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Monumentalidade e cotidiano:

a função pública
da Arquitetura [1]

carlos antônio leite brandão

1. helênica e sua glória, não apenas militar. Ele


Monumento e cotidiano remetem, em primeira presentifica aquilo que, por sua repetição na
instância, às dimensões da eternidade e do dia história e no cotidiano, se consagrou e fez-se
a dia; do que é raro e do que se repete; do que arché – origem, arquétipo, modelo, referência
remete à memória, à lembrança, e se destina e princípio a ser sempre rememorado diante
também ao futuro (como na etimologia de do cotidiano e da urgência de suas demandas.
“monumento”) e do que serve ao presente e O monumental, portanto, não é o grandioso,
ao corriqueiro comum (como na etimologia o excepcional, o inédito, mas, ao contrário,
de “cotidiano”). Queria abordar este binômio, a síntese que tornou-se comum, pública e
nesta primeira parte, referindo-o a essas duas legítima dentro de uma tradição. O monumento
dimensões do tempo e partindo da história da “rememora” e remete a uma suposta instância
arquitetura. original dos atos construtivos, da cultura e da
A construção do templo grego clássico civilização grega, instância esta que funda o
consolida toda uma série de hábitos construti- presente, mesmo que contraditando-o em sua
vos presentes na tradição desde a época das superfície, sugere a confiança de um povo em
construções em madeira do período arcaico; si próprio e o destino a ser perseguido. Fundar
mantém como invariantes as referências um passado, através da construção de um
principais da tipologia original procurando monumento no presente, é também caminhar
apenas aperfeiçoá-las através do apuro das em direção a um futuro ao fim do qual se
técnicas e detalhes, como é o caso das ordens, e encontram os valores forjados no passado. Para
evitando a hybris da originalidade e da “mania inventarmos um futuro que criamos para nós
 de cons­truir” persa (libide aedificandi) [2]; cuida é costume forjar um passado que o prepare ou
de fazer da arquitetura veículo de mensagens o legitime. Um bom exemplo disto é Leonardo
históricas, éticas e culturais que ultrapassam Bruni no quattrocento florentino, inventando
o que é arquitetura strictu sensu; dá forma e no passado um parentesco entre Florença e
perenidade ao que surge como decorrência da Roma para projetar o destino de grandeza e
função e da técnica como os triglifos, os capité- liberdade de sua cidade no futuro. Mais do que
is, ábacos e caneluras. E além de tudo, é o ponto rememorar um passado, sobretudo no caso de
para o qual convergem os esforços coletivos e países colonizados e de tradição difusa como
simbólicos de uma comunidade para afirmar-se o nosso, o monumento dá-nos uma imagem
para si e para os outros, como proposto por de futuro e de destino. O monumento abre o
Péricles na construção da acrópole ateniense ou presente e liga uma tradição recebida a uma
pelas comunidades medievais ao erigirem suas tradição que procura fundar. Do cotidiano e da
catedrais. Um monumento, como o Parthenon, repetição dos mesmos gestos construtivos ele
torna público, tanto para os contemporâneos retira sua significação e a capacidade de enviar
quanto para as gerações futuras, aquilo que para o futuro as marcas do tempo em que foi
teve uma origem dispersa (ou mesmo privada) construído. Daí, por exemplo, a escala humana
no tempo e no espaço, mas acabou reunido em que ele se definiu na Grécia.
na obra de arquitetura para marcar a cultura O Parthenon constitui sua monumentali-

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dade a partir dos gestos sacralizados por sua que se deve dirigir o monumento de nosso novo
repetição e da rememoração da arché que, tempo. Como na pintura impressionista, busca-
por ele e pela concepção cíclica do tempo, é se uma “presencialidade eterna” no instante
reproposta ao futuro. Por isto ele evita a origi- passageiro e nas relações cotidianas humanas
nalidade, vista como uma desmesura ou vício [3].Tempo e eternidade não são contrapostos,
do artista. A monumentalidade de uma catedral assim como não devem ser a arquitetura do
gótica se constitui em função da vida eterna e cotidiano e a arquitetura do monumento. O
da escala sobre-humana, que impõem-se ao monumento surge do nosso modo de habitar o
cotidiano, celebrando a “cidade de Deus” acima mundo, de nossa experiência ativa dele, de nos-
da “cidade dos homens” e o não-tempo em que sos gestos e ações no mundo público. A arquite-
se crê regê-la. Nele, eternidade ou arché é vista tura do monumento não está no monumento
após a vida terrena e além do cotidiano, daí – seja ele o palácio, o templo, o museu ou a casa
sua articulação vertical a motivar-nos à trans- –, mas na aplicação mesma ao ato de construi-lo
cendência. A monumentalidade da Torre Eiffel é como o lugar em que o homem presente habita
vista num futuro laico, não transcendente, a que o real (e não o passado ou o futuro) e nele
nos levará o progresso e sua concepção linear constrói sua verdade e sua salvação enquanto
do tempo. Este futuro promete a redenção e a indivíduo inserido num mundo público.
salvação que não mais se encontram na origem, Toda arquitetura tem função pública e
como nos gregos e no Renascimento, e nem na este público não deve ser entendido apenas
vida eterna, mas no futuro, o que ainda é fora como os vivos mas também como os nossos
do presente. A salvação pelo progresso ou pela antepassados e os que nos sucederão, para
religião, a que nos remetem os edifícios, são os os quais ela também se dirige formando o
fundamentos de uma monumentalidade cons­ que temos chamado de um republicanismo
truída pela evasão do presente ou do cotidiano. intergeracional, um dos focos de nossa pesquisa
No passado, como no caso grego; no futuro, Arquitetura, Humanismo e República, desen-
como no caso da Torre Eiffel; ou na vida eterna, volvida junto ao CNPq. Isso dota-a de várias
como no caso da catedral gótica, o monumento dimensões que vão além da utilidade imediata
se define por essa sacralização do que não – tais como a necessidade de resistir ao tempo,
está no presente e não se encontra no real e no às intempéries e as incúrias humanas – e exige
cotidiano. um apuro técnico e símbolos públicos que
Quando Le Corbusier escreve ser a casa o expressem as potencialidades de uma comuni-
monumento arquitetônico do século XXI, ele dade, seus valores e seu projeto de comunidade,
nos ilustra um modo diverso de se encarar a como é o caso do Hospital dos Inocentes ou da
eternidade. Trata-se de uma eternidade consti- catedral florentina, ambos de Brunelleschi, de
tuída a partir do real, do presente, do comum Brasília e das obras de Lúcio Costa, Niemeyer,
e do cotidiano. E a monumentalidade a ela Artigas, Severiano Porto, Flávio de Carvalho,
correspondente não se faz por remeter-nos para Sérgio Bernardes e tantos outros. Esse desvela- 
algum lugar extra-mundo ou para outra cidade, mento chamamos de “produção da verdade”. A
outro presente e outra realidade, que não estes arquitetura é a responsável por publicizá-la e
em que transcorremos nossa vida e em que trazê-la para o espaço que vemos e que habi­
realizamos nossa humanidade. Eleger a casa tamos. Quando dizemos que toda arquitetura
como nosso monumento é dotar nossas ações e tem função pública é que ela somente se dá
funções do valor de salvação antes deposi­tado na medida em que se pensa em função da res
em Deus, na tradição ou nas promessas de publica, constituindo-a. Pensar o edifício em
progresso tecnológico. E, na verdade, salvamo- função da cidade, da verdade e dos homens
nos e realizamo-nos por essas ações e funções presentes e reais tem sido pedagogia difícil em
desempenhadas no presente. É nelas que tempos de tanto cultivo do Narciso, que sempre
encontramos a verdade, e não no passado, no supõe sua verdade acima do real e do presente,
futuro e na vida eterna. e do artificial, como o que reluz nas formas
O presente: eis aquilo de que nos devemos bombásticas que trazem a marca do inédito e
lembrar e aquilo que devemos encontrar; ele são por demais caras para servirem à constitu-
vale mais que todo o passado vivido e todo ição do humano do homem e da res publica.
o futuro a viver. É nele em que se encontra a O monumento do mundo moderno, tal
dimensão que nos liberta do tempo e é para ele como o vê Le Corbusier, parte do presente e do

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homem real e visa ao comum, ao cotidiano, e o próprio conceito de monumento que funda
não à exceção, à raridade, ao excepcional, ao a acrópole ateniense, a catedral gótica ou os
que é apartado do cotidiano. Tal como eu não projetos de Eiffel, como em Paris ou em Porto,
sou pré-constituído, mas algo que se forma, ou de Gaudí, em Barcelona. Descontextualizado,
também o presente não é um dado, mas algo o monumento torna-se apenas um kitsch eru-
que se constitui e a função pública da arquite- dito, como os que vemos recentemente feitos
tura é constituir nosso presente e nosso real e nos quarteirões fechados da Praça Sete em Belo
fazer-nos habitar nele, e não no passado, como Horizonte.
o neoclassicismo, ou num futuro de esperanças
e ilusões absurdas, como grande parte da 2.
arquitetura contemporânea, que se divulga Chegamos então a um segunda abordagem do
no sensacionalismo da mídia arquitetônica. problema, talvez mais radical: a da relação entre
A função pública da arquitetura é fazer-nos obras de arquitetura e outras construções e en-
compartilhar este presente, torná-lo acessível tre o monumento e o cotidiano. Radical porque
a todos, e através deste presente fazer-nos aí encontra-se a própria pergunta pelo que seja
compartilhar tanto um passado quanto um monumento, arquitetura, e o que os distingue
destino comuns. Isto talvez seja o que melhor se na nossa produção e na nossa cidade.
aprende no Renas­cimento italiano e no Moder­ Narciso, o arquiteto, pensa estar sempre
nismo, quando os situamos como parâmetros na iminência de dar à luz um monumento
para empreender a crítica ao formalismo e figu- arquitetônico ao projetar sobre a prancheta
rativismo dominantes na arquitetura contem- ou em seu computador. Mas nenhum edifício
porânea. Esse compartilhamento é que faz uma em si pode ser um monumento, pois isso lhe é
sociedade distinguir-se da “massa”, e um mundo dado somente pela sua relação com as demais
tornar-se verdadeiramente público, e não de construções e com o restante da cidade real,
espectadores. Sendo essa arquitetura objeto da histórica, imaginária e simbólica nas quais
referida pesquisa “Arquitetura, Humanismo e habitamos. Nada é extraordinário a não ser
República” prefiro, aqui, voltar a refletir sobre a diante do ordinário cotidiano de nossa vida
questão do tempo e da eternidade, que estão no comum. Toda obra de arquitetura só se define
fundamento da relação entre o monumento e o enquanto tal dentro de um universo dominado
cotidiano. Afinal, e cumpre destacar isto, o que por construções sem o pedigree da arquitetura.
notabiliza o monumento é fazer-nos habitar Perguntar pelo que seja o monumento
a história e o tempo, mais que o espaço e suas a­rquitetônico é perguntar pela origem da
funções, seja o tempo passado, seja o futuro, própria arquitetura. Os primeiros exemplos de
seja o presente em que se prospecta o passado e monumentos arquitetônicos são os funerários,
o futuro, os quais não existem em si: só existem cujas ruínas pré-históricas chegaram até nós
o presente e sua visadas. com sua aura de sacralidade e transcendência;
 Destacamos que o modernismo fez entrar com sua função eminentemente pública,
uma nova concepção do monumento por ter simbólica e religiosa bem demarcada frente
aberto uma nova dimensão da eternidade ao território onde desenvolvemos nossa vida
que se encontra aberta pelas perspectivas do prática, cotidiana e mortal e com sua cons­
presente e do real, e não mais depositada num trução resultante de esforços da coletividade,
passado ou futuro longínquo. Essa dimensão que fazia destes monumentos expressão
por ele aberta, contudo, foi ofuscada diante do máxima de suas vidas e valores maiores,
figurativismo de uma arquitetura que deixou de inclusive os técnicos e construtivos. Essas ruínas
ver o espaço como “espaço de ação” para ser de definem-se como monumento na medida em
contemplação e exibição, sobretudo da geniali- que nos fazem habitar um mundo espiritual,
dade narcísica dos arquitetos, fazendo surgir um ideal e um destino comum em torno do qual
novas espécies de “cate­drais”, como a do Museu uma c­omunidade se reúne e celebra a si, à sua
de Bilbao, sem contudo qualquer a­ncoragem no cultura e aos valores nela compartilhados. São
solo público e no imaginário social, e avessa à monumentos públicos e de função ética, que
relação com as demais construções. Perder essa providenciam uma idealidade, uma historici­
relação com as demais construções, aquelas dade e uma universalidade a serem lembradas
que não são monumentos, e com espaços e e presentificadas diante das tarefas e demandas
dimensões históricas, públicas e sociais corrói do cotidiano que sempre nos fazem esquecê-las.

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Eles respondem àquilo que deveríamos ser e que advogam os chamados “estudos culturais”,
ao espírito, mais do que àquilo que somos e à n­ossos cursos de graduação em arquitetura,
nossa vida prática. E o mesmo ocorre quando tendo seu tempo limitado, devem priorizar
os romanos desenvolvem os monumentos o estudo dos m­onumentos, mesmo quando
profanos, sob as formas de colunas, mausoléus, se tratam de monumentos mais laicos como
arcos, estátuas equestres e cenotáfios. Em todos fábricas, museus, bibliotecas e casas, a partir do
esses monumentos, o indivíduo encontra o século XIX. Raros e avessos à banalização, são
seu lugar na história e na pólis e compartilha eles que nos dão uma “cidadania” arquitetônica,
cultura, valores, idéias e desejos com demais uma cultura comum e uma idealidade que o
concidadãos, o que não é providenciado pelo Narciso e a mera resolução da vida prática não
edifício projetado por aquele arquiteto Narciso são capazes de nos proporcionar. São eles que
nem pelas outras construções da cidade, as suspendem a sucessão de preocupações fecha-
quais não estão obrigadas à arché, aos funda- das no cotidiano e abrem-nos para a origem
mentos, princípios, destino e valores maiores de onde viemos, para o destino aonde vamos
que constituem uma sociedade. Sem essas e para aquilo que potencialmente poderíamos
construções comuns, aquela excelência da ser. Este poder-ser está encoberto pelo cotidi-
arché não se distinguiria. Sem o monumento, ano e é o monumento que nos permite retomar
os acontecimentos do passado não seriam possibilidades perdidas.
recompostos dentro da significação que dá a É possível ver a origem da construção nas
ele sua dimensão histórica. Nossa historicidade cabanas primitivas, em torno do fogo ou nas
autêntica só se dá nesta díade entre a figura do cavernas. Mas a origem da arquitetura, a qual
monumento e o fundo das demais construções. é uma parte dessa história da tekné e só tem
É isto que, analogamente, fazemos com sentido enquanto serve à nossa vida mortal e
o tempo, ao fixarmos os dias festivos como cotidiana, revela-se pública, espiritual e trans­
o N­atal, a Páscoa, o Carnaval, o Dia da Inde- cendente quando a pers­crutamos nas ruínas
pendência ou a data de nosso aniversário. funerárias e nos monumentos da pólis. Ela
Esses paradigmáticos dias de comemoração constrói a alteridade de uma habitação ideal e
só adquirem sentido diante do caráter amorfo pública exigida para que possamos viver melhor
dos demais em que transcorremos nossa e de forma mais justa – bene beateque vivendum,
experiência diária. Tal como as ruínas funerárias como dizia Alberti – n­ossos dias e nossos espa-
da pré-história faziam da presença do divino ços individuais, familiares, práticos e funcionais
e dos mortos uma cunha no labor diário, esses que circunscrevem nossa existência. Pois só
feriados suspendem, sem abolir ou anular, o no espaço da história e da comunidade, ou
dia-a-dia, de modo a questionarmos nossa seja, ao relacionar-se com um centro maior (o
vida, a lembrarmo-nos daquilo que realmente italiano Duomo ou o alemão Dom, por exemplo,
somos e pretendemos ser como seres humanos para referir-se à catedral, à “casa de Deus”) que
e mortais, indivíduos, membros de uma família, ultrapassa seu domus doméstico, pode o indi- 
cidadãos, herdeiros de uma tradição recebida víduo encontrar o seu lugar verdadeiro e livre. O
e protagonistas comuns de uma tradição que monumento é a morada ideal e comum em que
fundamos na encruzilhada de nosso presente. habitamos, o lugar onde o espírito coletivo e do
Tais dias são focos da luz derramada sobre os tempo fazem-se construção.
dias comuns para reprovê-los de um sentido Só existem monumentos quando, antes de
esquecido. Da mesma forma, os monumentos pretender o grandioso ou a beleza propriamente
– como a acrópole de Péricles, a catedral ditos, construímos um modelo espiritual frente
medieval, o Duomo florentino, o palácio ao qual balizarmos nossas ações e valores
comunal renascentista, a Torre Eiffel, ou nossa cotidianos. Ao dizermos que um determinado
belorizontina Praça da Liberdade – iluminam edifício é um monumento de arquitetura ou que
as demais construções e partes da cidade e uma determinada obra é um monumento da
fazem projetar sobre ela a cultura do todo, da literatura ou que aquela mulher é um verda-
coletividade ou, para usarmos o termo que deiro monumento de beleza, o que estamos
temos conferido a esta prevalência do todo e do concebendo é que eles servem como um ideal
bem comum sobre as partes e o bem privado, de arquitetura, de literatura e de beleza que
a dimensão “republicana” da arquitetura. E é funcionam como referências nossas, mesmo
por isso que, ao meu juízo e a contrapelo do que não as saibamos defini-las ou que não

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tenhamos consciência delas antes de vê-las. de si, pode pretender ser e engolir tudo, mas
S­­ão como figuras que se projetam sobre o fundo dificilmente, terá qualquer monumentalidade
dos demais livros, edifícios e corpos femininos. arquitetônica, pois seu projeto parte justamente
Mas, figura e fundo não se deixam ver, senão em da exclusão da pólis. Por isso também o delírio
relação recíproca e em mútua dependência. Um estético do figurativismo arquitetônico, pensado
ilumina o outro. sem a função ética e pública referida acima,
O projeto ambicioso de nosso arquiteto pouco tem a ver com o monumento, por mais
Narciso não ilumina este fundo das demais inusitado e gigantesco que seja. Eles são inca-
construções, não se põe em função do contexto: pazes de conferir qualquer ethos à comunidade
ao contrário, vê o contexto em função dele e, se a que crêem pertencer. Ao contrário, trabalham
este contexto é pobre, desconsidera-o ou repele- para destrui-los e deixar imperar apenas a alma
o. Centrado em si mesmo, ele não se faz centro do Narciso, ou a do consumidor. Por isso, enfim,
de nada e não pode ser visto como o centro es- a monumentalidade da arquitetura, hoje, talvez
piritual ou ideal que representa o monumento. seja mais bem acessada a partir da verdade do
Todo Narciso pensa ser monumento aquilo que cotidiano e da funcionalidade do que de uma
não passa do reflexo de uma pretensa beleza e deteriorada noção de “monumentalidade”.
auto-referência na qual ele se afoga. O narciso A modernidade e seu tempo cronológico,
não sai de seu umbigo, idios: é um idiota. E sua laico e funcional, como seus espaços, ofuscaram
obra – tal como a Torre de Babel na pintura de os centros de espiritualidade e idealidade, de
Brueghel, as obras de A. Speer no nazismo, o culturas e valores compartilhados que orbitam
Museu de F. Gehry em Bilbao, ou ao menos as em torno dos monumentos. O pragmatismo e
leituras dele que por aqui me chegam, uma vez a sacralidade do capital e do consumo tendem
que nunca lá estive, e vários outros exemplos cada vez mais a domesticar e anular a cidade
da arquitetura contemporânea – lança uma fria enquanto espaço do diálogo, do encontro e das
sombra nas demais construções, e não a luz que diferenças – ao contrário de shoppings ou pubs,
do monumento se espera. Não seria difícil mul- onde o encontro só se faz entre iguais. Caso não
tiplicar os exemplos em nossa Belo Horizonte, queiramos perder a cidade, o que não é desejo
como os recentes e “monumentais” Marista Hall de fácil reali­zação, cumpre, então, reinventá-la e
e Templo da Igreja Universal. Nenhum desses isso implica dotá-la de novos centros de espiri-
exemplos nos dá um assentimento e um lugar tualidade e idealidade. Parece-me ser este o caso
no mundo e na história. Ao contrário de uma de Belo Horizonte, cujo centro viu d­iminuída
catedral medieval ou da acrópole ateniense, sua sacralidade e tornou-se por demais esgarça-
eles criam um não lugar com o qual não podem do para suportar uma espiritualidade simbólica
dialogar nem nós e nem as construções comuns e comum e conferir um ethos para a metrópole
em que vivemos nosso cotidiano e praticamos inteira. Ele mantém sua importância, talvez até
nossas vidas. Não nos inserem na república, maior que antes, como a Praça Sete, local do
 mas decretam nosso exílio. E se a cidade é, convívio e do encontro. Mas essa sua importân-
sobretudo, o lugar do encontro e do diálogo, cia se faz da imanência do mundo, dentro do
como mostra exemplarmente o diálogo entre as que somos e das urgências requeridas por nossa
casas de Ouro Preto e delas com os monumen- vida diária. Por isso, o melhor projeto para dar
tos que as iluminam, tais exemplares ovacio- mais vida e caráter a este centro seria a retirada
nados pela mídia arquitetônica servem para dos prédios que acabaram com a Praça dos
matar cada vez mais esta república. Se, depois Correios sob o Edifício Sulacap, talvez o mais
do século XIX, o sagrado não mais se concentra bonito de Belo Horizonte. Tal praça, exemplo do
em palácios, acrópoles ou igrejas (que hoje só diálogo que constitui a cidade, como o que ela
servem a partes de uma comunidade e não providenciava entre o Centro e o Bairro Floresta,
a ela como um todo), mas diluiu-se também urge ser r­einvindicada. Mas, assim como a vida
por edifícios funcionais e particulares, mesmo moderna passou a g­irar em torno de vários
fábricas e casas como proposto em Le Corbusier centros e não mais em torno de um só, também
ou Gropius, esta construção do diálogo é ainda cumpre às metrópoles multiplicarem seus
mais imprescindível para a constituição do c­entros e conferir-lhes caracteres e funções dis-
monumento dentro da imanência da cidade. tintas, não mais possíveis de serem super­postos
Por isso um shopping, já que quase todos se em um só hipercentro, sob pena de não se
pautam pela exclusão da cidade de dentro realizarem tais caracteres e não serem atendidas

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tais funções, práticas e simbólicas. Precisamos Liberdade a função ética e pública que fazem
criar outros centros na metrópole, centros do monumento algo vivo, a conferir sentido às
que fossem projetados – na Pampulha ou em nossas existências enquanto cidadãos. O que
torno do projeto do novo Rodoanel –, centros emerge neles, hoje, junto aos seus costados, é
intencionados como expressão de cultura e uma enorme sombra que encobre as demais
valores compartilhados, e não surgidos como construções e um vazio espiritual que cumpre
mero adensamento de atividades comerciais e ser preenchido, antes que o façam os falsos
de serviços. Precisamos de um centro, ou mais, monumentos e simulacros de sacralidade e de
que suporte o que deveríamos ser, refunde um cultura, como os referidos Templo Universal e
ideal, uma cultura e um destino compartilhados Marista Hall. n
pela pólis e a partir do qual sua luz jorrasse para
reprover de significação o fundo cotidiano de bibliografia
CALVINO, ITALO. Por que ler os clássicos? Trad. Nilson
nossas ações e construções que nada têm, e
Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
nem podem ter, de monumentais. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. Trad. Luciano
Belo Horizonte é cidade de muitos fantasmas Vieira Machado. São Paulo: Estação Liberdade; UNESP.
2001.
e pouco espírito. Proponho que o conteúdo COMTE-SPONVILLE, André. Viver. Trad. Eduardo Brandão.
dessa espiritualidade seja dado pela cultura São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HARRIES, Kastern. The Ethical Function of Architecture.
– ciência, arte e humanidades – e a Praça da Cambridge: The MIT Press, 1997.
Liberdade parece-me ser o local que maior MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. Trad. Sérgio Milliet. São
Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).
potencialidade tem para abrigar este centro: por VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Trad. Eduardo
sua localização e topografia, por sua tradição e Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
por sua apropriação e vocação comunitária e
cívica. Não é de igrejas, de palácios, de órgãos notas
1. Fazendo parte de nossa produção na pesquisa “Arquite-
burocráticos e de centros do poder político e tura, Humanismo e República”, financiada pelo CNPq,
administrativo, como secretarias de estado e este artigo foi apresentado de forma oral e resumida em
conferência na Casa do Baile (BH) em 18 de março de 2006.
órgãos de segurança, que espero ver iluminada 2. Sobre isso cf. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Quid
minha existência cotidiana e os laços com meus Tum? O combate da arte em Leon Battista Alberti. Belo
Horizonte: Perspectiva, 2000.
concidadãos. Prefiro a “transcendência” dada 3. Sobre esta “presencialidade eterna”, cf. PANIKKAR, R.
pela cultura, que faria na Praça da Liberdade “Presente eterno”. In: ORTIZ-OSÉS, Andrés; LANCEROS,
Patxi (org.) Diccionario interdisciplinar de Hermenéutica.
um dos pólos da elipse que conforma o núcleo Bilbao: Universidad de Deusto, 1997. P. 650-655.
belorizontino, ao lado dos pólos da “imanên-
cia”, dado pelo hipercentro da Praça Sete, e da carlos antônio leite brandão (1958)
É professor de História da Arquitetura na Escola de Arquite-
“fundação”, dado pela Praça da Estação, ambos
tura da UFMG, onde se graduou em 1981. É doutor (UFMG,
a serem cada vez mais vitalizados dentro de suas 1997) e mestre em Filosofia (UFMG, 1987) e especialista em
vocações e funções práticas e simbólicas. O pólo Cultura e Arte Barroca (UFOP, 1989). Tem como principais
publicações “Quid Tum? O Combate da Arte em Leon Battista
da fundação responde pela tradição. O pólo da Alberti” e “A Formação do Homem Moderno Vista Através
Praça Sete responde pelo presente e pelo que da Arquitetura” (ambos editados pela Editora da UFMG). 
Atualmente, preside o Instituto de Estudos Avançados
já é em ato, pelo que somos. O novo pólo do Transdisciplinares da UFMG.
Circuito Cultural da Praça da Liberdade atuaria
Contato: brandao@arq.ufmg.br
em função do que deveríamos ser e desta comu-
nidade ideal para a qual deveríamos tender ou a
qual deveríamos projetar.
Nosso grande problema é não termos mais
projetos de sociedade e não sabermos mais
visar a pólis como um todo, em que uma comu-
nidade compartilha valores e cultura. Para não
cairmos numa massa, sem passado, valores e
destino compartilhados, como a define H­annah
Arendt, é preciso providenciar tal centro de
idéias e de espírito, de que Belo Horizonte
carece. É a luz deste centro que deve iluminar
nossas existências individuais, cada vez mais
afogadas na escuridão, e é ela, parece-me, a
mais capaz de devolver aos edifícios da Praça da

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