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Glossários 1 2 e 3 - Digital
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Dicionário Valente
Glossário Feminista
O Glossário foi construído a partir das referências que consideramos pontos
de partida para a compreensão das temáticas de gênero e do pensamento feminis-
ta, sabendo que qualquer definição não se esgota quando da sua formulação, es-
tando sempre aberta para novas possibilidades de reflexão. A definição dos verbe-
tes, muitos deles propostas conceituais densas, visa a apresentar resumidamente
alguns elementos que compõem a discussão atual sobre as temáticas.
Gênero
Conjunto de valores socialmente
construídos que definem as diferentes
características (emocionais, afetivas,
intelectuais ou físicas) e os comporta-
mentos que cada sociedade designa
para homens e mulheres. Desde a
infância, somos moldados por instru-
ções que indicam qual a maneira cor-
reta de se enquadrar nestes dois polos
binários: masculino e feminino. Por
exemplo, menina brinca de boneca e
menino de carrinho. Assim, normas de
gênero são apreendidas pelos sujeitos
cotidiana e rotineiramente e, qualquer
fuga destas normas, está sujeita a
punições e violência. A desigualdade
de gênero se refere a assimetria de
poder entre o que se convencionou
como masculino e feminino, com as
características deste último desvalori-
zadas. Como um aprendizado cultural
e socialmente construído, existe a
possibilidade de mudança destas
normas. Cabe destacar que muitas
pessoas não se identificam, em parte
ou completamente, com o gênero as-
sociado às suas características físicas
sexuais. Elas podem se identificar
como pessoas transgêneras (trans),
genderqueer ou não-binárias. Já as
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que estamos vivendo hoje a quarta e a capacidade de escuta enquanto
onda feminista, marcada pela reflexão grupo com experiências específicas
e a consciência sobre as diferentes faz parte deste projeto. Segundo Dja-
experiências das mulheres a partir mila Ribeiro (2017), existe um regime
da articulação de gênero com outros de autorização discursiva que histori-
marcadores sociais, como raça e clas- camente invisibilizou e ainda invisibili-
se (podemos chamar de feminismos za certas vozes. Enquanto um concei-
da diferença), assim como perpassada to, o lugar de fala refere-se também
por novas formas de organização, ao reconhecimento de que as pessoas
mais autônomas e horizontais, e im- brancas, consideradas historicamente
pulsionada pelo uso das tecnologias como sujeitos universais, também
digitais. O ano de 2015 é considerado falam de algum lugar e que esse lugar
o marco deste novo contexto femi- ocupado é de privilégio e de poder,
nista, quando as mulheres foram às fruto da opressão histórica de ou-
ruas de todo o país protestar contra tros grupos. A localização social nas
o projeto de lei 5069/13, idealizado relações de poder é, segundo Ribeiro
pelo deputado Eduardo Cunha, que (2017), a questão central. O lugar de
propunha modificar a lei de atendi- fala direcionaria para uma ruptura na
mento às vítimas de violência sexual. dicotomia moderna do sujeito/objeto
do conhecimento a partir da ideia de
não se falar pelo oprimido, que seria
Lugar de Fala a continuação do processo histórico
de silenciamento, mas falar de/sobre
Os questionamentos sobre as aquela causa, colocando-se enquanto
possibilidades, espaços e autoridade sujeito que, apesar de ocupar uma lo-
de fala são centrais ao pensamento fe- calização social distinta, também luta
minista, principalmente nas experiên- pelo mesmo objetivo, mas sem ter as
cias encontradas no feminismo negro, experiências cotidianas dessa exclu-
lésbico e de mulheres do Sul global. são e opressão. Atuar na emergência
Tensionar a autoridade de enunciação de vozes historicamente silenciadas
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de racismo de maneiras especifica- sofisticada tecnologia social hetero-
mente relacionadas ao seu gênero” normativa, colocada em operação por
(CRENSHAW, 2004, p. 9). O que a teó- diversas instituições sociais, como a
rica nos traz é a compreensão de que escola e a medicina, e que produzem
as estruturas de raça e de gênero, de os corpos-homens e corpos-mulhe-
forma combinada, colocam as mulhe- res. Uma das formas de reprodução
res negras em situação maior de vul- do modelo de heterossexualidade é
nerabilidade. São grupos específicos, a divisão entre dois sexos diferentes,
em que existe a articulação de certos que apresentam aparências naturais
marcadores sociais, como classe, se- distintas e que se atraem exclusiva-
xualidade, etc., que estão susceptíveis mente um pelo outro - homens por
a maiores discriminações e violência. mulheres e mulheres por homens.
Pensar na diferença dentro da dife-
rença é levar em consideração que
a vida das mulheres é marcada não Dia Internacional das
apenas pelo gênero, mas pela raça,
sexualidade, classe, geração e etnia. Mulheres
Diferente da história que nos
Heteronormatividade contaram durante anos, o 8 de Março
não teve início no episódio do incêndio
É o sistema ou regime que em uma fábrica que resultou na morte
considera a heterossexualidade e de centenas de trabalhadoras têxteis.
os comportamentos atribuídos a O fato ocorreu em 25 de março de
ela como a única opção
válida e “natural”, assim
como os padrões e ideias
heterossexuais, como a
monogamia. Como afirma
Richard Miskolci (2009),
trata-se de um dispositivo
histórico da sexualidade
que tem como objetivo
formar todos para se-
rem heterossexuais. Em
contrapartida, qualquer
outra sexualidade, como a
bissexualidade e a homos-
sexualidade, são vistas
como desvio, expressões
não naturais de desejo. A
heteronormatividade não
está relacionada somen-
te à sexualidade, mas
também às normas de
gênero. Segundo Berenice
Bento (2006), gênero pode
ser pensado como uma
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SINJUSC
Sindicato
@sinjusc.sc
@Sinjusc
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Masculinidade
Tóxica
A atribuição de
características fixas
aos gêneros resulta em
concepções estreitas e
Ilustração: Letícia Valério
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feminino. Esse modelo de masculini- para o combate do machismo e da
dade é a forma estrita que qualifica misoginia, a partir da ruptura com
traços como a violência, a virilidade a lógica patriarcal e da não repro-
e a força, e reprime, por exemplo, dução de concepções que afastam
as emoções entendidas enquanto as mulheres umas das outras.
fraquezas e consideradas atributos
do feminino. Entre os seus efeitos
está o estímulo à violência, entre elas Cultura do estupro
o estupro, a homofobia e o racismo.
A cultura do estupro é consi-
derada um problema social que se
Sororidade caracteriza pela culpabilização das
vítimas de assédio e outras violências
É entendida como a subversão sexuais e normaliza o comportamento
da rivalidade entre mulheres construí- sexual violento dos homens, segundo
da pela sociedade patriarcal e que foi definição da ONU Mulheres. O termo
impeditiva para a união delas na luta começou a ser utilizado na década de
por transformações coletivas no que 70 por feministas norte-americanas.
se refere à desigualdade de gênero. Entre os fatores que resultam nessa
Busca-se a partir dela a construção construção cultural está a natura-
de alianças entre mulheres, partin- lização de atos e comportamentos
do da empatia, da solidariedade e machistas, sexistas e misóginos,
do acolhimento, em
busca de objetivos
comuns dentro da luta
feminista. A palavra
sororidade, presente
na linguagem femi-
nista há décadas, não
existe formalmente
nos dicionários de
língua portuguesa,
situação que pode
ser considerada mais
uma das marcas do
sexismo linguístico
que ainda vivencia-
mos. A sua origem
remete ao latim sóror,
que significa “irmã”.
Dentro do feminismo,
é compreendida como
uma atitude ética e
política que compre-
ende o engajamento
subjetivo e coletivo
Ilustração: Letícia Valério
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discernir sobre os acontecimentos que atingem as mulheres que vivem
de sua experiência cotidiana. Já o em sociedades marcadas pela desi-
segundo termo, Mansplaining, refere-se gualdade de poder entre os gêneros
aos termos man (homem) e explaining masculino e feminino e por constru-
(explicar). Segundo Pâmela Stocker e ções históricas, culturais, econômicas,
Silvana Dalmaso (2016), o termo faz políticas e sociais discriminatórias. O
referência ao direcionamento de uma conceito surgiu na década de 1970
fala didática à mulher, invalidando o para visibilizar a violência e opressão
conhecimento dela e indicando que enfrentadas sistematicamente pelas
ela não tem capacidade de entender mulheres e que muitas vezes culmina
ou realizar alguma ação exatamente na morte delas. A nomeação desse
por ser uma mulher. Esse mecanismo crime por razões de gênero foi um
de violência psicológica deseja minar importante passo para a busca de me-
a confiança das mulheres e dimi- canismos para o seu enfrentamento,
nuir a sua autoridade sobre os mais principalmente no contexto brasileiro,
diversos assuntos. O terceiro termo, que ocupa o 5º lugar nas taxas de fe-
o Manterrupting, denuncia as cons- minicídio do mundo, segundo a OMS,
tantes interrupções que os homens sendo considerado também um pro-
costumam fazer quando uma mulher blema epidêmico por sua incidência.
está falando, interrompendo a sua
argumentação e direito de expressão.
A palavra foi utilizada inicialmente em Misoginia
análises no âmbito da política e de-
monstraram que as mulheres, mesmo A palavra misoginia surge do
ocupando cargos de poder, acabam grego misogynia, a partir da junção de
falando por um tempo muito menor “miseó”, que significa “ódio”, e gyné,
que os homens, sendo constantemen- trazido como “mulher”. É caracterizada
te interrompidas em seus discursos. como aversão e ódio às mulheres e
meninas e também às características
consideradas femininas a partir da
Feminicídio crença na superioridade dos homens e
do masculino. Em suas manifestações,
É a tipificação para o assassi- que podem ser simbólicas, psicológi-
nato de mulheres por questões de cas ou físicas, costumam ser reafirma-
gênero. Definido no Brasil a partir da dos os estereótipos atribuídos histo-
alteração do Código Penal e da cria- ricamente às mulheres no sentido de
ção da lei 13.104, de 2015, considera confinar as suas existências ao espaço
como crime hediondo quando ocorre doméstico e reafirmar a sua submis-
no âmbito da violência doméstica e são aos homens. As consequências da
familiar e quando existe menosprezo misoginia são as múltiplas violências
ou discriminação pela sua condição sofridas pelas mulheres, incluindo a
de mulher. De acordo com o dossiê do objetificação sexual destas. A articu-
Instituto Patrícia Galvão, o feminicídio lação entre a misoginia e o racismo
enquanto um crime de ódio é a ex- afeta diretamente as mulheres negras
pressão fatal das diversas violências e leva à grave desumanização a partir
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LUGONES, María. Rumo a um feminismo BENITES, Sandra ARA RETE. Nhe’ẽ, reko
descolonial. Revista Estudos Feministas, v. porã rã: nhemboea oexakarẽ Fundamento
22, n. 3, Florianópolis: UFSC, 2014. da pessoa guarani, nosso bem-estar futuro
(educação tradicional): o olhar distorcido
KETZER, Patricia. Como pensar uma Episte- da escola [TCC] UFSC, 2015. Disponível
mologia Feminista? Surgimento, repercus- via < http://licenciaturaindigena.ufsc.br/
sões e problematizações. Argumentos, n. files/2015/07/Sandra-Benites_TCC.pdf >
18, v. 9, Fortaleza: UFC, 2017. Acesso em 05/03/2018.
https://www.geledes.org.br/voce-sabe-o-
-que-e-masculinidade-toxica/
https://nacoesunidas.org/por-que-falamos-
-de-cultura-do-estupro/
https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.
br/feminicidio/
Outras leituras
recomendadas:
FONSECA, Lívia Gimenes Dias da. Despa-
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SINJUSC
Sindicato
@sinjusc.sc
@Sinjusc
Branquitude Mulherismo
Para Lia Schucman, a branqui- Patrícial Hill Collins analisou
tude é construída como um cons- em artigo as várias definições para
tructo ideológico de poder, em que os o termo mulherismo, presentes na
brancos tomam sua identidade racial obra de Alice Walker, e os motivos
como norma e padrão. Já os outros que levaram muitas mulheres negras
grupos que não são enquadrados norte-americanas a preferirem o termo
nesta norma aparecem ora como mar- no lugar do feminismo negro. Segundo
gem, ora como desviantes, ora como Hill Collins, Walker situa o mulherismo
inferiores. Segundo a pesquisadora, na história concreta da opressão racial
ser branco significa ocupar o lugar e de gênero de mulheres negras, e
simbólico de branquitude, o que nada propõe que esta história concreta em
tem relação com questões genéticas, sua especificidade leva à promoção
mas com posições e lugares sociais de uma visão de mundo acessível
que os sujeitos ocupam, dependen- principalmente, ou até exclusivamen-
do de circunstâncias históricas e te, às mulheres negras. Pressupõe
culturais. Desta forma, sujeitos que então uma diferença ao feminismo
ocupam esse lugar social foram e são decorrente das diferentes experiências
sistematicamente privilegiados no históricas de mulheres negras e bran-
que se refere ao acesso a recursos cas com o racismo. O Mulherismo,
simbólicos e materiais. Para Ricardo segundo Hill Collins, a partir da pro-
Corrêa, em artigo escrito ao Geledés, posição de algumas autoras, fornece
a branquitude é o que cimenta a uma maneira para que as mulheres
estrutura racista e mantém os negros negras abordem a opressão de gê-
distantes dos espaços de poder. nero, sem excluir os homens negros,
uma das principais críticas que são
tecidas ao feminismo. Já o mulheris-
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Glossário Valente
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nente americano. Ao analisar a obra emocional construída pelo machismo,
de Lélia, Claudia Pons Cardoso afirma pelo racismo, pela classe e silenciada.
que a amefricanidade, mais do que Para a autora, a sororidade está con-
tratar da escravização enquanto uma tida dentro da dororidade, mas nem
experiência comum no continente, sempre o contrário acontece. Assim,
assim como a dominação e a colo- ao não se sentir incluída totalmente
nialidade, centraliza a resistência na no termo caro ao feminismo, Vilma
valorização e no resgate de saberes constrói um novo conceito a partir
produzidos por mulheres negras e de um lugar de pertencimento, que
indígenas na direção da descoloniza- também é o lugar de suas ancestrais
ção dos saberes produzidos, inclusive e marcado pela ausência histórica.
dos próprios saberes feministas. Lélia
dilapida o conceito de amefricanidade
a partir de diferenças dessa “Améri- Colonialidade do poder
ca Africana”, que aqui se construiu a
partir da resistência e ressignificação A formulação do sociólogo pe-
de práticas e vivências localizadas, ruano Aníbal Quijano parte da cons-
não no impulso de resgatar algo de tatação de que a estrutura de poder
um passado longínquo ou as “sobre- colonial não desapareceu com o fim
vivências de culturas africanas”. Ao do colonialismo, em sua forma explí-
costurar o português com elementos cita e formal, mas permanece produ-
linguísticos africanos, ela critica os zindo diversas discriminações sociais,
preconceitos linguísticos e o racismo como as raciais, étnicas ou nacionais.
contido nessas hierarquias. Assim, Segundo o autor, isso pode ser consta-
ela destaca a importância negra na tado na distribuição de poder e riqueza
formação histórico-cultural de diver- mundial estabelecida a partir das
sos países, principalmente do Brasil. distinções de raça, etnias ou nações,
entre as populações colonizadas e as
colonizadoras. De acordo com Quija-
Dororidade no, a colonialidade é um dos elemen-
tos constitutivos do padrão mundial
O conceito nasce de uma crítica de poder capitalista, sustentando-se
à ideia de sororidade, termo que em na imposição de uma classificação
latim significa irmã. Vilma Piedade, em de raça e etnia, aspecto central desse
livro sobre o tema, aborda a dororida- padrão de poder e que opera em diver-
de a partir da localização da mulher sas dimensões da existência social,
negra, considerando que a sororidade sejam elas subjetivas ou materiais. Ao
não basta, pois foi pensada dentro de debater o conceito de Quijano, Eduar-
um projeto feminista construído para do Restrepo e Axel Rojas consideram
a mulher branca, de classe média, oci- que foi da perspectiva da ideia de raça
dental e instruída. Para ela, a unidade que os colonizadores forjaram identi-
e a irmandade muitas vezes acontece dades negativas para as populações
pela dor, a dor da violência sofrida colonizadas e de origem africana,
pelas mulheres negras cotidianamen- eliminando a heterogeneidade das
te. A dor física, moral, patrimonial e identidades originais. Essas classifica-
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faz com que o sistema econômico ou sua concepção inicial, se realiza como
político brasileiro, funcionando em sua um ato de escrita das mulheres ne-
normalidade, com suas normas, im- gras, uma ação que busca desfazer as
pacte de forma direta na desigualdade imagens do passado. A escrevivência
enfrentada pela população negra. O traz as experiências e vivências das
racismo estrutural e estruturante das pessoas negras, onde a concepção da
relações sociais e da formação dos escrita surge da sua condição de ser e
sujeitos é detectado também no fato estar no mundo. Na escrita das mulhe-
de que, mesmo entre pessoas que res negras, as vivências e trajetórias
são contra essas violências geradas assumem um caráter político-pessoal
pela desigualdade, não há nenhuma engajado capaz de pautar as suas
política e reação efetiva para se lutar demandas. Como afirma Evaristo:
contra isso. Ou seja, a violência contra “a nossa escrevivência não é para
pessoas negras é naturalizada. A adormecer os da casa-grande, e sim
morte sistemática de jovens negros acordá-los de seus sonos injustos.”
nas periferias não causa o choque que
deveria causar, por exemplo. A ausên-
cia de pessoas negras em certos lo- Referências:
cais, como os postos de maior poder e
prestígio, também é naturalizada, sen- ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutu-
do outro reflexo do racismo estrutural. ral? Belo Horizonte: Letramento, 2018.
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