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Notas sobre a Constituigaéo da Andlise do Discurso: um gesto de leitura Prof. Dr. Cleudemar Alves Fernandes * Prof. José Anténio Alves Junior ** Resumo: Este artigo destina-se a explicitaro entrecruzamento de diferentes campos disciplinares que desencadeou a constituigao da Anilise do Discurso como uma disciplina integrante dos estudos linguisticos. Nossos apontamentos serio ancorados em anilises de textos que circularam em sitios da internet sobre 0 mais longo seqiiestro da hist6ria de So Paulo, ocorrido em 2008. Palavras-chave: Anilise do Discurso, Linguistica, sujeito, meméria. Desde as primeiras proposicdes da Anilise do Discurso preconizada por Michel Pécheux, vimos assistindo a embates tedricos acerca do atravessamento da Lingiiistica por diferentes campos do saber para a constituigao dessa disciplina. Em reflexes sobre essa questo, o proprio Pécheux (1997, p. 88) assim expressa: “se a Lingiiistica é solicitada a respeito destes ou daqueles pontos exteriores a seu dominio, é porque, no préprio interior de seu dominio (em sua pratica especifica), ela encontra, de certo modo, essas questées sob aformade questdes que lhe dizem respeito”. Esse atravessamento, que nio se limita 4 constituicao da Anilise do Discurso, faz ‘com que os pesquisadores n4o aceitem, unanimemente, a existéncia de um unico método de investigacio para todos os ramos da Lingiiistica, e possibilita a existéncia, em seus domi- nios, de subareas como a Psicolingiiistica, a Geolingtifstica, a Sociolingiifstica, entre tantas © outras. Cada ramificacSo interna 4 Lingiiistica postula, a partir de um construto tedrico : proprio, os objetivos a serem perseguidos na investigac’o dos dados. O construto tedrico e os objetivos, por sua vez, impdem a necessidade de métodos especificos. A partir dessa observacSo, poder-se-ia discorrer sobre o carater de cientificidade da Lingiiistica, mostran- do, inclusive, que nao ha homogeneidade, haja vista a diversidade de métodos préprios a Evidéncia, Arax4, n. 5, p. 127-138, 2009 cada disciplina em seu campo. Entretanto, no escopo dessas questées, interessa-nos focali- zar aconstituigao da Anilise do Discurso a partir de um atravessamento, ou melhor, um. entrecruzamento tedrico, conforme sera mostrado pela recorréncia a um objeto tomado paraanalise. Os estudos em Anilise do Discurso de origem francesa, difundidos no Brasil a partir dos anos 1980, estabeleceram um embate tedrico coma lingijistica formalista em decorréncia da (re)definigao de seu objeto. Isto, porque a Anilise do Discurso envolve, necessariamente, 0 sujeito ea historia. A definigao do objeto respalda-se nas reflexdes acerca do Materialismo Histérico, a partir de Althusser (1996), para, entao, focalizar a presenga de uma exterioridade que atravessa a Lingiiistica resultando na constituigao da Analise do Discurso como uma de suas ramificagées, pois é no interior de problemas colocados pela linguagem que essa exterioridade tem eco. Isto posto, necessitamos, de fato, romper os limites discursivos préprios a uma disciplina, como adverte Foucault (2000), ¢ recorrermos a outros dominios que atravessam o campo disciplinar no qual nos inscrevemos. Os estudos em Anilise do Discurso fazem com que recorramos a aparatos tedricos fora da Lingiiistica e tragamo-los para seu interior. Noutros termos, tratamos de problemas de linguagem humana, objeto de investigagio cientifica proprio da Lingiiistica, que im- pdem umna revisao teérica para que sua interpretagao seja alcangada. Especificamente para este momento, focalizaremos as nogées de sujeito, enunciado ememéria discursiva, conceitos decorrentes do funcionamento da lingua atravessada pela histéria no campo da Anilise do Discurso. Visando a pontuar problemas de linguagem proprios ao interior da Andlise do Discurso preconizada por Pécheux, tomaremos para antlise, enunciados publicados em sites pela internet, no dia 30/10/2008, sobre 0 caso de seqiiestro envolvendo Elod e Lindenberg, na cidade de Santo André/SP. Os enunciados recortados para analise se inter-relacionam com outros e constituem uma materialidade lingiiistica, cuja natureza e problematicas dai decorrentes implicam uma busca tedrica que nos permitiré explicitar a constituicio do campo teérico da Anilise do Discurso na Lin- ifstica. A Natureza do objeto e sua relagio com a teoria O discurso, objeto em questo, tem existéncia na exterioridade do lingiiistico, no social, é marcado sécio-histérico-ideologicamente. Na exterioridade do lingitistico, no so- cial, ha posigdes divergentes pela coexisténcia de diferentes discursos, isto implica diferen- Evidéncia, Araxd, n. 5, p. 127-138, 2009 gas quanto a inscrico ideoldgica dos sujeitos e grupos sociais em uma mesma sociedade, dat os conflitos, as contradi¢ées, pois o sujeito, ao mostrar-se, inscreve-se em um espago socioideolgico e nfo em outros, enuncia a partir dessa inscrig&o; de sua voz, emanam discursos, cujas existéncias encontram-se na exterioridade dos elementos lingiifsticos enun- ciados. Embasado por esse viés tedrico, o corpus para andlise apresenta-se como um univer- so discursivo marcado por instabilidade, que explicita as movéncias ¢ a inquietude dos sujeitos. Nessa perspectiva tedrico-metodolégica, a nogio de enunciado proposta por Foucault apresenta-se proficua 4 Anilise do Discurso. Em Foucault (1995), destacamos que o enunciado se distingue de frase, proposi¢io, ato de fala, porque: a) est4 no plano do discurso; b) nao esta submetido a uma estrutura lingilistica candnica (nao se encontra o enunciado encontrando-se os constituintes da frase); c) ndo se trata do ato material (falar e/ ou escrever), nem da intengao do individuo que o realiza, nem do resultado alcangado: “trata-se da operagio efetuada [...] pelo que se produziu pelo préprio fato de ter sido enunciado” (FOUCAULT, 1995, p. 94). A lingua e 0 enunciado nfo esto no mesmo nivel de exigéncia. Em sintese, as caracteristicas da funcio enunciativa corroborama “interrogar alinguagem, nao nadirecio a que ela remete, mas na dimensio que a produz” (FOUCAULT, 1995, p. 129). A anilise proposta volta-se para a descricio dos enunciados visando a “de- finir as condigSes nas quais se realizou o enunciado, e o fazem aparecer como um jogo de posigdes do sujeito, elemento em um campo de coexisténcia, materialidade repetivel” (GREGOLIN, 2004, p. 32). Paraa andlise e interpretacao, em decorréncia da natureza do objeto, precisamos sair da materialidade linguistica para compreendé-la em sua exterioridade, no social, espaco em que o lingiiistico, o histérico e 0 ideolégico coexistem em uma relagio de implicancia, compreendidos como discursos (exterioridade 4 langue e 4 parole), Eis a instauracio de um campo de conflitos, marcado por oposigdes ideoldgicas, no qual diferengas sociais coexistem, entretanto, tratamos de problemas encontrados na linguagem em funcionamen- to, que apontam a constituicao de uma subarea da Linguistica, concomitante com tantas outras, das quais se diferencia pelo viés tedrico-metodoldgico que orienta a maneira de focalizar o cbjeto. Logo, os enunciados apreendidos nessa matetialidade explicitam que o discurso constitui-se da dispersio de acontecimentos e discursos outros, historicamente marcados, que se transformam e modificam-se. Uma formagio discursiva dada apresenta elementos vindos de outras formagées discursivas que, por vezes, contradizem, refutam- na Esses aspectos possibilitam a compreensio do surgimento de novos cenarios social- Evidéncia, Araxa, n, 5, p. 127-138, 2009 mente organizados e/ou em organizagio, tendo em vista a transitoriedade caracteristica dos sujeitos e da Historia, sempre passando por transformagées sociais. As transformagées sofridas nas condig6es sociais manifestam-se nas produgées discursivas, marcadas pelo entrecruzamento de discursos e acontecimentos anteriores. Acentua-se, dessa maneira, a fragmentagio dos sujeitos, a heterogeneidade constitutiva dos discursos, cuja definigao re- sulta do entrecruzamento de diferentes posigées socioideolégicas, historicamente produzi- das, nas quais os sujeitos tm e/ou tiveram existéncia. As (trans)formagGes sécio-historicas corroboram as condigées de producio do discurso e refletem diferentes formagées ideo- légicas na constituicio do(s) sujeito(s) e do(s) discurso(s). Enunciado, Sujeito e Meméria Para a elucidacio das reflexdes propostas, conforme afirmamos, procederemos & andlise de fragmentos sobre 0 caso de seqiiestro, envolvendo Elo’ e Lindenberg, na cidade de Santo André/SP em 2008, retirados de paginas na internet em 30/10/2008. O caso refere-se a0 mais longo seqiiestro da histria de Si0 Paulo, em que as adolescentes Elo& Cristina Pimentel ea amiga Nayara Silva, ambas de 15 anos de idade, ficaram sob a mira de um seqiiestrador armado, Lindemberg Alves, de 22 anos, ex-namorado de Elda, que inva- din o apartamento da familia da vitima Elo’. Com mais de 100 horas de duragio, o seqiiestro, motivado por citimes, teve um desfecho tragico que resultou na morte da jovem Elod Cristina Pimentel. Nos fragmentos a seguir, destacaremos enunciados que remetema diferentes acontecimentos discursivos e/ou a questdes que fogem ao acontecimento do seqiiestro de Eloa, mas que vieram a ter lugar nesse momento da histéria a partir do acontecimento do seqiiestro. a) Existe uma clara confusio ideolégica quando se trata desse assunto. Fato que se constata no inicio do seu texto, quando vocé cita a frase “bandido bom é bandido morto”... Essa é uma frase tipica da direita (dos que sio propositalmente de direita, e dos que sio sem nem saber 0 que é direita). Porém, neste caso, a morte do rapaz era uma alternativa, sim, independente de posicionamento ideoldgico. hetp://www.digestivocultural.com/comentarios/ default-asp2codigo=17983 (Consulta em 30/10/2008). Evidéncia, Arax, n. 5, p. 127-138, 2009 b) A vitima, Eloa, éfilha de um homem procurado porhaver matadoo Secretario de Seguranca de Alagoas.[...]O pai da menina lod, assassina- dapor Lindenberg em Santo André, seria um criminoso procurado n0 Nordeste apés matar 0 irmio do governador do Estado de Alagoas. O pai de Eloi [...] Everaldo Pereira do Santos ...] Utiliza nome falso Acusado de pertencer a um grupo denominado “Gangue da Farda” Everaldo eraconhecido como “Amarelo” esua troupe bandidase encar- regavade achacar, matar, roubar eamedrontar usando farda e armamento do poder constituido. http:/ /taxiemmovimento.blogspot.com/2008/10/elo-e-lindenberg- eduardo-e-mnica htm! (Consulta em 30/10/2008). O primeiro fragmento traz enunciados como “confusio ideoldgica” e “direita” que remetem a outros discursos e/ou acontecimentos que tiveram/tém existéncia em outras épocas e lugares. “Confusio ideolégica” e “direita” slo enunciados sécio-historicamente produzidos e, dispersos na historia, podem se referir, por exemplo, a lugares politico- ideolégicos de posicionamento de sujeitos no interior de partidos politicos. Diversos sto 0s partidos politicos que assumem uma conduta de natureza definida como direita e outros como esquerda, eles constituem lugares de embates e enfrentamentos politicos em defesa de ideais em prol da nagao. No fragmento em anilise, “direita” foge especificamente ao caso de seqiiestro da joven Eloa, e coloca em questo um posicionamento que pode ou no ser politico partidario sobre o direito de se tirar ou no a vida de um ser humano em situagdes como as de seqiiestros. “Direita” remete-nos, dentre outros, a um momento especifico da histéria politica do Brasil, em que os governantes da chamada linha politica da “direita” usavam diferentes métodos, inclusive tirar a vida ea tortura, contra pessoas que se rebelavam contra o governo. Referimo-nos ao Regime Militar instaurado no Brasil a partir dos anos de 1960. Contudo, admitir ou praticar atos contra a vida de pessoas inimigas, nao é exclusividade de regimes politicos ditatoriais ou de pessoas que se consideram da “direi- ta”. Em diferentes lugares e momentos presenciamos também enunciagées como a do fragmento: “bandido bom é bandido morto”. Este enunciado nos deixa claro que no é preciso ter um posicionamento politico de direita para se admitir que em alguns casos a morte do oponente é0 melhor remédio. “Direita”, como enunciado, aciona uma meméria discursiva na medida em que dis- ‘ cursos e/ou acontecimentos outros, de diferentes momentos histéricos (re)aparecem, mas os sentidos provocados sao sempre outros. O emprego de “direita”, para se referir ao seqiiestro, foge a um posicionamento politico e, dada a sua historicidade que possibilitou/ Evidéncia, Araxé, n. 5, p. 127-138, 2009 provocou seu (re)aparecimento, esse enunciado, acionado por uma meméria discursiva que o coloca em funcionamento, ja é outro. Tirar a vida de Lindenberg para salvar Eloa foi considerado por muitos como uma possibilidade, uma vez que Eloa é vitima no seqiiestro, enquanto Lindenberg é 0 vilio. Dai o enunciado produzido “bandido bom é bandido morto”. “Direita” é, assim, um enunciado que evidencia acontecimentos dispersos na his- tori, Foucault (1995) discute a ligacdo entre acontecimentos dispares (que, em principio, nao teria/tem nada a ver um com o outro), Nesse sentido, “direita” refere-se a um posicionamento politico, que (reJaparece numa situagao de crise passional. Pensar esses acontecimentos em nossa perspectiva teérica implica apreendé-los como discursivamente produzidos, uma vez que nio se trata de acontecimentos factuais, mas sim de dizeres de um dado lugar e momento da historia. Diante disso, podemos interrogar: que ligagio hé entre eles? Como estabelecer entre acontecimentos dispares - “direita” e 0 “seqiiestro” ~, ja pensando o discurso como acontecimento sécio-historicamente produzido, uma se- qiiancia necessria?. Para tanto, tomemos a nogio de regularidade, definida por Foucault (1995, p. 43) como “uma ordem, correlagdes, posigdes e funcionamentos, transforma- g6es” concernentes a tipos de enunciados, objetos e conceitos que integram dada forma- gio discursiva. Esta nocio implica uma exterioridade 4 materialidade lingiiistica do enunci- ado, além de possibilitar a realizacao do discurso. O segundo fragmento traz.4 tona enunciados possibilitados historicamente pela tra- gédia do seqiiestro em Santo André/SP. Eloa foi vitima da ac4o de um criminoso, que, apés 0 desfecho da situagio, foi preso pela Policia. Apesar do tragico final do seqiiestro, 0 aparelho policial fez o que se espera do Estado em situagées de crise como ess: conter 0 fluxo de curiosos e da imprensa no local da pratica do crime, negociar e, depois de esgotadas as possibilidades de resolugio pacifica da situagdo, promover 0 assalto do local do crime para romper a agresstio do meliante. As agdes policiais so, em principio, voltadas para a promogio da paz social e manutengio da ordem piblica instituida pelo Estado. Entretanto, o seqiiestro envolvendo Elo’ teve forte repercusséo na midia nacional, isolare que, em pouco tempo, conseguiu fazer um histérico da vida da garota seqiiestrada e assas- \. sinada, Dentre algumas das informagdes noticiadas pela imprensa, uma das que mais cau- saram impacto foia de que o pai de Eloa, Everaldo Pereira do Santos, era um criminoso procurado pela justica do Estado de Alagoas, por ter assassinado o secretario de seguranga do Estado. Segundo o noticiario, Everaldo, policial militar, pertencia aum grupo denomi- nado “Gangue da Farda”, no qual era conhecido como “Amarelo”, Sua milicia praticava diversos crimes contra a vida e o patriménio, usando farda e armamento do poder publico Evidéncia, Araxé, n. 5, p. 127-138, 2009 constituido. O aparecimento desse caso coloca em quest4o o uso que alguns encarregados de aplicar a lei fazem do poder que lhe é delegado pelo Estado. Tomado como acontecimento discursivo, o caso envolvendo o pai de Eloa mostra- nos a heterogeneidade do discurso, que faz brotar de seu interior discursos-outros. O dis- curso nio éum objeto fechado, mas inter-relaciona com diferentes discursos que surgem de uma rede de meméria. Essa rede de meméria (re)atualiza enunciados que se projetam do passado para o presente € 0 futuro, e, dessa forma, mudam-se os sentidos e os sujeitos. Retomase, assim, o pasado apagado que ganha vida no presente, No entanto, a retomada de enunciados sobre o crime de Everaldo, como o enunciado “A vitima, Elo, é filha de um homem procurado por haver matado o Secretario de Seguranga de Alagoas”, nao implica repeticdo do passado, ¢ um outro dizer. Usa-se do ja-dito como um jamais-dito (FOUCAULT, 1995), pois os sujeitos ea histéria sio outros, e a memiéria é condigao de produgio e funcionamento do discurso. A retomada do caso ou dos dizeres envolvendo o pai de Eloa nio éa repeticio do suposto crime cometido por ele, nem mesmo se trata do sujeito empirico, Everaldo, mas do efeito de sentido e do sujeito criminoso sdcio-historica- mente produzido pelos enunciados que envolvem o caso, materializados na base lingiiistica dos meios de comunicacao que noticiaram o seqiiestro de Eloa. A inter-relagio discurso ~ histéria - meméria, mediada pelos enunciados que (re)apareceram com o seqiiestro de Eloa implica a retomada de outros sujeitos: um deles, © sujeito investido do poder de policia do Estado, mas que usa esse poder em beneficio proprio. No entanto, no se trata da retomada de um sujeito empirico, mas sim da retoma- da de uma historicidade referente a um caso de assassinato envolvendo uma autoridade politica do Estado de Alagoas. Ao depararmos com a ora¢io “O pai de Eloa [...] acusado de pertencer a um grupo denominado “Gangue da Farda” [...] e sua troupe bandida se encarregava de achacar, matar, roubar e amedrontar usando farda e armamento do poder constituido”, considerada como um enunciado, se nos perguntarmos por que ela é possivel messe momento de tristeza para a familia de Eloa, vemos que tal possibilidade decorre de um lugar que j4 ocupou na histéria. O lugar ento ocupado na historia se deu de maneira que possibilita o sujeito enunciador, no presente, retomé-lo. Tal retomada, além de mostrar que o discurso implica uma meméria em funcionamento, aponta para uma posicao-sujeito. Referimo-nos ao sujeito social-coletivo enunciador que se opde aos sujeitos investidos de poder pelo Estado e que o utiliza para atender interesses préprios. A meméria, enquanto condicSo de produgio e funcionamento do discurso aparece nos fragmentos pelo acionamento do aspecto verbal. Os enunciados tomados em mo- mentos diferentes apresentam sentidos diferentes. Os sentidos os sujeitos inscrevem-se na Evidéncia, Araxd, n. 5, p. 127-138, 2009 histéria, o que nos possibilita visualizar seus posicionamentos. © objeto em andlise envolve osujeito ea historia, aspecto assinalado por Maziére (2005), para quem todo exercicio de andlise deve considerar, nas produgées discursivas, o enunciado como um conjunto seman- tico singular, que se configura em corpus construido, sempre heterogéneo, segundo um saber lingiiistico, histdrico, politico e filoséfico. Os aspectos com os quais nos deparamos ao empreendermos aanilise do discurso tornam oportuna a seguinte observaco de Pécheux (1999a, p. 11): “a estruturagio do discursivo vai constituir a materialidade de certa meméria social”. E nos lembra também a seguinte afirmacao de Foucault (2000, p. 26): “o novo nfo esta no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”. Assim, o discurso é atravessado por uma memoria social manifesta pelo retorno de acontecimentos e enunciados passados sob novas condigdes sdcio-histérice-ideoldgicas. Como argumenta Foucault (1995), todo discurso resulta de um jé-dito e esse ja-dito ésempre um jamais dito. Os sentidos nunca so imanentes, sao produzidos na enunciagio, € os enunciados sio historicamente ressemantizados. “A memiéria refere-se aum conjunto complexo e preexistente ao organismo, constituindo um corpo sécio-histérico de tragos”, acrescenta Pécheux (1990). Consideragées Finais A literatura destinada 4 explicitacao do contexto epistemolégico da Analise do Dis- curso —tais como Pécheux (1999b), Mainguencau (1990), Maldidier (1994), Orlandi (1994), Courtine (1999), Gregolin (2003), Maziére (2005), Fernandes (2007) - revela o entrecruzamento de campos disciplinares historicamente marcados. Aqui, enfatizamos como esse entrecruzamento é conclamado pela interioridade da linguagem, revelando a constitui- cho de um lugar tedrico na Lingiiistica. Referinio-nos a uma formulagio tedrica que englo- ba, de maneira indissoci4vel, sujeito, historia, ideologia e discurso. Noutras palavras, a interdisciplinaridade constitutiva da Anilise do Discurso deve-se a problemas encontrados 4 po seio da linguagem, quer seja verbal ou nao. Trata-se, por um lado, de questdes de 4 linguagem que nfo encontram em outros campos da Lingilistica possibilidades de interpre- -. vagdo, cujas explicagdes remetem-nos as teorias do materialismo histérico, compreendidas como teorias da formagio e transformagio histérico-social; e por outro, de uma possibi- lidade de leiturae interpretagio detoda e qualquer materialidade lingiistica, tendo em vista anatureza essencialmente ideoldgica do signo, que nega a imanéncia do significado. Assim, Evidéncia, Arax4, n. 5, p. 127-138, 2009 ao lado das nogées de lingua, linguagem e fala, acrescenta-se a nocio de discurso, como um objeto especifico, cuja natureza constitutiva traz em si contradigSes que funcionam como regularidade, como coeréncia, como estrutura argumentativa, aspectos que rompem a pers- pectiva da anilise textual e/ou comunicacional. Discurso, desprovido de um cuidado ted- rico, é considerado por vezes como equivalente a texto, outras vezes a fala, etc. Observe-se a esse respeito que a constituicdo de cada disciplina e os atravessamentos constitutivos das ramificagdes da Lingiifstica t¢m implicagdes no tratamento do objeto. Isto posto, “a AD encontra seu dominio entre singularidades suscet{veis de serem. descritas na linguae regularidades que remetem 4s formas que se repetem espalhadas nas enunciagdes singulares” (Gadet; Marandin, 1984, p. 24)'. E “a andlise coloca em evidéncia — onde se estruturam as interpretac6es — lugares, sujeitos, objetos intermediarios entre a experiéncia da realidade e os argumentos sobre essa realidade” (Conein; Guilhaumou; - Maldidier, 1984, p. 27)?. Dizemos com essas referéncias que a Anilise do Discurso implica operagbes de leitura e interpretagio que envalvem campos e problemiticas dos dominios sdcic-histéricos, entretanto, trata-se de campos e problemiticas encontrados nos dominios da Lingiifstica. Enfatizamos ainda que o objeto da Anilise do Discurso encontra-se cons- tantemente em movimento, nic é estatico, e, nao o sendo, implica movéncias de sentidos. As referéncias fundadoras da Andlise do Discurso s4o precisadas por Gregolin (2003), a quem recorremos para reapresentar alguns elementos conclusivos deste texto. A saber: a) © atravessamento da Lingiiistica pelo Marxismo, proprio a explicitacao do objeto da Ana- lise do Discurso - 0 discurso -, que resulta da articulacdo entre o lingiiistico e o histérico; b) uma constante problematiza¢io das bases epistemoldgicas da Andlise do Discurso, até mesmo pela pluralidade e especificidades dos objetos; c) o discurso como objeto de estu- do apresenta-se também como um lugar de enfrentamento tedrico; d) a Analise do Discur- so implica apreender a lingua, o sujeito e a histéria, em funcionamento, uma vez que a propria teoria do discurso revela uma determinagio histérica dos processos seménticos, e, com isso, uma dispersao dos sentidos. Consoante com a autora em questo, tem-se a constituicio de um campo disciplinar na Lingiiistica, cuja historia pode ser viswalizada a partir dos anos 1960, voltado para as condi- gdes de produgio do dizer. Desta feita, a episteme da Anilise do Discurso origina-se, prioritariamente, do entrecruzamento de trés 4reas do conhecimento cientifico: o materialis- mo histérico, que implica a teoria das formac6es sociais e suas transformagées, conforme ~ discutimos, a lingiiistica, e ateoria do discurso. Como atesta, ainda, Gregolin (2003), esses campos disciplinares articulados para a constituigio tedrica da Anilise do Discurso sio atravessados por uma teoria subjetiva de ordem psicanalitica, que traz o inconsciente para o Evidéncia, Araxa, n. 5, p. 127-138, 2009 interior de suas reflexdes. As reflexes por nds arroladas, mesmo considerando-as como inconclusas, nio trazem apenas hipéteses ligadas a Andlise do Discurso enquanto pritica. Isto equivale a dizer que, nessa perspectiva de estudos, toda e qualquer seqiiéncia deve ser interpretada fora de uma esfera individual do sujeito psicolégico e, ao extrapolar os aspectos formais do enunciado, deve-se considerar suas condigées de produgio em referéncia a um corpo interdiscursivo de tragos sdcio-hist6ricos que revelaa presenga do discurso oxtro como condicao de sua constitui¢iio e de seu funcionamento. E, ainda, havera sempre e constantemente uma volta ao nivel tedrico-metodoldgico na constituicio e interpretagio do corpus. Referéncias bibliograficas ALTHIUSSER, Louis. Ideologiae Aparelhos Ideolégicos de Estado (Notas para uma investigagio). In: “I*EK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p. 105-142. CONEIN, Bernand; GUILHAUMOU, Jacques; MALDIDIER, Denise. L’Analyse de Discours comme contexte epistémologique. RCP - ADELA - CNRS, Mots, N°. 9,1984. p. 25-30. COURTINE, Jean-Jacques. 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Our marks will be based ‘upon textual analysis which circulated in spaces of internet about the longest kidnapping of Sao Paulo history, occured in 2008. Evidéncia, Araxé, n. 5, p. 127-138, 2009

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