), ambos em Chicago. Contudo, o sistema estrutural como
inteligência definidora não apenas da forma, mas também do espaço
interior desprovido de colunas, se revela na obra de Mies em edifícios de
proporção pavilhonar, como os projetos para um centro de convenções em
Chicago (1953 – não construído), a Nova Galeria Nacional de Berlin (1962-
68) e o próprio S.R. Crown Hall (1950-56).

Medindo 36m x 67m, a cobertura do S.R. Crown Hall é sustentada por quatro
vigas invertidas dispostas paralelamente, no sentido de sua largura, ou
seja, vencendo um vão de 36m. Tal solução estrutural libera o espaço
interior do piso superior da necessidade e, sendo assim, da presença de
qualquer elemento estrutural. Na intenção de justamente enfatizar a
percepção da continuidade espacial decorrente da ausência de apoios, Mies
suprimiu, obviamente, qualquer fechamento interno que tocasse a face
inferior da laje de cobertura. Localizado no eixo de simetria transversal
da planta, porém mais próximo da entrada secundária, oposta à principal,
há um conjunto de painéis de madeira que funciona como anteparo que
resguarda o acesso posterior, cuja altura equivale à metade do pé-
direito. A imagem desses painéis de madeira clara soltos no espaço
interior do S.R. Crown Hall faz lembrar, inevitavelmente, da mesma
relação painel de madeira/espaço transparente elaborada por Mies na casa
Farnsworth (1945-51), onde esses mesmos painéis contém o núcleo
hidráulico (cozinha e dois banheiros gêmeos), cuja dimensão e locação na
planta definem todas as funções do espaço. Contudo, vale lembrar que tal
relação já é perceptível no projeto de Mies para a residência Tugendhat
(1928-30), na qual o fechamento que delimita e dá forma à sala de jantar
é um painel de madeira, só que em formato semicircular com as
extremidades levemente prolongadas, mas que nesse caso toca o teto, mesmo
não tendo função estrutural aparente.

O espaço livre do piso principal do Crown Hall, semi-elevado, destina-se,


desde sua origem, às atividades de ateliê. A imagem desse espaço
preenchido por pranchetas e cadeiras é historicamente a mais conhecida,
mas atualmente tal ocupação alterna-se com o uso deste pavimento como
espaço expositivo. No piso inferior, semi-enterrado, encontram-se todos
os demais ambientes que constituem o programa do College of Architecture,
como biblioteca, salas de aula, outros ateliês, sanitários, salas de
reunião e salas administrativas.

Mies van der Rohe, S. R. Crown Hall (1950-56). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz
Mies van der Rohe, S. R. Crown Hall (1950-56). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz

Mies van der Rohe, S. R. Crown Hall (1950-56). Illinois Institute of Technology
Foto Rodrigo Queiroz

A separação vertical do programa, em corte, liberando o piso principal


das funções mais compartimentadas e repetitivas, deslocadas integralmente
para o piso inferior, é uma solução que reaparece na obra de Mies no seu
projeto para a Neue Galerie em Berlim. Contudo, no edifício construído na
capital alemã, o nível semienterrado não acompanha a volumetria do
pavimento superior, mas funciona como uma plataforma maior sobre a qual o
pavimento superior (o edifício enquanto forma propriamente dita) está
apoiado. No caso da Neue Galerie, essa plataforma também é edifício pois
abriga parte do programa, ou seja, o piso dessa superfície plana e vazia
que serve de base para a forma é, na verdade, o teto de parte do programa
que, nesse caso, encontra-se parcialmente enterrado.

Em projetos como o Seagram Building e o próprio Pavilhão Alemão em


Barcelona, Mies lança mão do artifício da plataforma/esplanada mesmo não
havendo programa encaixado sob essa base. No caso desses dois projetos,
trata-se apenas de uma superfície reguladora que planifica, horizontaliza
esse solo construído sobre o qual a forma está implantada. Tal decisão
projetual, seja ela programática ou meramente topográfica, garante à
forma o necessário grau de isolamento que a imuniza da interferência mais
imediata do contexto que a envolve, seja ele construído ou natural. Essa
plataforma construída, onipresente, em muitos projetos de Mies, cumpre o
papel da linha horizontal necessária à plena legibilidade dessa forma
ortogonal, seja ela aberta (Pavilhão Alemão), vazada (Neue Galerie),
fechada, mas transparente (Seagram).
Mies van der Rohe, Pavilhão da Alemanha na Feira Internacional de Barcelona
(1929/reconstruído em 1986). Detalhe do embasamento/plataforma
Foto Rodrigo Queiroz

Em projetos como o S.R. Crown Hall e a residência Farnsworth (1945-51),


este dispositivo regulador perde gravidade e matéria. Nesses projetos, a
topografia construída, regular, dá lugar a um plano também horizontal,
porém suspenso paralelo e rente ao chão, cuja bidimensionalidade opõem-se
à condição de relevo assumida pelas plataformas presentes nos projetos
anteriormente citados. Essa plataforma solta, como um tablado (14),
encontra-se em um nível intermediário entre o pavimento elevado e o solo,
um patamar/praça de grandes dimensões que se configura como uma esplanada
retangular solta e que consequentemente duplica uma fração regular do
chão real, no caso do Crown Hall.

Apesar das naturezas distintas entres as plataformas-relevo e as


plataformas-tablado, a recorrência dessa solução revela a necessidade de
Mies em configurar um plano intermediário que gradue a relação entre o
objeto e o espaço que o envolve, mas que também, ou principalmente, crie
uma superfície de isolamento, como se a forma carregasse consigo uma
fração desse chão planificado interno à própria inteligência que rege um
raciocínio espacial no qual os projetos do edifício e do plano urbano
(relação forma/espaço que comunica a lógica de expansão do próprio plano)
são categoricamente indissociáveis.

Poderíamos também compreender essas plataformas bidimensionais exteriores


como uma continuidade material dessa disposição moderna do objeto à sua
auto-dissolvência, seja pela transparência (no caso da Farnsworth e do S.
R. Crown Hall), seja pela desmontagem dos planos que configuram um volume
original (no caso do Pavilhão Alemão). Esse processo de distensão do
objeto ao espaço revela o diálogo de Mies com sistemas centrífugos (de
dentro para fora) de organização do espaço caros aos neoplasticistas,
reconhecidamente inspirados nas primeiras “plantas-abertas” de Frank
Lloyd Wright, a partir de 1908 (15).

A separação vertical do programa, com os usos compartimentados no


pavimento semi-enterrado cuja cobertura aflora como piso destacado do
chão pré-existente, assim como a Neue Galerie, consiste, a meu ver, no
procedimento projetual mais facilmente reconhecível em muitos dos
principais projetos da arquitetura moderna no Brasil, identificados por
uma organização funcional/formal cuja compartimentação do piso semi-
enterrado é justamente o que permite o esvaziamento da parte que define o
projeto enquanto forma, via-de-regra, identificada por um perfil ora
tangente ao solo, ora sobre pilotis, que mantém aberto o térreo, espaço
intermediário entre a forma vazia (e por isso mais dócil à uma
formalização de contorno original, seja ele gestual ou construtivo) e
esse solo livre que, na verdade, nada mais é do que a tampa da parte do
programa semi-enterrada, quando em superfícies planas (Congresso Nacional
– Niemeyer, 1957-60), ou encaixada (Masp – Lina Bo Bardi, 1958-68; Casa
de Canoas – Niemeyer, 1953), quando inserida em sítios de topografia
íngreme, com o nível dessa “laje-tampa” coincidente com a cota mais alta
do terreno.

No ambiente brasileiro, o projeto que deflagra esse procedimento


projetual/formal em corte é o Museu de Arte de Caracas (1955 – não
construído) de Oscar Niemeyer, um tronco de pirâmide abatido, invertido e
com a ponta apoiada sobre esplanada que é, como dito acima, a tampa que
cobre parte do programa semienterrado, cuja janela-fresta cumpre
justamente o papel de destacar esse plano horizontal da topografia
original. Não fosse o formato piramidal, a mesma descrição poderia ser
integralmente aplicada ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói (1991-
96), no caso, um tronco de cone abatido e invertido sobreposto a um apoio
cilíndrico. O perfil do edifício resulta das concordâncias entre os
segmentos de reta que definem tanto o tronco de cone como o cilindro –
operação gráfica curva-reta tipicamente niemeyeriana.

Desnecessário discorrer sobre as diferenças formais entre os já


mencionados Museu de Arte Assis Chateaubrian – Masp, de Lina Bo Bardi, e
o Congresso Nacional, de Niemeyer. Poderíamos incluir nessa lista de
projetos “forma vazia sobreposta à plataforma-tampa” outros inúmeros
projetos como o Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Osaka (1969)
e Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP, 1975
– não construído), de Paulo Mendes da Rocha, assim como a conhecida
tríade, que tenta dissolver essa compartimentação binuclear do programa,
Casa Junqueira (1976) / Casa de Cantanduva (1978) / MuBE (1988-95) também
de autoria de Mendes da Rocha.

Apesar das evidentes diferenças, todos esses projetos resultam da mesma


estratégia de separação do programa em corte: parte aflora como forma,
invariavelmente vazia (espaços expositivos, plenários, auditórios ou
apenas um plano horizontal suspenso, uma cobertura), parte rebaixa-se
como relevo construído (salas administrativas, depósitos, serviço,
dormitórios etc.). Tal estratégia faz com que o projeto não reduza a
forma à mera condição de objeto. O edifício é, na verdade, a forma, mas
também esse solo construído sobre o qual ela está implantada. Talvez, o
projeto mais radical nesse processo de estabelecimento de uma relação
antagônica, porém complementar, entre ambientes-relevo e vazios
suspensos, seja o próprio Museu Brasileiro da Escultura, onde essa forma
vazia que aflora se despe de sua condição programática (sendo assim,
arquitetônica, no seu sentido mais tradicional), reduzindo-se a um índice
espacial horizontal que faz ver, por oposição, seu inverso: o museu-
programa, esparramado e encaixado por toda a extensão do lote, com
diferença de nível de quatro metros, pondo em xeque o paradigma
disciplinar da arquitetura como forma envolvida pelo vazio.

É certo que o embasamento-edifício da Neue Galerie ou o pódio-relevo do


Pavilhão Alemão se aproximam mais da estratégia espacial brasileira
(forma sobre esplanada, seja ela tampa ou uma mera regularização do solo
original, como no caso da Praça dos Três Poderes) do que o projeto de
Mies para o S.R. Crown Hall. Contudo, a setorização do programa em corte
no principal edifício do IIT – que possibilita o esvaziamento do
pavimento principal, semi-elevado, ao deslocar todas as funções
compartimentadas para o piso semi-enterrado – é um dado que permite
aproximações entre o raciocínio espacial de Mies e um procedimento formal
e programático extremamente característico da cultura arquitetônica
moderna no Brasil.

Curiosamente, inexiste na obra de Le Corbusier, arquiteto fundamental


para a constituição do léxico formal da arquitetura moderna no Brasil,
projetos identificados por essa distribuição vertical do programa que
assume a superfície do chão também como um “edifício” que se alastra para
além da projeção da forma suspensa. A arquitetura brasileira pós-1955, em
certa medida já consciente da saturação de um vocabulário nitidamente
inspirado nos elementos formais do período purista de Le Corbusier,
desenvolve uma estratégia projetual menos compositiva e mais unitária,
exemplificada por projetos de Niemeyer como o Museu de Caracas e os
palácios de Brasília, assim como pelas formas-estrutura da escola
paulista a partir do início da década de 1960.

Esse partido-corte que compreende parte do programa como uma base


reguladora do sítio existente, cuja cobertura é, na verdade, a própria
praça sobre a qual a forma principal se apoia, ocorre quase que
simultaneamente entre os arquitetos brasileiros e o próprio Mies.
Lembremos que o S. R. Crown Hall é inaugurado em 1956 e a Neue Galerie,
em 1968. Contudo, poderíamos diagnosticar em projetos de Mies como a já
mencionada Residência Tugendhat (1928-30), localizada em Brno (antiga
Tchecoslováquia, atual República Checa) essa separação do programa em
corte que compreende a laje de cobertura do pavimento inferior como praça
aberta do superior, sendo este coincidente ao nível da rua. Lembremos
também que na casa de Mies, a forma recortada, resultante da justaposição
de volumes ortogonais, com seus planos verticais parcialmente vazados ou
transparentes, ainda está longe da simplificação formal binária da Neue
Galerie e, por que não, dos projetos brasileiros mencionados nesse texto.

Essa breve digressão-interregno, que aproxima o principal partido da


arquitetura moderna no Brasil à determinadas soluções tipicamente
miesianas, não tem, obviamente, a intenção de estabelecer uma relação
causa/efeito literal entre a obra do arquiteto alemão (no caso, o S. R.
Crown Hall e Neue Galerie) e a arquitetura brasileira (mais
especificamente, Niemeyer pós-1955 (16) e Paulo Mendes da Rocha). Trata-
se apenas de um modo de chamar atenção para o fato de que a mesma matriz
de um pensamento espacial é capaz de suportar soluções formalmente
distintas.

O projeto de Mies para o campus e para os edifícios do Illinois Institute


of Technology padece daquela que talvez possa ser compreendia como a
principal contradição da arquitetura moderna: a potencial capacidade de
replicação do modelo é proporcional à sua incapacidade de considerar o
arbítrio da variação, itinerário que a conduz, inevitavelmente, ao seu
próprio esgotamento, sendo assim, ao seu fim. Daí a diferença crucial
entre Mies e Corbusier. Enquanto Mies formula um modelo, Corbusier
elabora um sistema.
O modelo de Mies no IIT desdobrou projetos que se confundem com o próprio
modelo pois são aparentemente iguais à matriz elaborada pelo mestre
alemão. No IIT, a relação entre a parte e o todo, ou entre a unidade e o
conjunto pressupõe a necessária exclusão da heterogeneidade, sendo assim,
da hierarquia entre os elementos. Nesses termos, o projeto preza, por seu
turno, pela relação homogênea entre semelhantes. Já os “cinco pontos” de
Corbusier configuram a base, o sistema espacial cuja principal virtude é
justamente sustentar a variação, ou seja, o caráter autoral que preserva
o sentido da individualidade, do ato criador.

Caminhar pelos espaços livres do IIT e observar os inúmeros Halls na


tentativa de descobrir quais são os Mies originais é como adentrar à uma
sala de museu com o objetivo de decifrar quais são os Picassos falsos e
quais são os verdadeiros. Se Mies diz que “Deus está nos detalhes”,
poderíamos dizer que Mies também está nos detalhes. Se esse fosse o
propósito da visita, seja no IIT, seja na suposta sala com os Picassos,
ela já teria perdido completamente seu sentido.

Mies van der Rohe, Seagram Building (1954-58), Nova York. Detalhe do
embasamento/plataforma
Foto Rodrigo Queiroz

Confundir os edifícios de Mies com aqueles projetados pelos seus


discípulos americanos logo em seguida revela justamente o quão forte e
paradigmático é o conceito que o instrumentaliza no ato de elaboração dos
seus edifícios como modelos capazes de se multiplicarem quase que
naturalmente, pois não se trata apenas do modelo como um mero objeto, mas
como uma unidade disposta em um espaço que tem em sua modulação o módulo
da própria unidade. Sendo assim, não estamos falando de um modelo de
arquitetura, de um objeto, mas de um modelo de relação entre forma e
vazio, ou seja, de um modelo urbano. Nesse espaço virtuosamente standard,
o acaso é um ruído cuja amplitude pode ser ensurdecedora.

O projeto de Mies para o campus do Illinois Institute of Technology é


apenas uma fração real de um mundo potencialmente infinito, regido pelas
mesmas relações espaciais apresentadas nessa pequena fração. Mas o
conceito de infinito não se aplica ao real. Eis aí a batalha mais
inglória da arquitetura moderna: realizar a fração do universal
consciente de que, mais cedo ou mais tarde, encontraremos a borda que nos
lembrará da onipresente certeza fatal, de que estamos inevitavelmente
submetidos ao real, estamos dentro dele.

notas

1
IITRI Minerals and Metals Research Building – dois edifícios (1943); IITRI Life
Sciences Research Building – dois edifícios (1943); Engeneering Research
Building (1945); Alumni Hall (1946); Wishnick Hall (1946); Perlstein Hall
(1947); Steam and Heating Plant – centro de produção de energia (1949);
Institute of Gas Technology Complex – 3 edifícios (1949/1955); American
Association of Railroads Complex – três edifícios (1950/1955); Robert F. Carr
Memorial – Chapel of St. Savior (1952); The Commons – convivência (1954);
Bailey Hall – apartamentos (1954); Carman Hall – apartamentos (1954);
Cunningham Hall – apartamentos (1954); S.R. Crown Hall – College of
Architecture (1956); Siegel Hall (1957).

2
Há controvérsias sobre qual o maior conjunto de edifícios projetados por Mies
van der Rohe em um mesmo lugar. O site Archdaily, em matéria sobre o Illinois
Institute of Technolgy, o aponta como “the greatest concentration of Mies-
designed buildings in the world”. Contudo, esse mesmo site, quando apresenta o
conjunto residencial em Laffayette Park, Detroit, informa que este conjunto
“constitutes the world's largest collection of buildings designed by Mies van
der Rohe”.
3
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

4
TELLES, Sophia S. Arquitetura modernista: um espaço sem lugar. In: GUERRA,
Abilio (Org.) Textos fundamentais sobre história da arquitetura moderna
brasileira (vol.01). São Paulo, Romano Guerra, 2010.

5
Simetria, espelhamentos e centralidade focal Le Corbusier planos urbanos

6
Diagonais, inflexões, rupturas e sobreposições Aos moldes dos esquemas
dinâmicos de Kazimir Malevich (1879-1935), que no futuro seriam o ponto de
partida para os primeiros projetos da arquiteta iraniana Zaha Hadid (1950-2016)

7
C.f.: BOIS, Yve-Alain. A pintura como modelo. São Paulo, Martis Fontes, 2009.

8
A compreensão da lógica comum que identifica as passagens de escala dessa
organização exponencial, na sequência pintura – escultura – arquitetura –
cidade, resulta de discussões com a historiadora Sophia Telles, sistematizadas
em um curso elaborado pela própria historiadora em 2011, mas também remonta a
diálogos estabelecidos com a arquiteta e professora Anne Marie Sumner durante a
segunda metade da década de 1990, quando de minha graduação na Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

9
Lembremos que as medidas da sala de aula padrão nos manuais do FDE até hoje são
7,20m x 7,20m

10
O nome do edifício sede do College of Architecture, S. R. Crown Hall, é uma
homenagem a Solomon R. Crown, filho do casal Arie e Ida Crown, imigrantes
lituanos que chegaram em Chicago em 1875. Solomon (conhecido apenas como Sol)
morreu jovem, aos 27 anos, dois anos após assumir os negócios da família. A
construção do S. R. Crown Hall se realizou graças à doação da Arie and Ida
Crown Foundation (hoje Crown Family Philanthropies).

11
O projeto original da fábrica de sapatos Fagus (1910) é de autoria de Eduard
Werner. Uma das exigências feitas pelo proprietário, Carl Benscheidt, a Walter
Gropius e Adolf Meyer era a manutenção da planta do projeto de Werner, cabendo
aos dois arquitetos somente a reformulação das fachadas. De 1911 à 1925,
Gropius elaborou todos os projetos de reforma e ampliação da Fábrica de sapatos
Fagus.

12
Carman Hall, Bailey Hall e Cunningham Hall.

13
A estação de trem 35th Bronzeville IIT (2003) é projeto do arquiteto alemão
residente em Chicago Helmut Jahn (1940-)

14
O termo “tablado sobre palafitas elevado do solo” foi utilizado por Abilio
Guerra em seu texto “Oscar Niemeyer e seu duplo: Mies van der Rohe” (GUERRA,
Abilio. Arquitetura e Natureza. São Paulo, Romano Guerra, 2017, p.165.) para
descrever a constituição formal e espacial da Casa Farnsworth (Mies van der
Rohe, 1945-51), identificada pelos planos verticais transparentes e pelos
planos horizontais soltos, seja o plano intermediário (“tablado”) entre a cota
do térreo elevado e o chão, sejam os planos de piso e de cobertura da própria
residência, que se prolongam para além do comprimento do perímetro
transparente.

15
Sobre o lugar de Frank Lloyd Wright na constituição da gramatica neoplástica
ver: “Cubismo, De Stijl e as novas concepções de espaço”CURTIS, William J. R.
Arquitetura Moderna desde 1900. Porto Alegre, Bookman, 2008, p. 149-159.

16
A desmontagem do volume, a partir do recuo dos planos transparentes sob a
projeção da cobertura plana, evidenciando em primeiro plano apenas a esbeltez
das colunas e das lajes de cobertura e de embasamento suspenso, caracteriza
muitos dos projetos de Niemeyer pós-1955, sendo os mais conhecidos os palácios
de Brasília. Esse deslocamento dos planos verticais para o interior do
perímetro da cobertura como estratégia de dissolução da solidez da arquitetura
histórica é uma questão central na obra de Mies (Pavilhão de Barcelona e Neue
Galerie) e que claramente ecoou nos projetos de Niemeyer desse período. Em seu
artigo “Oscar Niemeyer e seu duplo: Mies van der Rohe”, Abilio Guerra
estabelece com precisão os pontos de contato entre as obras de Mies e Niemeyer,
tendo como mote os projetos do Pavilhão de Barcelona e a Casa de Canoas. Cf.:
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Natureza. São Paulo, Romano Guerra, 2017, p. 155-
197).

sobre o autor
Rodrigo Queiroz é arquiteto (FAU Mackenzie, 1998), licenciado em Artes (Febasp,
2001), mestre (ECA USP, 2003), doutor (FAU USP, 2007) e professor livre-docente
do Departamento de Projeto da FAU USP. Curador de exposições de arquitetura
moderna, tais como “Ibirapuera: modernidades sobrepostas” (Oca, 2014/2015), “Le
Corbusier, América do Sul, 1929” (Ceuma, 2012), “Brasília: an utopia come
true”, (Trienal de Milão, 2010) e “Coleção Niemeyer” (MAC USP, 2007/2008).

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