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Arquitetura e domesticação I
Fernando Freitas Fuão
272.00 antropologia e
arquitetura
sinopses
como citar
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original: português
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272
272.01 cidade e
infância
A prática do espaço
urbano pela criança
Julieta Leite e Maya
Neves de Moura Araújo
272.02 conforto
ambiental
Iluminação pública e
poluição luminosa na
cidade de São Paulo
Caracterização na
Família escala municipal e
Colagem Fernando Fuão, 2019 distrital
Rose Raad, Rodrigo
Galon, Mariana Ferreira
Martins Garcia e
como citar Leonardo Marques
Monteiro
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitetura e domesticação I. Arquitextos, São Paulo,
ano 23, n. 272.00, Vitruvius, jan. 2023 272.03
<https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/23.272/8703>. Tradição e contratos
Discursos em disputa
“O caminho de volta nunca será o mesmo da vinda”. pelo Maracanã
Anônimo Carlos Henrique
Ribeiro, Rodrigo Vilela
“O que ainda hoje pode domesticar o homem, se até hoje seus Elias e Silvio Telles
esforços de auto moderação levaram, em grande parte, precisamente 272.04 sustentabilidade
a uma tomada do poder sobre todo ser? O que pode domesticar o e patrimônio
homem, se até aqui em todas as experiências de educação da Preservação do
espécie humana não ficou muito claro para quem ou em benefício de patrimônio e
quem educam os educadores?” sustentabilidade
Peter Sloterdijk (1) Projeto de reabilitação
da Casa do Estudante
Domesticação da vida, domesticação do tempo, do espaço; domesticação da Universitário no Rio de
natureza, nada escapa: o campo, as plantações, os animais em cativeiro, Janeiro
as experiências genéticas, fala-se também se uma domesticação da saúde, Cristiane Maria
da medicina, de uma domesticação da representação, da visão e do ensino. Bittencourt Suzuki,
Domesticação da vida, da casa, do trabalho, do lazer, dos corpos e até do Marcos Martinez Silvoso
caminhar. E, a cidade é o locus da domesticação humana. Do século 18 à e Mônica Santos Salgado
atualidade, a domesticação se alicerçou na Sociedade disciplinar, no
corpo biopolítico como expressou Michel Foucault; e agora na Sociedade do 272.05 habitação social
controle conforme anunciou Gilles Deleuze. Falaremos de uma domesticação, Política habitacional
digamos tolerante e necessária, exercida pela casa e sua domesticidade, para cortiços em São
mas também de uma domesticação nefasta exercida pelo Estado e as forças Paulo
do poder, sejam elas totalitárias e ou até mesmo democráticas.
Normalmente os arquitetos nunca pensam que a arquitetura e o urbanismo Celso Aparecido Sampaio
estão comprometidos nessa domesticação, desde a mais profunda fundação e Débora Sanches
até seu coroamento. Acham uma expressão totalmente estranha, até o
momento que se explica que a palavra domesticação tem sua origem na
palavra domus, que significa casa; aí então, começam a suspeitar do
comprometimento da arquitetura e dos próprios arquitetos e
consequentemente dos urbanistas. Nossa profissão exerce um papel
determinante nesse processo como planejador, escritas e representações,
entenda-se que o planejamento e o projeto são antes de nada dispositivos
de controle: garantia de execução ipsis litteris da própria domesticação.
Talvez em parceria com tantas outras profissões sejamos os mestres dos
mestres em domesticação, o senhor e criador que domestica, já portamos o
apelido de demiurgos. Como diz a filósofa Fernanda Bernardo ao tratar o
tema da desconstrução da arquitetura em Jacques Derrida; para Derrida tal
“arquitetura desconstrutora”, não deveria tornar-se mais o objeto da
escrita, mas ela mesma, o “traçamento’, um espaçamento, uma abertura do
espaço. Nesse deslocamento, há uma singular decapitação da arché, como
observa Bernardo: “o seu artífice não seria agora mais o architekton e a
sua intrínseca autoridade demiúrgica, o arquetípico arquiteto, que
‘começa e comanda’, mas talvez o an-arquiteto, o arquiteto tecelão ou o
coreógrafo” (2).
Acabamos com o tempo cíclico natural da vida, do sol, das luas para
passar ao tempo linear, ao tempo disciplinar das catedrais e de seus
sinos, ao tempo dos relógios, dos cronômetros, ao tempo universal que se
aplica a todos e a tudo sobre a terra, numa precisão nunca vista antes.
Passamos enfim, no final do século 19 e 20, ao tempo da precisão da
máquina, da vouiture, do Citroën, do automóvel tão propalado por Le
Corbusier e pelos modernos. Caminhar dez quilômetros a pé hoje
corresponde ao mesmo tempo de uma viagem aérea de Porto Alegre a São
Paulo. Já estamos tão domesticados a essas novas temporalidades que nem
conseguimos perceber seus reflexos.
Falamos de domesticação não só da terra, como também do espaço, e do mar.
Propagandeamos nosso poder de previsão sobre o tempo e seus elementos
como um dado a mais da domesticação, e de nosso poder. Se não falamos de
uma domesticação total do tempo, referimo-nos no mínimo ao poder-saber de
prognósticos, de antecipações diante de situações em que a selvagem mãe
natureza impõe seus riscos. Para além do tempo das intempéries e dos
cataclismos.
Deste modo o inconsciente social passou do dever ao poder, mas sem anular
um ao outro. Ou seja, o sujeito do rendimento segue disciplinado, mas
agora também controlado conforme Deleuze e Han. Ele se encontra em Guerra
consigo mesmo, entre a aceitação dessa domesticação, ou “virar o balde”,
dizer: não! Agora ninguém mais o obriga a trabalhar ou lhe explore, ele
se abandona, se entrega, se rende sem “rendimento$” a uma espécie de
liberdade obrigada de maximizar seus rendimentos; então o excesso de
trabalho se agudiza e se converte paradoxalmente em auto exploração, auto
domesticação (Uber, ifood, microempresas). Para Han isso é mais eficaz
porque vem acompanhado sempre de um sentimento de liberdade, de uma
possibilidade de um dia se libertar e ir para uma ilha paradisíaca,
quando na verdade isso nunca acontecerá, e nem seguridade social terá
para morrer.
Fala-se hoje de uma domesticação, não só dos animais, das plantas, mas do
próprio homem, da própria natureza, de um modo domesticado de viver (12).
De certa forma, essa questão nos últimos anos tem se tornado cada vez
mais expressiva quando relacionada com a questão da descolonidade. É
notório o adestramento para podermos conviver em multidões. Para alguns a
domesticação é tida como necessária para a sobrevivência na sociedade
atual, daí a relação direta entre organizar, classificar, disciplinar,
controlar e domesticar. Não é de estranhar que o século 18 na Europa
tenha sido o século das organizações, do positivismo, do iluminismo; mas
também do tráfico de escravos, que Foucault, oportunamente se esqueceu de
enfatizar.
Às vezes, tudo parece que sempre foi assim para os que já nasceram nas
grandes cidades, nessa espécie de labirinto de ratos de laboratório. Tudo
é apreendido como um dado natural; e a cada novo dispositivo da
domesticação sempre irá nos parecer melhor que o anterior. Nesse
processo, as representações técnicas desempenham um papel importantíssimo
induzindo a pensar que elas são a própria realidade plasmada,
independente de qualquer outro tipo de representação.
Poucos observam, a rua corredor, essa que vivemos todo o dia, a partir do
automóvel perdeu seu antigo aspecto público onde caminhavam os pedestres,
para se tornar o espaço para os privilegiados e possuidores de automóvel,
ou mesmo dos que conseguem pagar um transporte coletivo. A maior parte da
largura das ruas é destinada aos ricos os proprietários de carros ou dos
ônibus, ficando reservadas as estreitas calçadas aos pedestres.
Acreditamos ingenuamente que as ruas são públicas, mas quando em
realidade elas são reservadas a indústria automobilística para que possa
realizar o deslocamento de seus automóveis, e assim continuar vendendo
mais e mais automóveis. Ou seja, mais a mais, a rua perdeu a sua natureza
de trocas do cotidiano para ser um espaço de circulação da mercadoria.
Essa porcentagem de área, a faixa carroçável é altamente expressiva
comparada ao total de área de uma cidade. Ao verticalizar as habitações
em torres provoca-se o adensamento e consequentemente a área para o
tráfego de automóveis (17).
O tempo também foi domesticado, como bem apontou Zerzan, desde sua
origem, o tempo e a função dos rituais para Zerzan foram dispositivos de
domesticação. Todos estudiosos desse tema, de certa forma, entendem que a
problemática da domesticação está atrelada em suas origens não só a
questão da casa e da arquitetura, mas também a problemática do tempo.
Embora quase nenhum antropólogo tenha se proposto a comentar o tema da
asa como espaço domesticador, nem mesmo Zerzan; poucos têm avançado no
sentido de demonstrar como a arquitetura em suas particularidades
contribuiu nessa modelagem na doma do ser humano pelo ser humano, por
assim dizer. Entre esses estudiosos da domesticação também podemos citar:
Jacques Camatte (21), Ciro Cardoso (22) e Moyses Carmona (23).
notas
1
SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano. São Paulo, Estação Liberdade,
2000, p. 43.
2
BERNARDO, Fernanda. Coreo-grafar ou a arte de espaçar. In FUÃO, Fernando (org.)
Arquitetura e filosofia da desconstrução. Querências de Derrida, moradas da
arquitetura e filosofia. Porto Alegre, UFRGS, 2016, p. 81.
3
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. São Paulo, Elefante, 2017.
4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões.
Petrópolis, Vozes, 1977.
5
FOUCAULT, Michel [1963]. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1977.
6
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis, Vozes, 1975. ILLICH, Ivan.
Energia y equidad. Barcelona, Barral Editores, 1974; ILLICH, Ivan. Nemesis
Medica, la expropriación de la salud. Barcelona, Barral Editores. ILLICH, Ivan.
Breve Biblioteca de respuestas, 1975.
7
DELEUZE, Gilles, Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações:
1972-1990. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 219.
8
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis, Vozes. 2015.
9
HAN, Byung-Chul. Op. cit., p. 145. “Imagine uma sociedade submetendo pessoas a
condições que as tornam terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá drogas
para retirar esta infelicidade. Ficção científica? Em certo grau isso já está
ocorrendo em nossa sociedade. É bem sabido que a taxa de pessoas clinicamente
deprimidas aumentou muito nas últimas décadas. Isso se deve ao colapso no
processo de afirmação pessoal. Salvo engano, o incremento da taxa de pessoas
que sofrem de depressão é certamente o resultado de algumas condições
existentes na sociedade de hoje. Em vez de extirpar as condições que geram
depressão, a sociedade moderna disponibiliza drogas antidepressivas. Na
realidade, os antidepressivos são um meio de modificar o estado interno de um
indivíduo de tal maneira que lhe permita suportar condições sociais
intoleráveis”. Idem, ibidem, p. 146. “As drogas que afetam à mente são apenas
um exemplo dos métodos de controle do comportamento humano que a sociedade
moderna está desenvolvendo”. Idem, ibidem, p. 145.
10
KACZYNSKI, Theodore. A sociedade industrial e seu futuro. São Paulo, Baraúna,
2014.
11
ZERZAN John. Futuro primitivo. Rosario, Kolektivo Editorial Último Recurso,
2004, p. 12.
12
A domesticidade em guerra retrata a construção do imaginário doméstico no
século 20; representa a domesticidade moderna desde o ponto de vista do
refúgio, da transparência, da desconexão entre interior e exterior. Embora, o
livro trate o tempo inteiro sobre domesticidade, Colomina em nenhum momento
tenta definir domesticidade. No livro não há um entendimento das
características do que seja um doméstico como processo de dominação. A
domesticidade que ela apresenta é uma domesticidade romântica do lar como
refúgio, e de como essa domesticidade foi profundamente alterada com a Segunda
Guerra mundial. COLOMINA, Beatriz. A domesticidade em Guerra. Barcelona, Actar,
2006.
13
Veja-se FUÃO, Fernando. A máquina de fragmento, a domesticação da visão.
Fernando Fuão. Ensaios e Livros, Porto Alegre, 20 out. 2012
<https://bit.ly/3DbjZVJ>; FUÃO, Fernando. Arquiteturas do distanciamento.
Fernando Fuão. Ensaios e Livros, Porto Alegre, 20 out. 2012
<https://bit.ly/3wvhrhy>.
14
ZERZAN John. Op. cit.; ZERZAN John. Porque Primitivismo. Coletivo Erva Daninha,
2002; ZERZAN John. Patriarcado, civilização e as origens do gênero. Revista
Gênero e Direito, v. 1, n. 2, 2011; ZERZAN John. Número: sua origem e evolução.
Anarquia Verde. 2009.
15
ILLICH, Ivan. Energía y equidade (op. cit.), p. 18.
16
Idem, ibidem, p. 15-17. Segundo Ivan Illich, em Energía y equidad: “O usuário
não consegue compreender a insanidade inerente ao sistema de circulação que se
baseia principalmente no transporte. Sua percepção da relação do espaço com o
tempo foi objeto de uma distorção industrial. Ele perdeu o poder de se conceber
como algo diferente de ser um usuário. Intoxicado pelo transporte, ele perdeu a
consciência dos poderes físicos, sociais e psíquicos de que dispõe o homem,
graças aos seus pés. Ele esqueceu que o território é criado pelo homem com seu
corpo, e toma como território aquilo o que nada mais é do que uma paisagem
vista por uma janela por um homem amarrado à sua cadeira. Ele não sabe mais
marcar a área de seus domínios com a pegada de seus passos, nem conhecer os
vizinhos, andando na praça. A relação com o espaço do usuário do transporte é
determinada por uma potência física alheia ao seu ser biológico. O motor media
sua relação com o meio ambiente e logo o aliena de tal forma que depende do
motor para definir seu poder político. O usuário está condicionado a acreditar
que o mecanismo aumenta a capacidade dos membros de uma sociedade de participar
do processo político. Ele perdeu a fé no poder político de andar". Idem,
ibidem, p. 19.
17
Outra coisa interessante, que determina o quanto que o carro é um signo de
distinção, é que os edifícios de moradia se distinguem também pela quantidade
de vagas de garagem. Os ricos compram apartamentos com “n” vagas de garagem. As
habitações populares acabaram incorporando uma vaga de garagem, graças à
divisão fundiária e ao valor da terra: pobre pode morar bem longe do centro e,
para que ele possa fazer qualquer coisa, produz-se o sonho de ter um carro para
poder sair de casa e, de repente, até poder acessar a cidade.
18
LE CORBUSIER. Vers une architecture. 2ª edição. Paris, Les Éditions G.
Crès,1924.
19
VIRILIO, Paul. La máquina de visión. Madrid, Ediciones Cátedra, 1989.
20
BECKER, Rufino; FUÃO, Fernando. Arquitetura do porvir / por vir uma
arquitetura. In VASCONCELLOS, Juliano; BALEM, Tiago (org.). Bloco (10) Ideias
sobre o futuro. Novo Hamburgo, Associação Pró-Ensino
Superior/Aspeur/Universidade Feevale, p. 36.
21
CAMATTE, Jacques. Contra la domesticación, mai. 1973 <https://bit.ly/3DeRDdx>.
22
CARDOSO, Ciro. Repensando a construção do espaço. Revista de História Regional,
n. 3 (1), Rio de Janeiro, UFF, Verão 1998, p. 7-23.
23
CARMONA, Moyses. El miedo como técnica de domesticación humana. Scribd
<https://bit.ly/3WEuYxV>.
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