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272.00 antropologia e arquitetura ano 23, jan. 2023

Arquitetura e domesticação I
Fernando Freitas Fuão

272.00 antropologia e
arquitetura
sinopses
como citar

idiomas
original: português
compartilhe

272
272.01 cidade e
infância
A prática do espaço
urbano pela criança
Julieta Leite e Maya
Neves de Moura Araújo
272.02 conforto
ambiental
Iluminação pública e
poluição luminosa na
cidade de São Paulo
Caracterização na
Família escala municipal e
Colagem Fernando Fuão, 2019 distrital
Rose Raad, Rodrigo
Galon, Mariana Ferreira
Martins Garcia e
como citar Leonardo Marques
Monteiro
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitetura e domesticação I. Arquitextos, São Paulo,
ano 23, n. 272.00, Vitruvius, jan. 2023 272.03
<https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.272/8703>. Tradição e contratos
Discursos em disputa
“O caminho de volta nunca será o mesmo da vinda”. pelo Maracanã
Anônimo Carlos Henrique
Ribeiro, Rodrigo Vilela
“O que ainda hoje pode domesticar o homem, se até hoje seus Elias e Silvio Telles
esforços de auto moderação levaram, em grande parte, precisamente 272.04 sustentabilidade
a uma tomada do poder sobre todo ser? O que pode domesticar o e patrimônio
homem, se até aqui em todas as experiências de educação da Preservação do
espécie humana não ficou muito claro para quem ou em benefício de patrimônio e
quem educam os educadores?” sustentabilidade
Peter Sloterdijk (1) Projeto de reabilitação
da Casa do Estudante
Domesticação da vida, domesticação do tempo, do espaço; domesticação da Universitário no Rio de
natureza, nada escapa: o campo, as plantações, os animais em cativeiro, Janeiro
as experiências genéticas, fala-se também se uma domesticação da saúde, Cristiane Maria
da medicina, de uma domesticação da representação, da visão e do ensino. Bittencourt Suzuki,
Domesticação da vida, da casa, do trabalho, do lazer, dos corpos e até do Marcos Martinez Silvoso
caminhar. E, a cidade é o locus da domesticação humana. Do século 18 à e Mônica Santos Salgado
atualidade, a domesticação se alicerçou na Sociedade disciplinar, no
corpo biopolítico como expressou Michel Foucault; e agora na Sociedade do 272.05 habitação social
controle conforme anunciou Gilles Deleuze. Falaremos de uma domesticação, Política habitacional
digamos tolerante e necessária, exercida pela casa e sua domesticidade, para cortiços em São
mas também de uma domesticação nefasta exercida pelo Estado e as forças Paulo
do poder, sejam elas totalitárias e ou até mesmo democráticas.
Normalmente os arquitetos nunca pensam que a arquitetura e o urbanismo Celso Aparecido Sampaio
estão comprometidos nessa domesticação, desde a mais profunda fundação e Débora Sanches
até seu coroamento. Acham uma expressão totalmente estranha, até o
momento que se explica que a palavra domesticação tem sua origem na
palavra domus, que significa casa; aí então, começam a suspeitar do
comprometimento da arquitetura e dos próprios arquitetos e
consequentemente dos urbanistas. Nossa profissão exerce um papel
determinante nesse processo como planejador, escritas e representações,
entenda-se que o planejamento e o projeto são antes de nada dispositivos
de controle: garantia de execução ipsis litteris da própria domesticação.
Talvez em parceria com tantas outras profissões sejamos os mestres dos
mestres em domesticação, o senhor e criador que domestica, já portamos o
apelido de demiurgos. Como diz a filósofa Fernanda Bernardo ao tratar o
tema da desconstrução da arquitetura em Jacques Derrida; para Derrida tal
“arquitetura desconstrutora”, não deveria tornar-se mais o objeto da
escrita, mas ela mesma, o “traçamento’, um espaçamento, uma abertura do
espaço. Nesse deslocamento, há uma singular decapitação da arché, como
observa Bernardo: “o seu artífice não seria agora mais o architekton e a
sua intrínseca autoridade demiúrgica, o arquetípico arquiteto, que
‘começa e comanda’, mas talvez o an-arquiteto, o arquiteto tecelão ou o
coreógrafo” (2).

Deveríamos começar a reavaliar o papel do arquiteto enquanto


domesticador, planejador domesticador. Essa desconstrução da arché, a
qual se refere Fernanda Bernardo se traduz simultaneamente também na
desconstrução do próprio oikos, da morada, do soberano, do arquiteto que
se toma, de certo modo ingenuamente, por dono e senhor de si, e do lugar;
e de todas as coisas que cria, assim como da cidade em sua totalidade, ao
dar forma e ordenação aos fluxos.

O que o discurso arquitetônico vantajosamente tem ocultado é o papel da


própria casa (oikos, domus, duomo, dome, domo) no processo de
domesticação. Não temos até hoje, no mínimo, uma genealogia da casa em
termos foucaultianos. A casa guarda e oculta (okus) em seu sentido de
origem o próprio domus, o dome, o domino. O domínio que dociliza os
corpos e conforma as cidades com sua ordem disciplinar de limites,
ordens, leis, hierarquia, muros, cercas e falos. É na casa, no oikos, que
se faz e forma a partição, a partilha da comida, a oikonomia, a economia
primeira; divisão falocêntrica do trabalho, a divisão sexual do trabalho.
É também a partir da e na casa, junto a casa ou dentro da casa que se
arrastam os animais colocando-os em cativeiro; para posteriormente
devorá-los, é para casa que também se arrastam as plantas para cultivá-
las. Foi para dentro do domínio casa do Dom que se arrastavam os
escravizados negros e indígenas na América Latina.

A pessoa principal no domus romano era o dominus, o senhor, o dominador


do domínio, o Don, o Dom; aquele que detinha poderes e era obedecido
pelos outros habitantes da morada: a mulher, os filhos, os escravos e
servos, em suma tudo se tornava dele: até a família enquanto propriedade.
É sabido que a domesticação significa dominação, e implica num certo
processo de doma, curiosamente se buscarmos sua origem no grego a palavra
‘doma’ significa também telhado e cobertura. Do domus surge o ‘domo’, o
duomo, ‘du-uomo’ (do homem), a cúpula (a estrutura arredondada sobre uma
edificação, a abóbada arquitetônica), a cobertura, a proteção e a
imunidade. Domus se refere também ao domo celeste, a cúpula celeste
revelando que na origem habitamos a terra como se fosse nossa casa, a
prima casa. Ao se estar no mundo já está implicado um certo modo de
morar, habitar, uma adaptação de nossos corpos à própria natureza. Os
antigos tinham essa perfeita noção que a terra, a mãe terra era uma casa,
cujo céu era o domus dos deuses e assim erguiam suas casas sempre
orientadas segundo o cosmo.

Há uma longa parceria intrínseca estabelecida entre a casa e a


domesticação humana; e também dos animais e da natureza. Diríamos quase
que, a domesticação é inerente a casa, nasce nela e com ela. Na medida em
que avançamos no estudo sobre a domesticação, somos levados a aprender
desde cedo erroneamente que a casa se constitui nessa grande separação do
mundo selvagem, ao assinalar a separação do homem com natureza. Para o
processo civilizatório nos diferenciarmos de muitos outros animais. Isso
coloca em perspectiva que para ter uma casa (como a domus que os
arquitetos conhecem) é necessário estar devidamente civilizado para isso:
saber operar toda a parafernalha da máquina de morar e, com isso, se
descolar daquilo que viemos a chamar de natureza. A casa é só o começo
nessa trajetória de edifícios, a lista das construções domesticadoras
além da casa é exaustiva: igrejas, templos, escolas, hospitais, prisões,
manicômios, fábricas, ruas, praças e parques, cinema, teatro,
rodoviárias, aeroportos, bancos, hospitais, cartórios, cemitérios...

No processo da domesticação transformamos tudo em campo, é no campo que


se estabelece a ideia de cercamento desde o cultivo de uma horta, a
guarda de um rebanho, ou até os horrores de um campo de concentração. O
cercamento retira toda a possibilidade do espaço comum, tudo que está
dentro dele passa a pertencer a alguém, a um dom. Giorgio Agamben
analisou esplendidamente Auschwitz apontando correlatos na modernidade
mediante a ideia de campo: campo de exclusão, de refugiados ou a
periferia das cidades. Silvia Federici também assinalou o papel das
mulheres enquanto resistência ao processo de cercamento das common lands
(3).
Da ideia de campo podemos passar para a ideia de Parque Humano proposta
por Peter Sloterdijk Em Regras para o Parque Humano. O parque para
Sloterdijk é o lugar do experimento, invenção e fabricação dos novos
homens adaptados/aptos/obedientes/fiéis/dóceis às necessidades dos
domesticadores, os senhores. É nessa clareira, nesse espaço ou tempo
diferenciado que Martin Heidegger apresentou a ideia da clareira lichtung
(iluminação, clareira), com o surgimento da linguagem. Sloterdijk,
entretanto, apresentará a clareira-cidade não como o lugar do
aparecimento da linguagem e da criação dos homens através da linguagem,
mas como a arena do enfrentamento, doma e sobretudo da fabricação dos
homens pelos próprios homens. Muito antes, Friedrich Nietzsche já havia
percebido que “o homem é o único animal que domestica a si próprio”, mais
que isso, assustadoramente, como aponta Sloterdijk, ele cria homens
conforme suas necessidades de trabalho e desejos profundos. A
domesticação, escravidão, catequização, colonização, modernidade,
civilização, ou mesmo a servidão voluntária estão todas intimamente
interligadas.

A arquitetura e o urbanismo, com suas leis, têm ajudado a conduzir e


estabelecer o comportamento dos corpos dentro da cidade; e isso é
justamente uma atribuição da domesticação, conduzindo-nos por onde querem
e por onde devemos andar; tal qual fazemos com os animais; desde seu
nascimento até seu abate. Ela produz verdadeiramente tanto a modelagem
disciplinar anátomo-política dos corpos quanto a modelagem normatizadora
do corpo biopolítico das populações. A pólis não vive sem seus domos e
nomos, e também consequentemente de sua polícia. Segundo Foucault, estas
foram as duas práticas de poder inauguradas pelo Estado liberal e moderno
que visaram formatar, uniformizar o indivíduo e a sociedade.
Principalmente na obra Vigiar e punir (4) e nos cursos da década de 1970
do Collège de France, Foucault analisou o surgimento das disciplinas, e
das técnicas de poder centradas nos corpos dos indivíduos. O conceito de
biopolítica surgiu pela primeira vez numa palestra proferida por Foucault
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em outubro de 1974, mas sua
devida exploração somente acontecerá no primeiro volume da sua História
da sexualidade, a vontade de saber (5).

A proposição aqui é que, estudando a domesticação a partir da arquitetura


e da cidade e, entrelaçando com outros saberes, consiga-se analisar os
pensamentos domesticados e domesticantes; de um lado o habituado, o
assujeitado; e de outro o dominador e sua ideologia, o pensamento
domesticador, colonizador. Entretanto o quanto conseguimos diferenciar um
pensamento domesticado de um domesticante? Visto sua simultaneidade, que
só consegue produzir e reproduzir a si mesmo.

Também de grande influência para o estudo da modernidade domesticante é a


obra do filósofo austríaco Ivan Illich, com seus livros, na década de
1970, Sociedade sem escolas, energia e equidade, nemesis médica (6),
embora, Illich também não se referisse precisamente ao termo
domesticação, dirigiu consistentes estudos críticos radicais à escola, à
medicina, à indústria farmacêutica e automobilística como os grandes
domesticadores da era moderna Esses estudos acabaram despertando a
atenção sobre o papel domesticador e disciplinador de algumas
instituições. A esses autores se soma, quase que posteriormente, os
estudos radicais do filósofo John Zerzan e sua ideia de anarco e eco
primitivismo.

Com a domesticação do homem, a natureza e todas as coisas perderam a sua


dimensão primordial, na medida em que o homem resolveu explorá-la,
dominá-la para produzir ganhos, acabou por perder seu atributo de sagrada
terra para se tornar apenas um lugar para extração, cultivo e produção
que devem se tornar ganância, mais valia. Para os arquitetos e urbanistas
ela se tornou apenas um solo, um lugar abstrato para fundação das cidades
ou para colocar novos edifícios, uma tabula rasa, seca e fria, inerte e
inócua na maioria das vezes. Mesmo quando tentam integrar um projeto à
natureza não conseguem perceber a dimensão sagrada da terra, apenas veem
uma harmonia compositiva entre natureza, terreno, entorno e projeto. Mais
que isso: perdemos a relação poética e ética da terra e do mundo,
deixando de perceber que estamos dentro dela, acolhidos; esquecemos que é
a nossa primeira e irredutível morada, a casa das casas, tão frágil
quanto nossa existência. Perdemos o contato com os deuses da terra que
foram aniquilados pela igreja católica e outros monoteísmos. A natureza
foi diabolizada pelo catolicismo, e as mulheres transformadas em bruxas.
Da mulher e da terra foi subtraída sua dimensão sagrada em prol de um céu
transcendente e morada de um grande e único Senhor. Assim como foram
combatidos e perseguidos os animismos, politeísmos, panteísmos. De uma
forma geral, tudo para o cristianismo era paganismo; se não cultuasse o
seu Deus único do cristianismo partiria a cruzada para catequisar o mundo
todo. E, catequese significa literalmente domesticação e colonização.

Acabamos com o tempo cíclico natural da vida, do sol, das luas para
passar ao tempo linear, ao tempo disciplinar das catedrais e de seus
sinos, ao tempo dos relógios, dos cronômetros, ao tempo universal que se
aplica a todos e a tudo sobre a terra, numa precisão nunca vista antes.
Passamos enfim, no final do século 19 e 20, ao tempo da precisão da
máquina, da vouiture, do Citroën, do automóvel tão propalado por Le
Corbusier e pelos modernos. Caminhar dez quilômetros a pé hoje
corresponde ao mesmo tempo de uma viagem aérea de Porto Alegre a São
Paulo. Já estamos tão domesticados a essas novas temporalidades que nem
conseguimos perceber seus reflexos.
Falamos de domesticação não só da terra, como também do espaço, e do mar.
Propagandeamos nosso poder de previsão sobre o tempo e seus elementos
como um dado a mais da domesticação, e de nosso poder. Se não falamos de
uma domesticação total do tempo, referimo-nos no mínimo ao poder-saber de
prognósticos, de antecipações diante de situações em que a selvagem mãe
natureza impõe seus riscos. Para além do tempo das intempéries e dos
cataclismos.

Fala-se também na domesticação do tempo da existência humana, de um


Kairós, de uma ordenação e repartição da vida que se propõe agora
universal. Tempo de trabalho, tempo de estudo, tempo de lazer, tempo de
férias, tempo de ir à praia, hora de comer, hora jantar, hora de acordar,
hora de dormir, e sobretudo os regimes disciplinares dos horários da
alimentação. Tempo de muitos tempos. Tempo que domestica repartindo e
organizando a vida: o crescimento das crianças, infância, pré-
adolescência, adolescência. Tempo de ir à creche, tempo de ir à escola,
tempo de ir à faculdade, tempo de casar, tempo de procriar, tempo de
trabalhar, tempo de se aposentar, tempo de esperar a morte, e time to
die. Domesticação não só do tempo desses tempos todos, mas também dos
espaços destinados à prática de envelopar esses tempos através da
arquitetura. E, essa partição do tempo é muito similar ao
esquadrinhamento partição do espaço apresentado por Foucault.

É muito curioso observar os períodos de festas, final de ano, feriados ou


férias, as multidões marcharem como gigantescos rebanhos ou enxames em
direção às praias, saindo de suas cidades, ordenadamente pelas estradas
como se movessem em extensos currais, como se tivessem ouvido o comando
de que é hora de sair, de se mover, e lá vão todos. O curioso é que, como
bem apontou Foucault, já não é necessário ninguém comandar, o sentido de
obediência e disciplina já está introjetada em todos nós. sociedade
disciplinar ou sociedade de controle ou a sociedade do cansaço do Byung-
Chul Han, todas fazem parte da incomensurável crítica ao processo da
“domesticação da existência”. Para a infância e adolescência significa “o
que você vai ser quando crescer?”, “que profissão você vai ser?”. Em
outras palavras mais amenas como definiu Norbert Elias em seu livro: O
processo civilizador, todas essas coisas fazem parte do que nos
vangloriamos de ser ‘civilizados’; nesse processo a arquitetura assume
papel fundamental e nem sempre agradável de reconhecer desde a íntima
responsabilidade da construção de um simples muro, um cercamento, ou a
própria casa, o domus como processo de domesticação.

A casa como domesticação significa estabelecer práticas corporais de


comportamento dentro desse espaço, como simplesmente colocar um sofá ou
cadeira na frente de uma televisão, ou mesmo da antiga cozinha e de sua
relação com o trabalho feminino. Não será difícil detectar todas as
outras práticas disciplinares contidas na casa.

É preciso reforçar constantemente que a palavra domesticação tem suas


raízes no latim, na palavra domus, casa, domesticatio, a casa é o locus
primo desse processo. Da necessidade da casa até a domesticação da
sociedade contemporânea há um curto, mas denso, espaço de tempo em que se
deu todo esse processo, principalmente a partir do século 18 com o que se
chamou Humanismo. Mesmo que na atualidade muito do processo de controle e
domesticação dos corpos se deem via novas tecnologias de comunicação, não
devemos esquecer que essas tecnologias substituíram nos últimos anos
muito dos espaços e funções que eram exercidas pela arquitetura,
eliminando-os fisicamente e substituindo por um mundo virtual, tão
domesticador ou mais que o anterior; mas seguem aplicados ao corpo.
Portanto, fala-se aqui não de uma só domesticação, mas de domesticações
de toda sorte e períodos. Deleuze nos explicou muito bem a passagem da
sociedade disciplinar dos séculos 18 para a sociedade de controle da
atualidade:

“Foucault situou as sociedades disciplinares nos séculos 18 e 19;


atingem seu apogeu no início do século 20. Elas procedem à
organização dos grandes meios de confinamento. O indivíduo não
cessa de passar de um espaço fechado a outro, cada um com suas
leis: primeiro a família, depois a escola (‘você não está mais na
sua família’), depois a caserna (‘você não está mais na escola’),
depois a fábrica, de vez em quando o hospital, eventualmente a
prisão, que é o meio de confinamento por excelência. É a prisão
que serve de modelo analógico: a heroína de Europa 51 pode
exclamar, ao ver operários, ‘pensei estar vendo condenados...’
Foucault analisou muito bem o projeto ideal dos meios de
confinamento, visível especialmente na fábrica: concentrar;
distribuir no espaço; ordenar no tempo; compor no espaço-tempo
uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das
forças elementares. Mas o que Foucault também sabia era da
brevidade deste modelo: ele sucedia às sociedades de soberania
cujo objetivo e funções eram completamente diferentes
(açambarcar, mais do que organizar a produção, decidir sobre a
morte mais do que gerir a vida); a transição foi feita
progressivamente, e Napoleão parece ter operado a grande
conversão de uma sociedade à outra. Mas as disciplinas, por sua
vez, também conheceriam uma crise, em favor de novas forças que
se instalavam lentamente e que se precipitariam depois da Segunda
Guerra mundial: sociedade disciplinar é o que já não éramos mais,
o que deixávamos de ser. Encontramo-nos numa crise generalizada
de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica,
escola, família. A família é um ‘interior’, em crise como
qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. Os ministros
competentes não param de anunciar reformas supostamente
necessárias. Reformar a escola, reformar a indústria, o hospital,
o exército, a prisão; mas todos sabem que essas instituições
estão condenadas, num prazo mais ou menos longo. Trata-se apenas
de gerir sua agonia e ocupar as pessoas, até a instalação das
novas forças que se anunciam. São as sociedades de controle que
estão substituindo as sociedades disciplinares. ‘Controle’ é o
nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que
Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virilio também
analisa sem parar as formas ultrarrápidas de controle ao ar
livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na
duração de um sistema fechado” (7).

Segundo nos explica o filósofo Byung-Chul Han, a sociedade disciplinar de


Foucault com suas celas, hospitais, escolas já não corresponde à
sociedade de hoje, há uma nova sociedade agora composta de ginásios para
modelagem do corpo, gigantescas torres de escritórios, laboratórios
genéticos, bancos e grandes centros comerciais; tudo isso compõe o que
Han chama de “sociedade do rendimento”; e aqui deve se observar o duplo
sentido que essa palavra na língua portuguesa (rendimentos capitais, e de
estar rendido, acabado) desempenha em todo o pensamento de seu clássico:
A sociedade do cansaço (8). O antigo sujeito da “obediência” (forçada ou
espontânea) foi substituído pelo sujeito de rendimento, ou “do
rendimento”. As velhas separações que estabeleciam o normal do anormal e
toda negatividade que se concentrava na sociedade disciplinar caiu. Hoje,
a sociedade positiva de rendimento substituiu a proibição pelo verbo
“poder’, com seu plural afirmativo “yes we can”. Segundo Han, depois de
certo tempo, a sociedade disciplinar alcança um limite de bloqueio e
impede o crescimento da produção; e com o objetivo de maximizar a
produção, então os senhores do capital tiveram que trocar de paradigma de
domesticação também.

Deste modo o inconsciente social passou do dever ao poder, mas sem anular
um ao outro. Ou seja, o sujeito do rendimento segue disciplinado, mas
agora também controlado conforme Deleuze e Han. Ele se encontra em Guerra
consigo mesmo, entre a aceitação dessa domesticação, ou “virar o balde”,
dizer: não! Agora ninguém mais o obriga a trabalhar ou lhe explore, ele
se abandona, se entrega, se rende sem “rendimento$” a uma espécie de
liberdade obrigada de maximizar seus rendimentos; então o excesso de
trabalho se agudiza e se converte paradoxalmente em auto exploração, auto
domesticação (Uber, ifood, microempresas). Para Han isso é mais eficaz
porque vem acompanhado sempre de um sentimento de liberdade, de uma
possibilidade de um dia se libertar e ir para uma ilha paradisíaca,
quando na verdade isso nunca acontecerá, e nem seguridade social terá
para morrer.

Para que essa docilização do corpo e da mente fosse possível foi


necessário não só o controle e formatação dos corpos, formação das
mentalidades; formatar/formar profissionais e profissões como nos
explicitam Foucault, Deleuze ou Illich; mas também de uma dieta
ministrada diariamente de medicamentos antidepressivos, neurolépticos,
estimulantes (ritalina, rivotril, oxcarpezipina, lamotragina...). E, de
outro lado, drogas pesadas como cocaína, crack, ou o álcool, mesmo, isso
para que a mente do sujeito não se rebele, e que passe aceitar os
imperativos impostos. Passamos das técnicas duras de sofrimento aplicadas
ao corpo às técnicas de dopagem, a domesticação dopante. No fundo são
injeções de produções, rendimentos para que o sujeito renda mais e mais,
até se render (9).

Theodore John Kaczynski, o Unabomber, foi um desses que se rebelou e foi


viver numa cabana longe de quase tudo. Revoltou-se contra essa sociedade
dos anos 1970-1980 de um modo reativo através de seus atentados com
bombas contra seus malfeitores: a academia inicialmente à que foi
submetido à experimentos. Mas que de qualquer forma, não tira a lucidez
de sua tese, formulada antes dos atentados, sobre a A Sociedade
industrial e seu futuro (10).

As novas tecnologias se propõe agora domesticar um a um isoladamente,


individuo a individuo; mais eficaz que um grupo inteiro como é na escola
ou na prisão; assim a sociedade do rendimento proposta por Han, tratará
de isolar o máximo possível esses sujeitos em sua vida privada, em seu
mundinho do personal computer, do celular. Isolá-lo também no trabalho,
acabando com os sindicatos e da vida em coletividade, de um modo de
produção comum. O individual submetido ao controle rende mais que o
coletivo submetido ao mesmo controle. O rendimento, o rendido e o
remendado.

Vivemos cada vez mais aprisionados, já nascemos no Panóptico, também já


se nasce agora mergulhados e dependentes do “mundo celular” e nem sequer
podemos conceber como a vida era em outros tempos fora do controle, fora
da viseira diminuta do celular. Nosso campo de visão se reduz cada dia
mais, e o que outrora achávamos natural amanhã chamar-se-á de horizontes
expandidos. Nem se precisa invocar produções farmacêuticas
extraordinárias ou manipulações genéticas, ainda que elas sejam
destinadas a intervir no novo processo. Não se deve perguntar qual é o
regime mais duro ou o mais tolerável da domesticação quando tudo está a
cargo da escravidão e servidão humana; em cada um deles se enfrentam as
liberações e as sujeições. Por exemplo, na crise do hospital como meio de
confinamento, o atendimento à domicílio pode marcar de início novas
liberdades, mas também passaram a integrar mecanismos de controle que
rivalizam com os mais duros confinamentos. Como disse Zerzan, “não cabe
temer ou esperar, mas buscar novas armas para combater a domesticação”
(11).

A domesticação segue sendo um tema aparentemente estranho à arquitetura e


ao mundo dos arquitetos. Em geral, os arquitetos, em sua ingenuidade com
relação à própria profissão que é extremamente técnico-alienante insistem
em confundi-la com domesticidade, e associá-la ao pensamento romântico da
casa e do lar. Ou seja, do cliente que chega, em sua plenitude de
felicidade familiar demandando para o arquiteto uma casa nova para sua
recente família.

Domesticidade refere-se ao âmbito do doméstico, do familiar, do caseiro,


da vida doméstica, do servil e do obediente. O assombro é quando se passa
do doméstico a domesticação. É incrível, como os arquitetos e as pessoas
associam o doméstico a casa, mas não conseguem a associar à domesticação;
ainda que escancarada a relação entre essas duas palavras.

Fala-se hoje de uma domesticação, não só dos animais, das plantas, mas do
próprio homem, da própria natureza, de um modo domesticado de viver (12).
De certa forma, essa questão nos últimos anos tem se tornado cada vez
mais expressiva quando relacionada com a questão da descolonidade. É
notório o adestramento para podermos conviver em multidões. Para alguns a
domesticação é tida como necessária para a sobrevivência na sociedade
atual, daí a relação direta entre organizar, classificar, disciplinar,
controlar e domesticar. Não é de estranhar que o século 18 na Europa
tenha sido o século das organizações, do positivismo, do iluminismo; mas
também do tráfico de escravos, que Foucault, oportunamente se esqueceu de
enfatizar.

Domesticamos o ambiente para organizar os espaços, as salas, os quartos;


domesticamo-nos; naturalizamos até a ideia de banheiro, o modo de comer,
e de como essas tecnologias da moda nos condicionam. Por exemplo, as
máquinas na cozinha também afetam nossos hábitos, inclusive nosso modo de
cozinhar e também de comer. Já estamos habituados ao combo sofá-TV ou
sofá-celular, esquecendo a mesa como móvel para as refeições. Fomos até
sensibilizados para colocar quadros na parede das casas como rastro de
humanização do espaço. Estamos plenamente satisfeitos às novas formas de
iluminação que nos induzem a recebê-la; luz cada vez mais luz; sem
questionar o excesso de iluminação que não nos permite ver o céu à noite
com suas estrelas. Todos esses processos da vida cotidiana e muitos
outros, o arquiteto é responsável por reproduzir como forma de docilizar
os corpos e domesticá-los em seus projetos, ainda que inconscientemente.
Na maioria das vezes, não tem noção do que fazem, apenas reproduzem
aquilo que aprenderam ou viram porque acham belo e bonito. Se
questionarmos aos arquitetos mais domesticados, ainda responderão
agressivamente que não há outra forma de morar ou de viver, e que
simplesmente devemos aceitar o fato. Outros, ainda, se indignarão com tal
perspectiva. Não se perceber domesticado é ter a fé de que está fazendo o
bem para o mundo. Em parte é o gen do caráter cortesão da profissão é o
que determina isso. Como nas sociedades cortesãs, os plebeus que
participavam dos banquetes se sentiam superiores aos seus iguais que não
participavam. Os arquitetos em seus planos e projetos não decidem se um
lugar será uma praça, um shopping ou um centro cultural, eles dão forma a
como esses equipamentos encomendados serão implantados. Por esse motivo
parece que nada pode ser feito por meio da crítica, quando tudo já está
posto desde outra instância.

Às vezes, tudo parece que sempre foi assim para os que já nasceram nas
grandes cidades, nessa espécie de labirinto de ratos de laboratório. Tudo
é apreendido como um dado natural; e a cada novo dispositivo da
domesticação sempre irá nos parecer melhor que o anterior. Nesse
processo, as representações técnicas desempenham um papel importantíssimo
induzindo a pensar que elas são a própria realidade plasmada,
independente de qualquer outro tipo de representação.

A domesticação cobre os corpos com um manto docilizador afetando


principalmente os olhos produzindo a opacidade de uma catarata ou
viseira, ela doma o olhar e todos outros sentidos. No processo da
domesticação da visão existem também relações inequívocas entre
arquitetura e a perspectiva como forma de estabelecer uma gramatica
universal da visão, um modo uniformizado de ver o mundo que segue
impondo-se através das arquiteturas do distanciamento (13). A
domesticação não tolera modos distintos de ver o mundo e as coisas,
somente àqueles desvios por ela permitidos.

Michel Foucault foi um dos primeiros a apontar a modelagem dos seres


humanos através do conceito de biopolítica; iniciando por uma modelagem
anátomo-política dos corpos produzidos por uma rede de micro poderes
articulados ao Estado, que atravessaram toda a estrutura social. Essa
tessitura complexa se intensificou a partir dos séculos 17 e 18. É
importante frisar que Foucault não se refere em seus trabalhos à palavra
domesticação, mas sim “docilização” dos corpos. Instituições como
escolas, fábricas, quarteis, hospícios foram fundamentais para a formação
das massas e para a legitimação da racionalidade capitalista. Esse
processo de apropriação disciplinar sobre os corpos dos indivíduos começa
segundo Foucault desde seus nascimentos na maternidade, até suas mortes
pela rede das múltiplas instituições e o Estado. Quando, por exemplo, se
entra num hospital, assina-se um documento onde se entrega a própria vida
a essas instituições e ao Estado, vide a questão da eutanásia. Na
verdade, desde que se nasce já se é capturado.

Essa sujeição biopolítica traz embutida a redenção da tecnologia da vida


para o mundo. Tecnologia essa que impulsiona a domesticação promovendo
permanentemente a perspectiva da longevidade e do afastamento da morte.
Se pudéssemos definir a modernidade em poucas palavras ela se
apresentaria hoje não só como o período das tecnologias, mas, sobretudo,
a época da domesticação das multidões via tecnologia biopolítica.
Infelizmente, a modernidade que vivemos há pouco mais de três séculos é a
domesticação em sua face mais perversa, tão perversa quanto a escravidão
africana do século 15 ao 19.

Além de Foucault, também Gilles Deleuze e Peter Sloterdijk têm nos


alertado sobre os problemas da domesticação e do controle. Mas certamente
é o filósofo John Zerzan quem mais tem procurado desvelar como se tem
dado o processo da domesticação ao longo da história. Sendo que a própria
História é vista por Zerzan como uma engrenagem da construção
domesticadora. Entre seus livros destacam-se: Futuro primitivo; Porque
primitivismo; Patriarcado e civilização; Numbers; entre outros (14).

A domesticação via indústria automobilística se realiza com o objetivo de


despejo e venda de automóveis a cada ser humano sobre a Terra, e traz
embutida a curiosa inversão do senso da doma, pois é o condutor, o piloto
agora que é domado pela máquina, ele se adapta as regras de funcionamento
do veículo e não a montaria-automóvel. É ele que será moldado por regras,
condutas e punições de trânsito. Assim como acreditamos dominar o
controle do celular quando na realidade somos também dominados por ele
(15). Como bem expressou Ivan Illich sobre o automóvel e domesticação:
“diga-me o quão rápido você se move e eu te direi quem você é”. Se você
só pode contar com os seus próprios pés para se locomover, você é um
pária, porque há meio século, o veículo tornou-se um sinal de seleção
social e uma condição para a participação na vida nacional. Onde quer que
a indústria de transporte tenha feito seus passageiros passarem por uma
barreira de velocidade crítica, inevitavelmente estabeleceu novos
privilégios para uma minoria e um desespero para a maioria”. “É o tempo
carcomido pelo tráfego; o homem privado de sua mobilidade e submetido e
dependente das rodas; e a arquitetura ao serviço do veículo; tudo isso é
consequência da reorganização do mundo sujeita a uma aceleração
avassaladora” (16). A velocidade também é um luxo. E da mesma maneira
opera a ideia de viajar de avião ou de ônibus. Os padrões e os parâmetros
do carro, sua cadência, são estendidos para todos os modais.

Há uma curiosa relação, muito pouco observada pelos teóricos da


arquitetura entre a indústria automobilística do início do século 20,
mais precisamente a francesa, o carro Voisin e as propostas urbanas de Le
Corbusier (Plano Voisin). Decididamente Le Corbusier foi um dos grandes
divulgadores do automóvel e de sua indústria. Seus projetos não tardariam
por justificar mais ainda o uso do automóvel, deixando as coisas, as
pessoas e os edifícios cada vez mais afastados uns dos outros, ao ponto
de necessitar o uso do automóvel e dos transportes coletivos. Com o Plano
Voisin; idealização de uma cidade de três milhões de habitantes;
esfacelava-se o corpo da cidade dividindo a vida humana em trabalhar,
habitar, circular e lazer. Assim, Le Corbusier criava a obrigatoriedade
do deslocamento para suas realizações independentes, não só transportes
individuais, mas também dos coletivos. A superação das distâncias
orientava a dependência do uso do automóvel para o trabalho e o passeio.
Para justificar o uso do automóvel era primordialmente necessário o
afastamento da relação casa e trabalho; que já existia; mas o automóvel
oferecia uma nova modalidade de transporte que superava a massificação
dos bondes e trens. Até o lazer começaria a ser associado aos passeios de
fim de semana, sair de casa e sair por aí a esmo, com o intuito exclusivo
de passear de automóvel. Inventa-se assim também a necessidade deambular
de um lado para outro. Também o sentido de férias se atrelará ao viajar e
ao sair da casa, ao escapar-se do domus, da domesticação cotidiana para
cair numa nova domesticação. Criar-se-ia permanentemente uma espécie de
necessidade artificial da impermanência, do trânsito e do tráfego.

Poucos observam, a rua corredor, essa que vivemos todo o dia, a partir do
automóvel perdeu seu antigo aspecto público onde caminhavam os pedestres,
para se tornar o espaço para os privilegiados e possuidores de automóvel,
ou mesmo dos que conseguem pagar um transporte coletivo. A maior parte da
largura das ruas é destinada aos ricos os proprietários de carros ou dos
ônibus, ficando reservadas as estreitas calçadas aos pedestres.
Acreditamos ingenuamente que as ruas são públicas, mas quando em
realidade elas são reservadas a indústria automobilística para que possa
realizar o deslocamento de seus automóveis, e assim continuar vendendo
mais e mais automóveis. Ou seja, mais a mais, a rua perdeu a sua natureza
de trocas do cotidiano para ser um espaço de circulação da mercadoria.
Essa porcentagem de área, a faixa carroçável é altamente expressiva
comparada ao total de área de uma cidade. Ao verticalizar as habitações
em torres provoca-se o adensamento e consequentemente a área para o
tráfego de automóveis (17).

Vers une architecture (18), um dos mais célebres livros da arquitetura


moderna, pode ser visto como um catálogo de propaganda dos meios de
transporte e da tecnologia do início do século 20. Nesta obra, Le
Corbusier retira estes modelos das revistas e se propõe a utilizá-los sob
forma de metáforas para a arquitetura, muitas vezes quase literal. Formas
arquitetônicas com alusão a carros, barcos, trens, aviões, efetivamente
não se relacionam a qualquer máquina, mas sim a um predomínio de
analogias às tecnologias de deslocamento, e velocidade principalmente. As
asas dos aeroplanos para os pilotis, o transatlântico para as habitações
de multidões (Unidade de Habitação), o carro para casa (Maison Citroen).
Enfim, não só a casa, mas também a cidade como máquina de morar, era seu
pensamento. Uma vida domesticada agora não só pelos homens, mas pelas
máquinas dos domesticadores. A cidade funcionando como uma máquina
produtiva de corpos domesticados. E, a vida concebida nessa máquina de
viver, nesses limites, no campo da máquina: a cidade máquina. A máquina
como representação da domesticação da vida, símbolo da organização, da
disciplina, da razão, do controle, da higiene, da luminosidade e
individualização da família monogâmica. Funcionalidade perfeita,
arquitetura simbólica da máquina e simbologia da domesticação.

Além do automóvel, os aviões como representação da ideia de libertação


trazida pelo voo seriam em poucos anos, juntamente com os aeroportos, os
novos lugares da domesticação. Voos domésticos, ou longos que forçam a
permanência por horas em cadeiras desconfortáveis, as filas para esperas
e os bretes de inspeções de embarque, check-in, alfândega. O avião
domestica não só o homem, mas a estratosfera, a grande esfera vital,
tornando domínio humano o domínio existencial de qualquer animal que viva
na terra. Dessa maneira, o homem também começou habitar o inabitável. Os
bombardeiros e as versões não tripuladas de drones atuais domesticam,
dominam e horrorizam tudo de cima para baixo. Paul Virilio, em seu livro
A máquina de visão (19), fez uma análise esplendida do papel do avião
como o grande organizador de nossas cidades; não só através da Guerra,
mas mais especificamente com relação às imagens aerofotogramétricas. Como
diz Rufino Becker: “tanto o navio quanto o avião são desterramentos,
assim como também o pilotis, eles retiram a relação direta do homem com a
terra”, isolando, tornando-o um desterrado, um exilado em sua própria
terra. Os carros em suas origens, também, pertenciam a uma elite, observa
Becker: “e isso tudo continua até hoje, viajar representa poder, e talvez
por isso a elite brasileira deteste ver os aeroportos virarem rodoviárias
cheias de pobres, e os templos-shoppings cheios de gentalha” (20).

De qualquer forma tanto o automóvel como o avião, colocam a situação


inusitada de se converterem em casas móveis, domus voadores, cápsulas,
esferas de deslocamento. Já não há como escamotear que vivemos numa
sociedade de controle como apontou Deleuze que marcha para o controle
total, o totalitarismo do controle global. Temos que admitir que nossas
vidas nas grandes cidades já se parecem a um parque humano como no propôs
Peter Sloterdijk, onde se fabricam super-homens domesticados. A vida
humana, em outras palavras, tornou-se um zoológico humano com regras
prefixadas por horas computáveis economicamente (dormir, trabalhar,
comprar), assim a vida se tornou uma serie de rituais domesticantes a
serviço do capital.

O tempo também foi domesticado, como bem apontou Zerzan, desde sua
origem, o tempo e a função dos rituais para Zerzan foram dispositivos de
domesticação. Todos estudiosos desse tema, de certa forma, entendem que a
problemática da domesticação está atrelada em suas origens não só a
questão da casa e da arquitetura, mas também a problemática do tempo.
Embora quase nenhum antropólogo tenha se proposto a comentar o tema da
asa como espaço domesticador, nem mesmo Zerzan; poucos têm avançado no
sentido de demonstrar como a arquitetura em suas particularidades
contribuiu nessa modelagem na doma do ser humano pelo ser humano, por
assim dizer. Entre esses estudiosos da domesticação também podemos citar:
Jacques Camatte (21), Ciro Cardoso (22) e Moyses Carmona (23).

notas

1
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. São Paulo, Estação Liberdade,
2000, p. 43.

2
BERNARDO, Fernanda. Coreo-grafar ou a arte de espaçar. In FUÃO, Fernando (org.)
Arquitetura e filosofia da desconstrução. Querências de Derrida, moradas da
arquitetura e filosofia. Porto Alegre, UFRGS, 2016, p. 81.

3
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Elefante, 2017.

4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.
Petrópolis, Vozes, 1977.

5
FOUCAULT, Michel [1963]. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1977.

6
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis, Vozes, 1975. ILLICH, Ivan.
Energia y equidad. Barcelona, Barral Editores, 1974; ILLICH, Ivan. Nemesis
Medica, la expropriación de la salud. Barcelona, Barral Editores. ILLICH, Ivan.
Breve Biblioteca de respuestas, 1975.

7
DELEUZE, Gilles, Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 219.

8
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis, Vozes. 2015.

9
HAN, Byung-Chul. Op. cit., p. 145. “Imagine uma sociedade submetendo pessoas a
condições que as tornam terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá drogas
para retirar esta infelicidade. Ficção científica? Em certo grau isso já está
ocorrendo em nossa sociedade. É bem sabido que a taxa de pessoas clinicamente
deprimidas aumentou muito nas últimas décadas. Isso se deve ao colapso no
processo de afirmação pessoal. Salvo engano, o incremento da taxa de pessoas
que sofrem de depressão é certamente o resultado de algumas condições
existentes na sociedade de hoje. Em vez de extirpar as condições que geram
depressão, a sociedade moderna disponibiliza drogas antidepressivas. Na
realidade, os antidepressivos são um meio de modificar o estado interno de um
indivíduo de tal maneira que lhe permita suportar condições sociais
intoleráveis”. Idem, ibidem, p. 146. “As drogas que afetam à mente são apenas
um exemplo dos métodos de controle do comportamento humano que a sociedade
moderna está desenvolvendo”. Idem, ibidem, p. 145.

10
KACZYNSKI, Theodore. A sociedade industrial e seu futuro. São Paulo, Baraúna,
2014.

11
ZERZAN John. Futuro primitivo. Rosario, Kolektivo Editorial Último Recurso,
2004, p. 12.

12
A domesticidade em guerra retrata a construção do imaginário doméstico no
século 20; representa a domesticidade moderna desde o ponto de vista do
refúgio, da transparência, da desconexão entre interior e exterior. Embora, o
livro trate o tempo inteiro sobre domesticidade, Colomina em nenhum momento
tenta definir domesticidade. No livro não há um entendimento das
características do que seja um doméstico como processo de dominação. A
domesticidade que ela apresenta é uma domesticidade romântica do lar como
refúgio, e de como essa domesticidade foi profundamente alterada com a Segunda
Guerra mundial. COLOMINA, Beatriz. A domesticidade em Guerra. Barcelona, Actar,
2006.

13
Veja-se FUÃO, Fernando. A máquina de fragmento, a domesticação da visão.
Fernando Fuão. Ensaios e Livros, Porto Alegre, 20 out. 2012
<https://bit.ly/3DbjZVJ>; FUÃO, Fernando. Arquiteturas do distanciamento.
Fernando Fuão. Ensaios e Livros, Porto Alegre, 20 out. 2012
<https://bit.ly/3wvhrhy>.

14
ZERZAN John. Op. cit.; ZERZAN John. Porque Primitivismo. Coletivo Erva Daninha,
2002; ZERZAN John. Patriarcado, civilização e as origens do gênero. Revista
Gênero e Direito, v. 1, n. 2, 2011; ZERZAN John. Número: sua origem e evolução.
Anarquia Verde. 2009.

15
ILLICH, Ivan. Energía y equidade (op. cit.), p. 18.

16
Idem, ibidem, p. 15-17. Segundo Ivan Illich, em Energía y equidad: “O usuário
não consegue compreender a insanidade inerente ao sistema de circulação que se
baseia principalmente no transporte. Sua percepção da relação do espaço com o
tempo foi objeto de uma distorção industrial. Ele perdeu o poder de se conceber
como algo diferente de ser um usuário. Intoxicado pelo transporte, ele perdeu a
consciência dos poderes físicos, sociais e psíquicos de que dispõe o homem,
graças aos seus pés. Ele esqueceu que o território é criado pelo homem com seu
corpo, e toma como território aquilo o que nada mais é do que uma paisagem
vista por uma janela por um homem amarrado à sua cadeira. Ele não sabe mais
marcar a área de seus domínios com a pegada de seus passos, nem conhecer os
vizinhos, andando na praça. A relação com o espaço do usuário do transporte é
determinada por uma potência física alheia ao seu ser biológico. O motor media
sua relação com o meio ambiente e logo o aliena de tal forma que depende do
motor para definir seu poder político. O usuário está condicionado a acreditar
que o mecanismo aumenta a capacidade dos membros de uma sociedade de participar
do processo político. Ele perdeu a fé no poder político de andar". Idem,
ibidem, p. 19.

17
Outra coisa interessante, que determina o quanto que o carro é um signo de
distinção, é que os edifícios de moradia se distinguem também pela quantidade
de vagas de garagem. Os ricos compram apartamentos com “n” vagas de garagem. As
habitações populares acabaram incorporando uma vaga de garagem, graças à
divisão fundiária e ao valor da terra: pobre pode morar bem longe do centro e,
para que ele possa fazer qualquer coisa, produz-se o sonho de ter um carro para
poder sair de casa e, de repente, até poder acessar a cidade.

18
LE CORBUSIER. Vers une architecture. 2ª edição. Paris, Les Éditions G.
Crès,1924.
19
VIRILIO, Paul. La máquina de visión. Madrid, Ediciones Cátedra, 1989.

20
BECKER, Rufino; FUÃO, Fernando. Arquitetura do porvir / por vir uma
arquitetura. In VASCONCELLOS, Juliano; BALEM, Tiago (org.). Bloco (10) Ideias
sobre o futuro. Novo Hamburgo, Associação Pró-Ensino
Superior/Aspeur/Universidade Feevale, p. 36.

21
CAMATTE, Jacques. Contra la domesticación, mai. 1973 <https://bit.ly/3DeRDdx>.

22
CARDOSO, Ciro. Repensando a construção do espaço. Revista de História Regional,
n. 3 (1), Rio de Janeiro, UFF, Verão 1998, p. 7-23.

23
CARMONA, Moyses. El miedo como técnica de domesticación humana. Scribd
<https://bit.ly/3WEuYxV>.

sobre o autor

Fernando Freitas Fuão é arquiteto, doutor pela Escuela Técnica Superior de


Arquitectura de Barcelona com a tese “Arquitectura como Collage”, 1992.
Atualmente é professor na Faculdade de Arquitetura e no Programa de Pesquisa e
Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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