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Fundada em 1950

VICTOR CIVITA ROBERTO CIVITA


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CARTA AO LEITOR

JUCA VARELLA/FOLHAPRESS

SÉRGIO LIMA/FOLHAPRESS
NÃO DEU CERTO A sessão que aprovou a reeleição, em 1997:
autor da ideia, o próprio FHC reconheceu o erro, tempos depois

ETERNA CAMPANHA
CRIADA EM 1997, durante o governo Fernando Henrique
Cardoso, a reeleição foi um marco no sistema eleitoral bra-
sileiro, ao permitir que presidentes, governadores e prefei-
tos concorram a um segundo mandato consecutivo. Em
teoria, a medida daria maior continuidade às políticas pú-
blicas implementadas pelo então ocupante do cargo. Ao
longo dos anos, no entanto, tornou-se evidente a ineficiên-
cia desse sistema em razão da intensa busca dos eleitos pelo
segundo mandato, desde o início de sua gestão. Vivemos
em eterna campanha. Foi o que aconteceu com Jair Bolso-

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naro e, ao que tudo indica, está se repetindo hoje com o pre-


sidente Lula, em sua terceira passagem pelo Planalto. O
ponto fraco da reeleição é que, na maioria das vezes, o an-
seio por ela leva a uma atenção excessiva à dinâmica eleito-
ral em prejuízo do cumprimento efetivo de promessas e do
atendimento às necessidades da população.
Não raro, a atuação dos políticos que perseguem o se-
gundo mandato resulta em uma gestão marcada por medi-
das populistas e superficiais, cujo único objetivo parece ser
sua manutenção no poder. Como sabemos, isso pode levar
a um ciclo vicioso de promessas vazias, ações demagógicas
com alto custo para o Estado e negligência das demandas
reais da sociedade. A busca desenfreada pela reeleição tam-
bém pode enfraquecer a democracia, ao concentrar o poder
em poucas mãos e limitar a renovação política. São tantos
os indícios de que o dispositivo não funciona que o próprio
FHC reconheceu o erro em artigo assinado no jornal O Es-
tado de S. Paulo, em 2020. Na ocasião, ele escreveu: “Seria
preferível termos um mandato de cinco anos e ponto-final”.
Diante desse cenário, é urgente a deflagração de um de-
bate sério sobre o tema. Como mostra a reportagem da
pág. 22, a discussão reacendeu com força no Congresso
Nacional. O senador Marcelo Castro, do MDB do Piauí,
elaborou três propostas de emenda à Constituição para
mudar o sistema atual. Segundo uma das sugestões, tería-
mos mandatos de cinco anos sem reeleição para presiden-
te, governadores, prefeitos e deputados a partir de 2030.

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Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, é um dos princi-


pais apoiadores. Obviamente, mesmo não sendo afetado
(as regras valeriam para os próximos pleitos), o presidente
Lula já avisou que é contra.
Embora seja fundamental uma análise mais profunda
de suas implicações, tal medida poderia estimular uma re-
novação de ideias e nomes no processo eleitoral brasileiro.
Além disso, contribuiria para um maior comprometimento
dos candidatos com sua agenda de governo, já que impossi-
bilitados de ter um segundo mandato. O fim da reeleição,
vale ressaltar, não significa acabar com a possibilidade de
um político ser eleito no futuro, mas, sim, limitar sua per-
manência no poder em um mesmo cargo executivo. Isso
poderia ainda promover maior responsabilidade e transpa-
rência na gestão pública, reduzindo os incentivos para prá-
ticas clientelistas e corruptas. Em última análise, a máquina
estatal talvez ficasse mais profissional. Chegou a hora de o
país discutir essa mudança. ƒ

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ENTREVISTA ANNE HIDALGO


JULIEN DE ROSA/AFP

A PARIS QUE
VEM POR AÍ
A prefeita, que encampou uma batalha que dificulta
a vida do motorista e abre espaço ao verde, garante
que a Cidade Luz emergirá da Olimpíada como uma
vitrine de metrópole sustentável
MONICA WEINBERG, de Paris

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UMA DAS MAIS proeminentes figuras da política fran-


cesa, a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, 64 anos, tem nas
mãos a complexa tarefa de manter azeitadas as engrena-
gens para pôr de pé a Olimpíada, que, a partir de 26 de
julho, tomará os cartões-postais. Há uma década no pos-
to que a projetou nacionalmente, a ponto de ter entrado
no último duelo presidencial concorrendo pelo Partido
Socialista, sem sucesso, ela vem colecionando ruidosas
brigas que ecoam pelos bulevares, onde a vida do moto-
rista anda cada vez mais dura, com a radical aplicação
de uma cartilha que prioriza zonas verdes e muita bici-
cleta. Nascida no sul da Espanha, Hidalgo, que sorve ins-
piração no pensamento de Simone de Beauvoir (1908-
1986), celebrou, na segunda-feira 4, a inclusão do direito
ao aborto na Constituição do país, avanço sem preceden-
tes que ajuda a neutralizar a onda conservadora que
atropela o debate planeta afora. Instalada no emblemáti-
co Hôtel de Ville, edifício ao estilo renascentista que ser-
viu de cenário para capítulos que chacoalharam a histó-
ria (como o anúncio por Charles de Gaulle da liberação
da cidade das garras nazistas, em 1944), ela recebeu VE-
JA nas dependências onde há um pôster de Frida Kahlo,
uma camisa com seu nome gravado do Paris Saint-Ger-
main, pelo qual entusiasticamente torce, e folhetos olím-
picos. “Paris não será mais a mesma”, promete nesta en-
trevista, em que também fala do avanço da extrema di-
reita, de Lula e de moda.

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A senhora tem dito que Paris será outra depois dos Jo-
gos. O que vai mudar? Entre as metrópoles globais, Paris
está caminhando para ser a mais sustentável de todas. E a
trilha para chegar lá não envolve uma transformação cos-
mética, mas mexidas profundas na paisagem e no modo
de viver. Isso tudo num lugar antigo, o que impõe o desa-
fio adicional de mudar e, ao mesmo tempo, proteger tão
rico patrimônio. Nestes meus anos à frente da prefeitura,
foram plantados milhares de árvores que já formam no-
vos bolsões verdes e áreas de lazer. Também estamos ra-
dicalmente estimulando o transporte de bicicleta, com
pistas por toda parte, e fazendo de tudo para frear a ex-
pansão da frota de carros. Até a arquitetura começa a se
ajustar aos tempos atuais. Uma cidade moderna não pode
seguir em frente sem considerar a questão climática, e os
Jogos estão ajudando a dar essa virada de página.

“Tanto já se falou ao longo da


história sobre a limpeza do Sena
que os parisienses até deixaram
de acreditar. Mas garanto:
vou mergulhar lá antes dos Jogos”
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Se está indo tudo tão bem, por que tantos franceses an-
dam irritados com a Olimpíada? Historicamente, sempre
houve na França esse espírito rebelde. Assim somos, faz
parte da nossa identidade. As pessoas se queixam em re-
lação aos transtornos trazidos pelos tratores, desconfiam
do resultado, temem a invasão de turistas. Certa vez, Tho-
mas Bach (o presidente do COI) me disse: “Calma que,
quando os Jogos começam, tudo vira festa”. Aposto nisso.

Os motoristas estão particularmente contrariados, so-


bretudo após a senhora propor um plebiscito que aca-
bou por triplicar o preço do estacionamento para veí-
culos grandes, como os SUVs. Eles têm um quê de ra-
zão? Não dá para manter uma cidade como Paris na rota
do avanço sem cutucar vespeiros. Para se ter uma ideia,
95% das áreas públicas aqui eram voltadas para carros,
uma lógica que estamos rompendo aos poucos. Apenas
um de cada três moradores tem um veículo na garagem,
e esses precisam se adaptar em prol de uma ideia mais
ampla, de conter a poluição. Quando gente cuja rotina fi-
cou mais difícil me pergunta como vai se locomover, res-
pondo: “Pegue o metrô.”

Trinta anos atrás, o então prefeito, Jacques Chirac,


garantiu que, tão logo o Rio Sena estivesse limpo, ele
nadaria ali, mas isso nunca ocorreu. A senhora fez
promessa semelhante. Vai cumprir? Vou mergulhar lá,

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sim, e já tem até data — entre fim de junho e início de


julho. Meu filho, inclusive, fez isso, na região de Le Ha-
vre, a 200 quilômetros de Paris. Nadar no Sena abrirá
uma janela de lazer para moradores e visitantes neste
mundo em que os termômetros em elevação são uma
realidade concreta. Tanto já se falou sobre limpar o rio
que os parisienses até deixaram de acreditar. Mas ga-
ranto: vai acontecer.

A senhora anunciou que, em nome da sustentabilida-


de, não haverá ar-condicionado na Vila Olímpica. Não é
castigar demais os atletas nestes dias abafados? Não
temos o hábito de ar-condicionado, como nos Estados
Unidos ou no Brasil. E, com os materiais que estamos
empregando, mais a posição das construções em relação
ao vento e à luz, a sensação térmica na Vila permanece-
rá razoável. É um modo diferente de pensar a arquitetu-
ra, olhando para o futuro, uma prova de engenhosidade
humana. Agora, o atleta que quiser trazer o seu próprio
aparelho, que se sinta à vontade.

Os preços dispararam na cidade, que já é cara. Como


fazer deste um espetáculo para todos, como a senhora
defende? Estão espalhando que os ingressos em Paris se-
rão os mais caros da história dos Jogos, mas isso é fake ne-
ws. Em torno de 50% das entradas custarão menos de 50
euros e, para a cerimônia de abertura no Sena, uma parce-

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la será gratuita. O valor dos hotéis está nas alturas mesmo


e tenho feito um trabalho de conversar com os donos des-
ses grupos para avisar: o preço pode jogar contra.

A segurança na festa de inauguração da Olimpíada, às


margens do Sena, a preocupa? Sim, e muita atenção vem
sendo dada, junto com o Ministério do Interior e com os
encarregados pela segurança, para que tudo corra bem.
É uma operação delicada, mas, a favor de Paris, pesa o fato
de a cidade ter expertise em abrigar grandes eventos.

Qual a sua avaliação sobre o legado olímpico no Rio de Ja-


neiro? O Rio soube aproveitar sua chance. Lembro daquela
área do porto, no Centro, em transformação, e do Eduardo
Paes falando: “Botar uma Olimpíada de pé é uma loucura”.
E é mesmo. Sei que houve uma troca de governo, e as coisas
deram uma parada. Um trabalho desses exige continuidade.
Gosto também do caso de Londres, mas ali as intervenções
ficaram mais concentradas numa zona da cidade. Em Paris,
abrange tudo, da Torre Eiffel ao subúrbio.

E quanto à praga dos percevejos? Alguma chance de


atrapalhar a celebração? Sempre houve e sempre haverá
percevejos em Paris. A notícia de que eles haviam se alas-
trado foi manipulação da Rússia. Segundo um relatório da
inteligência francesa, eles amplificaram a história nas re-
des, dando ao problema contornos que não tinha.

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Como impedir o avanço da extrema direita em seu


país, capitaneada por Marine Le Pen? Do jeito que a
coisa anda, estamos é nos preparando para lhe dar a
chave do poder. Vivemos uma crise democrática no pla-
neta, com nomes como Jair Bolsonaro e Donald Trump
ganhando espaço. Isso ocorre quando não se dá a ne-
cessária atenção ao movimento desses populistas, mini-
mizando o perigo no lugar de combatê-lo. Neste cená-
rio, grandes cidades como Paris têm papel essencial,
uma vez que concentram uma mescla de pensamentos e
gente mais progressista.

Como avalia o governo de Emmanuel Macron? Respeito


o presidente e as instituições, mas não posso concordar
com uma política que vem destroçando o modelo social
francês, uma fundamental herança do período pós-Se-

“Admiro Lula, seu carisma e história,


mas pensamos diferente sobre a
Rússia. Putin é um ditador, uma
ameaça ao mundo democrático, e,
para mim, não há relativizações aí”
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gunda Guerra. Embora não tenha relação com Macron,


uma pessoa arrogante, atuamos bem junto a seus repre-
sentantes, em prol dos Jogos.

A senhora é a favor do acordo União Europeia-Merco-


sul, que se arrasta nas negociações? Não. Podemos fa-
zer um acordo com o Mercosul, mas não esse que está
posto à mesa. Para funcionar, as duas partes precisariam
se beneficiar em igual medida. Nesse caso, nós saímos
perdendo. Como dizer aos agricultores que devem respei-
tar certas normas ecológicas, enquanto os países com os
quais estamos selando negócios, não? E os preços de fora
matam nossa agricultura. Isso não nos interessa.

Como foi seu encontro com o presidente Lula, em 2023?


Tenho muita admiração por Lula, sua história, carisma e
disposição para enfrentar a pobreza. Sempre conversa-
mos bem. Na última vez, ele me perguntou: “O que está se
passando com a esquerda aqui?”. Penso diferente dele,
porém, na maneira de ver a Rússia hoje. Para mim, Putin
é um ditador e uma ameaça ao mundo democrático, sem
relativizações. Acho que a posição de Lula tem a ver com
a luta contra o imperialismo americano do passado. Isso
ainda pesa fortemente na América Latina.

A senhora encampa bandeiras feministas? Sou 100%


feminista. As mulheres ainda são mais cobradas do que os

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homens no trabalho, em casa, e o mundo não lhes dá


grandes oportunidades. Em pleno século XXI, somos
pouco assimiladas nos círculos de poder, o que é um gar-
galo à própria democracia. Muitas vozes femininas têm
rara potência para brigar por liberdades e avanços civili-
zatórios. Me tornei a primeira mulher prefeita em toda a
história de Paris. Já poderíamos ter alcançado um ponto
mais alto neste momento da caminhada.

Catherine Deneuve e um grupo de francesas publicaram


uma petição no jornal Le Monde condenando o movimento
#MeToo por “criar um clima totalitário” e “minar a liberda-
de sexual”. Concorda? Não concordo com Deneuve. Apoio
o #MeToo, que teve o mérito de abrir um espaço essencial
para as mulheres se manifestarem sem ser desacreditadas.

A senhora esteve recentemente com Anna Wintour, a pa-


pisa da moda da revista Vogue. Aprecia a área, tão arrai-
gada à cultura francesa? Admiro o trabalho das grandes
cabeças criadoras da moda, movidas pelo propósito de
olhar para as ruas e traduzir o espírito de seu tempo. Em
minha vida como prefeita, ando na linha, mas, francamen-
te, longe do gabinete fico feliz de calça jeans. No encontro
com Wintour, aliás, ela disse que é em Paris que reside a
verdadeira energia destes tempos. Me senti até como a per-
sonagem de Emily em Paris (série cuja protagonista vive a
cultura francesa com olhos americanos).

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A propósito, picharam locações da série na cidade. Por


que uma ala dos parisienses não gosta de Emily? Sem-
pre aparecem uns imbecis de plantão para criticar. Eu,
pessoalmente, acho a série interessante. É como um con-
to sobre Paris, um bom cartão-postal.

Londres é tão ruim como se ouve nos bulevares pari-


sienses? Gosto de Londres. É cosmopolita como Paris.
Mas nós somos mais rebeldes, e isso serve de empurrão à
criatividade em todos os departamentos: econômico, ar-
tístico e, agora, na área da sustentabilidade.

Boris Johnson foi alçado da prefeitura nos tempos olím-


picos ao topo do governo no Reino Unido. A senhora am-
biciona trajetória semelhante? Não planejo hoje me can-
didatar novamente à presidência da França, embora não
me feche a um terceiro mandato na prefeitura. Neste mo-
mento, só penso mesmo em ter nos Jogos um trampolim
para fazer de Paris uma cidade voltada para o futuro. ƒ

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IMAGEM DA SEMANA

A REPETIÇÃO COMO FARSA

“FOI UM DIA INCRÍVEL”, bradou Donald Trump em


Palm Beach, na Flórida. Superlativo como sempre, ele
comemorava a coleção de vitórias na chamada
“Superterça”, 5 de março, data em que quinze estados
americanos votaram para escolher quem serão os
candidatos republicano e democrata a se digladiar pela Casa
Branca em novembro. O magnata irascível arrastou
MEG KINNARD/AP/IMAGEPLUS

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delegados em catorze estados — sua única rival dentro do


Partido Republicano, Nikki Haley, superou-o apenas em
Vermont. Trump tem agora 1 031 votos assegurados para a
convenção de junho. Faltam-lhe 184, mera formalidade.
Haley, rápida como um cometa, jogou a toalha depois dos
resultados e abandonou a disputa. O mandachuva de
cabelos alaranjados corre sozinho — e voltará a enfrentar o
presidente Joe Biden, que o derrotou em 2020. Foi mesmo
um dia incrível para ele, embora não tenha sido para
metade dos Estados Unidos e do mundo, que teme seu
retorno. Na véspera, os juízes da Suprema Corte, por
unanimidade, decidiram que seu nome não pode ser
excluído das cédulas por ter cometido “insurreição” e apoio
à vexaminosa invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de
2021, como haviam determinado o Colorado, o Maine e
Illinois. O veredicto vale para todo o país, ainda que alguns
estados voltem a levar a questão ao tribunal. Trump e seu
movimento, o Make America Great Again (MAGA), estão
vivíssimos. Pesquisa recente aponta 52% das intenções de
voto para ele, contra 48% de Biden. A história pode vir a se
repetir como farsa. ƒ

Amanda Péchy

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CONVERSA CLAUDIA RAIA

“ELA ROMPEU
BARREIRAS”
Vivendo Tarsila do Amaral em aclamado musical, a atriz
de 57 anos diz que tem temperamento oposto ao da
pintora modernista, papel que escolheu a dedo nesta
fase em que revive a maternidade

BANDEIRA
Claudia: “É fake
news dizer que
artistas abusam
da Lei Rouanet”
INSTAGRAM @CLAUDIARAIA

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A crítica diz que a senhora mimetiza Tarsila. Em algum


grau, se parecem? Somos duas figuras opostas. Meu jeito é
expansivo, barulhento, enquanto Tarsila era introspectiva,
soturna. Precisei estudar horas a fio para entendê-la, inclusi-
ve com a ajuda de cartas que Tarsilinha, sua sobrinha-neta,
me enviou. Não a conhecia, mas foi ela que me procurou pa-
ra fazer o musical, em 2020, dizendo que eu seria a única
atriz capaz de traduzir a força da pintora. Foi o maior de to-
dos os desafios em minha carreira.

No centenário da Semana de 22, os modernistas viraram


alvo por supostamente reproduzir aquilo que afirmavam
combater: racismo e elitismo. Concorda? Não. Estamos
falando de 1922. Os artistas àquela época estavam à frente de
seu tempo. Tarsila foi atacada por ser uma milionária branca
da elite cafeeira, mas quebrou barreiras do machismo e colo-
cou minorias sob os holofotes, com seus pincéis, contribuindo
para avanços sociais que viriam nas décadas seguintes.

Por que faz questão de mencionar ao fim de cada apre-


sentação que a peça é financiada pela Lei Rouanet? Falo
para desmentir as fake news que acusam artistas de se apro-
veitarem da lei sem trabalhar duro. Esta é uma demonização
das piores que já se disseminaram no meio artístico, propa-
gada no governo Bolsonaro. Dizem que o presidente Lula me
deu milhões de reais. Pois nem o conheço e nunca fui petista,
embora tenha votado nele. Artistas não são bandidos.

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No espetáculo, seu marido, Jarbas Homem de Mello, in-


terpreta o escritor Oswald de Andrade. É difícil essa
convivência toda? Na verdade, é bom. Ganhamos tempo
juntos em meio ao corre-corre e conversamos melhor. Ele,
que é um cara tranquilo, me faz diminuir o ritmo e manter
os pés mais fincados no chão.

Sua gravidez gerou debate nas redes, por ter ocorrido


aos 55 anos. Sentiu-se julgada? Sim. Vivemos numa era
em que ninguém hesita em apontar o dedo para o outro. De
certa maneira, tirei da zona de conforto mulheres na fase da
menopausa. Mostrei que ter mais de 50 não significa ficar
sentada no sofá, esperando a vida passar. Não é que todas
devam ter filhos, mas minha gravidez provou que ainda é
possível embarcar em aventuras e traçar planos de longo
prazo nessa faixa etária.

Não cogita pisar no freio para ter mais tempo com seu
filho, Luca, de 1 ano? De forma alguma. Sempre fiz de tu-
do para estar com Enzo e Sophia, meus filhos mais velhos,
quando eram pequenos. Mesmo assim, pegava quatro, cinco
trabalhos de uma vez. Agora, na maturidade, tenho uma vi-
são mais seletiva e escolho a dedo no que vou investir o tem-
po. Tarsila certamente vale cada segundo. ƒ

Amanda Péchy

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DATAS

“ESTRELA GERIÁTRICA”
INSTAGRAM @IRISAPFEL

QUERIDINHA A estilista Iris Apfel: decoradora da Casa Branca


ao longo dos mandatos de nove presidentes, de Truman a Clinton

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Hoje soa comum, quase banal, mas em 2005 foi


uma chacoalhada e deu o que falar na torre de marfim
dos especialistas em artes: a estilista Iris Apfel, então
com 85 anos, foi a primeira colecionadora de moda —
e não uma designer — a ter sua coleção exposta no Me-
tropolitan Museum of Art (MET), em Nova York. Vi-
rou celebridade instantânea, em programas de televi-
são e páginas de revistas. Era, nas palavras da própria
personagem, em tom irônico e risonho, uma “estrela
geriátrica”. Influenciou muita gente, irritou outras tan-
tas, mas nunca abriu mão do espalhafato associado ao
bom gosto: óculos imensos, colares e pulseiras em pro-
fusão, suéter rosa angorá com saia de brocado chinês
do século XIX, casaco feito de penas de galo com calça
de camurça e todo tipo de combinação de estampas.
Nas palavras do texto de apresentação da mostra
no MET, Apfel “examinava o poder das roupas e dos
acessórios para afirmar o estilo acima da moda e o
indivíduo acima do coletivo”. A personalidade inte-
ressante, mestra em saber escolher o que vai com o
quê, apesar das diferenças, a fez decoradora da Casa
Branca ao longo dos mandatos de nove presidentes,
de Harry Truman a Bill Clinton. Dois dias antes de
morrer, ela publicou em sua conta no Instagram uma
foto celebrando os 102 anos de idade — “102 e meio”,
a rigor. Iris morreu em 1º de março, em Palm Beach,
na Flórida.

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X @THEWOOKIEEROARS

VARIEDADE Mark Dodson: vozes de


Crumb, em Star Wars, e dos terríveis Gremlins

O RESTO É SILÊNCIO
O que seria dos seres ficcionais e futuristas de algumas das
grandes franquias da história do cinema se a eles não pudes-
sem ser coladas as vozes de seres humanos? Talvez mergu-
lhassem no anonimato do que é inverossímil. Salvou-os da
desgraça o ator e dublador americano Mark Dodson. Em
Star Wars: Episódio VI — O Retorno de Jedi (1983), ele fez o
repulsivo Crumb, um capanga de Jabba the Hut que falava em
guinchos e gargalhadas. Em 2022, retomou o papel no video-
game LEGO Star Wars: The Skywalker Saga. Depois, nos dois
filmes da franquia Gremlins, de 1984 e 1990, ele tornou famo-
sa a voz do bichinho fofo que se multiplicava em feras caso
seus donos não seguissem regras estritas. Dodson morreu em
2 de março, aos 64 anos.

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POLÍTICA
E AMOR
Paolo Taviani:
clássicos da
filmografia italiana
ao lado do irmão
Vittorio
CLEMENS BILAN/EFE

CINEMA FRATERNAL
Inspirados pelo neorrealismo italiano de Roberto Ros-
sellini e Vittorio De Sica, os irmãos Vittorio e Paolo Ta-
viani misturaram política e amor, temas atrelados ao coti-
diano e os labirintos da paixão, para fazer alguns dos mais
celebrados filmes dos anos 1970 e 1980: Pai, Patrão (1977),
Palma de Ouro em Cannes, A Noite de São Lourenço (1982)
e Kaos (1984). Depois da morte do irmão, em 2018, Paolo
dirigiu um único filme, Leonora, Adeus, vencedor do Prê-
mio da Crítica no Festival de Berlim em 2022. Recente-
mente se preparava para filmar Canto delle Meduse, que
sairia do papel a partir de abril. Paolo morreu em 29 de fe-
vereiro, aos 92 anos, em Roma, de causas não reveladas
pela família. ƒ

4|4
INÊS 249

FERNANDO SCHÜLER

LIÇÕES NA
SUPREMA CORTE
“SÃO CIDADÃOS comuns, sem foro privilegiado”, disse o
ministro aposentado do STF Marco Aurélio Mello, referin-
do-se aos invasores do 8 de Janeiro, em uma entrevista. E
concluiu: “Por isso seus processos deveriam estar com o juiz
natural da causa, na primeira instância”. Marco Aurélio não
é tipo que se incomode em sustentar uma posição minoritá-
ria. Ele argumenta, gentil, sustentando sua visão em nome
das “potencialidades do direito”, com a qual se pode concor-
dar ou discordar. O STF, para o ministro, não deveria estar
julgando Bolsonaro, dado que ele é um ex-presidente e, por-
tanto, também deveria ir para a Justiça comum. E por aí se-
guiu. Disse que os “patriotas” não deveriam ter sido autoriza-
dos a acampar nas áreas privativas do Exército, que as forças
de segurança falharam e que aquilo estava mais para “bader-
na” do que para uma tentativa real de “golpe de Estado”.
Foi o que bastou. Imediatamente, a militância enquadrou o
ministro como “bolsonarista”. De um jurista mais exaltado es-
cutei que ele havia “abraçado o autoritarismo”, e por aí corre-
ram os xingamentos. A lógica é simples: o ministro não pode-

1|6
INÊS 249

ria estar propondo uma sutileza. Qual seja: a ideia de poder


defender um tipo de processo, pautado pelas regras do direito,
independentemente do “lado político” que está em jogo. Ou,
quem sabe, a intuição de que não existe melhor maneira de
defender a democracia do que fazer isso respeitando as pró-
prias regras da democracia, inscritas na Constituição. Tudo
isso são sutilezas, e militantes têm horror a sutilezas. Seu pro-
blema, como num auto de fé, é saber “de que lado aquele sujei-
to está”. E por aí se define basicamente qualquer coisa. Há al-
gum problema nesse comportamento? Ele dificulta consen-
sos? Torna insuportável o debate público? Funciona como um
bom negócio, em nossas democracias digitais?
Quem trata disso com rara beleza é a cientista política An-
ne Applebaum, em O Crepúsculo da Democracia. O livro
funciona como uma crônica do declínio. De como fomos per-
dendo a capacidade de diálogo que ainda existia em nossas
democracias, não muito tempo atrás. Applebaum fala da pro-
eminência das “mentes autoritárias”, conceito que busca nos
estudos da pesquisadora Karen Stenner. Pessoas que se defi-
nem basicamente pela aversão à complexidade. Movem-se
por “unidade e uniformidade”. Precisam de “lado”. Se são
“contra o Bolsonaro”, isso orienta toda a sua visão política. Se
são “contra o Lula”, idem. Se deixar, isso invade outros domí-
nios da vida, das amizades às escolhas culturais. Elas podem
ser de esquerda ou de direita, não importa. É o tipo que “bate
sempre na mesma tecla”, que é incapaz de ponderar que há
“aspectos positivos em diferentes espectros políticos” e culti-

2|6
INÊS 249

CADÊ O DIÁLOGO? A cientista política Anne Applebaum:


crônica do declínio

va uma genuína aversão à diversidade de ideias. Seu modo de


lidar com os outros é a falácia ad hominem. O ataque ao in-
terlocutor, não a suas ideias. O que pensa diferente padece de
um defeito moral. Ponto. E, a partir daí, a necessidade do
“enquadramento”. O “fascista”, o “comunista”, o “bolsonaris-
ta”. A insistência no “de que lado você está”. Exatamente co-
mo fizeram com o ministro Marco Aurélio.
Foi por aí a reação que se observou em relação à decisão
da Suprema Corte americana, nesta semana, que na prática
LEONARDO CENDAMO/GETTY IMAGES

3|6
INÊS 249

“A melhor aposta:
instituições que
não reinventem a
Constituição a
cada confusão”
“autorizou” a candidatura de Donald Trump à Presidência.
A controvérsia girava em torno da interpretação da 14ª
Emenda à Constituição, que proíbe qualquer um que tenha
se envolvido em atos de “insurreição”, depois de jurar a
Constituição, de ocupar funções públicas. A decisão foi unâ-
nime. Juízes conservadores e liberais votaram na mesma di-
reção. A Corte nem sequer entrou no debate sobre a respon-
sabilidade ou não de Trump na invasão patética ao Capitó-
lio. Se aquilo era uma “baderna” ou tentativa de tomada do
poder. Os EUA estão divididos nesses temas, e não é matéria
para a Suprema Corte. O ponto é: a decisão foi unânime por-
que está lá escrito, no texto da 14ª Emenda, que cabe apenas
ao Congresso, e não aos estados ou à Suprema Corte, fazer
valer os seus efeitos. Ou seja: o país pode estar politicamente
rachado entre liberais e conservadores, mas há um manda-
mento constitucional acima de tudo. É a esse mandamento

4|6
INÊS 249

que aqueles juízes devem a sua fidelidade. É ele que permite,


em última instância, que pessoas que pensam de maneira
diferente possam estar de acordo em um aspecto essencial:
sua confiança nas regras do jogo. Sem o que não faz muito
sentido falar em uma democracia liberal.
Não deu outra. Aqui pelos trópicos, a turma resolveu dar
lições à Suprema Corte. De uma jornalista, li que a Corte ha-
via “falhado” em proteger a democracia americana. De ou-
tro, escutei que o Brasil estaria muito à frente dos EUA e que
aqui, sim, sabemos como “proteger a democracia”. Achei en-
graçado. Talvez nossos militantes quisessem que a Suprema
Corte americana não só atropelasse a Constituição, mandan-
do banir Trump, mas também criasse algum “inquérito”. E a
partir daí passasse a banir blogueiros, bloquear parlamenta-
res e impedir que o Google e o Facebook apresentassem sua
opinião sobre algum projeto em discussão no Congresso. Fa-
zendo tudo isso, quem sabe os EUA se tornariam uma gran-
de democracia, como a brasileira. Quem sabe.
Há dois aspectos interessantes aí. O primeiro é institucio-
nal. O fato de que a regra do jogo não deve variar segundo as
preferências de quem ocupa, de maneira transitória, o poder.
Juízes liberais devem apoiar posições que ao cabo favoreçam
um candidato conservador, se é isso que a Constituição deter-
mina. E vice-versa. O problema é que essa distinção entre a
posição dos atores no jogo e a universalidade da regra é o que
a democracia liberal tem de mais complexo. É o que faz as
pessoas aceitarem uma derrota. Ou, ainda, saberem que não

5|6
INÊS 249

devem censurar um filme, por mais “suspeito” que lhes pare-


ça. Que torna alguém capaz de reconhecer virtudes do outro
lado e entender que, entre vitórias e derrotas, todos ganhamos
com a preservação do jogo. Não vamos “corrigir” as pessoas.
Ou reencontrar uma razoabilidade que nunca existiu nas de-
mocracias. Podemos apelar ao bom senso, alertar sobre o ris-
co das “mentes autoritárias”, mas há um gigantesco ecossiste-
ma digital que pressiona na direção inversa. Os “homens não
são anjos”, escreveu Madison, e é por isso que precisamos de
boas instituições. Vai aí a melhor aposta. Instituições que
prestigiem o direito “ordinário”, na expressão do ministro
Marco Aurélio, e que não reinventem a Constituição a cada
nova confusão política. Talvez seja essa a lição da Suprema
Corte americana, à qual valeria prestar atenção. ƒ

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

6|6
INÊS 249

SOBEDESCE

SOBE
JEFF BEZOS
O dono da Amazon ultrapassou
Elon Musk e voltou ao topo da
lista de homens mais ricos do
mundo, com patrimônio estimado
em 200 bilhões de dólares.

RAYSSA LEAL
Aos 16 anos, a campeã de
skate, também conhecida como
Fadinha, tornou-se a primeira
brasileira a virar embaixadora
global da Louis Vuitton.

FRANÇA
Em uma medida histórica, a
nação europeia se tornou, na
última segunda, 4, o primeiro país
do mundo a consagrar o direito
ao aborto em sua Constituição.

1|2
INÊS 249

DESCE
CARLO ANCELOTTI
O MP da Espanha pediu a
prisão do técnico italiano do
Real Madrid. Ele é acusado de
ter sonegado 1 milhão de euros
em impostos entre 2014 e 2015.

TIRIRICA
Um homem de 39 anos registrou
em São Paulo um boletim de
ocorrência contra o deputado
federal por importunação sexual.

ALBERTO OTÁROLA
O primeiro-ministro do Peru
renunciou depois que veio a público
uma gravação na qual ele aparecia
tentando influenciar contratos
governamentais. Segundo Otárola,
o conteúdo é antigo e foi editado.

2|2
INÊS 249

VEJA ESSA

“A luta
continua.”
VINICIUS JR.,
depois de marcar dois
gols no empate do
Real Madrid contra o
Valencia. Em Valência,
no ano passado, o
brasileiro sofreu
ataques racistas
dos torcedores

JOSÉ JORDAN/AFP

1|4
INÊS 249

“Estou tentando fazer o melhor para o país.


Fazer o melhor para o país ajuda o governo.”
ROBERTO CAMPOS NETO, presidente do Banco Central,
defendendo que a instituição tenha também autonomia
financeira, projeto que divide a gestão do PT

“Larga de querer ser popstar


estrangeiro e venha trabalhar aqui.”
CIRO GOMES — que diz já não se candidatar a nada — para Lula

“Aqui ninguém vai te perseguir.”


FERNANDO CERIMEDO, marqueteiro argentino que
trabalhou na campanha de Javier Milei, fazendo troça
nas redes sociais com Alexandre de Moraes, juiz do STF

“Eu sempre falo que quem não deve


não teme. Eu só temo que possa
haver alguma parcialidade.”
ROMEU ZEMA, governador de Minas Gerais pelo Novo, de
olho nas investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro

“Neste momento, falta combustível


em Cuba, falta alimento, falta remédio.
Mas o que mais falta é a esperança.”
LEONARDO PADURA, escritor cubano

2|4
INÊS 249

“Eu pedi que fossem realizados


estudos sobre essa ideologia
horrenda de nossos tempos, que anula
as diferenças e torna tudo igual.”
PAPA FRANCISCO, em conferência no Vaticano em torno do
papel de homens e mulheres na sociedade, ao comentar a
respeito da identidade de gênero — tema tratado pelos
conservadores mais radicais como “ideologia”

“Acho que o Max não estava em uma liga


diferente, mas em uma galáxia diferente.”
TOTO WOLFF, diretor-executivo da Mercedes, a respeito da
vitória do piloto holandês Max Verstappen, da Red Bull, na
primeira prova do ano, no Bahrein. Aos 26 anos, ele é
tricampeão mundial de Fórmula 1

“Nunca tive medo de homem.”


ELIETE BOUSKELA, especialista em fisiologia cardiovascular,
a primeira mulher a presidir a Academia Nacional de Medicina

“Há alguns anos eu tive um sonho com


Christian Bale em um café ao pôr do sol,
e isso me fez perceber que precisava
terminar com meu namorado.”
BILLIE EILISH, cantora americana, dando a real

3|4
INÊS 249

“Você não deixa


de ser atriz
porque fez
uma semana
de moda.”
BRUNA MARQUEZINE,
depois de desfilar
nas passarelas
parisienses pela
Loewe e Yves
Saint Laurent

JACOPO RAULE/GETTY IMAGES

4|4
INÊS 249

RADAR
ROBSON BONIN

Com reportagem de Nicholas Shores e


Ramiro Brites

Um por todos... ...todos por um


O TSE vai criar, na próxima Além do TSE, o novo órgão
semana, o Centro Integrado terá a participação integrada
de Enfrentamento à Desin- do Ministério da Justiça, do
formação e Defesa da De- MPF, da OAB e da Anatel.
mocracia. O órgão terá uma
missão estratégica no pro- Segredos da Corte
cesso eleitoral deste ano: Na próxima semana, o in-
dar mais celeridade a deci- quérito das fake news com-
sões da Justiça no combate pletará cinco anos de vida
ao jogo sujo na campanha. sigilosa no STF.
LUIZ ROBERTO/SECOM/TSE

AÇÃO TSE: Corte terá um novo — e


poderoso — órgão contra os crimes eleitorais

1|6
INÊS 249

Firme e forte ministros na divulgação de


Criado por Dias Toffoli, em ações do governo. Todos te-
2019, para defender a “ho- rão tarefas a fazer.
norabilidade” do STF, o in-
quérito não tem data para É pra cair na estrada
terminar. Lula quer que todos os mi-
nistros viajem pelo país para
Rastilho de pólvora falar de ações de suas áreas.
Nas palavras de um investi- Eles também devem dar
gador, o relatório final do mais entrevistas sobre temas
CNJ sobre irregularidades vitais do governo.
na Lava-Jato “será uma
bomba” contra a turma de Ponto cego
Sergio Moro. Com o prazo de desincom-
patibilização do TSE che-
À flor da pele gando, o Planalto ainda não
O STJ vive uma rara crise sabe quantos ministros dei-
interna. Diferentes minis- xarão o governo para tentar
tros estão envolvidos em a sorte nas urnas.
brigas com colegas. “O cli-
ma anda muito pesado”, ad- Todo cuidado é pouco
mite um deles. O GSI vai gastar 2,2 mi-
lhões de reais na compra de
Chamado geral munições da Companhia
Preocupado com a queda Brasileira de Cartuchos. É
de popularidade, Lula deci- para treinar agentes em
diu mobilizar todos os seus ações com armas de fogo.

2|6
INÊS 249

Aposta no futuro Pix patriota


Os afagos de Lula a Davi Bolsonaro devolveu, nesta
Alcolumbre no convescote semana, um pix de 2 000
de senadores no Alvorada reais que recebeu por en-
reforçaram a impressão de gano de um apoiador.
que a transição no coman-
do do Senado já começou. Já imaginou?
Se pudesse disputar elei-
Sábio silêncio ções neste ano, Bolsonaro
Fustigado por aliados de diz que iria se candidatar a
Lula, Arthur Lira se reco- uma cadeira de vereador
lheu e tem evitado decla- no Rio de Janeiro. “Foi lá
rações polêmicas. “Arthur que eu comecei”, diz.
joga na sombra”, diz um
aliado. Tudo tem hora
Tarcísio de Freitas decidiu
Lado certo mesmo migrar ao PL de
Ex-comandante do Exérci- Bolsonaro, mas, pelo que
to, Freire Gomes reabilitou tudo indica, fará o movi-
sua imagem na caserna ao mento depois de concluir a
entregar Jair Bolsonaro no privatização da Sabesp.
depoimento à PF. “Ele es-
tava do lado certo. Ouviu Melhor combinar
sobre o golpe e atuou ne- A preocupação tem razão
gativamente contra Bolso- de ser. Além de deixar a
naro”, diz um general do base na Alesp, o Republi-
comando. canos retaliaria em 2026:

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INÊS 249

GUSTAVO MORENO/SCO/STF

TATEANDO Gonet: atuação discreta


e criteriosa sobre a Lava-Jato na PGR

“A saída precisará ser com- denação invocando a par-


binada ou ele não terá cialidade de Sergio Moro.
apoio na reeleição”, diz um
aliado. Sem constrangimento
O caso está com Edson Fa-
Primeiros sinais chin no STF. Para Gonet, o
Há três meses na PGR, empreiteiro não comprovou
Paulo Gonet vem atuando ato ilegal de Moro: “Ausen-
discretamente no órgão, te, assim, constrangimento
mas com posições pró-La- ilegal que justifique a inter-
va-Jato. Recentemente, foi venção do STF no caso”.
contra o pleito do emprei-
teiro Gerson Almada que Não há crime perfeito
tentava derrubar uma con- Um descuido do bolsonaris-

4|6
INÊS 249

ta Ailton Barros, investiga- Preto, declarou ao Banco


do pelo plano de golpe de Central possuir 31 milhões
Estado, ajudou a PF a en- de dólares no exterior.
contrar provas contra ele.
Procura-se
O print é eterno Pelo andar das coisas na
Barros apagava as conver- pré-campanha de Ricardo
sas que tinha com Bolsona- Nunes, o prefeito de São
ro e Mauro Cid no Whats- Paulo vai escolher para vice
App, mas deixou no iPhone um nome completamente
prints de tela de textos ao novo no jogo eleitoral. Aldo
ex-presidente e Cid. Rebelo perdeu força.

Que falta de educação Vitrine eleitoral


Foi assim que a PF chegou a A gestão de Ronaldo Caia-
mensagens em que ele deto- do em Goiás registrou, em
na Freire Gomes por não fevereiro, 56 homicídios.
topar o golpe. “FG voltou a Foi o mês menos letal dos
negar porta?”, indagou a últimos nove anos. A segu-
Cid. “Voltou...”, diz Cid. rança pública é bandeira de
“Fdp!”, diz Barros. Caiado na rota do Planalto.

Fortuna fora do país Bem na foto


Investigado no passado por Há quatro meses na chefia
supostamente atuar como da Caixa, Carlos Vieira con-
operador do PSDB, Paulo quistou o governo. Lula e
Vieira de Souza, o Paulo seus ministros são só elogios.

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Replicante
Alvo de acusações de
plágio quando lançou
a m ú s i c a M ag i a
Amarela, no ano pas-
sado, a ex-BBB Ju-
liette tentou registrar
uma marca de roupas
e calçados com seu
nome, mas teve o
pleito barrado pelo
Inpi recentemente. O
motivo: “A marca re-
produz ou imita re-
gistros de terceiros”,
diz o processo. ƒ

CLONE Juliette:
Inpi rejeitou registro
de marca de roupas
INSTAGRAM @JULIETTE

da ex-BBB

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INÊS 249

BRASIL POLÍCIA

PREPARAÇÃO Bolsonaro e
os comandantes das Forças
Armadas: minuta de decreto
golpista foi discutida entre eles
no Palácio da Alvorada

A CONFRARIA
DO GOLPE
Trechos do depoimento de Mauro Cid, obtidos por
VEJA, confirmam detalhes da reunião entre Jair
Bolsonaro e a cúpula militar, conspirata em que se
discutiu a anulação das eleições e a prisão de autoridades
LARYSSA BORGES E MARCELA MATTOS

ISAC NOBREGA/PR

CAPA: ILUSTRAÇÃO SOBRE FOTO DE FREEPIK

1 | 13
INÊS 249

CAI O PANO O depoimento de Mauro Cid:


detalhes da conspiração golpista

O
almirante de esquadra Almir Garnier quebrou a
rotina de clausura que havia se imposto nos últi-
mos meses na sexta-feira, 1º de março. Desde que
foi enredado como um dos principais operadores
militares de uma tentativa de golpe de Estado, o
ex-comandante da Marinha raras vezes havia sido visto em
público. Seguia uma rígida lista de recomendações para
evitar exposição desnecessária, não concede entrevistas e
mantém silêncio sobre as acusações de que alimentou pla-
nos para garantir a permanência de Jair Bolsonaro no po-

2 | 13
INÊS 249

der. Aquele dia, porém, era diferente. Mais magro, usando


roupa de ginástica e óculos escuros, ele estava sentado sozi-
nho na mesa de uma confeitaria a menos de 300 metros de
sua casa, em Brasília, onde permaneceu por mais de uma
hora. Nesse período, falou ao telefone durante um bom
tempo, caminhou pelo estabelecimento, bebeu água com
gás, comprou uma bandeja de salgadinhos e foi embora
sem ser notado. Não parecia preocupado com o que aconte-
cia a alguns quilômetros dali — mas deveria.
Naquele mesmo instante, na sede da Polícia Federal, o
ex-comandante do Exército Marco Antônio Freire Gomes
prestava esclarecimentos no inquérito que investiga se Jair
Bolsonaro atuou para reverter o resultado das eleições pre-
sidenciais de 2022. Poucos depoimentos eram tão aguarda-
dos quanto o do general. Testemunha de uma reunião em
que os chefes militares teriam discutido com o então presi-
dente da República detalhes de uma suposta trama golpista,
Freire Gomes havia sido apontado pelo tenente-coronel
Mauro Cid, ajudante de ordens do ex-presidente, como o es-
teio da caserna contra a sublevação. O general foi ouvido na
condição de testemunha e confirmou ter participado de uma
reunião no dia 7 de dezembro de 2022, no Palácio da Alvo-
rada, em que se discutiu a edição de uma medida que previa
a anulação das eleições presidenciais, a convocação de outra
e a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal.
A reunião — e o que foi discutido nela — é considerada a
evidência mais contundente de que Bolsonaro, em certo mo-

3 | 13
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mento, no mínimo flertou com a possibilidade de uma vira-


da de mesa. O que no início era uma suspeita começou a ga-
nhar contornos nítidos de materialidade a partir do momen-
to em que Mauro Cid fechou um acordo de colaboração com
a polícia. O ex-ajudante de ordens, que ficou preso durante
quatro meses até decidir cooperar, tinha acesso praticamen-
te irrestrito a tudo o que acontecia nos palácios do Planalto e
da Alvorada. Ele acompanhava de perto a rotina da família,
ouvia segredos e esteve presente nos derradeiros e mais ten-
sos momentos do governo. Nos últimos meses, o tenente-co-
ronel prestou cinco depoimentos à PF. No mais importante
deles, revelou os bastidores da conspirata que poderia ter
mudado drasticamente a história do país e que, agora, pode
apontar para certos personagens — incluindo o ex-
presidente Jair Bolsonaro — o caminho da prisão.
VEJA teve acesso aos principais trechos do depoimen-
to de Mauro Cid. A maioria das informações já veio a pú-
blico, mas seus detalhes, inéditos, são assustadores, mui-
tos deles parecem surreais, e o conjunto revela o nível de
desatino de uma confraria que colocou na cabeça que as
eleições de 2022 haviam sido fraudadas e que era preciso
fazer algo para impedir a posse de Lula. O ex-ajudante de
ordens contou que, em novembro, dias depois de anuncia-
do o resultado, participou de uma reunião comandada por
Bolsonaro no Palácio da Alvorada. Nela, o então assessor
para Assuntos Internacionais da Presidência, Filipe Mar-
tins, apresentou ao presidente sugestões para a edição de

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INÊS 249

SINAL VERDE Almir Garnier:


o almirante teria colocado a tropa à disposição

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um decreto que “retratava as interferências do Poder Judi-


ciário no Poder Executivo” e autorizava a prender “todo
mundo”. Entre os alvos específicos estavam os ministros
do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Alexan-
dre de Moraes, além do presidente do Congresso, senador
Rodrigo Pacheco. Em seu depoimento, Cid não informa
quem seria “todo mundo”, mas a ideia, segundo ele, era
prender “autoridades que de alguma forma se opunham
ideologicamente ao ex-presidente”.
A minuta de decreto também anulava o resultado das
eleições e estabelecia a convocação de um novo pleito. O
motivo seria a comprovação de que as urnas eletrônicas
haviam sido violadas — obsessão paranoica repetida vá-
rias vezes pelo então presidente. Participaram dessa pri-
meira reunião Bolsonaro, Cid, Martins e “juristas”. Filhote
do falecido Olavo de Carvalho, Martins fez uma longa ex-
planação. Depois, o presidente recebeu uma cópia do do-
cumento, leu e sugeriu alterações. Uma delas, como se sa-
be, foi excluir Gilmar Mendes e Rodrigo Pacheco da lista
de alvos a serem detidos. Dias depois, Martins retornou ao
Alvorada, acompanhado do advogado Amauri Saad, uma
espécie de consultor jurídico do grupo. Ele mostrou a Bol-
sonaro a nova versão do decreto com as mudanças sugeri-
das pelo presidente, que leu e — detalhe — aprovou a mi-
nuta. Ato contínuo, sempre de acordo com o depoimento
de Cid, Bolsonaro convocou para o mesmo dia uma reu-
nião com os comandantes do Exército, general Freire Go-

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CRISTIANO MARIZ/AGÊNCIA O GLOBO


ACORDO Mauro Cid: o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro
só foi solto depois que decidiu colaborar com as investigações

mes, da Aeronáutica, brigadeiro Carlos Baptista Junior, e


da Marinha, almirante Almir Garnier. Dessa nova — e
fundamental — reunião emergiram os indícios que colo-
cam os chefes militares no centro da trama.
Mauro Cid contou que Filipe Martins explicou aos co-
mandantes item a item do documento redigido com o aval
do presidente. Não falou em prisões, anulação de eleições
nem em outra medida radical. Nessa etapa da reunião,
além dos militares, do presidente e do assessor internacio-
nal, estavam o ajudante de ordens e Amauri Saad. Depois
ficaram na sala apenas o presidente e os três chefes milita-
res. Cid afirma que soube por Freire Gomes que Bolsonaro
pressionou os comandantes para saber o que eles achavam

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CLAUDIO REIS/FRAMEPHOTO/AGÊNCIA O GLOBO


INTIMIDAÇÃO Demonstração de força: em 2021, blindados
da Marinha desfilaram em frente ao Palácio do Planalto

do decreto golpista. O general e o brigadeiro, segundo ele,


não gostaram do que ouviram, o que teria, mais tarde, se-
pultado a ideia de uma intervenção. Já a situação de Almir
Garnier é, para dizer o mínimo, mais delicada. Em sua co-
laboração, Mauro Cid disse que ouviu do general Freire
Gomes o relato de que o almirante, ao contrário dos outros
dois, teria colocado as tropas à disposição. “Os referidos
elementos corroboram os fatos descritos pelo colaborador
Mauro Cesar Cid, quando revelou que o então comandan-
te da Marinha, o almirante Almir Garnier, em reunião
com o então presidente Jair Bolsonaro, anuiu com o golpe
de estado, colocando as tropas à disposição”, registrou a
Polícia Federal em relatório.

8 | 13
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NA MIRA
Alexandre de
Moraes: o ministro
do Supremo era
o alvo principal das
medidas de exceção

TON MOLINA/NURPHOTO/GETTY IMAGES

ARBÍTRIO Minuta: decreto previa prisão


de autoridades e novas eleições

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Desde que passou a ser caracterizado como o militar de


mais alta patente a dar guarida à trama, Garnier recebeu
relatos de que dificilmente escapará da mão pesada de
Alexandre de Moraes. A colegas de farda, muito tranquilo,
o militar tem dito que Bolsonaro recebia toda sorte de pro-
postas golpistas, mas que não as levava a sério. O depoi-
mento de Cid, porém, o deixa numa situação bastante des-
confortável. De um lado, um presidente ansioso por per-
manecer no cargo e dado a arroubos de todos os tipos. De
outro, o mais alto chefe de uma corporação militar dispo-
nibilizando seus recursos para atender à vontade do gover-
nante: um golpe. Alguns chegam a defendê-lo dizendo que

ORDEM UNIDA
JOÉDSON ALVES/EFE

Os ex-assessores
e aliados de
Jair Bolsonaro BRAGA NETTO
que, segundo a Ex-candidato a
Polícia Federal, vice-presidente na
participaram chapa de Jair
Bolsonaro, o general
do plano golpista promovia reuniões e
atuaria no núcleo
responsável por incitar
militares a aderirem
à conspirata

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ele falou nas tropas apenas como bravata, uma maneira de


agradar a Bolsonaro. Difícil engolir uma piada no meio de
uma situação de tão alta octanagem como essa. “Mesmo
como bravata, Garnier jamais falou que endossava um gol-
pe”, defende, sob condição de anonimato, um interlocutor
do ex-comandante. Embora minimize o episódio, ele deve
ser indiciado, assim como o ex-presidente, por tentativa de
abolição do estado de direito, crime que prevê até oito anos
de prisão. Tal cenário tem gerado incômodo e constrangi-
mento para as Forças Armadas. Os três comandantes já fo-
ram intimados a depor. Freire Gomes foi o último a ser ou-
vido. Antes dele, Baptista Junior já havia prestado um lon-
ANTONIO MOLINA/FOTOARENA

ARTHUR MAX/MRE

PAULO SÉRGIO FILIPE MARTINS


DE OLIVEIRA Ex-assessor
de Bolsonaro
Ex-ministro da Defesa, o para Assuntos
general insuflava a versão Internacionais, que
sobre supostas fragilidades foi preso, discutiu com
nas urnas eletrônicas e teria o ex-presidente
participado das reuniões versões do decreto
em que se discutiu a minuta que daria sustentação
de decreto do golpe jurídica ao golpe

11 | 13
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go depoimento, que também é mantido em sigilo. Ambos


ajudarão a elucidar o que aconteceu naquele dia e, possi-
velmente, dar mais elementos para uma provável prisão de
Bolsonaro. Garnier, claro, optou pelo silêncio. A defesa do
almirante alegou que não teve acesso aos autos, um direito
de quem é investigado. Agora, a Polícia Federal vai decidir
se os militares atuaram ativamente com o intuito de amea-
çar a democracia ou se o que fizeram se enquadra apenas
como omissão. Mauro Cid deve depor mais uma vez na se-
mana que vem. Usando tornozeleira eletrônica e recolhido
quase o tempo todo em sua casa no Setor Militar, em Bra-
sília, ele tem sido alvo de ameaças por parte de bolsonaris-

REPRODUÇÃO
CCOMSEX

ESTEVAM THEOPHILO AMAURI SAAD


Ex-chefe do Comando O advogado era
de Operações responsável pela
Terrestres, o general formulação de teses
teria se colocado à jurídicas que
disposição para embasariam, entre
executar ordens outras coisas, a prisão
golpistas se o ex- de ministros do
presidente Bolsonaro Supremo Tribunal
assim determinasse Federal

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tas e convive com o desprezo dos colegas de farda. “O


Exército não tolera alcaguetes”, diz um graduado oficial.
“Não sou traidor, nunca disse que o presidente tramou um
golpe. O que havia eram propostas sobre o que fazer caso
se comprovasse a fraude eleitoral, o que não se comprovou
e nada foi feito”, disse ele, em sua lógica muito peculiar, a
uma pessoa próxima.
A lista de figurões suspeitos de envolvimento nessa
conspiração é grande (veja o quadro), e outros persona-
gens podem ganhar ainda mais destaque nas próximas se-
manas. A rigor, desde o início da administração Bolsonaro
havia um flerte do então presidente e seu círculo mais pró-
ximo com uma ruptura institucional. Garnier, por exem-
plo, já esteve na crista de uma controvérsia em agosto de
2021. O almirante não escondia as pretensões de assumir
o posto de ministro da Defesa. Na caserna, era criticado
por ter se encantado demais pelas delícias do poder em ge-
ral e pelo presidente da República em particular. Numa no-
tória demonstração de servilismo, ele organizou um desfi-
le de tanques pela Esplanada dos Ministérios na época em
que o Congresso votava um projeto para a adoção do voto
impresso, um dos moinhos de vento do ex-presidente na
sua alucinada cruzada contra o Judiciário. Na ocasião, o
comandante negou que o espetáculo bizarro embutisse
uma ameaça velada às instituições. Teria sido apenas
“coincidência”. À luz do que se sabe hoje, ninguém daria o
mínimo crédito a essa versão. ƒ

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INÊS 249

BRASIL POLÍTICA

REALIDADE
PARALELA
Mesmo inelegível e cada vez mais encrencado
no inquérito do golpe, Bolsonaro arrasta
multidões por onde passa em sua estreia como
cabo eleitoral pelo país LAÍSA DALL’AGNOL

MULTIDÃO Evento no Rio Grande do Sul:


clima de consagração popular nas viagens

VALTER GUARNIERI/CÓDIGO 19/AGÊNCIA O GLOBO)

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INÊS 249

CORRERIA, GRITOS, palmas, choro: o cenário de euforia se


repete em todas as cidades visitadas pelo capitão. Em meio a
um “caos organizado”, os admiradores, a postos, se espremem
para disputar quem fará o melhor clique. Os mais sortudos
conseguem chegar perto e garantir um aperto de mão, um ace-
no ou até mesmo um sorriso. O clima é de consagração popu-
lar nas andanças que Jair Bolsonaro tem feito por algumas ci-
dades do país, numa espécie de estreia oficial de seu papel co-
mo cabo eleitoral para candidatos de direita ao pleito munici-
pal de 2024. Como se fosse uma espécie de universo paralelo
da negação, a totalidade da plateia presente a esses eventos ig-
nora o fato de que o “mito” encontra-se inelegível e cada vez
mais encrencado com as investigações a respeito do inquérito
do golpe (veja reportagem “A confraria do golpe”).
O próprio Bolsonaro age como se nada estivesse acontecen-
do e fica focado em seu projeto político: as eleições municipais
de outubro, quando os brasileiros irão às urnas para escolher
prefeitos e vereadores. De olho no pleito, o ex-presidente deu o
pontapé inicial na “turnê” eleitoral na última semana, em
evento com lideranças do PL em Salvador. Ciceroneado pelo
presidente estadual da sigla, o ex-ministro da Cidadania João
Roma — e também pré-candidato à capital baiana —, Bolso-
naro deu o tom do que serão suas próximas viagens. Com uma
“mãozinha” da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, a ideia
é que o casal turbine palanques regionais. Michelle ficará en-
carregada dos encontros do PL Mulher, ala feminina da sigla
presidida por ela e que tem impulsionado candidaturas de mu-

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INÊS 249

INSTAGRAM @JOAOROMANETO

TURNÊ João Roma: visita a pré-candidato


de Salvador marca pontapé eleitoral

lheres “conservadoras”. O trunfo da ex-primeira-dama inclui


ainda sua interlocução com o público evangélico e com a co-
munidade de pessoas com deficiência. Quando possível, o ce-
nário dos sonhos de todo e qualquer candidato é que Michelle
e Bolsonaro estejam lado a lado nas aparições em seus redutos.
Por ora, a entourage de Bolsonaro é enxuta, até mesmo um
tanto quanto mambembe para o tamanho das pretensões —
ele geralmente é acompanhado por, no máximo, três auxilia-
res “oficiais”: um fotógrafo, um assessor e um segurança. A sua
presença é cobiçada e disputada por prefeitos e vereadores, que
querem o “selo de qualidade” de posar na foto ao lado do ex-

3|8
INÊS 249

-presidente. A adesão expressiva ao ato na Paulista e os resul-


tados de pesquisas recentes que mostram a resiliência e até o
crescimento de sua popularidade brilham aos olhos de postu-
lantes. Um deles é o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga
(PL), pré-candidato à prefeitura de João Pessoa. “O ato moti-
vou muito, porque o segmento conservador ficou ressabiado
após as eleições, estava se resguardando de grandes manifes-
tações populares. Mas o evento serviu até para aparar arestas
dentro do partido. Bolsonaro é uma liderança muito forte e es-
se capital político é importante não apenas para 2024, mas pa-
ra que em 2026 haja um cenário diferente no país”, diz.
Um dos próximos destinos da caravana deve ser João Pes-
soa, na Paraíba, onde aliados já começaram a movimentação
para recebê-lo nas próximas semanas. Também estão na “fila”
capitais como Recife, pleiteada pelo ex-ministro do Turismo
Gilson Machado (PL), Natal, Belém e Campo Grande. “É um
momento de muita articulação. Vamos marcar presença em
todas as cidades: se não for com candidato a prefeito ou a vice,
vamos pleitear cargos de vereador, que é tão importante quan-
to”, diz Machado. Além das candidaturas próprias, Bolsonaro
e o PL têm fechado alianças. Em São Paulo, com o cortejo do
governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), apoiará a ree-
leição de Ricardo Nunes (MDB).
A estreia no papel de cabo eleitoral para as disputas muni-
cipais deste ano tem ainda um certo grau de improviso. Se-
gundo aliados, não há um planejamento interno no partido,
por ora, do roteiro de viagens e nem dos encontros com lide-

4|8
INÊS 249

ranças. “O cronograma es-


tá sendo organizado por ele
mesmo. Ele compra a pas-
sagem e vai”, diz Gilson
Machado. A ida ao Rio
Grande do Sul, inclusive,
foi decidida de última hora,

CRISTIANO MARIZ / AGÊNCIA O GLOBO


afirma um nome próximo
a Bolsonaro. No final de se-
mana que esteve no interior
de São Paulo, recebeu o
convite para participar da CAUTELA Valdemar:
feira gaúcha do agronegó- cuidados para não irritar
cio por intermédio de em- Alexandre de Moraes
presários e políticos da re-
gião. Três dias depois, estava de malas prontas e pé na estra-
da rumo à Região Sul do país.
O que explica, até certo ponto, a falta de um planejamento
mais consistente é o avanço da Polícia Federal e do cerco do
Supremo Tribunal Federal sobre os principais caciques do
partido. A operação deflagrada em fevereiro, no âmbito da
investigação que apura uma tentativa de golpe de Estado pa-
ra impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, impôs restri-
ções a Bolsonaro, a Valdemar Costa Neto, presidente do PL,
e a Walter Braga Netto, responsável pela articulação política.
Alvos da investida, os três foram proibidos pelo ministro Ale-
xandre de Moraes de manter qualquer forma de contato. As

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INÊS 249

medidas cautelares acertaram em cheio o dia a dia das lide-


ranças e forçaram uma reorganização de agendas. Braga
Netto, que antes despachava da sede do PL em Brasília, ago-
ra está no Rio de Janeiro para evitar possíveis embaraços ju-
diciais. De lá, segue envolvido no planejamento estratégico
de candidaturas: a meta do partido é eleger mais de 1 000
prefeitos por todo o Brasil, além de um número “expressivo”
de vereadores. As prioridades do general têm sido a articula-
ção em estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul,
Pernambuco, Paraíba, além do próprio Rio de Janeiro. Por
lá, terá o “reforço” do vereador Carlos Bolsonaro, que em
breve consolidará a migração do Republicanos para o PL e
assumirá o comando estadual da legenda no estado. Ele tam-
bém será um dos coordenadores da campanha do deputado
federal Alexandre Ramagem para a prefeitura carioca. De
Brasília, Valdemar também tem feito sua parte, apesar das li-
mitações. No último dia 28, reuniu dezenas de presidentes de
diretórios estaduais para discutir “estratégias e diretrizes” do
partido com foco nas eleições. O encontro, que deverá ser pe-
riódico, reuniu nomes fortes do bolsonarismo, como os sena-
dores Magno Malta (ES) e Rogério Marinho (RN) e o gover-
nador de Santa Catarina, Jorginho Mello. Segundo aliados,
Valdemar elegeu dois “interlocutores” principais frente às
sanções de Moraes: o líder da bancada na Câmara, Altineu
Côrtes (PL-RJ), e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
De certa forma, a caravana bolsonarista em curso segue
um estilo semelhante à da campanha bem-sucedida que levou

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INÊS 249

DIVULGAÇÃO

ALIADOS Ao lado de Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes


após ato na Paulista: apoio bolsonarista à campanha paulistana

o capitão ao Palácio do Planalto, quando venceu usando como


uma de suas principais armas o celular. Naqueles tempos, o sé-
quito que o acompanhava também era diminuto e havia sem-
pre um ar de improvisação nas andanças e movimentações do
candidato. Como se sabe, acabou dando certo, e o capitão faz
questão de repetir a dose. Em seus quatro anos de governo,
Bolsonaro manteve esse estilo “espartano” como sua marca
registrada. Nas viagens de agora país afora, prefere comer em
restaurantes baratos e se hospeda em hotéis sem muito confor-
to. Quando pode, economiza até no preço das passagens aére-
as: segundo aliados, escolheu na última visita a São Paulo um
voo de madrugada por custar metade do preço do que outra
opção mais “confortável”.

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INÊS 249

INSTAGRAM @RAMAGEMPREFEITO

ALIANÇA Alexandre Ramagem e Carlos


Bolsonaro: apoio à prefeitura do Rio

A escolha de voos de carreira, inclusive, chegou a ser alvo


de divergência com Valdemar Costa Neto, que queria alugar
uma aeronave privativa para que o ex-presidente pudesse
percorrer mais cidades em um só dia, maximizando o tempo
na campanha. Com receio de possível atentado, no entanto,
ele bateu o pé e declarou que só viajaria em aviões comer-
ciais. Explicação: segundo o capitão, fiel ao seu estilo de
conspiração permanente, haveria menos “riscos de sabota-
gem”. Enquanto coloca seu bloco na rua, crescem as evidên-
cias de sua suposta participação como cabeça de um golpe de
Estado para tirar Lula do poder após as eleições de 2022. Até
que seja batido o martelo, Bolsonaro não é réu e segue livre
— e em plena campanha. ƒ

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INÊS 249

MURILLO DE ARAGÃO

INFLUÊNCIA É
O PODER SUTIL
Ela pode moldar crenças, comportamentos e decisões

MILHÕES de pessoas disputam, diariamente, a atenção


nas redes sociais. Celebridades exibem suas dores e seus
triunfos. Artistas procuram a mídia para expor preferên-
cias sexuais ou opiniões políticas quase sempre rasteiras,
além de divulgar a sua arte, que nem sempre é tão nobre
assim. Todos disputam atenção, likes e curtidas.
Nesse contexto, a influência se consagra como a expres-
são de poder hoje mais significativa e não violenta na arena
política. Essa força sutil, mas profunda, tem o poder de
moldar crenças, comportamentos e decisões sem recorrer
à força nem à coerção, tornando-se essencial para a nego-
ciação, a persuasão e a liderança.
A influência ganha especial relevância em um ambiente
político cada vez mais polarizado. No entanto, a narrativa
que embala a mensagem importa mais do que o conteúdo,
e essa é uma característica marcante dos nossos tempos.
Com a ascensão das massas como elemento político vi-
tal no século XX, a importância da influência para contê-
-las ou direcioná-las cresceu exponencialmente. E a tecno-

1|3
INÊS 249

logia da comunicação ajudou enormemente no processo de


mobilização e de engajamento das massas populares.
Paralelamente à emergência das massas enquanto fenô-
meno político-social, esse avanço das tecnologias de co-
municação deu origem à economia da atenção, cujo desta-
que foi dado por Herbert Simon, prêmio Nobel de Econo-
mia de 1978. De acordo com esse conceito, a atenção das
pessoas é recurso escasso e valioso. Isso é ainda mais per-
ceptível nos dias de hoje, diante da enxurrada de informa-
ções existentes na internet e nas mídias digitais.
Assim, empresas e anunciantes batalham pela atenção
dos consumidores, buscando capturá-la e retê-la ao máxi-
mo para moldar comportamentos, fomentar o engajamen-
to e, consequentemente, maximizar lucros.
As estratégias da economia da atenção permearam o
domínio político, intensificadas nas últimas décadas pelas

“Com as redes sociais,


políticos vão cada vez
mais agir como
aspirantes a
celebridades”
2|3
INÊS 249

redes sociais e pela proliferação de fake news e, mais recen-


temente, com os deepfakes.
Consolida-se, assim, uma situação na qual os eleitores,
em especial em países como o Brasil, tendem a ser cada
vez mais bombardeados por ações midiáticas na busca in-
cessante por atenção. E os políticos vão, cada vez mais, agir
como aspirantes a celebridades ou até mesmo como cele-
bridades propriamente ditas.
As campanhas políticas tendem, portanto, a prolon-
gar-se no âmbito digital. Um candidato eleito deverá co-
meçar a fazer a sua campanha no dia seguinte à posse,
por meio dos instrumentos da economia da atenção e me-
diante a espetacularização do seu mandato. Tal fato tem
nos levado para uma política mais centrada na imagem e
na percepção pública do que na substância e na imple-
mentação de políticas eficazes. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL LEGISLAÇÃO

UM DEBATE
NECESSÁRIO
Senado retoma tentativa de pôr fim à reeleição,
algo que trouxe mais problemas que benefícios ao
longo das décadas — mas a aprovação terá um
caminho difícil VALMAR HUPSEL FILHO

CORREÇÃO Pacheco: “Precisamos deixar de lado esse


eterno estado de campanha eleitoral para fortalecermos o país”

MARCOS OLIVEIRA/AGÊNCIA SENADO

1 | 11
INÊS 249

COM POPULARIDADE em alta no fim de seu primeiro


governo principalmente por causa do Plano Real, Fernan-
do Henrique Cardoso deu sinal verde para as tratativas da
proposta de emenda à Constituição que deu o direito a
presidentes, governadores e prefeitos concorrer à reelei-
ção. A PEC foi aprovada no Senado em sessão realizada
em 4 de junho de 1997. O caso ficou conhecido também
por entrar para a crônica de denúncias de corrupção, em-
bora elas não tenham sido posteriormente investigadas a
contento. A votação foi realizada em meio a rumores en-
volvendo compra de votos de deputados. As suspeitas au-
mentaram a rejeição à proposta no Senado, mas não o su-
ficiente, e os governistas precisaram de apenas nove mi-
nutos para aprovar a matéria com 62 votos a favor e 14
contrários. No final daquela sessão, o então presidente do
Congresso, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007), disse
que o resultado abriria a campanha para a disputa presi-
dencial que ocorreria no ano seguinte e que FHC, “pela li-
derança que tem, é um forte candidato à reeleição”. Como
se sabe, o tucano, de fato, conseguiu a façanha de aprovar
a matéria e ser o principal beneficiário dela.
O que parecia uma ideia razoável, visando garantir a
continuidade de boas políticas públicas, revelou-se na
prática um problema, atirando o país num estado perma-
nente de campanha eleitoral. Grande parte dos vitoriosos
já começam o governo pensando em como viabilizar a re-
eleição. Há inúmeros efeitos perversos desse indisfarçável

2 | 11
INÊS 249

esforço de permanência no comando, a começar pelo uso


da máquina pública para assegurar essa perpetuação. Na-
da disso é mais maléfico do que a tendência de concentra-
ção de poder nas mesmas castas políticas, o que enfraque-
ce a democracia, em última instância.
Paradoxalmente, apesar de a classe política ter formado
quase um consenso em torno dos efeitos nefastos da reelei-

PROPOSTAS NA MESA
Serão examinadas três sugestões para mudar o sistema atual

O P Ç Ã O 1

Fim da reeleição para presidente e governadores


a partir de 2035. Eleitos em 2030 já teriam mandato
de cinco anos, sem possibilidade de reeleição

Fim da reeleição para prefeitos a partir de


2033. Eleitos a partir de 2028 já teriam
mandato de cinco anos, sem possibilidade
de reeleição

Deputados teriam mandato de cinco


anos a partir de 2030

Senadores eleitos em 2026 teriam mandato de


nove anos. A partir de 2035, o mandato dos
senadores passaria a ser de dez anos

3 | 11
INÊS 249

ção, os próprios políticos, contaminados por interesses mais


rasteiros e imediatistas, não tiveram a coragem de acabar
com o sistema. Ao longo das últimas décadas, alguns parla-
mentares fizeram dezenas de tentativas para terminar com
a reeleição — e todas foram infrutíferas. Agora, surgiu no
horizonte do Congresso um novo esforço nessa direção. A
diferença é que ele já nasceu contando com um apoio políti-
co de peso, o do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG). A iniciativa partiu do senador Marcelo Castro
(MDB-PI), que elaborou três alternativas para o fim da ree-

O P Ç Ã O 2

Prevê o fim da reeleição para presidente e governadores


em 2039. A partir de 2034, eleitos teriam cinco anos de
mandato, sem possibilidade de reeleição

Prefeitos eleitos a partir de 2028 teriam mandato de


seis anos. A partir de 2034, os prefeitos passam a ter
mandato de cinco anos, de forma a unificar todas as
eleições majoritárias em 2039

Deputados estaduais e federais teriam


mandato de cinco anos a partir de 2034

Senadores eleitos em 2030 teriam nove


anos de mandato. A partir de 2034, o
mandato passaria a ser de dez anos

4 | 11
INÊS 249

leição para presidente, governadores e prefeitos, com uma


contrapartida: a extensão de mandato dos atuais quatro
anos para cinco. A distinção entre as propostas fica por con-
ta da modulação de como esse sistema seria implantado
(confira o quadro). A ideia é que, se aprovada, a reeleição se-
ja extinta definitivamente só após 2034, para não ferir direi-
tos adquiridos e expectativas de direito.
Otimista, Castro avalia que, ao contrário das tentativas
anteriores, o momento é mais propício para o debate e que a
aprovação deve ser conquistada nos próximos meses. “Hoje

O P Ç Ã O 3

Mandato de cinco anos sem reeleição


para presidente e governadores a
partir de 2030

Prefeitos eleitos em 2028 teriam mandato de


dois anos, numa espécie de transição. A
partir de 2030, o mandato seria de cinco
anos, sem reeleição

Os deputados federais, estaduais e distritais passam


a ter mandato de cinco anos a partir de 2030 e seguem
o mesmo calendário das eleições presidenciais

Senadores eleitos em 2026 teriam mandato


de nove anos. A partir de 2030, o mandato
passaria a ser de dez anos

5 | 11
INÊS 249

há um consenso maior”, afirma. Algumas vozes já se levan-


taram a favor da iniciativa dentro do Congresso. Líder da
minoria, Ciro Nogueira (PP-PI) disse que a proposta tem re-
ais chances de aprovação. “Há um consenso de que não te-
mos instrumentos na democracia para combater os abusos
eleitorais de uma reeleição”, diz. Outra voz relevante foi a do
senador Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Sena-
do, que disse ser um assunto “para ontem”. Principal padri-
nho da proposta, Rodrigo Pacheco quer transformar a PEC
num marco de sua gestão, antes dos seus próximos passos

GERALDO MAGELA/AGÊNCIA SENADO

OTIMISMO Marcelo Castro: expectativa de votação


até o meio do ano

6 | 11
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políticos: eleger seu sucessor no ano que vem e se credenciar


para tentar o governo de Minas em 2026. “Convivemos com
o instituto da reeleição há quase três décadas. O país obser-
vou acertos, mas também equívocos no processo. E há ago-
ra no Congresso e na própria sociedade um sentimento de
correção de rumos”, afirmou ele a VEJA. “Precisamos dei-
xar de lado esse eterno estado de campanha eleitoral e os in-
teresses individuais para fortalecermos o país.”
Para além do campo do Congresso, a proposta já ganhou
o apoio de vários governadores. Tarcísio de Freitas (Repu-
blicanos), de São Paulo, Romeu Zema (Novo), de Minas,
Eduardo Leite (PSDB), do Rio Grande do Sul, e Ratinho Jr.
(PSD), do Paraná, deram declarações públicas favoráveis à
iniciativa. Curiosamente, todos eles se beneficiaram desse
mecanismo e foram reconduzidos aos cargos que ocupam, à
exceção de Tarcísio. O governador paulista está no primeiro
mandato e costuma dizer que sua prioridade política é con-
quistar mais quatro anos à frente do Palácio dos Bandeiran-
tes, embora seu nome esteja sendo fortemente cogitado para
disputar o próximo pleito presidencial como candidato de
oposição ao governo do PT.
Apesar dos fortes apoios, o caminho para aprovação
da PEC é incerto, ainda mais em ano de campanha políti-
ca, embora as mudanças não incidam sobre os eleitos em
2024. Os detratores da iniciativa espalham pelos corredo-
res do Congresso que ela não passaria de jogo de cena de
Pacheco e Castro para ganhar visibilidade na opinião pú-

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INÊS 249

JUCA VARELLA/FOLHAPRESS

MEA-CULPA Fernando Henrique: primeiro a se beneficiar


da mudança, em 1998, criticou o mecanismo décadas depois

blica. Na Câmara, o assunto está longe das prioridades da


Casa para este ano, mais interessada na regulamentação
da reforma tributária e na pauta verde. Há ainda outro
obstáculo considerável, o próprio governo. A posição de
Jaques Wagner, que ele afirma ser pessoal, por exemplo,
foi prontamente rebatida pela presidente do PT, deputada
Gleisi Hoffmann (PR), que afirmou não espelhar a opinião
da legenda. Para ela, acabar com a reeleição é um “retro-
cesso”. O próprio presidente da República, Luiz Inácio Lu-
la da Silva, disse nesta semana, durante um encontro com

8 | 11
INÊS 249

ANTÔNIO MACHADO/FOTOARENA
APOIO Eduardo Leite: entre os governadores que
endossaram a iniciativa

senadores em que Pacheco e Castro estavam presentes,


que é contrário à proposta de fim da reeleição e extensão
de mandatos para cinco anos.
Autor da PEC que instituiu a reeleição em 1997, o depu-
tado Mendonça Filho (União Brasil-PE) ainda defende o
projeto, dizendo que o mecanismo é adotado em nações de-
senvolvidas, como França e os Estados Unidos, sendo que
este último caso foi usado como referência para o modelo
brasileiro. “Essa proposta de unificação das eleições foi fei-
ta para agradar os políticos e ignora a necessidade do elei-

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INÊS 249

MATEUS BONOMI/AGIF/AFP
EQUILÍBRIO Ratinho Jr.: apoio a mandatos
de cinco anos sem recondução

tor de escolher de forma alternada representantes nacionais


e locais”, afirma. É uma opinião respeitável, mas talvez a
melhor e mais isenta avaliação do legado da reeleição foi
feita pelo primeiro beneficiário dela. Mais de duas décadas
depois, o próprio FHC declarou que a mudança foi um erro,
pregando a volta do sistema anterior, mas com a adoção de
mandatos de cinco anos. Em artigo publicado em 2020, o
ex-presidente fez um mea-culpa em relação à situação de
desequilíbrio entre quem tenta a reeleição e a concorrência:
“Visto de hoje, imaginar que os presidentes não farão o im-

10 | 11
INÊS 249

ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA
CRÍTICO Zema, que foi reeleito em Minas:
outra das vozes no apoio ao projeto

possível para ganhar a reeleição é ingenuidade”. Extinguin-


do-se ou não o mecanismo de reeleição, aumentando-se ou
não a duração dos mandatos, o que o Brasil precisa é forta-
lecer as instituições, de forma a garantir condição de igual-
dade na disputa eleitoral, e que, uma vez eleitos, os manda-
tários se dediquem a promover políticas públicas para me-
lhorar a qualidade de vida de quem os colocou no cargo. A
verdade é que em nada o advento da reeleição contribuiu
para aprimorar o sistema. O país precisa retomar esse de-
bate de forma séria e urgente. ƒ

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BRASIL GOVERNO

ANTÔNIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

ESCANTEADO Alexandre Padilha: o articulador político não


tem participado de importantes reuniões de negociação

UMA DUPLA
SOB PRESSÃO
Interesses políticos, intrigas de aliados e a
epidemia de dengue, que desgasta o governo,
fragilizam dois dos mais importantes ministros
do presidente Lula DANIEL PEREIRA

1|9
INÊS 249

ALOISIO MAURICIO/FOTOARENA

NEÓFITA Nísia Trindade: a ministra é alvo de uma intensa


campanha de fritura incentivada até por governistas

OS MINISTROS Alexandre Padilha (Relações Institucio-


nais) e Nísia Trindade (Saúde) têm, aos olhos da classe po-
lítica, uma relação de compadrio, já que ele foi um dos res-
ponsáveis pela indicação dela para uma das mais cobiça-
das pastas da Esplanada dos Ministérios. Essa parceria
tem sido testada desde o início do terceiro mandato presi-
dencial de Lula, período em que tanto o padrinho quanto a
afilhada vivem sob pressão do Centrão, que quer a demis-

2|9
INÊS 249

são de ambos. A ofensiva é permanente e tem como pano


de fundo o controle do caixa da Saúde, cujo orçamento
anual supera a casa de 230 bilhões de reais. No fim de fe-
vereiro, a própria equipe de Nísia Trindade deu munição
aos adversários políticos ao divulgar uma nota técnica so-
bre aborto legal. O texto estabelecia que não há limite tem-
poral para a interrupção da gravidez nos casos previstos
em lei e, na prática, anulava uma decisão da gestão de Jair
Bolsonaro que permitia o procedimento apenas até 21 se-
manas e seis dias de gestação. Como o tema é desgastante
para o governo, formou-se a confusão.
Nas redes sociais, bolsonaristas lançaram mão do caso
para fustigar o presidente, principalmente entre os evangé-
licos, segmento em que 62% desaprovam o trabalho de
Lula, segundo pesquisa Genial/Quaest. Houve reações
também no Congresso, que é de maioria conservadora. Pa-
ra tentar conter o desgaste, Padilha telefonou para Nísia e,
na conversa, combinaram de agir rapidamente. Assim foi
feito. O ministério suspendeu os efeitos da nota técnica,
alegando que não havia sido analisada por “todas as esfe-
ras necessárias” e pela consultoria jurídica da pasta. Em
conversas reservadas, integrantes do governo aventaram,
inclusive, a possibilidade de o texto ter sido vazado como
parte de uma conspiração destinada a provocar a queda da
ministra. Desde o ano passado, o principal interessado no
cargo é o Centrão, que até já escolheu um nome para assu-
mir o posto. Um dos líderes do grupo, o presidente da Câ-

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mara, Arthur Lira (PP-AL), aproveitou a deixa para dizer


que o tema aborto precisa ser debatido com a sociedade
antes de qualquer mudança em suas regras. Numa rede so-
cial, ele postou uma foto ao lado do primeiro-secretário da
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e capi-
talizou: “A nota técnica felizmente foi revogada hoje, após
o nosso encontro”.
Apesar de a flexibilização das normas sobre aborto legal
ser uma bandeira do PT, o governo Lula não quer saber des-
se assunto. Não apenas pela resistência apresentada por
evangélicos e setores do Congresso, mas porque a sua priori-
dade é a agenda econômica. A nota técnica poderia criar des-
gaste internamente para Nísia Trindade, que já é alvo de uma
intensa campanha de fritura. Em dezembro, por exemplo,
políticos do Centrão reclamaram de uma portaria do Minis-
tério da Saúde que, segundo eles, dificulta o repasse de ver-
bas indicadas por deputados e senadores. Em janeiro, reto-
maram a carga repercutindo a informação de que um filho
da ministra virou secretário da prefeitura de Cabo Frio (RJ)
depois de a pasta enviar 55 milhões de reais ao município.
Nísia negou qualquer vinculação entre um fato e outro e ain-
da defendeu o currículo do rebento. Em fevereiro, Arthur Li-
ra e líderes partidários assinaram um requerimento pedindo
esclarecimentos sobre os critérios utilizados pela Saúde na li-
beração de recursos apadrinhados por parlamentares.
Na época, o presidente da Câmara e deputados próxi-
mos a ele alegavam que o ministério estava privilegiando

4|9
INÊS 249

prefeituras comandadas pelo PT e aliados de esquerda ao


desembolsar as verbas. Citavam os casos de Diadema e
Araraquara, ambas chefiadas por antigos tesoureiros de
campanhas presidenciais de Lula. Acossada, Nísia resistiu
ao tranco, reuniu-se com líderes de partidos para prestar
esclarecimentos e tentou provar que os repasses da pasta
seguem critérios técnicos. Ela se manteve firme no cargo,
mas, numa coincidência típica daqueles enredos da políti-
ca brasiliense, demitiu um de seus principais secretários,
que era alvo de queixas de parlamentares. A epidemia de
dengue também tem sido usada para tentar desestabilizar
a ministra. Em março, o Brasil superou a marca de 1 mi-
lhão de casos prováveis da doença desde o início do ano,
cinco vezes mais do que no mesmo período de 2023. Fo-
ram registradas também mais de 200 mortes desde janei-
ro. “Ministra da dengue”, atacou o senador Ciro Nogueira
numa rede social. Chefe da Casa Civil de Bolsonaro, No-
gueira é correligionário de Lira no PP, partido que quer in-
dicar o eventual substituto de Nísia Trindade.
A preocupação com a saúde pública e a nobreza de pro-
pósitos não são propriamente os principais motores da
ofensiva do Centrão, que está de olho no orçamento e na
capilaridade do ministério. Para o grupo, Nísia atua sob a
mentoria de Padilha, que seria o responsável pelo descum-
primento de acordos e pela frustração de expectativas no
campo da liberação de emendas parlamentares. Contraria-
do com a atuação do ministro, Arthur Lira cortou o diálo-

5|9
INÊS 249

FACEBOOK @SIMONEMARQUETTO

ABORTO Lira e os representantes da CNBB: “Nota técnica


felizmente foi revogada hoje, após o nosso encontro”

go com Padilha, que é formalmente o articulador político


do governo, e elegeu como interlocutor o chefe da Casa Ci-
vil, Rui Costa, de quem já foi desafeto — tão desafeto que
sugeriu a Lula que o demitisse. Na abertura dos trabalhos
do Legislativo, Lira foi só deferência a Costa e ignorou Pa-
dilha, que, com bom humor, tangenciou a polêmica dizen-
do ser ministro de Relações Institucionais, e não de “rela-
ções interpessoais”. No ano passado, o Centrão tentou for-
çar a demissão de Padilha. Na época, Lira vivia a elogiar o
líder do governo na Câmara, o petista José Guimarães

6|9
INÊS 249

(CE), o que foi interpretado como uma sugestão de substi-


tuto em caso de troca no ministério.
Ciente das articulações, Padilha comentou com pessoas
próximas que Guimarães ficou tentado com a possibilida-
de de substituí-lo, mas que o sonho passou. Em público, o
ministro evita gestos que possam desagradar a Lira, mas
reservadamente dá a entender que o presidente da Câmara
sofre uma espécie de crise de abstinência orçamentária.
No governo Bolsonaro, o deputado fazia parte de um sele-
to grupo de parlamentares que mandava e desmandava na
hora de liberar emendas parlamentares. Como essa condi-
ção privilegiada lhe garantiu poder e influência inéditos,
Lira gostaria de continuar dando as cartas na gestão Lula,
sem ter de negociar com o presidente e com ministros o
desembolso de verbas públicas, principalmente aquelas
atreladas aos maiores ministérios, como o da Saúde. Como
isso não foi possível, o Centrão passou a fazer o que pode
para tomar o lugar de Nísia Trindade e derrubar Padilha.
É o que se diz no Palácio do Planalto, onde também corre
a versão segundo a qual, se o padrinho cair, a afilhada não
resistirá muito tempo no cargo (o inverso já preservaria
Padilha por mais tempo).
Na terça-feira 5, o presidente da Câmara se reuniu com
o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e líderes de
partidos para debater a proposta do governo de acabar
com um programa de estímulo ao setor de eventos. Escan-
teado, Padilha nem sequer participou do encontro. En-

7|9
INÊS 249

FABIO RODRIGUES-POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

DESCONTROLE Dengue: Brasil


superou a marca de 1 milhão de casos

quanto a reunião ocorria, ele se encontrou com senadores


para combinar como seria o compromisso que teriam, ho-
ras depois, com Lula. Bem-humorado, o ministro comen-
tou com assessores que, como o governo estava represen-
tado na reunião com Lira, ele ganhou tempo para avançar
nas tratativas com o Senado. O saldo, portanto, teria sido
positivo para ele e o Planalto. Enquanto Nísia é neófita em
Brasília, Padilha tem larga experiência nos jogos de poder
da capital. Em 2003, ele estava no gramado da Esplanada
dos Ministérios para acompanhar a primeira posse de Lula

8|9
INÊS 249

na Presidência, mas logo foi convocado para uma função


pública. No segundo mandato do petista, assumiu uma
subchefia na Secretaria de Relações Institucionais e, de-
pois, o próprio comando da pasta.
Em 2011, a convite da presidente Dilma Rousseff, as-
cendeu a ministro da Saúde, provocando a ira do MDB.
Contrariados, os emedebistas urdiram diferentes planos
para retomar o ministério, que só voltou para o partido em
2015, no segundo mandato de Dilma, quando a necessida-
de fez a então mandatária se entregar de vez ao Centrão
daquela ocasião. Como tem uma extensa ficha de serviços
prestados a governos do PT e uma boa relação com Lula,
Padilha não se sente ameaçado no cargo. Seus assessores
costumam dizer que o mandato de Lira como presidente
da Câmara terminará em fevereiro de 2025, enquanto o
ministro ficará no Planalto até 2026. A conferir. O prag-
matismo de Lula já sacrificou muitos companheiros no
passado — alguns deles bem mais estrelados do que Ale-
xandre Padilha e Nísia Trindade. ƒ

9|9
INÊS 249

RICARDO RANGEL

O GOLPE ACABOU.
TUDO VAI BEM?
Não. Muita coisa precisa ser melhorada — e rapidamente

EM 2022, quando já se sabia sobre Bolsonaro quase tudo de


ruim que há para saber, o então presidente teve 51 milhões
de votos e quase se reelegeu. No último dia 25 (depois do 8
de Janeiro!), Bolsonaro conseguiu reunir uma multidão na
Avenida Paulista. Não adianta descartar os bolsonaristas
como “fascistas” ou pontos fora da curva — eles são metade
da curva. Há algo de muito errado em uma democracia
quando metade da população quer botar no poder alguém
que quer destruí-la.
“Democracia ou serve para todos ou não serve para na-
da”, ensinou Herbert de Souza. Nossa democracia não serve
a todos. Era assim em junho de 2013, quando multidões insa-
tisfeitas encheram as ruas, é assim hoje. As Forças Armadas
são uma ameaça à democracia desde sempre, as redes sociais
são uma ameaça nova — é urgente reformar as primeiras e
regular as últimas. Mas isso está longe de ser o bastante.
No Congresso Nacional, os salários são altos; as verbas,
enormes; os privilégios, muitos. Mas nossos parlamentares
não debatem as grandes questões do momento e pouco fa-
zem para tornar o país melhor ou mais justo; muitos deles

1|3
INÊS 249

apenas cuidam de se reeleger. Passado o susto da Lava-Jato,


a corrupção avança.
O Judiciário custa uma fortuna, tem alta taxa de corrup-
ção e entrega uma Justiça que tarda e falha. O Supremo sal-
vou a democracia, é verdade, mas, no resto, continua como
antes: ativismo excessivo, decisões monocráticas autoritá-
rias ou estapafúrdias que jamais chegam ao plenário. Quan-
to aos ministros, alguns dão entrevistas sem parar, tomam
posições políticas, antecipam juízos; outros são empresários;
vários têm parentes representando junto à Corte; muitos dão
palestras que ninguém vê, recebendo ninguém sabe quanto.
Na investigação dos golpistas, os métodos do Supremo e da
Polícia Federal lembram os da Lava-Jato.
Passada a devastação dos anos Bolsonaro, o Executivo
melhorou muito, claro, mas está longe de ser bom. A educa-
ção, chave do desenvolvimento e da distribuição de renda, é
abaixo da crítica. O SUS não se sustenta. A segurança é o
que é. Lula não se interessa por nada disso, e seu plano de

“Metade do eleitorado
não vê grande atrativo
na democracia, e tem
lá seus motivos”
2|3
INÊS 249

governo parece ser permanecer no palanque, dar declara-


ções absurdas, comprar briga com todo mundo.
O Estado brasileiro cobra impostos de primeiro mundo,
entrega serviços de terceiro, atrapalha quem quer empreen-
der (algo obrigatório no século XXI) e é uma máquina de
transferência de renda de pobre para rico — até o governo
atual, que se diz de esquerda, cria subsídios para ricos e para
a classe média.
E, além da insatisfação “do bem” com a democracia, há a
insatisfação “do mal”. As minorias ganharam espaço na so-
ciedade e eliminaram-se muitos privilégios, mas quem os
perdeu — em todas as classes — está ressentido contra a de-
mocracia. Não é problema simples de resolver.
A próxima eleição é daqui a dois anos. Metade do eleito-
rado não vê grande atrativo na democracia, e tem lá seus
motivos. É preciso melhorar nossa democracia rápido. ƒ

3|3
INÊS 249

BRASIL ESTADOS

TEMPESTADE
PERFEITA
Com a pior avaliação entre os governadores,
Raquel Lyra enfrenta crise na segurança, não se
entende com os tucanos e acena a Lula para tentar
uma tábua de salvação VICTORIA BECHARA

EM CRISE Lyra: atritos com o PSDB geraram rumores


de mudança de partido

PEDRO LADEIRA/FOLHAPRESS

1|6
INÊS 249

CRIADA em uma família ligada à política pernambucana,


Raquel Lyra fez sua estreia eleitoral em 2010, quando foi
eleita deputada estadual. Obteve sua primeira vitória para
cargos do Executivo quando se elegeu prefeita de Caruaru
em 2016 (permaneceria à frente da cidade por mais um
mandato). Em 2022, com a bênção do pai, o ex-governador
João Lyra Neto, lançou-se na disputa pelo Executivo esta-
dual e enfrentou uma tragédia no dia da votação de primei-
ro turno: a perda do marido e pai de seus dois filhos, Fer-
nando Lucena. Em meio ao luto, ela seguiu em frente e ter-
minou batendo Marília Arraes (Solidariedade), outra políti-
ca de um clã tradicional e que tinha o peso do apoio de Lula.
Para quem foi festejada pela enorme demonstração de resi-
liência na campanha e pelo fato de ser a primeira mulher
eleita governadora na história de Pernambuco, as expectati-
vas sobre sua gestão eram altas. Até aqui, no entanto, estão
sendo todas frustradas.
Um retrato eloquente disso é uma pesquisa AtlasIntel de
janeiro na qual Raquel Lyra aparece como o chefe de Execu-
tivo estadual com a pior avaliação do país. Ela tenta colocar
a culpa na situação que herdou e até no machismo, mas até
agora não convenceu muita gente. O governo já começou de
forma conturbada, após um polêmico “exoneraço” de todos
os servidores comissionados da administração direta, de au-
tarquias e de órgãos da estrutura estadual. A previsível gri-
taria de associações e sindicatos acabou se sobrepondo à ra-
cionalidade da decisão. Desde então, os problemas se multi-

2|6
INÊS 249

CENÁRIO COMPLICADO
Os principais problemas enfrentados
pela gestão tucana no estado

CRISE NA SEGURANÇA
As mortes violentas em Pernambuco aumentaram 24,22%
em janeiro de 2024, em relação ao mesmo período de 2023.
A governadora também enfrentou greve dos policiais civis e
trocou o comando das forças de segurança

BASE FRÁGIL
O governo tem apenas 12 deputados na Assembleia
Legislativa e enfrenta dificuldades na articulação política

DIVERGÊNCIAS NO PSDB
Lyra se aproximou de Lula e defende a independência do
partido, mas líderes tucanos querem ser oposição ao governo

BAIXA APROVAÇÃO
49% dos eleitores desaprovam a gestão de Raquel Lyra.
Ela é a governadora com a pior avaliação no país,
segundo pesquisa AtlasIntel

3|6
INÊS 249

plicaram. Na segurança pública, o estado fechou o mês de


janeiro com 359 mortes violentas intencionais — resultado
recorde desde março de 2020. O entendimento dela com a
polícia é bem ruim. As forças de segurança cobram a gover-
nadora por mais diálogo e melhores condições de trabalho.
Em janeiro, a Polícia Civil fez uma paralisação de 24 horas
em protesto. O governo enfrenta ainda problemas sérios na
saúde, como falta de medicamentos e de insumos.
O partido de Raquel, o PSDB, mais atrapalha do que aju-
da, embora a lógica seria que a combalida legenda dedicasse
atenção especial a um dos três únicos estados governados
hoje pela agremiação. No campo político local, os tucanos
fornecem uma base muito frágil. Recentemente, ela perdeu a
batalha para suspender trechos da Lei Orçamentária Anual,
que haviam sido aprovados pelo Legislativo e vetados pelo
Executivo. Restou à governadora a alternativa de recorrer ao
STF para tentar virar o jogo, movimento que incendiou ain-
da mais sua problemática relação com os parlamentares.
Se não bastasse a ineficiência da bancada governista, vol-
ta e meia saem de lá disparos de “fogo amigo”. O episódio
mais constrangedor ocorreu logo na abertura dos trabalhos
do Legislativo, quando o presidente da Casa, Álvaro Porto
(PSDB), não percebeu que o microfone estava ligado e disse
a um interlocutor que a governadora “conversou m... demais
e não disse nada”. Porto, aliás, foi um dos trinta deputados
que votou a favor da derrubada dos vetos no Orçamento. Ele
também criticou nas redes a ausência de diálogo dos depu-

4|6
INÊS 249

REPRODUÇÃO

MOVIMENTO Segurança pública: policiais fizeram


paralisação em protesto

tados com Lyra, mas apagou a publicação. “Estamos tentan-


do contornar esse desgaste entre Executivo e Legislativo. A
relação ficou estremecida”, admite o deputado Izaías Régis
(PSDB), líder do governo na Assembleia.
Diante da situação, a governadora tomou uma atitude ar-
riscada, a de procurar ajuda no campo inimigo. De olho na
dependência de verbas federais para tentar dar uma guinada
na sua gestão, ela tem feito acenos ao presidente Lula nos úl-
timos meses e pediu a lideranças tucanas para que o PSDB
deixe de ser oposição ao governo e passe a ocupar uma posi-
ção de independência junto ao Palácio do Planalto. A suges-
tão foi rechaçada de imediato. “O partido sempre foi antago-

5|6
INÊS 249

nista do PT”, diz o presidente da legenda, Marconi Perillo,


mas acrescentando que ela tem “toda a liberdade” para fazer
alianças com o governo federal no campo administrativo.
Apesar das divergências, a tucana afirma que não deve dei-
xar o partido por enquanto. Nos bastidores, porém, ela tem
sido cortejada por outras legendas, como o PSD e o MDB.
A popularidade em baixa de Lyra contrasta com a do
prefeito de Recife, João Campos (PSB). Em sondagem recen-
te feita pelo Instituto Paraná Pesquisas, ele seria reeleito em
primeiro turno, com 64,6% dos votos. Sua gestão recebe
80% de aprovação entre os eleitores da capital, enquanto a
da governadora é reprovada por 58,4%. Assim, enquanto
Campos curte céu de brigadeiro, Raquel Lyra vive às voltas
com as agruras de enfrentar uma tempestade perfeita. ƒ

6|6
INÊS 249

BRASIL JUSTIÇA

O IMPOSTO
DA DISCÓRDIA
Isenção de cobrança de taxa de importação
para produtos de até 50 dólares entra agora na
pauta do Supremo, em meio à forte pressão da
indústria nacional VALMAR HUPSEL FILHO

COMÉRCIO Importação de produtos: volume de transações


explodiu após a pandemia

ISTOCK/GETTY IMAGES

1|5
INÊS 249

RENDEU uma pequena novela a tentativa de taxar produtos


importados de valores inferiores a 50 dólares (boa parte de-
les vindos da China) em compras de pessoas físicas. O enre-
do foi ao ar há quase um ano, quando o Ministério da Fazen-
da e a Receita Federal anunciaram a intenção de passar a co-
brar o imposto. Pouco tempo depois, o governo voltou atrás
no assunto. Aconselhado por pessoas próximas, incluindo a
primeira-dama Janja e o ministro da Comunicação Social
Paulo Pimenta, que apresentou uma pesquisa mostrando co-
mo o tema respingaria negativamente na popularidade do
presidente, Luiz Inácio da Silva recuou da medida.
Diante das idas e vindas do governo federal, entidades
empresariais do país vêm aumentando a pressão para que a
taxação volte a vigorar. A frente mais nova nessa batalha foi
aberta no começo deste ano no Supremo Tribunal Federal,
em processo que está nas mãos da ministra Cármen Lúcia.
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confedera-
ção Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC)
questionam a constitucionalidade da alíquota zero. As enti-
dades argumentam que, quando a medida entrou em vigor,
na década de 90, as compras pela internet quase não exis-
tiam. E que a realidade mudou com o desenvolvimento da
tecnologia, permitindo um volume gigantesco de transações
on-line, e atingiu seu auge durante a pandemia.
Os números disponíveis comprovam o aumento exponen-
cial. Segundo a CNI, com base em dados do Banco Central e
da Receita Federal, entre 2013 e 2022 as importações de pe-

2|5
INÊS 249

TON MOLINA/FOTOARENA

DECISÃO Lula e Janja: primeira-dama foi a favor


do retorno da alíquota zero

queno valor saltaram de 800 milhões de dólares para 13,1 bi-


lhões de dólares, passando de 0% para 4,4% de todas as im-
portações de bens. No ano passado, o volume foi de 10,1 bi-
lhões de dólares, ou 50,4 bilhões de reais. O número de re-
messas postais saltou de 70,5 milhões em 2018 para 176,3
milhões em 2022. Hoje são quase 500 000 remessas por dia
entrando no país sem pagar imposto. A estimativa é de uma
renúncia fiscal de cerca de 35 bilhões de reais por ano só com
o imposto de importação. Se for computado o ICMS, cobrado
no destino, a conta chega a 46,7 bilhões de reais. Além disso,
houve uma multiplicação de denúncias nos últimos anos a
respeito de empresas estrangeiras que aproveitavam a brecha
da isenção passando-se por pessoas físicas.
Na tentativa de achar uma solução, o governo federal lançou
em agosto passado o Remessa Conforme, que garante isenção

3|5
INÊS 249

O TAMANHO DO PREJUÍZO
As características do comércio e a estimativa de
perda de arrecadação com a chegada dos
produtos de fora

VOLUME ESTIMADO 50,4 BILHÕES


DAS TRANSAÇÕES DE REAIS
EM 2023

POTENCIAL DE
ARRECADAÇÃO
46,7 BILHÕES
TRIBUTÁRIA EM 2023 DE REAIS

PRINCIPAL
MG
MERCADO ES
SP
RJ

PRODUTOS MAIS VESTUÁRIO, BRINQUEDOS


COMERCIALIZADOS E ACESSÓRIOS PARA CASA

4|5
INÊS 249

do imposto de importação para compras de menos de 50 dóla-


res feitas por consumidores brasileiros em varejistas do exterior.
Como contrapartida, as empresas deveriam aderir ao programa
e recolher tributos estaduais. Segundo o Ministério do Desen-
volvimento, Indústria, Comércio e Serviços, a partir do Remessa
o governo passou a ter mais clareza sobre produtos e quantida-
des que entram no país por meio dessa modalidade. E agora, em
conjunto com técnicos da pasta da Fazenda, está fazendo um
mapeamento “para entender os impactos sobre os setores”, que
vai balizar as próximas ações. O discurso não satisfaz a indús-
tria nacional. “O desequilíbrio e a concorrência injusta perma-
necem”, afirma Jorge Gonçalves Filho, presidente do Instituto
de Desenvolvimento do Varejo (IDV).
Antes de a discussão ter chegado ao Supremo, algumas co-
missões temáticas no Congresso já tinham se debruçado sobre o
assunto. Como resultado disso, surgiram ao menos três projetos
de lei que propõem acabar com a isenção. Um dos falsos argu-
mentos usados a favor da manutenção do sistema atual é o de
que a isenção é para produtos que não encontram similares por
aqui. O mercado interno brasileiro chama ainda atenção para a
importação de produtos sem especificações e fora das normas
técnicas aplicadas no país, criadas para garantir segurança aos
consumidores. “Vamos esperar o quê? Uma criança morrer pa-
ra falar que não tem ninguém olhando isso?”, questiona Sergio
Zimerman, CEO da Petz, maior rede de pet shops do país. Por
qualquer ângulo que se olhe, é difícil mesmo encontrar justifica-
tiva para se manter esse tipo de isenção tributária. ƒ

5|5
INÊS 249

RADAR ECONÔMICO
VICTOR IRAJÁ

Com reportagem de Diego Gimenes


e Felipe Erlich
DIVULGAÇÃO

NOS TRILHOS Ferrovia Carajás, da Vale: acordo com o


Ministério dos Transportes

Sinal de luz Minas. Pessoas próximas à


Executivos da Vale tentam, negociação dizem que um
junto ao ministro dos acordo está próximo.
Transportes, Renan Filho,
um acordo para reduzir a Lista tríplice
cobrança de 25,7 bilhões de Cresce a competição pela
reais em outorgas pela re- presidência da Vale. Con-
novação das concessões das forme antecipado pelo Ra-
ferrovias Carajás e Vitória- dar Econômico, Sergio

1|3
INÊS 249

Rial, ex-presidente do com destaque para São Pau-


Santander, passou a ser lo e Cidade do Panamá
considerado para o posto.
Ele s e j u n t a a Wa lt e r Prevenidos
Schalka, de saída da Suza- Dois empresários que ha-
no, e Gustavo Pimenta, di- viam topado patrocinar o
retor financeiro da Vale, documentário sobre o go-
na seleção de um sucessor verno do ex-presidente Mi-
para Eduardo Bartolomeo, chel Temer desistiram da
o presidente atual. ideia. Motivo: ninguém
quer se indispor com o
Adeus, home office mandatário atual.
O nível de ocupação de es-
critórios de alto padrão na Petrodólares
América Latina quase tri- Em evento recente, fontes
plicou no segundo semes- do Ministério dos Investi-
tre de 2023 em relação ao mentos da Arábia Saudita
primeiro semestre. A área revelaram que a ideia é
alcançou 362 000 metros comprar um clube de fute-
quadrados, segundo levan- bol no Brasil. O objetivo
tamento da consultoria dos árabes é projetar seu
imobiliária Newmark. país, que receberá a Copa
do Mundo de 2034.
São Paulo é destaque
O crescimento impressiona. Bola cheia
A maioria das cidades apre- Os árabes estão interessa-
sentou avanço do indicador, dos apenas em times de São

2|3
INÊS 249

Paulo e do Rio de Janeiro, bilhões e 400 bilhões de


que, segundo eles, oferecem reais neste ano no Brasil.
maior visibilidade.
Alô, devedor!
Agora vai A queda dos juros e a me-
O Brasil deverá liderar a reto- lhora em alguns setores da
mada do mercado de fusões e economia estão gerando
aquisições de empresas entre condições para muitas em-
os países emergentes. Pelo presas acertarem suas dí-
menos é isso o que diz a con- vidas. Com esse cenário, a
sultoria Auddas, que prevê Averbach, a maior empre-
assessorar quinze mandatos sa de cobrança corporativa
de M&As em 2024. do Brasil, espera crescer
25% em 2024. ƒ
Perspectiva bilionária
De acordo com a Auddas, OFERECIMENTO
as fusões e aquisições deve-
rão movimentar entre 300

3|3
INÊS 249
INÊS 249

ECONOMIA CONJUNTURA

SINAL DE ALERTA
As baixas taxas de investimento, que atingiram
o pior nível desde 2019, limitam o crescimento
econômico e expõem a incapacidade do Brasil
para atrair recursos privados
LUANA ZANOBIA E PEDRO GIL
TON MOLINA/NURPHOTO/GETTY IMAGES

CADÊ O DINHEIRO? O ministro Haddad:


“Precisamos de investimentos para a economia rodar”

1|8
INÊS 249

C
omo diz o velho chavão, o Brasil é um país marca-
do por contradições. Enquanto o produto interno
bruto cresceu 2,9% em 2023, no embalo da força
do agronegócio, a taxa de investimento, que se des-
tina à ampliação da capacidade produtiva, recuou
para o número mais baixo desde 2019. O índice atual, de
16,5% do PIB, está aquém da média da maioria das econo-
mias emergentes e bem distante do nível recorde observado
nas décadas de 70 e 80 do século passado, quando era de
22%. Ou seja, regredimos no tempo. Taxas pífias de investi-
mentos condenam o país a crescimentos modestos, como
tem sido sua média, e impedem que melhorem os níveis de
produtividade, fator indispensável para qualquer nação
avançar. “Precisamos de investimentos para fazer a econo-
mia rodar”, disse o ministro da Fazenda, Fernando Haddad,
ao comentar os resultados do PIB. “No ano passado, a pro-
dução agrícola, o consumo das famílias, o consumo do go-
verno e as exportações puxaram a economia. Investimento
foi a variável que menos acompanhou essa evolução.”
No Brasil, o nível de poupança é baixo e a taxa básica
de juros elevada, o que acaba desestimulando investimen-
tos de boa qualidade, provenientes principalmente da ini-
ciativa privada. Além disso, o Estado tem papel preponde-
rante na injeção de recursos na economia, e isso está longe
de ser o ideal. “Enquanto não melhorarmos todas essas
frentes, seguiremos com uma taxa de investimento muito
pequena”, diz Felipe Salto, economista-chefe da corretora

2|8
INÊS 249

Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda e Plane-


jamento de São Paulo.
Diversas razões explicam os baixos níveis de investimen-
tos no Brasil. “A instabilidade política, econômica e até mes-
mo jurídica acaba afugentando empresários e investidores”,
afirma Claudio Frischtak, economista e sócio da consultoria
Inter.B. Some-se a isso o nível irrisório do chamado estoque
de capital, conjunto de ativos acumulados por uma econo-
mia — como máquinas, equipamentos e construção —, e o
que se vê é um quadro alarmante. Em 2024, a previsão do
governo é de que esse estoque corresponda a 35,5% do PIB,

QUEDA SEM VOLTA


A taxa de investimento no Brasil cai desde o final
do século passado (% em relação ao PIB)

25
22

20
17

12

10
50

60

3
-2
-1
-7

-8

-9

-0

-1
-

11
01
61

20
71
41

81
51

91

20
20
19

19
19

19
19

19

20

Fonte: FGV

3|8
INÊS 249

enquanto o nível que refletiria um país dotado de uma in-


fraestrutura razoavelmente suficiente deveria ser de ao me-
nos 60% do PIB. O mais perto desse padrão das economias
desenvolvidas que o Brasil chegou foi no início dos anos
1980, quando o indicador registrou 54% do PIB. No Japão, o
estoque de capital é de impressionantes 179% do PIB. Na
China, 76%. Na Alemanha, 71%.
O caminho mais curto para acelerar os níveis de inves-
timentos passa pelo aperfeiçoamento do ambiente de ne-
gócios. Nesse aspecto, as reformas que foram aprovadas —
YASUYOSHI CHIBA/AFP

HORA DA COLHEITA
Tratores em ação:
agronegócio puxou o PIB

4|8
INÊS 249

trabalhista, previdenciária e, mais recentemente, tributária


— apontam para uma evolução. De fato, elas chegaram a
surtir algum efeito recentemente. A taxa de investimento
chegou a 19% do PIB no final de 2021, quando as novas
regras trabalhistas e previdenciárias já estavam em vigor.
No entanto, os efeitos adversos da pandemia, como infla-
ção alta e a consequente elevação da Selic, a taxa básica de
juros da economia, frearam os avanços, culminando no ín-
dice fraco de 2023. O investimento direto estrangeiro, que
compila aportes vindos do exterior para gerar produção no
país, somou 74,6 bilhões de dólares no ano passado, com
queda de 17% ante 2022.
Há expectativa de que os investimentos voltem a subir
nos próximos anos, em resposta às reformas que foram
aprovadas. “Projetamos um crescimento de aproximada-
mente 2% para a taxa de investimento em 2024, com uma
expectativa de maior impulso a partir de 2025”, diz Ales-
sandra Ribeiro, diretora de macroeconomia da Tendências
Consultoria. A casa estima que os investimentos chegarão a
20% do PIB até 2032 — um avanço considerável, mas ainda
distante das reais necessidades brasileiras. A última vez que
o Brasil atingiu esse patamar foi em 2010, em um contexto
econômico inflado por práticas que envolviam forte finan-
ciamento público, muitas vezes às custas do Tesouro.
Há, portanto, longo caminho a ser trilhado até que o Bra-
sil aproxime seus indicadores dos níveis encontrados entre
as nações mais dinâmicas. Países como Índia e Indonésia

5|8
INÊS 249

O RETRATO DO ATRASO
O Brasil possui uma das menores taxas de investimento
entre economias emergentes (% do PIB, em 2023)

43

30 30
25
22 22
17 16

IL
A

IA

L
IA

E
A

SU
DI

IL
IN

S
IC
S

SS

A
CH

ÍN
CH

ÉX

DO

R

DO

B
M

A
IN

R IC

Fonte: CEIC Data


ÁF

têm taxas de investimento anual de 30% do PIB. A China,


mais de 40%. “É fundamental que o investimento cresça,
mas sob preceitos corretos”, diz Claudio Considera, coorde-
nador de Contas Nacionais da Fundação Getulio Vargas.
O governo Lula, historicamente adepto do aumento dos gas-
tos públicos, mira agora uma agenda de reindustrialização.
“Nós precisamos levantar a taxa de investimento e, assim,
melhorar a produtividade”, disse a VEJA Geraldo Alckmin,

6|8
INÊS 249

RICARDO FUNARI/BRAZIL PHOTOS/GETTY IMAGES

NEGÓCIOS AQUECIDOS
Siderúrgica: governo quer conceder
linhas de crédito para a indústria investir

vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimen-


to, Indústria, Comércio e Serviços.
Alckmin aponta diversas frentes de atuação para in-
crementar o investimento. A primeira delas é o programa
de depreciação “superacelerada”, que visa estimular a re-
novação do parque fabril, dando prioridade à indústria de
transformação. Em sua fase inicial, o incentivo contará
com 3,4 bilhões de reais em 2024 e 2025. Além disso, há
também um projeto de lei que prevê a criação da letra de
crédito de desenvolvimento (LCD), para baratear o acesso
a linhas de financiamento do BNDES. A última das medi-
das, ao menos por enquanto, é o programa Mover, que
oferece 19 bilhões de reais em incentivos fiscais ao setor
automotivo até 2028.
O programa já animou as montadoras. Na semana passa-
da, a japonesa Toyota e a ítalo-franco-americana Stellantis
anunciaram novos ciclos de investimentos no país, juntan-

7|8
INÊS 249

EM OBRAS
Os setores que mais recebem investimentos
(em relação ao total)

17% 45%
OUTROS CONSTRUÇÃO

38%
MÁQUINAS E
EQUIPAMENTOS
Fonte: IBGE

do-se à sul-coreana Hyundai, à alemã Volkswagen, à ameri-


cana GM e à chinesa BYD, que também prometem aportes
bilionários. A expectativa é de que o setor invista 100 bi-
lhões de reais por aqui até 2032. São exemplos pontuais que
não expressam o quadro completo. Os níveis de investimen-
tos permanecem baixos para uma nação com tantas defi-
ciências como o Brasil. Enquanto isso não mudar, o país se-
guirá crescendo aquém do que precisa. ƒ

8|8
INÊS 249

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

QUANTO PODEMOS
CRESCER?
Produtividade não é tudo, mas quase tudo

O CRESCIMENTO em 2023 atingiu quase 3%, pratica-


mente o mesmo resultado de 2022, em ambos os casos bem
acima das projeções que haviam sido feitas no começo de
cada ano (inclusive as minhas, confesso). O desempenho po-
sitivo nestes anos levou alguns analistas a sugerirem que a
capacidade de expansão do país (o dito crescimento poten-
cial) teria se elevado, talvez em resposta ao conjunto de re-
formas (trabalhista, previdenciária, gás, saneamento etc.)
aprovadas desde 2016, cujos frutos agora se materializa-
riam. Não é minha opinião, por mais que acredite que tais
iniciativas foram positivas.
Para entender isso, precisamos dar um passo atrás e ex-
plorar o significado do crescimento potencial. Trata-se do
ritmo que pode ser mantido indefinidamente sem causar de-
sequilíbrios que levem a uma taxa de inflação mais alta, ou
ao aumento insustentável das importações relativamente às
exportações (ou uma combinação de ambos). Simplificando,
é o ritmo que não leva à redução persistente da taxa de de-
semprego. Não que haja algo errado com toda e qualquer di-

1|3
INÊS 249

minuição do desemprego, muito pelo contrário. Em situa-


ções nas quais o desemprego seja muito elevado (como no
Brasil saindo da pandemia), é natural e desejável que a eco-
nomia cresça além do seu potencial, aproveitando para
reempregar a mão de obra ociosa.
Isso dito, quando a economia se aproxima do pleno em-
prego, tal ritmo começa a ficar insustentável. Há dez anos,
por exemplo, tal fenômeno levou à aceleração da inflação e
a um enorme déficit externo, na casa de 100 bilhões de dóla-
res em 2014.
Nos últimos anos, a taxa de desemprego caiu a quase me-
tade do nível atingido durante a pandemia, ou seja, cresce-
mos mais rápido do que o potencial nos aproveitando da
enorme ociosidade da mão de obra. Essa ociosidade permi-
tiu crescimento com inflação em queda modesta e contas
externas na ponta dos cascos, mas agora parece estar perto

“A produtividade cresceu
0,2% em 2023.
Descontado o setor
agrícola, estamos mal,
pelo baixo investimento”
2|3
INÊS 249

do fim. Daqui para a frente o crescimento terá de se alinhar


ao potencial, que pelas indicações acima é menor que 3% ao
ano. Segundo minhas estimativas, algo entre 1,5% a 2,0%
ao ano, provavelmente mais perto do limite inferior.
O que explica o baixo crescimento potencial? Funda-
mentalmente, o fraco desempenho da produtividade. Nos
últimos dez anos, o PIB por trabalhador caiu ao ritmo de
0,2% ao ano (o PIB cresceu 0,7% ao ano, o emprego 0,9%
ao ano), o que já é bastante ruim. Todavia, no caso da agri-
cultura, a produtividade cresceu 5,7% ao ano, enquanto o
restante da economia registrou queda de 0,7% ao ano. Mes-
mo em 2023, descontada a agricultura, a produtividade
cresceu mísero 0,2%.
Em suma, exceto pelo setor agrícola, estamos mal, re-
fletindo o baixo investimento, as deficiências na formação
da mão de obra e um ambiente institucional que não incen-
tiva a inovação.
Com disse Paul Krugman, “produtividade não é tudo,
mas a longo prazo é quase tudo”. Não é a visão, porém, que
norteia a política econômica atual, que insiste na expansão
do gasto público como chave para o crescimento, repetindo
os erros da Nova Matriz Econômica.
Colheremos consequências similares. ƒ

3|3
INÊS 249

ECONOMIA INVESTIMENTOS

A FESTA DAS BOLSAS


Alguns dos principais índices acionários do mundo
quebram recordes no embalo da valorização das
empresas de tecnologia. A questão é até quando
o fenômeno vai durar TÁSSIA KASTNER

MERCADO ANIMADO Pregão em Nova York: lucros


corporativos estão em franca expansão

MICHAEL M. SANTIAGO/GETTY IMAGES

1|6
INÊS 249

NO MERCADO financeiro, diz-se que as bolsas estão


em bull market sempre que há uma subida superior a
20% desde a menor cotação recente. A explicação é a de
que o touro ataca de baixo para cima, movimento que
emula a direção dos gráficos de ações em alta. No dia 1º
de março, quando o S&P 500, índice que reúne as 500
maiores empresas listadas na bolsa de Nova York, bateu
recorde, sua valorização desde o ponto mais baixo era de
44% — um típico bull market, portanto. Apenas em
2024, até a quarta-feira 6, o avanço foi de 7%. O fenôme-
no se espalha pelo globo: o pan-europeu Euro Stoxx, o
alemão Dax e o japonês Nikkei 225 são exemplos de índi-
ces que alcançaram sua máxima histórica nas bolsas nas
últimas semanas.
O que explica o movimento? Nos Estados Unidos, a dis-
parada foi atribuída às “Sete Magníficas”, apelido dado a
Nvidia, Amazon, Alphabet (dona do Google), Microsoft,
Tesla, Meta (ex-Facebook) e Apple. Embora a empresa da
maçã esteja atravessando uma fase ruim, todas elas supe-
ram a marca de 1 trilhão de dólares em valor de mercado —
a Microsoft ocupa o topo do ranking, avaliada em cerca de 3
trilhões de dólares. Ninguém tem brilhado mais, contudo,
do que a Nvidia. O valor das ações da empresa subiu 659%
desde a mínima de 2022. Só neste começo de ano, os papéis
se valorizaram 71%, tudo porque a fabricante de processa-
dores foi aclamada como a grande vitoriosa da corrida pela
inteligência artificial.

2|6
INÊS 249

TOMOHIRO OHSUMI/GETTY IMAGES

MIGRAÇÃO Gráficos da bolsa de Tóquio: muito dinheiro da


China foi para lá

Como não poderia deixar de ser, o avanço tem sido


acompanhado pelo temor de uma crise nos mesmos moldes
da chamada “bolha da internet”, um fenômeno dos primei-
ros anos da década de 2000. Na ocasião, as ações das em-
presas “ponto com” valorizaram-se em ritmo alucinante,
mas depois os investidores descobriram que a ascensão era
artificial. Algumas companhias que nasceram no embalo da
internet faliram e seus acionistas perderam dinheiro.
Há o risco de algo parecido ocorrer novamente? Para
William Castro Alves, estrategista-chefe da corretora Ave-
nue, duas diferenças separam os anos 2000 de hoje. A pri-

3|6
INÊS 249

ZZ/DENNIS VAN TINE/STAR MAX/IPX/AP/IMAGEPLUS

FARO Buffett: megainvestidor antecipou alta das ações


negociadas no Japão

meira é que o salto atual das ações está ancorado na solidez


da economia americana, que continua crescendo a uma taxa
de 3% ao ano. O executivo também ressalta que as compa-
nhias que impulsionam as bolsas não são promessas, mas
negócios bem estabelecidos e com resultados concretos a
apresentar. “Os lucros das empresas cresceram e isso gera
dinheiro novo que está alimentando o mercado”, diz Alves.
Há outras explicações para a animação. Na visão do
Bank of America, a subida das bolsas se deve à migração
de dinheiro dos títulos públicos americanos para ações, em
uma antecipação ao inevitável corte de juros. Além disso,

4|6
INÊS 249

NAS ALTURAS
Os índices que estão na sua máxima histórica

VALORIZAÇÃO PARA QUANTO TEMPO PARA


ÍNDICE ATINGIR A MÁXIMA* BATER O RECORDE ANTERIOR

Nikkei 225 (Japão) 466% 35 anos


Nasdaq (EUA) 59% 2,4 anos

S&P 500 (EUA) 44% 2 anos


Dax (Alemanha) 21% 8 meses

* Dados até 1º de março Fonte: Yahoo Finance

investidores têm transferido recursos de países emergentes


para mercados desenvolvidos — o que explica as altas na
Alemanha e no Japão. As bolsas chinesas e de Hong Kong
perderam juntas 7 trilhões de dólares em valor de mercado
desde 2021, um reflexo da desaceleração da economia da
China, que deve crescer 4,5% neste ano, segundo o FMI. O
dinheiro escoou e pode ter ajudado a inflar as ações em
Tóquio para um recorde não alcançado desde 1989. Quem
puxou a fila foi o americano Warren Buffett, mais célebre
investidor do mundo, que disse ter voltado a apostar no
mercado japonês em 2019.

5|6
INÊS 249

Resta saber quanto tempo a exuberância dos mercados


deverá durar. Para analistas, não muito. Fatores como a
guerra comercial Estados Unidos-China, a agenda protecio-
nista de alguns países e até o esgotamento das inovações
trazidas pela inteligência artificial provavelmente reduzirão
o ímpeto das ações — ou seja, a era de ouro pode estar perto
do fim. No Brasil, o cenário é bem diferente. O Ibovespa, o
principal índice da bolsa brasileira, segue empacado em
2024. Para se ter ideia, os investidores estrangeiros retira-
ram 18 bilhões de reais da B3 neste ano. Para a corretora
XP, a letargia será revertida em breve, especialmente porque
a queda da Selic, a taxa básica de juros da economia, vai
atrair dinheiro ao mercado brasileiro. Se no exterior teme-se
o momento em que o touro vai sumir, por aqui a expectativa
é de quando ele vai aparecer. ƒ

6|6
INÊS 249

INTERNACIONAL ISRAEL

REPRODUÇCÃO

TRAGÉDIA Feridos na corrida para conseguir comida em Gaza:


milhares à míngua em terra sem ordem nem lei

GRITO SURDO
PELA PAZ
Massacre de palestinos em busca de comida e
indefinição sobre reféns fazem aumentar a temperatura
dos protestos contra Netanyahu em Israel
ERNESTO NEVES

1|5
INÊS 249

Q
uando a guerra de Israel na Faixa de Gaza tomou o
caminho do sul, perseguindo a liderança do Ha-
mas, o que ficou para trás foi uma terra arrasada,
sem lei e sem ordem, espalhada em torno de Gaza
City, a maior cidade do território, em boa parte
destruída por bombas. Lá, cerca de 300 000 pessoas vivem
à míngua, sem nenhum tipo de serviço público — a ponto de
as forças israelenses, as mesmas que despejaram mísseis so-
bre a região, terem agora que escoltar os raros comboios que
levam comida à população. Na quinta-feira 29, uma fila de
trinta caminhões carregados de alimentos se viu cercada
pela multidão faminta, dando início a um violento tumulto
que, segundo o Ministério da Saúde de Gaza, órgão rema-
nescente da administração do Hamas, deixou um saldo de
117 mortos e 760 feridos. Israel atribuiu a tragédia à correria
e a atropelamentos, mas em dado momento as tropas abri-
ram fogo — vídeos transmitidos pela TV Al Jazeera, do Ca-
tar, trazem sons dos tiros e imagens de baleados.
As cenas de desespero expuseram duas realidades tão dra-
máticas quanto incontornáveis criadas pela caçada israelense
aos terroristas: as levas de civis, entre eles mulheres e crianças,
sem abrigo, sem energia, sem água e sem alimentos, inclusive
nas áreas onde os combates já acabaram, e a ausência de um
plano concreto do governo de Israel para o pós-guerra no ter-
ritório. O “massacre da farinha”, como está sendo chamado,
desatou rajadas de críticas contra o primeiro-ministro de Is-
rael, Benjamin Netanyahu, e seu gabinete de guerra. “Peço a

2|5
INÊS 249

MARCUS YAM/LOS ANGELES TIMES/GETTY IMAGES


NAS RUAS Manifestantes em Tel Aviv: pedido de
antecipação das eleições

verdade, justiça e respeito ao direito internacional”, disse o pre-


sidente da França, Emmanuel Macron, ao cobrar investigação
independente. O americano Joe Biden lamentou o efeito da tra-
gédia sobre as negociações em andamento para uma trégua de
quarenta dias, em troca da libertação de parte dos cerca de
100 reféns ainda em poder dos terroristas após os bárbaros
atentados cometidos em Israel em outubro — o estopim para a
guerra atual. Lula seguiu falando de genocídio.
Netanyahu vetou o envio de sua delegação de negociadores
ao Cairo, no Egito, onde deveriam se reunir com diplomatas e
representantes do Hamas, alegando que o grupo palestino até
agora não produziu a lista de nomes de reféns em seu poder
(entre eles o brasileiro Michel Nisembaum), vivos e mortos, e
daqueles que planeja devolver em troca da libertação de presos

3|5
INÊS 249

em Israel. Segundo Biden, o cessar-fogo está “nas mãos do Ha-


mas”, que, por sua vez, se diz aberto a negociações, enquanto
se estreita o prazo inicial de um acordo antes do feriado reli-
gioso do Ramadã, que começa em 10 de março.
A indefinição sobre o “dia seguinte” afeta a atuação do gabi-
nete de guerra montado por Netanyahu. À revelia do primeiro-
ministro, Benny Gantz, a voz da oposição no gabinete, viajou a
Washington para um encontro com a vice-presidente Kamala
Harris no qual ela insistiu em um plano humanitário “viável”
para a Faixa de Gaza — dias antes, na mais contundente crítica
da cúpula da Casa Branca a Israel, Harris havia qualificado de
“desumanas” as condições no território. A pressão sobre o gabi-
nete de Netanyahu também se faz sentir nas ruas: uma marcha
de quatro dias de parentes dos sequestrados encerrou-se em
frente ao Parlamento, em Jerusalém, pedindo maior empenho
do governo em sua libertação, enquanto em Tel Aviv milhares
se manifestavam por eleições antecipadas. Netanyahu insiste na
premissa de que só é possível acabar com o Hamas e liberar os
reféns por via militar. “A insatisfação da sociedade é crescente e
cada dia mais evidente”, diz Reuven Hazan, professor de ciên-
cia política da Universidade Hebraica de Jerusalém.
Nos Estados Unidos, as primárias que praticamente de-
finiram Donald Trump e Biden como postulantes à Casa
Branca na eleição de novembro sentem o impacto do con-
flito no Oriente Médio. Em Michigan, estado com forte pre-
sença de imigrantes árabes, cerca de 100 000 eleitores de-
mocratas deixaram de votar em Biden (escolheram a opção

4|5
INÊS 249

X @VP
DESAFIO Gantz e Harris: encontro mostra desacordo
no gabinete de guerra

“sem candidato”) para expressar seu descontentamento


com o apoio a Israel, protesto que cooptou 19% dos votan-
tes em Minnesota na “Superterça”. “É uma mensagem clara
e contundente”, afirma Layla Elabed, uma das líderes do
movimento. De acordo com o Center for Economic and Po-
licy Research, de Washington, 52% dos americanos que-
rem que os EUA interrompam a ajuda militar a Israel até
que a guerra seja encerrada. Imprensado contra a parede,
no fogo cruzado entre a pressão internacional, os inconfor-
mados parentes dos reféns e a insanidade dos ultradireitis-
tas que sustentam sua coalizão de governo, Netanyahu em-
purra enquanto pode a elaboração de propostas concretas
para o pós-guerra. Resta ver quanto tempo conseguirá re-
sistir na sua estratégia belicista. ƒ

5|5
INÊS 249

INTERNACIONAL REALEZA

QUE DOENÇA É ESSA?


O sumiço da princesa Kate, que se recupera de
um misterioso problema de saúde, desencadeou
uma torrente inesgotável de boatos e suposições
sem pé nem cabeça
KARWAI TANG/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

MISTÉRIO Kate e família em dezembro: ela não é vista há


mais de dois meses

1|4
INÊS 249

O.K., FIGURAS públicas têm direito a uma certa dose


de privacidade, inclusive em assuntos relativos à saúde.
Mas a enxurrada de boatos e teorias estapafúrdias de-
correntes das vagas informações prestadas pelo Palácio
de Buckingham sobre o estado atual de Catherine, a
princesa de Gales, pode estar abrindo frestas na históri-
ca regra não escrita de fazer mistério sobre as doenças
da família real. Prova disso seria — e aí entra em ação,
de novo, a central de boataria — o suposto flagrante de
Kate, obtido de longe por um paparazzo, em um carro
dirigido pela mãe, Carole Middleton, dentro dos muros
do Castelo de Windsor, onde ela mora. A foto roubada
da princesa, séria e de óculos escuros, não foi publicada
por nenhum tabloide, em respeito ao desejo dela de se re-
cuperar em paz. Mas, claro, circulou nas redes sociais do
reino, comprovando o básico: que Kate não está à beira
da morte (e, claro, que as redes sociais têm menos princí-
pios éticos do que os tabloides ingleses).
Outra “prova” da recuperação da princesa seria o
anúncio pelo Ministério da Defesa de sua presença, in-
clusive com venda de ingressos, no desfile Trooping the
Colour do dia 8 de junho, quando o regimento do qual é
comandante vai se apresentar. O palácio não confirmou
seu comparecimento — e só ele tem essa prerrogativa.
Mas o simples comunicado levantou o ânimo dos súdi-
tos, preocupados com a falta de notícias sobre a segun-
da figura mais popular entre os royals, superada apenas

2|4
INÊS 249

pelo marido, William. Motivos de inquietação não fal-


tam, e as míseras afirmações de Buckingham de que
Kate “está bem” não ajudam.
O último compromisso público da princesa foi no Na-
tal de 2023. Em 17 de janeiro, o palácio informou que
ela havia se internado em uma clínica londrina para
uma “cirurgia abdominal” programada, permaneceria
hospitalizada por duas semanas e só retomaria compro-
missos públicos “depois da Páscoa”. Única dica: não se
tratava de problema “canceroso”. Ela entrou e saiu da
clínica sem ninguém ver. No mesmo dia, o mesmo palá-
cio comunicou que o rei Charles se submeteria a um
procedimento na mesma clínica para tratar da próstata
aumentada, e durante a intervenção constatou-se a exis-
tência de “um tipo de câncer” (não especificado) do qual
ele está “em tratamento” (não definido). A espiral de
conjecturas negativas se intensificou no fim de feverei-
ro, quando William avisou em cima da hora que não
compareceria a um compromisso importante por “ques-
tões pessoais”. A partir daí, a fábrica de rumores entrou
em ritmo de superprodução.
No campo das fantasias médicas, há quem diga que
Kate doou um rim a Charles. Ou que teria se submetido
a uma aplicação de gordura para aumentar e firmar o
bumbum (o tempo de recuperação bate). Outra turma
de imaginação fértil acha que nem internada ela foi e o
sumiço se deve a uma crise no casamento — ou William

3|4
INÊS 249

quis se separar e Kate teve uma crise nervosa ou ela


descobriu uma traição e estaria exigindo o divórcio. “A
verdade inescapável é que, no caso improvável de o ca-
samento se tornar problemático, todo o castelo de car-
tas de Windsor poderá desmoronar”, escreveu a jorna-
lista Tina Brown no livro The Palace Papers. Na verten-
te das suposições bem-humoradas, uma levanta a hipó-
tese de que a princesa é a verdadeira identidade de
Banksy, o artista misterioso, que não pintou nenhum
grafite nesse tempo todo.
Ao contrário da nora sumida, o rei tem se deixado
fotografar em uma ou outra ocasião, embora esteja au-
sente dos compromissos públicos. Sobrou para Camilla,
que na licença do marido entrou em uma roda-viva de
aparições — e que por isso mesmo resolveu tirar agora
uma semana “para ficar com a família”, novo motivo de
susto para os súditos aflitos. Ela e William têm presen-
ça confirmada nas cerimônias do Dia do Common-
wealth, em 11 de março. Até lá, as atenções do público
carente de notícias estarão voltadas para possíveis in-
confidências de Gary Goldsmith, tio de Kate, que acaba
de entrar para a mais recente temporada do Celebrity
Big Brother. Quem viver verá. ƒ

Amanda Péchy

4|4
INÊS 249

GENTE
VALMIR MORATELLI

LOURA, SIM, E DAÍ?


Por duas décadas, DANIEL-
LE WINITS, 50 anos, deu vi-
da a personagens que se en-
quadravam no preconceituo-
so estereótipo da beldade de
cérebro pouco iluminado. Pois
foi recentemente, no cinema,
que a atriz conseguiu se desa-
trelar do gênero de papel ao
qual estava fadada. Na pelícu-
la Os Farofeiros 2, ela agora
interpreta uma chefe implacá-
vel que cobra resultado. “Pre-
ciso até hoje ser forte e lutar
contra esse rótulo de loura
burra que me impõem”, desa-
bafa Danielle, que é dada a ex-
por nas redes a labuta como
mãe do caçula Guy, 12 anos,
do casamento desfeito com o
ator Jonatas Faro, que cria
praticamente sozinha. “A situ-
ação me traz alguma dor, mas
agora encaro o assunto de
forma mais clara”, diz, madura.
DIVULGAÇÃO

1|5
INÊS 249

AÇÃO ENTRE AMIGOS


Sem que o diretor Guel Arraes percebesse a travessura, MA-
THEUS NACHTERGAELE, 56 anos, vazou cenas do aguardado
remake de O Auto da Compadecida para a amiga Fernanda Monte-
negro, 94, que andava curiosa para assistir à remontagem do filme
do qual participou na primeira versão, de 2000. “Ela me perguntava
como estava ficando, e aí eu decidi mostrar uma ceninha, com aces-
so a uma única visualização, para ninguém mais poder ver”, entrega
o ator, que se sentiu tocado com a entusiasmada reação de Fernan-
da. Após uma década longe dos folhetins, Matheus também está na
trama global Renascer e conta que sua rotina agora é outra. “A res-
saca fez parte do meu trabalho durante anos, fiz lindos trabalhos
assim”, confidencia ele, que deixou o álcool de lado. Que bom.

JACKSON ROMANELLI/UNIVERSO PRODUÇÃO

2|5
INÊS 249

REPRODUÇÃO

MENINO DO RIO
Depois de ser clicado de cueca samba-canção na varanda de um ho-
tel em Ipanema, no Rio, JOHN TRAVOLTA, 70 anos, engatou em um
circuito ao estilo carioca da gema. Primeiro foi ao Blue Note, onde as-
sistiu ao show de Rodrigo Suricato, vocalista do Barão Vermelho, e
emendou com uma caminhada por uma tradicional rota do Centro.
Quem esbarrava com ele, bem à vontade, não acreditava se tratar do
astro de Pulp Fiction. Já eram altas horas da madrugada quando Tra-
volta, acomodado em uma cadeirinha na boate Rio Scenarium, não re-
sistiu à batida do samba e se infiltrou na pista, embalado por um drin-
que à base de cachaça envelhecida. “Ele é simpático, não se negou a
tirar fotos, e ainda tem bom ritmo”, elogiou Charles Barreto, o produtor
cultural da casa.

3|5
INÊS 249

DIVULGAÇÃO/HBO

TEMPERATURA MÁXIMA
No papel de uma chanceler de pendor ditatorial num país europeu
fictício, na elogiada série O Regime, do Max, KATE WINSLET, 48
anos, relatou uma constrangedora situação que viveu no set. Grava-
va a toda uma sequência de sexo em que sua personagem ficava
com o guarda-costas quando dois integrantes da equipe precisaram
ser expulsos do local pelos risos fora de hora — entre eles, o próprio
diretor de fotografia da produção. “Isso foi um grande problema para
mim”, admitiu a britânica ao Daily Mail, revelando que as esquisitices
não pararam por aí. Quanto mais suava no abafado estúdio, seu par-
ceiro de cena, o ator Matthias Schoenaerts, cheio de tatuagens fal-
sas como parte de sua caracterização, via os desenhos borrarem e
a tinta respingar. “Era como se eu tivesse um jornal impresso no meu
corpo”, lembra Kate. E olha que o filme nem era de terror.

4|5
INÊS 249

FRIO, QUE NADA


Agitadora da bandeira
contra a exploração do
corpo negro e o racismo
nas passarelas, a modelo
porto-riquenha JOAN
SMALLS, 35 anos, uma
das mais requisitadas no
circuito atual, chamou
atenção ao alojar-se na
primeira fila do desfile da
grife Balenciaga, na Paris
Fashion Week. Seu nada
STEPHANE CARDINALE/CORBIS/GETTY IMAGES

discreto look, um terno


uns dois tamanhos acima
que deixava os seios à
mostra, deu o que falar
nas redes — e não foi pela
escassez de tecido diante
dos gélidos termômetros parisienses. Os disparos miravam sua pos-
tura, tachada de contraditória, já que Joan não cansa de se insurgir
contra “uma indústria que lucra ao expor nossas silhuetas pretas e
marrons”. A top model, que teria levado uma fortuna pela aparição,
tentou esclarecer seu ponto, filosófica: “Gostei de estar em um desfi-
le que varia entre o contraditório e a crítica ao sistema”. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL COMPORTAMENTO

TORMENTO
QUE NÃO ACABA
A internet sempre foi território fértil para o abuso
sexual infantil, crime que deixa marcas duradouras.
Agora, com o avanço da inteligência artificial, o
fenômeno ganha nova escala
AMANDA PÉCHY

O HORROR Crianças na mira: muitas silenciam

OCUSFOCUS/ISTOCK/GETTY IMAGES

1 | 10
INÊS 249

O
ingresso da inteligência artificial (IA) nos vários
escaninhos da vida vem chacoalhando conheci-
dos pilares sobre os quais se finca a sociedade
moderna. Se bem empregada, essa revolucioná-
ria ferramenta tem o potencial de abrir trilhas
para a aquisição de saber e elevar a produtividade, alian-
do-se à insubstituível inventividade humana. O problema
é que ela pode ser — e já está sendo — aplicada por gente
mal-intencionada para fins ilegais e altamente nocivos.
Um recente relatório da WeProtect Global Alliance, que
reúne instituições da União Europeia e dos Estados Uni-
dos para monitorar e combater crimes cibernéticos, acaba
de acender um sinal amarelo nesse tão delicado terreno: a
IA seria o grande e devastador motor para o agravamento
de uma das mais deletérias e persistentes pragas das re-
des, o abuso sexual de crianças e adolescentes.
Com desdobramentos perversos para quem se vê na
mira, esse mal se propaga sob o impulso da produção de
imagens forjadas com um inacreditável grau de realismo
— sempre de cunho sexual, não raro usadas por crimino-
sas redes de pornografia infantil. A partir de instruções
simples fornecidas às plataformas de inteligência artifi-
cial, criam-se peças tão verossímeis que é praticamente
impossível saber se tratar de montagem. E aí os estragos
são incalculáveis. No fim do ano passado, circularam en-
tre alunos de um tradicional colégio do Rio de Janeiro fo-
tos fabricadas com IA de vinte garotas do ensino médio,

2 | 10
INÊS 249

PERIGO REAL
O número de denúncias de
abuso sexual de crianças e
adolescentes nas redes disparou
no Brasil no último ano

71 867

AUMENTO DE
40 572
77%

2022 2023
Fonte: SaferNet

3 | 10
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todas nuas. “Virou um pesadelo”, contou a VEJA F.G., de-


signer de 41 anos, mãe de uma das vítimas, que mantém o
anonimato para preservar a filha, de 16. Numa arena em
que é relativamente fácil evaporar-se pelos atalhos virtu-
ais, os autores ainda não foram identificados pela polícia,
mas já se revelou que eram colegas de turma. “Ouvi de
certas pessoas que não passou de uma brincadeira, mas a
palavra certa para isso é crime”, indigna-se F.G., que, aba-
lada, evita cutucar o assunto.
Nas profundezas da deep web, o submundo da internet,
prolifera uma coleção de aplicativos de “nudificação”, ca-
pazes de despir qualquer indivíduo. Robôs operantes em
grupos do Telegram oferecem o serviço, cujo impacto se
faz demolidor para quem é alvo, por módicos 10 reais —
prática que deveria ser banida, penalizando as platafor-
mas, mas não é. Ao contrário, esse material fake acaba
por alimentar fóruns que reúnem não só os que espalham
as imagens (um show de horrores sem filtros envolvendo
até bebês) e os curiosos, mas também pedófilos dispostos
a pagar caro para ter mais.
Qualquer estatística nesse universo em expansão é su-
bestimada — as próprias vítimas, por medo e vergonha,
preferem se calar. Mas um monitoramento da ONG britâ-
nica Internet Watch Foundation ajuda a dar uma dimensão
do crescente fenômeno: em um desses ambientes virtuais,
o maior dentre milhares, foram rastreadas mais de 20 000
fotos de crianças geradas por IA em um só mês — 3 000

4 | 10
INÊS 249

delas logo classificadas como criminosas. As redes sempre


foram território fértil sobre o qual grassava o abuso sexual
infantil, só que a escala mudou. “A inteligência artificial
abre um novo capítulo para esse tipo de abuso”, diz Thiago
Tavares, diretor da SaferNet, organização brasileira que
recebeu 71 867 denúncias em 2023, um recorde desde o
início da série histórica, em 2005 (veja no quadro).
O tema vem ganhando visibilidade ao atingir celebri-
dades mundo afora, que aproveitam os holofotes para
mostrar o quão destrutiva é a ação desse pessoal. Um dos
casos mais rumorosos do momento é o de Xochitl Gomez,
atriz americana de 17 anos que estrelou o filme Doutor Es-
tranho no Multiverso da Loucura. Desde janeiro, a adoles-
cente luta para retirar do ar uma enxurrada de retratos
espúrios postados em perfis diversos no X, em que ela
aparece despida por obra de IA. O caso ilustra o enrosco
que é apagar tais imagens — o X as deleta, aí ressurgem
em outro perfil, num jogo de gato e rato que não dá trégua
às vítimas. “Quando alguém busca pelo meu nome, não
tem jeito: as fotos estão sempre lá”, lamentou a atriz, que
não é a única no rol das famosas a sofrer na mão desses
abusadores nas redes. As cantoras Miley Cyrus e Selena
Gomez, hoje maiores de idade, tiveram recentemente fo-
tografias da fase teen garimpadas e “nudificadas”.
O passo a passo da confecção de uma peça falsa com
IA foi dissecado no documentário Another Body (“Outro
corpo”, em tradução livre), que pôs o dedo em tão funda

5 | 10
INÊS 249

ERIC MCCANDLESS/DISNEY/GETTY IMAGES

NÃO É MEU CORPO


Aos 17 anos, a atriz Xochitl Gomez viu seu rosto
estampado em um nude falso viralizar no X. A
plataforma até tirou as imagens do ar, mas elas
sempre voltam em novos perfis. “Não sei como isso
é permitido”, diz

6 | 10
INÊS 249

ferida e fez o debate aquecer. O maldoso conteúdo muitas


vezes nasce a partir de imagens reais, utilizadas para trei-
nar e moldar a IA. Um novo estudo do Observatório da
Internet, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos,
rastreou em uma base de dados pelo menos 3 000 cenas
com viés sexual expondo crianças e jovens. As empresas
afirmam, oficialmente, que implementaram medidas para
evitar que seus sistemas sejam usados para ensejar a por-
nografia infantil. Na prática, porém, o controle é limitado,
já que gente com alguma perícia consegue desbravar ou-
tras formas de obter o mesmo resultado. “Muitas vezes re-
side aí o começo de uma história de abuso sexual”, enfati-
za Riana Pfefferkorn, pesquisadora do Observatório.
Lançar na rede imagens sexuais manipuladas é uma
modalidade do cyberbullying capitaneada por adolescen-
tes que insistem em atormentar sobretudo meninas, pro-
vocando feridas difíceis de curar. “Me senti tratada como
um objeto”, conta D.B., de 14 anos, uma das dezoito alu-
nas de um conhecido colégio do Recife que penaram ao
ter suas fotos de Instagram despidas artificialmente e pos-
tadas para quem quisesse ver. “Foi um choque. Primeiro
fiquei triste, mas logo veio a raiva”, relata a jovem, que
acabou mudando de escola. Suspeita-se aí de estudantes
do próprio colégio, mas a polícia ainda não concluiu as in-
vestigações. É comum que as vítimas não se sintam con-
fortáveis para trazer o assunto à baila, o que as faz mergu-
lhar em uma angústia solitária. “A maioria se sente encur-

7 | 10
INÊS 249

ralada e teme sofrer represálias se contar aos pais o que


está acontecendo”, explica Guilherme Polanczyk, profes-
sor de psiquiatria da infância e adolescência da Faculdade
de Medicina da USP.
Em janeiro, o FBI emitiu um alerta sobre uma explo-
são de esquemas movidos por inteligência artificial que
escalam um novo degrau — ela também está sendo usada
por criminosos para se passarem por meninas, que abor-
dam garotos nas redes propondo uma troca aparente-
mente ingênua de nudes. Com as fotos em seu poder, es-
ses marginais chantageiam os adolescentes, pedindo vul-
tosas somas , ou ainda mais fotos, para não divulgar o
material. Há dois meses, um rapaz de 13 anos, de Palmas,
no Tocantins, deixou-se enredar no golpe. Apresentan-
do-se como Barbie, que seria uma garota de 13 anos, ali-
ciadores mantiveram com ele mensagens pelo WhatsApp
por mais de uma semana. Desavisado, o jovem enviou
dezenas de fotos e vídeos em que aparecia nu na cama e
no banho. “Quando descobriu se tratar de um homem
adulto, o garoto se fechou e falou até em suicídio”, lembra
Mônica Brito, secretária-executiva do Centro de Defesa
dos Direitos da Criança e do Adolescente do Tocantins,
que acompanha o caso.
A legislação sobre abuso sexual infantil na internet já é
bem avançada — o complicador é justamente a ascenden-
te presença da IA. Nos Estados Unidos, onde o fenômeno
bate recorde, a lei ainda não contempla especificamente

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VINCE BUCCI/GETTY IMAGES

AMEAÇA CONSTANTE
A cantora Selena Gomez, 31 anos hoje,
tomou um susto ao saber que fotos suas do início
de carreira, aos 14 anos (acima), haviam sido
manipuladas por criminosos, que a desnudaram
com IA. Ela preferiu se calar.

9 | 10
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imagens de tal natureza, e muitos juízes blindam os infra-


tores alegando preservar assim o princípio da liberdade
individual. Na União Europeia, uma proposta à mesa do
setor dedicado à regulamentação de IA prevê que as em-
presas avaliem o quão nocivas podem ser suas ferramen-
tas antes de levá-las às prateleiras virtuais. No Brasil,
mesmo antes do advento da inteligência artificial, o Esta-
tuto da Criança e do Adolescente (ECA) já enquadrava
atividades relacionadas a produção, difusão e consumo
desse tipo de conteúdo, prevendo reclusão de um e oito
anos. Um recém-aprovado projeto de lei na Câmara, que
em regime de urgência já altera o Código Penal e o ECA,
avança ao dizer pela primeira vez, e com todas as letras,
que é vetada a geração de imagens de mulheres nuas por
meio de tecnologia. A pena, de dois a quatro anos, se agra-
va quando a vítima é menor de idade. “A responsabilidade
de proteger as crianças não deve ficar só nas mãos dos
pais e das plataformas. As autoridades precisam agir já”,
reforça Iain Drennan, presidente da WeProtect Global
Alliance. Abuso sexual infantil é assunto sério demais pa-
ra deixar que as máquinas se encarreguem de preservar
valores essencialmente humanos. ƒ

10 | 10
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INÊS 249

GERAL SAÚDE

FÔLEGO
CONTRA LESÕES
Uma nova terapia, realizada em uma câmara
que aumenta a oferta de oxigênio, promete acelerar
a recuperação e otimizar a performance dos atletas —
amadores ou profissionais LIGIA MORAES

OXIGÊNIO A 100% Medicina hiperbárica: enxurrada


de oxigênio para agilizar a cicatrização após cirurgias

DIVULGAÇÃO

1|6
INÊS 249

DE UM LADO, atletas que dependem do máximo desem-


penho para o seu ganha-pão. Do outro, esportistas ama-
dores que se desdobram entre treinos nas academias, nas
ruas e nas quadras. Em comum, especialmente com o ri-
gor do exercício e o avançar da idade, há o risco de lesões
à espreita. Diante de danos cada vez mais frequentes em
joelhos, ombros e companhia, a medicina esportiva corre
atrás de soluções para aprimorar a reabilitação e a perfor-
mance dos praticantes. Nesse campo, despontou o suces-
so da oxigenoterapia hiperbárica, validada em estudos e a
grande atração nos clubes do país.
A tecnologia pode até lembrar uma invenção de filme de
ficção científica, mas parte de conceitos da física conheci-

REPARAÇÃO A JATO
Como funciona a tecnologia que agiliza
a reabilitação de atletas

A oxigenoterapia
hiperbárica auxilia
na recuperação
pós-cirúrgica e na
reconstrução do
ligamento cruzado
anterior do joelho,
alvo comum de lesões

2|6
INÊS 249

dos há décadas por profissionais da saúde. Funciona assim:


o paciente entra numa câmara vedada por um vidro e, ali,
permanece sob o efeito de oxigênio a 100% — para se ter
ideia, o ar que respiramos normalmente contém 21% de
oxigênio. Nesse ambiente, o corpo é submetido a uma pres-
são duas vezes maior que a pressão atmosférica usual. Seria
o equivalente a fazer um mergulho no mar a 20 metros de
profundidade. Isso faz com que as moléculas de oxigênio,
além de serem transportadas pelas partículas de hemoglo-
bina no sangue, circulem direto pelo plasma, a fração pre-
dominante no líquido vermelho. “É como se o plasma fosse
o rio, e as hemoglobinas, os barcos. Então, em vez de o oxi-
gênio ser levado apenas pelas embarcações, ele navega
também pelas águas do rio”, compara Marcos Demange,
professor do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

O paciente entra e
permanece numa
câmara especial por
cerca de uma hora.
Ali o oxigênio está a 100%
e a pressão sobre o corpo
é duas vezes maior que
em ambiente normal

3|6
INÊS 249

Essa enxurrada de oxigênio nos tecidos, por sua vez,


acelera significativamente a recuperação de lesões e o
pós-operatório. “Ela estimula a atividade das células na
região afetada, permitindo uma cicatrização mais rápida
e eficiente”, diz Demange, que acaba de publicar um es-
tudo que constata o potencial da câmara hiperbárica de-
pois da reconstrução do ligamento cruzado anterior do
joelho por cirurgia. O apelo, claro, é enorme no meio dos
atletas profissionais. E, não à toa, times como Palmeiras,
Flamengo, Corinthians, Grêmio e Atlético Mineiro já
aderiram à oxigenoterapia — aliás, não confunda com
ozonioterapia, tratamento que ainda carece de compro-
vações científicas.
O trunfo da tecnologia é levar a molécula da vida a
áreas do corpo que podem estar sofrendo com uma bai-
xa oxigenação. Desse modo, há um novo fôlego para o

1 HORA

4|6
INÊS 249

organismo consertar danos ao sistema muscular e es-


quelético. De olho nesse efeito, o núcleo de saúde e per-
formance do Palmeiras já adquiriu duas câmaras. O clu-
be utiliza o tratamento em jogadores que passaram por
cirurgia, sofreram lesões osteomusculares ou vieram de
um período de atividades intensas. “Notamos resulta-
dos satisfatórios tanto na percepção de fadiga e no tem-
po de recuperação quanto na qualidade da reparação
dos tecidos lesionados”, afirma Pedro Pontin, coor-
denador médico do clube paulista.
Os benefícios são sentidos durante o tratamento e du-
ram até trinta horas. “O paciente faz cinco ou seis sessões
de uma hora que, do ponto de vista prático, representam
muito menos tempo do que se gasta fazendo fisioterapia”,
diz Demange, para quem a inovação tem tudo para se po-
pularizar, não apenas entre atletas de elite.

OXIGÊNIO
O nível de oxigênio é
elevado mais de seis
ou sete vezes nos
tecidos do corpo,
estimulando as células.
Isso permite uma
cicatrização mais
rápida e eficiente

5|6
INÊS 249

FABIO MENOTTI/PALMEIRAS

PARTE DO TIME Uso pelo Palmeiras:


duas câmaras a serviço dos jogadores

A oxigenoterapia faz parte, na verdade, de uma safra


de invenções que visam melhorar o desempenho e a saúde
de quem pratica esportes. Nos times de futebol, progra-
mas de GPS monitoram as cargas e os desgastes a que os
craques estão expostos. “Os atletas utilizam ainda outros
dispositivos wearables, como cintas e braceletes, que nos
ajudam a entender como seu corpo reage a determinados
estímulos” , afirma Pontin. Softwares que ajudam a per-
sonalizar o reparo de lesões e terapias regenerativas bio-
lógicas também poderão ser escalados nas pranchetas de
médicos e treinadores. Afinal, com torneio ou metas à vis-
ta, não há tempo a perder. ƒ

6|6
INÊS 249

GERAL AMBIENTE

A CIÊNCIA DA
MULTIPLICAÇÃO
Pesquisadores reproduzem, em laboratório,
espécies de peixes do Rio Araguaia na tentativa
de recuperar as águas ameaçadas pelo mau uso
da civilização VALÉRIA FRANÇA

DIVERSIDADE Ao longo do Araguaia: vegetação do


Cerrado, da Amazônia e da Mata Atlântica

ROBIN HANBURY-TENISON/ROBERTHARDING/AFP

1|5
INÊS 249

LOCALIZADO nas entranhas do Centro-Oeste brasi-


leiro, o Rio Araguaia é celebrado por sua extraordinária
biodiversidade, sinônimo de riqueza brasileira — mas
também de preocupação, dadas as sucessivas vezes em
que foi agredido pela mão do ser humano. Ao longo de
quase 3 000 quilômetros de extensão, há um pouco de
tudo ali: Mata Atlântica e muita vegetação típica do
Cerrado e da Amazônia. Entre os grandes veios, é o úni-
co que mantém o curso natural, por não ter água repre-
sada por hidroelétricas.
Batizado com nome tupi, o “rio das araras verme-
lhas” destaca-se no turismo de pesca devido à varieda-
de de peixes, como o pacu e a corvina. Para a população
indígena e ribeirinha, o Araguaia costumava ser fonte
de subsistência — sim, costumava, no triste pretérito,
porque recentemente, em alguns pontos, os bichos su-
miram e, em outros, apareceram mortos. O que aconte-
ce com o rio? A soma de novos e antigos problemas dá
sinais de esgotamento da forma pela qual a civilização
lida com as águas.
Desmatamento em áreas de proteção ambiental, pro-
vocado pelo confinamento do gado, aumento de irriga-
ção em regiões de plantio, esgotos clandestinos e agro-
tóxicos que escorrem das fazendas são algumas das va-
riantes que ameaçam o ambiente. Agora em 2024, o El
Niño, fenômeno natural que acontece no intervalo entre
cinco e sete anos, responsável pela elevação da tempera-

2|5
INÊS 249

REPRODUÇÃO

REPOVOAMENTO Cientistas em ação:


os animais de volta à natureza

tura do Oceano Pacífico, fez com que o clima ficasse ain-


da mais quente e seco na região. No primeiro trimestre,
o Araguaia ficou 3 metros abaixo do nível habitual, difi-
cultando a navegação de grandes embarcações. As re-
giões de praia aumentaram, com areia mais escura e
águas com lodo.

3|5
INÊS 249

O resultado: sumiço dos animais fluviais. “Tem locais


do rio sem peixe”, resume o cacique dos carajás, Raul Ha-
wakati, de 68 anos, da aldeia Aruanã. “Nunca imaginei
que minha tribo tivesse de comer frango congelado para
sobreviver.” A dramática situação foi atalho para uma re-
cente solução de ponta: pesquisadores da Universidade
Federal de Goiás, liderados pela professora Fernanda
Torres, capturaram espécies nativas em córregos próxi-
mos, no período da piracema — época em que os peixes
migram para se reproduzir, entre outubro e dezembro.
Em seguida, foram induzidos à fertilização em laborató-
rio. E, enfim, em extraordinário movimento, um cardume
de 18 000 peixes juvenis de pacu-manteiga foram soltos
em lagos e tanques no fim de fevereiro. E deu-se a multi-
plicação dos peixes pela ciência. “Ações como essa são vi-
tais para compensar as perdas”, afirma Fernanda.
Os obstáculos, aliás, tendem a despontar com mais
frequência do que as soluções, infelizmente. Não demo-
rou, depois do repovoamento, para que profissionais de
pesca encontrassem peixes mortos boiando no Rio Ver-
melho e no Araguaia, por dois dias consecutivos. Rapida-
mente, os especialistas montaram um comitê de crise.
“Percorremos mais de 200 quilômetros e encontramos
pontos quase sem oxigênio”, disse a VEJA o pesquisador
Ludgero Vieira, professor da Universidade de Brasília. No
ano passado, em respeitado artigo, Vieira estimou o ta-
manho da diminuição da superfície do Araguaia. Entre

4|5
INÊS 249

1987 e 2019, o rio per-


deu quase 40% da
área. Para 2030, a pro-
ONDE FICA
jeção é de 50%, caso a Terra Karajá
situação não mude.
A iniciativa, cele- M A
PA
brada internacional-

ia
mente, faz parte de

gua
PI

A ra
um projeto batizado
como Araguaia Vivo, Rio TO
patrocinado pela BA
MT
Aliança Tropical de
Pesquisa da Água —
empresa sem fins lu-
crativos conhecida
G O MG
pela sigla em inglês
TWA. O objetivo é
realizar um extenso e
cuidadoso inventário de espécies, das mais resistentes às
mais frágeis. Os dados serão encaminhados ao Ministé-
rio Público, para que medidas sejam tomadas de modo a
estancar as irregularidades e, quem sabe, tornar desne-
cessária a presença de estudiosos que trabalham como
detetives à procura de desequilíbrios. É comovente a ima-
gem de pequenos grupos a bordo de canoas, de um lado
para outro, silenciosos, coletando água, peixes e outras
substâncias para zelar pelo futuro da humanidade. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL MERCADO IMOBILIÁRIO

COMO UMA
ONDA NO MAR
País de imenso litoral, o Brasil começa a conviver
com um novo fenômeno urbano: os condomínios
de praias artificiais, propícias até a surfistas
bem preparados MARÍLIA MONITCHELE

BOA VISTA
O Boa Vista Village,
em Porto Feliz (SP):
INSTAGRAM @BOAVISTAVILLAGE

jeito de oceano
para surfistas

1|5
INÊS 249

O LITORAL do Brasil tem exatos 7 367 quilômetros de ex-


tensão — medida que pode chegar a 9 000 quilômetros, adi-
cionadas as saliências e reentrâncias típicas da nossa geo-
grafia. Há pelas bandas de cá praias celebradas em todo o
mundo. Das ondas que aqui quebram, e não quebram como
lá, brotaram alguns dos surfistas mais vencedores da histó-
ria, como Gabriel Medina, Italo Ferreira e Filipe Toledo. A
expressão “Brazilian storm”, a tempestade brasileira, criada
pela imprensa americana para definir essa turma campeã,
pegou de vez. E, então, há uma pergunta que não quer calar:
por que, em um pedaço de terra tão propício ao mar — “o
mar, quando quebra na praia, é bonito, é bonito...”, cantou
Caymmi —, começam a despontar as praias artificiais?
Nos últimos meses, em interessante novidade, diversos
lançamentos imobiliários à guisa de beira-mar foram inau-
gurados ou estão prestes a abrir as portas em cidades sem
litoral — argumento decisivo, é natural, para que saiam do
papel. O Praia da Grama, erguido pela KSM Realty no con-
domínio Fazenda da Grama, em Itupeva, a 70 quilômetros
de São Paulo, tem mar com ondas de quase 2 metros de al-
tura, orla de 1 quilômetro e areia branquinha que — pasmem
— não esquenta com o sol. O investimento, para 400 lotes
residenciais: 200 milhões de reais. O preço do metro qua-
drado saltou de 300 reais para 2 200 reais em dois anos.
Um outro empreendimento, o Boa Vista Village, da
JHSF, em Porto Feliz, na região metropolitana de Sorocaba,
tem o jeitão de elegante condomínio a beijar as águas de um

2|5
INÊS 249

INSTAGRAM @PRAIADAGRAMA

PIONEIRA Em Itupeva (SP) desde 2011: orla de 1 quilômetro

oceano, só que não. Até o ano que vem, a metrópole que não
pode parar inaugurará outros dois conjuntos de inspiração
marítima. O São Paulo Surf Club, oásis de luxo projetado pe-
la JHSF, terá praia, é claro, além de torres de apartamentos
para moradia e hotelaria, bares, restaurantes, spas e outras
benesses. O Beyond The Club, da KSM, outra obra a todo o
vapor, terá capacidade para abrigar e oferecer marés vigoro-
sas a noventa surfistas interessados na prática, como se esti-
vessem belos e faceiros no Taiti. A brincadeira, somando
terreno e construção, deve ultrapassar 1 bilhão de reais. “A
tendência das praias artificiais em centros urbanos é inevi-
tável, e tende a crescer com os anos”, diz Oscar Segall, exe-
cutivo da KSM. “Representam uma mudança radical e sau-
dável de estilo de vida, e não apenas como lar.”
Parece claro, portanto, o interesse pela espuma a quebrar
com o horizonte urbano ao fundo, lá onde a natureza está

3|5
INÊS 249

INSTAGRAM @SURFLANDBRASIL

LITORAL Garopaba (SC): curiosa contradição

escondida pelo cimento — mas o que dizer da Surfland Bra-


sil, instalada em Garopaba (“a enseada de barcos”, a partir
de sua denominação indígena), beijada pelo Oceano Atlânti-
co em Santa Catarina? Soa um tanto esquisita, esquisita
mesmo, a artificialidade diante de tanta natureza. Mas há o
evidente fascínio pela novidade e o respeito pelos saltos tec-
nológicos que tudo, ou quase tudo, podem. A piscina de on-
das da Surfland, inaugurada em novembro do ano passado,
vai e vem com um recurso mecânico capaz de produzir 900
ondulações por hora. Louve-se, na gênese das máquinas que
imitam o real, a criatividade pioneira de um dos mais co-
nhecidos surfistas da história, o americano Kelly Slater. De
mãos dadas com um respeitado engenheiro da Califórnia,
também apaixonado pelas pranchas a singrar os tubos, eles
decidiram investir no improvável e mágico: as marés pró-
prias ao sobe e desce de esportistas, mas de água sem sal.

4|5
INÊS 249

Com o passar dos anos, as ferramentas foram aprimoradas


a ponto de mimetizarem à perfeição as ondulações. Daí para
a adoção por construtoras foi passo rápido, adotado nos Es-
tados Unidos e na Europa, e que agora chega ao Brasil.
Ressalve-se que a bem bolada ideia das praias artificiais
— restrita aos mais endinheirados e no avesso do aspecto
público de suas irmãs naturais — casa-se à perfeição com
outro modismo que tem se espalhado com rapidez: as qua-
dras urbanas para a prática de esportes de areia, como o fu-
tevôlei e o queridinho da hora, o beach tennis. A Confedera-
ção Brasileira de Tênis (CBT) estima que o número de prati-
cantes da modalidade “praiana” tenha quase triplicado nos
últimos três anos, de 400 000 pessoas em 2021 para 1,1 mi-
lhão em 2023. Nasceu no auge da reclusão imposta pela
pandemia, respiro para sair de quatro paredes, e vingou.
“São espaços que dão a sensação de comunidade e trazem a
memória afetiva”, diz Anderson Rubinatto, diretor-executi-
vo da Goolaço, empresa de serviços esportivos.
Não se sabe até quando a onda permanecerá, mas é relevante
a presença, em meio a metrópoles áridas, de espaços de entrete-
nimento antes atrelados a viagem, férias, sombra e água fresca.
É a civilização a se alimentar de paradoxos — a areia e o mar
aqui ao lado, pertinho do meu condomínio de prédios. Convém,
no entanto, nunca abandonar o original. Não nos esqueçamos
das lindas praias que desenham o Brasil, embora uma coisa — a
versão urbana, sem costa — não anule a outra. Vale lembrar
Millôr Fernandes: “O pôr do sol é de quem olha”. ƒ

5|5
INÊS 249

PRIMEIRA PESSOA

BRUNA VERATTI

1|4
INÊS 249

NÃO HÁ UMA VIDA


PESSOAL E OUTRA
PROFISSIONAL
Cinco anos depois de um burnout, a jornalista Izabella
Camargo se reinventou como uma voz em prol da saúde mental

SE EU TIVESSE desmaiado naquele dia 14 de agosto de


2018, a história teria sido outra. Eu teria sido socorrida, iria
para um hospital e pronto. Mas o meu apagão, quando esta-
va tendo um curto-circuito interno e tive um esquecimento
ao vivo em um jornal na TV, era uma dor invisível e, por is-
so, questionável. Era o burnout. E uma das coisas que apren-
di nesses cinco anos é que a dor silenciosa é um sofrimento
em dobro. Também descobri que não há uma vida pessoal e
outra profissional. A vida é uma só. O que a gente está ten-
tando fazer o tempo inteiro é se dividir. E o burnout é uma
das consequências desse desequilíbrio.
O elemento que falta para as pessoas entenderem essa
doença ocupacional é saber que estabelecer limites garante a

2|4
INÊS 249

liberdade e a saúde mental. Em uma estrada, tem placa de 80


km/h de velocidade. No dia a dia, a gente se acha demais e vai
a 200 por hora. Não entende a diferença entre uma noite mal
dormida e uma vida mal dormida, nem que, quanto mais nos
encolhemos para caber em um espaço, mais vamos adoecer.
O burnout era uma hecatombe que estava para desabar
no mundo quando comecei a falar sobre o assunto. Até en-
tão, só se entendia a dor física, algo que veio com o movi-
mento dos bancários abordando a LER (lesão por esforço
repetitivo). Com a pandemia, o trabalho entrou em casa e as
pessoas não sabiam o que fazer. Assim como não sabem a
diferença entre cansaço, exaustão e esgotamento. No bur-
nout, a pessoa perde funcionalidade, deixa de fazer as coisas
que fazia. Em 2019, fiquei um ano sem dirigir, mal conse-
guia ler e compreender textos.
Por essas e outras, não podemos banalizar o termo. Não
existe burnout racial, maternal, sexual... essas são outras
pautas ligadas a questões estruturais e que precisam ser mu-
dadas, como o racismo e o machismo. O burnout é ligado ao
trabalho e só foi incluído na classificação internacional de
doenças pela OMS em 2022. Mas descobrimos há pouco
tempo que já era uma doença laboral no Brasil desde 1999
por causa de uma atualização do Ministério da Saúde. En-
tão, ainda temos muito a nos aprofundar sobre o tema.
Eu enfrentei uma arrebentação de julgamento, crítica,
culpa e medo. E passei a me juntar a instituições para traba-
lhar com educação em saúde. Comecei a liderar o movimen-

3|4
INÊS 249

to pela produtividade sustentável, conceito que já levei para


Angola, França e Estados Unidos. As empresas no Brasil
abrem a porta da frente para eu entrar, porque levo dados e
resultados. Está claro que precisamos atualizar uma série de
processos e mudar o design organizacional das empresas.
No passado, as pessoas trabalhavam para ganhar dinheiro,
mas tem dinheiro que custa mais caro se não tiver propósito.
Neste ano, lanço um manifesto para reunir pessoas que este-
jam falando minha língua para discutir sobre EPIs (equipa-
mentos de proteção individual) para a saúde mental. No se-
gundo semestre, tocarei outro projeto com mulheres dentro
do Grupo de Prevenção ao Adoecimento no Trabalho.
Hoje, eu não luto mais para falar sobre o burnout. Nem
perco meu tempo com quem é negacionista, mesmo com
tantas evidências. Foco em quem quer trabalhar com o as-
sunto e posso dizer que abraçar essa causa, depois da Ange-
lina, minha filha de 2 anos e 7 meses, foi a coisa mais bonita
que eu fiz. Talvez a história que eu vá contar a ela seja assim:
“Filha, você sabia que, lá no passado, não precisava escovar
os dentes todos os dias? Hoje, a gente sabe que, para ter saú-
de bucal, tem de escovar todo dia. É assim com saúde men-
tal: são hábitos que temos de ter todos os dias”. Quero trei-
nar as pessoas e difundir esta mensagem: saber acelerar,
quando acelerar e também quando desacelerar. ƒ

Depoimento dado a Paula Felix

4|4
INÊS 249

GERAL NEGÓCIOS

TROPEÇOS
DO GIGANTE
A Apple desiste de fabricar carros elétricos,
fica para trás na corrida por produtos baseados
em inteligência artificial e enfrenta até queda de
vendas de iPhones na China CAMILA BARROS

MUNDO VIRTUAL Óculos Vision Pro: segundo usuários,


o aparelho é pesado e difícil de usar

DAVID SWANSON/AFP

1|5
INÊS 249

EM 1997, Steve Jobs retornou ao posto de presidente exe-


cutivo da Apple após um nebuloso afastamento, que ha-
via durado doze anos. Sua missão não era nada fácil. A
empresa contabilizava prejuízos em série e parecia ter
perdido a capacidade de inovar. Jobs precisou de uma dé-
cada para apresentar ao mundo, em 2007, a primeira ver-
são do iPhone, que não apenas colocaria a Apple de volta
nos trilhos como tornaria seu smartphone um dos objetos
mais revolucionários de todos os tempos. Neste momen-
to, a companhia da maçã vive uma nova fase negativa,
embora de gravidade menor. Nos últimos meses, trope-
ços em diferentes áreas de negócios puseram novamente
sua vocação inovadora em xeque. O problema é que Jobs
não está mais aqui — ele morreu em 2011.
O ano de 2024 tem sido especialmente difícil para a
Apple. Lançados nos Estados Unidos em fevereiro, os óculos
de realidade virtual Vision Pro prometiam inaugurar uma
nova era na interação tecnológica entre homens e máquinas.
Os primeiros usuários, contudo, decepcionaram-se com o
dispositivo. Entre outras reclamações, afirmaram que os
óculos são pesados demais, desconfortáveis de usar e provo-
cam dor de cabeça. O preço elevado — 3 500 dólares —
também é um entrave, embora a empresa pretenda lançar
no mercado modelos mais baratos. “A hora de errar é essa
mesmo, porque falhar com baixa escala é muito melhor”,
diz Benjamin Rosenthal, professor de marketing da Funda-
ção Getulio Vargas e pesquisador da cultura de consumo.

2|5
INÊS 249

DEPENDÊNCIA
EXCESSIVA
Os smartphones respondem por mais da
metade das receitas da empresa da maçã

58%
iPhones

6% 19%
Serviços
iPads

10%
7% Apple Watch e
MacBooks dispositivos para casa

Fonte: Apple

Não se trata de um deslize isolado. Há alguns dias, a


companhia anunciou o fim do Apple Car, projeto de car-
ro elétrico que a faria debutar na indústria automotiva e
competir diretamente com a Tesla, de Elon Musk. Com o
fracasso da empreitada — que consumiu recursos por pe-
lo menos uma década —, os funcionários envolvidos no

3|5
INÊS 249

projeto foram transferidos para pesquisas relacionadas à


inteligência artificial. A Apple está atrasada na corrida
da IA. Pesos-pesados do ramo tecnológico, como Google,
Microsoft e Nvidia, lideram essa corrida, mas a Apple ao
menos parece disposta a tentar recuperar o tempo perdi-
do. Tanto é assim que o CEO Tim Cook prometeu novi-
dades envolvendo IA generativa “ainda neste ano”.
Como se não bastasse, as vendas do iPhone na China,
terceiro maior mercado da Apple, cederam 24% nas pri-
meiras seis semanas de 2024 versus o mesmo período de
2023, de acordo com pesquisa da consultoria Counter-
point. No país da Muralha, a empresa enfrenta o recuo
dos gastos dos consumidores e a concorrência interna de
gigantes como Huawei e Xiaomi, além do aumento das
sanções governamentais a aparelhos eletrônicos estran-
geiros. Quedas nas vendas de smartphones representam
uma ameaça, já que os celulares respondem por mais da
metade das receitas da Apple. No ano passado, seu fatu-
ramento global caiu 3%, o pior desempenho desde 2016.
Como sempre ocorre nessas situações, as ações negocia-
das em bolsa passaram a refletir o mau momento da
Apple, que foi ultrapassada pela Microsoft como a em-
presa mais valiosa do mundo.
Ainda que o cenário seja desafiador, a Apple mantém-
se como uma das grandes referências tecnológicas de nos-
so tempo. Ela continua líder absoluta em smartphones,
com uma fatia de 25% do mercado mundial, enquanto a

4|5
INÊS 249

PAUL SAKUMA/AP/IMAGEPLUS ANDREW CABALLERO-REYNOLDS/AFP

VISÃO Steve Jobs (à esq.), que morreu em 2011, e o atual


CEO, Tim Cook: o desafio da empresa é voltar a inovar

segunda colocada, a sul-coreana Samsung, detém 16%. Al-


tos e baixos são comuns no universo das big techs — a Mi-
crosoft, para citar apenas um exemplo, também enfrentou
solavancos em sua trajetória e reencontrou-se agora, com
o ChatGPT. Não convém duvidar da capacidade da Apple
para recuperar a velha forma. Basta um acerto para a em-
presa, mais uma vez, mudar o mundo. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL MOBILIDADE

GUERRA CONTRA
OS GRANDÕES
Cidades da Europa criam taxas para reduzir a circulação
dos SUVs e as emissões provocadas pelos utilitários,
mais pesados e menos eficientes ANDRÉ SOLLITTO

PROTESTO Instalação do Greenpeace em


Berlim, na Alemanha: ativistas estão
esvaziando os pneus de SUVs na Europa

ABDULHAMID HOSBAS/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

1|5
INÊS 249

FOI-SE O TEMPO dos carros compactos e dos sedãs. Hoje,


quem trafega pelas ruas de São Paulo, Nova York, Londres
ou Paris percebe que o trânsito é dominado pelos grandes
SUVs, sigla para os utilitários esportivos, carros que há pou-
cas décadas só tinham apelo para os praticantes de trilhas
off-road. Dados do mercado mostram que eles já represen-
tam a maior parcela das vendas de novos veículos. Os Esta-
dos Unidos são a terra dos grandalhões dentro da categoria,
ou full-size, gigantes que transportam sete pessoas e pesam
mais de 2,5 toneladas. No Brasil, os SUVs foram o segmento
com mais emplacamentos de 2023. E até a Europa, onde an-
tes a adoção desses modelos era mais lenta, devido às ruas
estreitas, se rendeu aos carros espaçosos. Pela primeira vez,
representam mais da metade — exatos 51% — das vendas.
O crescimento da frota amplia um problema ambiental
e de segurança. Pelo tamanho e peso, eles gastam muito
mais combustível. Vários são vendidos com motores a die-
sel ou gasolina, mais poluentes. São também perigosos pa-
ra pedestres em uma eventual colisão. Dados apontam que
o número de acidentes fatais envolvendo quem caminha
aumentou 57% nos Estados Unidos à medida que os novos
veículos ficaram maiores.
Não à toa, governos e ativistas têm declarado guerra
aos SUVs. A vanguarda do combate se dá na Europa. Um
referendo em Paris aprovou, em fevereiro, a cobrança de
uma taxa muito maior de estacionamento para carros a
combustão ou híbridos com peso superior a 1,6 tonelada.

2|5
INÊS 249

DORES DO CRESCIMENTO
Os utilitários esportivos incomodam porque
fazem sucesso em todo o mundo

50%
DAS VENDAS GLOBAIS
DE CARROS SÃO SUVs

51%
DOS NOVOS VEÍCULOS
VENDIDOS NA EUROPA SÃO SUVs

74,5%
DO MERCADO AMERICANO É
DOMINADO POR UTILITÁRIOS E PICAPES

777 000
UTILITÁRIOS FORAM VENDIDOS NO
BRASIL EM 2023, CATEGORIA COM
MAIS EMPLACAMENTOS NO PAÍS

20%
A MAIS DE EMISSÕES POLUENTES
SÃO GERADOS POR ESSES MODELOS

Fontes: Agência Internacional de Energia, DataForce, Jato Dynamics

3|5
INÊS 249

Agora, o custo por hora é de 18 euros (quase 100 reais) no


centro, o triplo do normal, e 12 euros (60 reais) em outras
áreas da cidade. A prefeitura de Milão, uma das metrópo-
les mais poluídas da Itália, anunciou planos de barrar to-
talmente os carros do cinturão histórico, medida para re-
duzir as emissões de gases causadores do efeito estufa. Es-
tocolmo, na Suécia, banirá de vez da região central, a par-
tir de 31 de dezembro, veículos com motores a combustão
que usem diesel ou gasolina. Em Londres, há pressão para
ampliar a taxação sobre esses veículos até que se torne
praticamente impossível dirigi-los sem custos exagerados.
Para alguns militantes climáticos, mexer com o bolso
dos usuários é pouco. O grupo conhecido como Tyre Ex-
tinguishers, ou “extintores de pneus”, decidiu agir de modo
raivoso. Durante a noite, eles percorrem cidades esvazian-
do todos os pneus dos SUVs estacionados. Os donos desses
carros, claro, ficam revoltados. Os reclamões, em resposta
— e como se ela fosse capaz de justificar a violência —, exi-
bem dados científicos. Um estudo da Agência Internacio-
nal de Energia divulgado no final de 2023 aponta o tama-
nho do estrago: se os SUVs fossem um país, seriam o sexto
maior poluidor do planeta.
A popularização dos utilitários tem uma explicação prá-
tica. Na década de 1970, os Estados Unidos sofreram com a
falta de petróleo vindo dos países árabes e o caos se insta-
lou. A partir daí, o governo americano criou regras rígidas
para que os chamados carros de passeio, incluindo os sedãs

4|5
INÊS 249

IRFAN KHAN/LOS ANGELES TIMES/GETTY IMAGES


EMISSÕES Trânsito pesado em Los Angeles:
os carrões poluem muito mais

e as peruas, tivessem um consumo energético mais eficien-


te. A partir de 1985, deviam rodar 11 quilômetros com 1 li-
tro de combustível, ou mais até. Utilitários e picapes, contu-
do, tinham regras bem mais brandas, já que eram conside-
rados veículos de trabalho e circulariam menos.
Com o passar do tempo, a indústria concentrou as prin-
cipais inovações tecnológicas nos utilitários, e obviamente
o apelo popular cresceu. Hoje, de fato, os SUVs são bem
equipados e oferecem conforto para famílias maiores. Uma
solução para a indústria é torná-los mais eficientes. “As
montadoras estão tomando a frente e desenvolvendo mo-
torizações híbridas ou flex, mais econômicas”, afirma Mi-
lad Kalume Neto, da consultoria automotiva Jato Dynami-
cs. A trégua não desponta no horizonte — ainda que a ciên-
cia anule a sujeira emitida, eles continuarão bojudos. E ta-
manho virou um mau documento. ƒ

5|5
INÊS 249

GERAL MODA

LUXO FEITO À MÃO


Ao levar o trabalho artesanal para as
passarelas, a grife italiana Dolce&Gabbana
chega aos 40 anos entre as mais poderosas
e irreverentes do mundo SIMONE BLANES
GIEL DOMEN

DUPLA DINÂMICA Domenico (à dir.) e Stefano:


os estilistas por trás da grife

1|6
INÊS 249

NO MÍTICO clipe da balada Papa Don’t Preach, de 1986,


Madonna causou barulho ao envergar uma camiseta com
os dizeres Italians Do It Better (“Italianos fazem melhor”,
em bom português). Repleta de duplo sentido, a frase exalta-
va, segundo a cantora, sua ascendência italiana por meio da
moda. Cinco anos depois, a diva pop parecia responder ao
aviso estampado na roupa ao roubar os holofotes no tapete
vermelho do Festival de Cannes. Ali, ela surgiu com um ves-
tido preto de uma dupla de estilistas ainda desconhecida,
Domenico Dolce e Stefano Gabbana, italianíssimos. O epi-
sódio foi o propulsor do sucesso da grife criada em Milão:
Dolce&Gabbana. “Construímos a marca em torno de três
conceitos: Sicília, alfaiataria e tradição”, afirmou Dolce. É
fórmula exitosa que está completando 40 anos.
Para celebrar a maison que instalou o estilo feito à mão
no altar do luxo, o Palazzo Reale, na cidade que é o berço da
D&G, receberá a exposição Dal Cuore Alle Mani (“Do cora-
ção às mãos”). Descrita como uma carta aberta à cultura
italiana, a mostra trará, a partir de abril, peças de acervo,
desenhos e outras expressões artísticas dos estilistas, recon-
tando sua trajetória desde a fundação em 1984. Também se-
rá uma forma de coroar a grife adorada por fashionistas, ce-
lebridades e grande elenco, cujo processo criativo — o “co-
ração” de Domenico e Stefano — está intimamente conecta-
do ao trabalho artesanal.
A história da dupla nos leva ao final da década de 1970,
quando Domenico deixou a Sicília em busca de oportunida-

2|6
INÊS 249

GEORGE PIMENTEL/GETTY IMAGES

BRILHO Sarah Jessica Parker com vestido dourado e


estampado de D&G: puro holofote

des em Milão. Tímido, mas hábil no corte e costura, ele co-


meçou a trabalhar como assistente do estilista Giorgio Cor-
reggiari. Conheceu Stefano Gabbana em uma boate, no iní-
cio dos anos 1980, e logo fez amizade, impressionado pela
personalidade extrovertida do futuro parceiro. Dolce o in-
centivou a pedir um emprego a Correggiari, e assim traba-
lharam juntos até 1983, quando resolveram seguir carreiras
solo. Mesmo atendendo aos mesmos clientes, porém, eles
cobravam a conta separadamente até o contador da dupla
sugerir que emitissem uma nota fiscal conjunta. “Coloque

3|6
INÊS 249

LARRY BUSACCA/WIREIMAGE/GETTY IMAGES

ESTROP/GETTY IMAGES

MADRINHA A popstar ÍCONE NACIONAL A atriz


Madonna em figurino criado brasileira Marina Ruy
pela dupla para turnê mundial: Barbosa: a porta-voz informal
empurrão para o sucesso da grife em eventos no país

Dolce e Gabbana no topo da fatura”, disse. O resto é história.


Não demorou muito para chamarem atenção pelas impe-
cáveis peças manufaturadas, que misturavam tecidos e tex-
turas, além das estampas, que se confundiriam com a iden-
tidade da grife. Extravagantes, os padrões de frutas, flores e
animais viraram objetos instantâneos de desejo. Paisagens
da Sicília, azulejos coloridos e imagens sacras também eram
exaltados nas roupas. Embora tenha se projetado para o lu-
xo, a D&G tinha uma proposta democrática. “Italianos sa-
bem que o que importa é estilo, não moda. Estilo italiano

4|6
INÊS 249

CBS/GETTY IMAGES

COISA DE CINEMA Alicia Silverstone (à dir.)


com o conjunto xadrez de As Patricinhas de
Beverly Hills: reinvenção de um clássico

não tem limites sociais ou de idade”, disse Gabbana. A pri-


meira coleção, “Mulher Real”, trouxe peças para variados
tipos de corpo. Anos depois eles seriam precursores na in-
clusão de modelos de todas as faixas etárias, tamanhos e et-
nias nos desfiles.
O vínculo com Madonna se estreitou em 1993, quando
Domenico e Stefano assinaram os figurinos de sua turnê
global The Girlie Show — nada menos que 1 500 peças. Em
2010, a cantora viria a protagonizar a campanha da marca,
lançando inclusive uma linha de óculos. O passo seguinte foi

5|6
INÊS 249

dado no cinema. Em 1995, eles criaram o icônico conjunto


xadrez de Alicia Silverstone no filme As Patricinhas de Be-
verly Hills. E, na sequência, os coletes de Leonardo DiCa-
prio em Romeu + Julieta. Fazendo sucesso entre homens e
mulheres, a grife caiu no gosto de Hollywood. Sarah Jessica
Parker, Scarlett Johansson e Matthew McConaughey são al-
guns dos fãs. No Brasil, Marina Ruy Barbosa é uma espécie
de porta-voz informal da grife.
Nem tudo caminhou sempre com tranquilidade, é claro,
e a culpa dos tropeções é do duo mesmo. Não raro, Dolce e
Gabbana pecam pela língua ferina. Em 2013, por exemplo,
Dolce deu uma declaração condenando a adoção de crian-
ças por homossexuais — ironicamente, ele também é gay e
chegou a ter um relacionamento amoroso com Gabbana. Foi
o estopim para condenações públicas e boicotes às suas rou-
pas. Depois disso, a marca lançou uma linha que cultuava a
magreza, estampada pela frase “Magra e Maravilhosa”. E
dá-lhe confusão. Controvérsias à parte, a mistura de refina-
mento e estética ousada inscreveu as duas letrinhas na histó-
ria da moda. “Nosso sonho é criar um estilo tão forte que só
de ver dá para dizer: ‘Este é um Dolce&Gabbana’ ”, disse
Dolce. Ao que parece, o sonho já se realizou. ƒ

6|6
INÊS 249

GERAL SOCIEDADE

INFELIZ À
SUA MANEIRA
Depois de anunciar que pretende abreviar a própria
vida, Alain Delon, o mais celebrado galã francês,
vê os filhos se engalfinharem em uma ferrenha
disputa em torno da herança MAFÊ FIRPO
BETTMANN/GETTY IMAGES

LEGADO No auge: o plano é ter a morte assistida na Suíça,


país que autoriza o recurso e do qual ele tem cidadania

1|5
INÊS 249

A COISA anda feia para Alain Delon. Em cinco décadas de


carreira, o galã francês deu vida a personagens icônicos do
cinema europeu. Dono de talento especial e beleza eston-
teante, arrancou suspiros e aplausos em filmes que se torna-
ram clássicos graças a sua atuação, como O Sol por Teste-
munha e Rocco e Seus Irmãos, ambos de 1960. Afastado das
telas desde 2008, Delon vive uma melancólica aposentado-
ria. Aos 88 anos, com quadro de grave degeneração cogniti-
va, depois de um derrame cerebral, ele espera a morte che-
gar em sua mansão em Douchy, no norte da França. Há dois
anos, externou o desejo de pôr fim à própria vida com um
suicídio assistido na Suíça, país do qual também tem cidada-
nia e que permite a prática (Jean-Luc Godard morreu desse
modo, em 2022). Mas o roteiro está longe de ter um epílogo:
os três filhos do ator travam uma ferrenha batalha fratricida
por dinheiro e envolta em mentiras.
O caso veio à tona quando o primogênito, Anthony, 59
anos, fruto do primeiro casamento de Alain com a atriz Na-
thalie Barthélémy, concedeu uma entrevista à revista Paris
Match, no início do ano. Contou que o pai estava “enfraque-
cido”, “debilitado” e “farto de viver”, mas a fragilidade teria
sido omitida pela irmã do meio, Anouchka, 33 anos, que teria
escondido uma bateria de exames médicos de prognóstico
ruim. O caçula Alain-Fabien, 29 anos, também apontou o
dedo para Anouchka, com quem compartilha a mãe — am-
bos são filhos da modelo Rosalie van Breemen, que foi casa-
da com o bonitão por catorze anos. As acusações dos irmãos:

2|5
INÊS 249

EAMONN M. MCCORMACK/GETTY IMAGES


BARRACO Anouchka (acima) e seu irmão
Anthony (abaixo): o galã de 88 anos não esconde
preferir a filha na disputa fratricida por dinheiro

MUSTAFA CIFTCI/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

3|5
INÊS 249

a irmã do meio estaria facilitando os passos de uma namora-


da de Delon, Hiromi Rollin, de 60 anos. Ela estaria de olho
em pedaço da herança, avaliada em 300 milhões de euros.
O intrincado barraco se transferiu para a Justiça em um
enredo rocambolesco. Anthony processou a irmã Anouchka
para impedir que o pai fosse para a Suíça, a caminho da
morte assistida. Anouchka contra-atacou com uma ação por
calúnia e difamação, alegando que apenas se esqueceu de
apresentar os laudos que tratavam da situação clínica dele.
Em conluio, o advogado da família chegou a publicar uma
nota anunciando que Delon também apresentaria queixa
contra o filho mais velho por “estar extremamente chocado
com a cobertura midiática de sua intimidade”. O defensor,
porém, acabou sendo demitido pela própria Anouchka, sob
o pretexto de “ter falado coisas demais em seu nome”. Na
batalha dos tribunais, Alain-Fabien, que morava com o pai
em Douchy, também denunciou a irmã. Hiromi foi simples-
mente afastada pela família.
O escândalo prosseguiu nas páginas da imprensa, em in-
terminável vaivém que saiu das fronteiras da França para
invadir o restante da Europa. A filha contou que toda vez
que ia visitar o pai era obrigada a conviver com a presença
ostensiva de um agente de segurança em sua cola e que seus
irmãos andariam armados pela propriedade. O clima seria
tão hostil que ela evitava levar o filho de 4 anos para ver o
avô. A declaração motivou uma batida policial na mansão
que acabou por apreender um imenso arsenal de guerra,

4|5
INÊS 249

composto por 72 armas e mais de 3 000 munições. Anouch-


ka relatou ainda receber frequentes ameaças dos fãs do ator
e que alimenta pensamentos suicidas ao lembrar das quei-
xas e acusações de seus irmãos. “Não durmo mais, não co-
mo mais, quero que isso pare”, desabafou.
Diante de tantos interesses e declarações conflitantes, o
juiz do caso nomeou um novo tutor que responde ao Estado
para representar o ator moribundo. “A decisão judicial suge-
re que Alain Delon deve ser protegido, devido ao seu estado
de saúde e capacidades diminuídas”, afirma o advogado
francês especialista em sucessão, Louis Laï-Kane-Chéong.
Tamanha discussão alimenta rumores de que tudo não pas-
saria de uma lamentável briga por dinheiro, embora as par-
tes neguem o que soa para lá de evidente. Em testamento, o
astro deixou metade da herança para a filha, sua favorita,
enquanto os dois descendentes do gênero masculino fica-
ram com um quarto cada. Anouchka estaria apressando o
processo de suicídio ao convencer o pai a ir para a Suíça, de
onde nunca mais voltaria.
Em 2022, ao anunciar o desejo de acelerar o desfecho,
Delon disse, como quem decreta o fim da fita: “Minha vida
foi bela, mas também difícil”. Uma dica de início do filme-
dramalhão que contaria as desventuras da trupe, de Anou-
chka e seus irmãos, inspirada nas primeiras linhas do clássi-
co Anna Kariênina, de Liev Tolstói: “Todas as famílias feli-
zes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é
infeliz à sua maneira”. ƒ

5|5
INÊS 249

CULTURA ENTRETENIMENTO

A MAGIA RENASCE
Encurralado por um longo roteiro de adversidades,
da pandemia à competição do streaming, o cinema
dá a volta por cima com uma grande retomada artística
e financeira, como comprova a safra de filmes
que concorrem ao Oscar no domingo 10

RAQUEL CARNEIRO

COLOSSAL Nolan e Murphy na filmagem de Oppenheimer:


saga do pai da bomba atômica produzida com esmero

MELINDA SUE GORDON/UNIVERSAL PICTURES

1 | 15
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EM 2019, o cineasta Martin Scorsese, munido


do respeito de uma carreira soberba de cinco
décadas, provocou ninguém menos do que os
fortões da Marvel. Num artigo controverso, o
veterano argumentou que os filmes de heróis
eram rentáveis, mas de narrativas limitadas.
Não mereciam ser chamados de cinema e, sim,
de parques de diversões. Levantou-se então a
velha dúvida: afinal, o que é cinema? Scorsese ofereceu
uma resposta longa e inspirada à ques-
tão: “Para mim, cinema é revelação —
estética, emocional e espiritual.
É sobre pessoas e a comple-
xidade humana, suas con-
tradições e sua natureza

A RETOMADA
DAS TELAS
APÓS A CRISE SEM
PRECEDENTES, AS BILHETERIAS
MUNDIAIS SE RECUPERAM — EM
2023, O CINEMA CRESCEU MAIS DE
300% EM RELAÇÃO AO PERÍODO
DA PANDEMIA (VALORES EM
DÓLARES)
Fonte: portal Box Office Mojo

FOTOS MARVEL STUDIOS; ADITYA WAIKUL/THE TIMES


OF INDIA/AFP; WARNER BROS. PICTURES

2 | 15
INÊS 249

paradoxal, a qual é capaz de machucar e também de


amar o próximo — até que, eventualmente, quem assiste
se vê forçado a encarar a si mesmo”.
Feita no auge do sucesso dos valentões superpodero-
sos, a declaração robusta e emocionada de uma autorida-
de desse quilate acabou sendo interpretada por muitos, in-
felizmente, como um simples chororô de quem ficou para
trás no negócio. A chamada sétima arte, aquela tratada
como uma entidade sagrada por Scorsese, parecia naque-
les tempos estar mesmo fadada à extinção, e até o hábito
de ir ao encontro da velha magia da telona via-se ameaça-
do para sempre. Nos últimos anos, o cinema viveu um in-
ferno astral devastador, que o encurralou em diferentes

2018 2019

11,9 11,3
bilhões bilhões
O melhor ano de
arrecadação da
história, graças
a franquias de
super-heróis como
Vingadores

3 | 15
INÊS 249

fronteiras, dos heróis repetitivos à competição com o


streaming. O que parecia desafiador se transformou em
enredo de filme-catástrofe quando a pandemia da Co-
vid-19 fechou salas pelo mundo e atrasou todo o calendá-
rio de estreias. O vislumbre da volta à normalidade ainda
foi manchado, no ano passado, por uma longa greve de
roteiristas e atores em Hollywood.
Sobreviver, ainda bem, é uma arte na qual o cinema é
versado, como a história já mostrou algumas vezes (veja
quadro). Após chegar a ínfimos 2,1 bilhões de dólares de
arrecadação mundial em 2020, o setor bateu, em 2023,
nos 9 bilhões de dólares, um aumento de 300% em rela-
ção ao início da pandemia — mas ainda 20% abaixo dos
valores pré-Covid (veja gráfico). Ainda assim, a recupera-

A queda dramática: a Covid-19 2021


esvaziou as salas de exibição
4,5
2020 bilhões
2,1 bilhões

4 | 15
INÊS 249

ção impressiona, não só pelos muitos percalços, mas so-


bretudo pelos agentes desse impulso: pouco mais de 2,7
bilhões do total vieram de tramas espertas e acessíveis,
feitas com técnicas artesanais, numa combinação equili-
brada entre roteiro inteligente, atores inspirados e cenas
admiráveis. São exemplos ilustres dessa empreitada o ar-
rasa-quarteirão Barbie, maior bilheteria do ano passado, e
o surreal Pobres Criaturas. Originais, ambos exibem com
orgulho a exuberância de ce-
nários criados do zero e fei-
tos à mão, além de figurinos
elaborados que funcionam
quase como personagens

2022 2023

7,3 9
bilhões bilhões
O cinema resgatou
sua força sem
depender dos
heróis da Marvel:
Barbie passou
da marca de
1 bilhão de dólares
e Oppenheimer
está chegando lá

5 | 15
INÊS 249

PARAMOUNT PICTURES

OS PESOS-
PESADOS
Martin Scorsese e o
elenco de Assassinos
da Lua das Flores
(acima) e Emma Stone
em Pobres Criaturas
(ao lado): filmes
inteligentes com
produções primorosas
arrebataram
espectadores,
provando que tramas
originais são, sim,
rentáveis

SEARCHLIGHT PICTURES

6 | 15
INÊS 249

paralelos da história — são, ainda por cima, tramas de


teor feminista, num aceno às questões do mundo atual.
Boa parte dessas produções compõe a leva de filmes ce-
lebrada pelo Oscar deste ano, cuja cerimônia ocorrerá em
Los Angeles no domingo 10, atestando o vigor da retoma-
da artística e financeira da indústria. Um dos carros-chefes
do renascimento de Hollywood é o colossal Oppenheimer,
de Christopher Nolan. O filme que narra a história de J.
Robert Oppenheimer, físico criador da bomba atômica, in-
terpretado com vigor por Cillian Murphy, é uma resposta
prática do cineasta a seu apego às telas grandes. Nolan é
um velho crítico da Netflix e das demais plataformas de
streaming — sua maior preocupação é quando estas se im-
põem como primeiro exibidor de lançamentos, à frente das
salas de cinema, levando o espectador a ver filmes primei-
ro em TVs e até nas telas de celulares.
Perfeccionista, Nolan recriou com realismo o cenário
do Projeto Manhattan, no deserto de Los Alamos, onde
cientistas trabalharam no desenvolvimento das bombas.
Em esforço hercúleo, ainda rodou tudo com câmeras
Imax — ferramenta de maior resolução fotográfica do
mercado, mas um trambolho que pesa mais de 100 quilos.
Até a cena da detonação-teste da bomba, que poderia fa-
cilmente ter sido feita com computação gráfica, foi desen-
volvida de forma artesanal: a explosão filmada num am-
biente controlado usou uma mistura de gasolina, propano,
magnésio e pó de alumínio para replicar o brilho e o for-

7 | 15
INÊS 249

SEACIA PAVAO/FOCUS FEATURES

PEQUENOS
NOTÁVEIS
Os Rejeitados
(acima) e Ficção
Americana (à esq):
dramas cotidianos
excelentes e com
elencos diversos
viraram
queridinhos do
público entre os
indicados ao Oscar
AMAZON STUDIOS

8 | 15
INÊS 249

mato do assustador cogumelo nuclear. Não é que Nolan


seja totalmente avesso aos efeitos digitais — usados, sim,
com parcimônia em seus filmes. Segundo prega o diretor,
com razão, cenas computadorizadas são artificiais — lo-
go, não provocam no cérebro humano a emoção que uma
imagem mais próxima do real causa.
Detalhes como esse fazem toda a diferença e mostram
que cinema bom e cuidadoso muitas vezes custa caro.
Ciente disso, Martin Scorsese escolheu se aliar ao inimi-
go. Em busca de prestígio, a Netflix aderiu, pouco antes
da pandemia, à exibição em pré-estreia de alguns de seus
filmes nas salas de cinema antes do lançamento na plata-
forma. A decisão tornou as produções da empresa elegí-
veis ao Oscar — este ano, ela concorre com o filme Maes-
tro na categoria principal — e ainda atraiu cineastas que
são grifes no meio. Scorsese topou emprestar seu nome
para o streaming como forma de fazer frente à grana alta
que os grandes estúdios preferem investir nos super-he-
róis (eles de novo). Em 2019, fez O Irlandês com a Netflix
e, em 2023, gastou 200 milhões de dólares da parceria
entre Apple TV+ e Paramount para realizar o intrigante
Assassinos da Lua das Flores, inspirado na história real
de nativos americanos ricos usurpados por brancos, outro
título aclamado nas premiações.
Mesmo visto com desconfiança por parte dos cineastas,
o streaming se revelou um amigo valioso: mais que parcei-
ro de produção, instigou mudanças no hábito do especta-

9 | 15
INÊS 249

A24/DIVULGAÇÃO

LEGIÃO
ESTRANGEIRA
O japonês Dias
Perfeitos (à esq.)
e o britânico falado
em alemão Zona
de Interesse
(acima): cultura do
streaming trouxe
maior aceitação
de filmes de língua
não inglesa
DIVULGAÇÃO

10 | 15
INÊS 249

dor, como a abertura para títulos em língua não inglesa —


no Oscar deste ano, Zona de Interesse e Anatomia de uma
Queda foram exemplos primorosos dessa flexibilização. E,
para o bem e para o mal, se tornou casa de longas que se
perdem em poucas salas de cinema: no Brasil, Ficção Ame-
ricana entrou direto na plataforma Prime Video.
Mas talvez o maior trunfo de que a Netflix e cia. mereçam
se gabar é o de provar que a concorrência é uma dádiva para
o consumidor. Para sobreviver, circuitos exibidores começa-
ram a se reinventar, com salas melhores e telas de maior qua-
lidade. A própria Netflix adquiriu um cinema para chamar
de seu: a empresa comprou o tradicional Egyptian Theatre,
em Los Angeles, um gigantesco anfiteatro centenário, que
passou por uma reforma de 70 milhões de dólares.

AS REINVENÇÕES DE HOLLYWOOD
TRÊS MOMENTOS DA HISTÓRIA EM QUE A
INDÚSTRIA DO CINEMA ESPANTOU CRISES
COM CRIATIVIDADE

11 | 15
INÊS 249

Nessa toada, o baque da Covid nos exibidores começa


a se desfazer. No Brasil, a queda drástica das salas em
2020 foi superada: segundo dados do portal Filme B, em
2023 foram computadas 3 706 salas ativas no país, 200
a mais que as 3 507 de 2019. Já o número de espectado-
res ainda não superou a marca pré-pandêmica. Em 2019,
177 milhões de ingressos foram vendidos por aqui, con-
tra 118 milhões no ano pas-
sado, de acordo com a
empresa de dados
Comscore Movies.
No caso do cinema
nacional, as ra-
zões para o retor-

1939 HULTON ARCHIVE/GETTY IMAGES

AUGE DA ERA DE OURO


Os estúdios americanos penaram no início da
década de 1930, por causa da Grande Depressão.
Mas logo o caos econômico revelou-se oportunidade:
astros e tramas levantavam o moral dos cidadãos —
e inflavam as bilheterias. O ponto máximo desse
ciclo virtuoso movido a fantasia, heroísmo e
romance se deu no ano de clássicos como
…E o Vento Levou e O Mágico de Oz

12 | 15
INÊS 249

no lento vão além do período de exceção da quarentena


e encostam na trava do governo de Jair Bolsonaro às po-
líticas públicas de incentivo para o setor do audiovisual.
“Diferentemente do mundo, que voltou aos sets em 2021,
nós só retomamos a linha de produção no ano passado”,
analisa Bruno Wainer, fundador da Downtown Filmes,
principal distribuidora de longas brasileiros, que tem no
currículo a popular franquia de comédia Minha Mãe É
uma Peça. “Os sucessos nacionais são fundamentais pa-

DIVULGAÇÃO
1968

MUNDO DIVIDIDO
Hollywood lucrou vendendo ufanismo e esperança na
Segunda Guerra, mas no começo da Guerra Fria a crise
bateu: decisões antitruste e a perseguição macarthista
a astros, roteiristas e diretores impactaram a indústria.
A resposta veio com produções antológicas que usavam
de suspense, ficção científica e filosofia para expor a
paranoia política, como 2001 - Uma Odisseia no
Espaço e O Bebê de Rosemary

13 | 15
INÊS 249

ra o crescimento do setor, assim como a presença dos


grandes títulos de Hollywood.”
O horizonte é favorável, tanto para o cinema nacional,
que voltou à ativa, quanto para o maior polo mundial de
produção. Apesar do impacto que ainda se sentirá das
greves no mercado americano, alguns títulos prometem
fazer brilhar os olhos do público — e dos exibidores. O fil-
me Duna — Parte 2 chegou aos 189 milhões de dólares em
bilheteria no seu fim de semana de estreia, obtendo o me-

UNITED ARCHIVES GMBH/ALAMY/ FOTOARENA


1999

A VIRADA DIGITAL
No limiar do século XXI, o mundo temia o chamado
bug do milênio e a euforia inicial com a internet já dava
sinais de refluxo (o estouro da bolha da Nasdaq veio em
março de 2000). O primeiro filme da trilogia Matrix não
só renovou a ficção sobre e feita com alta tecnologia:
seu sucesso deu a largada à era das grandes franquias
de ação que se tornaram o ganha-pão de Hollywood
nas duas décadas seguintes

14 | 15
INÊS 249

NOVA FORÇA
Chalamet e
Villeneuve no set
de Duna 2 em
:

busca do bilhão

NIKO TAVERNISE/WARNER BROS. PICTURES

lhor resultado desde Barbie, em julho do ano passado. A


expectativa é de que a extravaganza no deserto do cana-
dense Denis Villeneuve, protagonizada por Timothée
Chalamet, ultrapasse a marca do bilhão. Ainda este ano, a
agenda de estreias indica uma continuidade do cenário
frutífero, aliando qualidade e rentabilidade. Furiosa, deri-
vado da saga Mad Max, a distopia Guerra Civil, do dire-
tor Alex Garland e da badalada produtora A24, Gladia-
dor 2, novo épico de Ridley Scott, e a adaptação do musi-
cal Wicked são promessas aguardadas até dezembro. A
magia do cinema está viva e pulsante. Como todo bom fil-
me, o drama enfrentado nos últimos anos se encaminha
para um final feliz e digno de muitos aplausos. ƒ

15 | 15
INÊS 249

CULTURA PERFIL

TALENTO
FLUIDO
Charmoso e galanteador de
homens e mulheres em
cena, o irlandês Andrew
Scott brilha do
cinema à TV — e
agora estrela o
drama agridoce
Todos Nós
Desconhecidos
KELLY
MIYASHIRO

CATIVANTE
Scott: do drama
JEFF SPICER/GETTY IMAGES

à comédia, ator
causa impacto
em tudo que faz

1|6
INÊS 249

TÍMIDO ao extremo quando criança, Andrew Scott mal


conseguia falar em público até ser matriculado em aulas
teatrais por iniciativa da mãe, uma professora de arte. No
começo, suas mãos tremiam — mas rapidamente ele se
apaixonou. Aos 17 anos, o jovem irlandês tomou a decisão
de ser ator. Ganhou seu primeiro papel em Korea (1995),
filme de baixo orçamento em que vivia um jovem de rela-
ção conturbada com o pai. À época, nem imaginava que
interpretações que mergulham na complexidade humana
o acompanhariam ao longo da carreira. Hoje, aos 47, Scott
atinge um ponto interessantíssimo de sua trajetória, ao co-
locar em cena um turbilhão de emoções no drama Todos
Nós Desconhecidos (All of Us Strangers, Inglaterra, Esta-
dos Unidos, 2023), em cartaz nos cinemas: na trama agri-
doce sobre o luto, ele faz um par romântico gay com Paul
Mescal, outro galã irlandês queridinho de Hollywood.
Na história, baseada no livro Strangers (1987), do japo-
nês Taichi Yamada, Adam (Scott) é um escritor solitário
que conversa com os pais, mortos em um acidente quando
ele era adolescente, e revela ser homossexual, lidando
com o preconceito que enfrentou de uma geração retró-
grada. Em meio ao confronto do protagonista com seu
passado, ele se relaciona com Harry (Mescal), um vizinho
sedutor que lhe mostra outras formas de enxergar a vida.
O personagem lhe rendeu uma indicação de melhor ator
no Globo de Ouro deste ano. Em entrevista a VEJA, o ator
ressalta que o trunfo do filme de Andrew Haigh é não se

2|6
INÊS 249

PARISA TAGHIZADEH/DISNEY PICTURES


ROMANCE GAY Cena de Todos Nós
Desconhecidos: parceria com Paul Mescal

apoiar nos roteiros batidos que mostram as pessoas LGB-


TQIA+ às voltas apenas com a discriminação e a violên-
cia. “Assumir-se para a família não costuma resultar em
rejeição ou acolhimento absolutos, mas algo entre os ex-
tremos”, diz o ator (leia no quadro).
Antes disso, Scott já havia chamado atenção por sua
maior especialidade: dar vida a tipos ambíguos (inclusive
sexualmente) que se revelam memoráveis. Com o vilão
Moriarty, de Sherlock (2010-2017), série da BBC estrelada
por Benedict Cumberbatch, acrescentou camadas de pér-
fida imprevisibilidade ao personagem clássico criado por
Arthur Conan Doyle. Também causou furor em Fleabag,
produção da BBC e do Prime Video, na pele do padre
“sexy” que roubava o coração da protagonista e criadora
Phoebe Waller-Bridge. Embora o sacerdote fosse a figura
menos sensual possível, Scott fez dele alvo do desejo de
milhões de espectadoras — adoração que, segundo ele, só

3|6
INÊS 249

AMAZON STUDIOS

O PADRE “SEXY” Com Phoebe Waller-Bridge


em Fleabag: química envolvente

ampliou sua timidez. Para além da contrastante galeria de


figuras humanas, é notável a capacidade de Scott de trafe-
gar de tramas homoafetivas a papéis de “machos héteros”
rematados, espelhando certa fluidez vista com naturali-
dade na geração atual. “É o maior ator da nossa época”,
define a (exagerada) amiga Phoebe Waller-Bridge.
Como gay assumido, o ator também defende mais pa-
péis em que homossexuais superem a pauta de “represen-
tatividade positiva”, abrindo caminho para personagens
erráticos e fascinantes (além de mais fiéis à realidade), co-
mo os de qualquer outro gênero. Sua próxima contribui-
ção nesse sentido será Ripley, minissérie da Netflix que
estreia em 4 de abril e na qual vive o adorável golpista
criado pela americana Patricia Highsmith — que usa de
sua lábia para seduzir um herdeiro ricaço e se apoderar de
seu estilo de vida. É preciso um talento imenso para exibir
tantas faces na tela. ƒ

4|6
INÊS 249

“SER GAY NÃO É


FALHA NEM VIRTUDE”
Andrew Scott fala sobre seu papel em Todos Nós Desco-
nhecidos e a “representatividade positiva”:

Em Todos Nós Desconhecidos, seu personagem


fica dividido entre a infância nos anos 1980 e um
romance gay contemporâneo, questionando se
houve avanço contra a homofobia desde então.
Qual a sua opinião? É difícil falar em nome da geração
atual, mas essa foi, com certeza, uma discussão que tive-
mos nos bastidores. Creio que haja um avanço na escala
global até certo ponto. Não resta dúvida sobre a melhoria
no trato de pessoas LGBTQIA+ na mídia, e hoje temos
acesso a representações muito melhores do que o pre-
conceito flagrante que era norma no fim dos anos 1980.
Mas uma nova onda preconceituosa está em alta — não ne-
cessariamente ligada a questões sexuais, mas a identida-
des de gênero.

5|6
INÊS 249

O que deseja que a história transmita? Espero


que as pessoas entendam que se assumir para a família
não costuma resultar em rejeição ou acolhimento absolu-
tos, mas algo entre os extremos. Muitos de nós nos senti-
mos diferentes de nossos parentes. Pode não ser o caso
em alguns núcleos, mas o mais comum é haver algum grau
de conflito. O filme abraça isso: não existe positividade tó-
xica aqui, mas tampouco dispensamos a esperança.

Tanto o filme quanto a série Ripley refutam a


ideia da “representatividade positiva” dos
gays. Por que contrariá-la? Um dos maiores perigos
da ideia de representação é quando minorias são simplifi-
cadas para a mera sinalização positiva. Quando persona-
gens se tornam caixinhas a serem preenchidas e viram al-
go que não reconhecemos, uma porta é fechada ao públi-
co. A sexualidade não é falha de caráter, mas também não
é virtude.

Thiago Gelli

6|6
INÊS 249

CULTURA LIVROS

REALISMO
SEM GRAÇA
O lançamento de um título inédito de Gabriel García
Márquez que ele preferia ver destruído expõe
um dilema: é ético publicar postumamente obras
renegadas por seus autores? DIEGO BRAGA NORTE
ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES

MESTRE LATINO O escritor colombiano: filhos decidiram


publicar novela de viés feminista contra a vontade do próprio pai

1|5
INÊS 249

“ESTE LIVRO não presta. Tem de ser destruído.” Com es-


sas palavras, Gabriel García Márquez (1927-2014) deixou
claro o destino que desejava para a última obra ficcional
que escreveu, Em Agosto Nos Vemos. Perfeccionista, ele
não aprovou o resultado, apontando falhas estruturais e
incongruências narrativas. Assim, o lançamento global do
livro em 41 idiomas, na quarta-feira 6, quando Gabo com-
pletaria 97 anos, contraria francamente o desejo do Nobel
colombiano. Logo na introdução, assinada por Rodrigo e
Gonzalo García Bacha, filhos do autor, já há o mea culpa e
a defesa da decisão tomada. Eles admitem que a publica-
ção foi um “ato de traição”, mas mencionam a possibilida-
de de que “o declínio de suas faculdades mentais, que não
permitiu a Gabo terminar o livro, também o impediu de
perceber como ele estava bem-feito”.
Em conversa com VEJA, Gonzalo disse que ele e seu
irmão não estão no “ramo de destruir livros”. E comple-
tou: “Pelo contrário, estamos no negócio de fazer produ-
tos culturais”. Gonzalo é editor e Rodrigo, diretor de ci-
nema. Há ainda questões legais (e financeiras) envolvi-
das. Todo o acervo de García Márquez — incluindo ras-
cunhos, manuscritos originais e inéditos, cartas, fotos
etc. — foi consignado à Universidade do Texas, em Aus-
tin. Gonzalo conta que a família optou pela instituição
com o intuito de deixar o material livremente acessível e
vivo. De fato, o trabalho que a universidade vem fazendo
é notável: já digitalizou mais de 27 000 itens para consul-

2|5
INÊS 249

tas on-line em espanhol e inglês,


e o acervo completo está dispo-
nível para pesquisas no local,
gratuitamente.
O livro recém-publicado esta-
va no acervo e vinha sendo lido
por pesquisadores e aficionados
do autor. “Faz dez anos que as
pessoas estão lendo e começa-
ram a aparecer algumas resenhas
e críticas na internet”, diz Gon-
zalo. Com isso, os herdeiros lan- EM AGOSTO
çaram o título para resguardar NOS VEMOS,
seus direitos. “Enquanto um livro de Gabriel García
não tem registro internacional, Márquez (tradução de
está mais exposto à possibilidade Eric Nepomuceno;
de vir à luz não oficialmente”, Record; 132 páginas;
completa. Gonzalo garante que 59,90 reais e 39,90
essa é a 11ª e última novela do au- reais em e-book)
tor. Não há mais nada em seu baú
que seja publicável.
A decisão de publicar ou não obras inéditas de um au-
tor morto é recorrente. Talvez o caso mais famoso seja do
tcheco Franz Kafka (1883-1924). Antes de sua morte por
tuberculose, ele pediu que o amigo Max Brod destruísse
seus escritos. Caso Brod tivesse respeitado o pedido, a
humanidade jamais leria obras como O Castelo e O Pro-

3|5
INÊS 249

cesso. Para Idalia Morejón Arnaiz, especialista em litera-


tura hispano-americana da USP, a escolha é sempre com-
plicada. “Há casos em que todo mundo ganha, como o de
Kafka. Mas há casos em que só o mercado editorial ga-
nha. Os autores acabam diminuídos por terem obras fra-
cas publicadas em seu nome”, explica. Para ela, a opção
deveria ser sempre estética. “Se algo é sabidamente ruim,
por que publicar?”, provoca.
Outro caso famoso é o do chileno Roberto Bolaño. Pou-
co antes de morrer, em 2003 (ele teve falência hepática,
ACERVO IEB FOTOTECA GILARDI/GETTY IMAGES RAPHAEL GAILLARDE/ GAMMA-RAPHO/GETTY IMAGES

ALÉM DA VIDA A partir da esq., três autores editados


postumamente: Graciliano refutava o poema exumado, Kafka
mandou destruir textos que viraram clássicos e Bolaño
planejou o uso de seu legado pela família

4|5
INÊS 249

agravada pelo consumo de drogas e álcool), deixou orien-


tações bem específicas para a publicação póstuma de seus
romances, pois sabia que a morte chamaria atenção para
sua obra e queria garantir que seus familiares lucrassem
com os livros. No entanto, não mencionou nenhuma pala-
vra sobre poemas escritos na juventude, guardados em ga-
vetas e postumamente editados. Provavelmente, ele sabia
que sua poesia juvenil era muito aquém de seus romances.
Mais recentemente, tivemos no Brasil a publicação de
um poema escrito por Graciliano Ramos, Os Filhos da Co-
ruja. O feito só foi possível porque sua obra entrou em do-
mínio público e os herdeiros perderam o controle sobre
ela. Ainda em vida, Ramos pediu que os familiares jamais
publicassem suas poesias. Seu neto, Ricardo Ramos Filho,
classificou a edição como “uma sacanagem enorme”.
O novo livro de García Márquez, uma novela ligeira,
certamente não é a melhor coisa que ele escreveu. Abun-
dam construções e adjetivos que soam como se o autor es-
tivesse parafraseando a si mesmo: “...o céu estava diáfano
e cheio de estrelas, com uma lua solitária e triste”. Ainda
assim, há méritos, sobretudo no intuito feminista, que po-
de satisfazer a geração atual. A protagonista, uma mulher
de 46 anos que se casou virgem, busca aventuras sexuais
fora do casamento. Mas a emancipação feminina que se
anuncia é timidamente explorada. Faltam realismo e ma-
gia à história. Uma pena quando o autor é justamente o
mestre do realismo mágico. ƒ

5|5
INÊS 249

CULTURA VEJA RECOMENDA

ÁCIDO Daniel Ings em


Magnatas do Crime :
CHRISTOPHER RAFAEL/NETFLIX

família aristocrática
envolvida no submundo
do tráfico de drogas

TELEVISÃO
MAGNATAS DO CRIME
(disponível na Netflix)
Eddie (Theo James) é a elegância em pessoa. O rapaz, pro-
veniente de uma família aristocrática inglesa, é educado,
ponderado e inteligente — o total oposto de seu irmão mais
velho, o inconsequente Freddy (Daniel Ings). Mesmo assim,
todos se chocam ao descobrir, quando o pai morre, que o ca-
çula será o novo administrador da herança em vez do pri-
mogênito. Eddie, então, não conseguirá manter a classe por
muito tempo: logo o rapaz se vê enrolado nas tramoias do
irmão e também do pai, que manteve as terras do clã lucrati-
vas graças ao arrendamento de parte do terreno para trafi-
cantes de maconha. Criação do diretor inglês Guy Ritchie, a
série em oito episódios tem todos os elementos típicos do ci-
neasta: adrenalina, crimes, reviravoltas, violência e o humor
ácido inglês elevado à décima potência.

1|8
INÊS 249

LIVRO
BELOS FRACASSADOS,
de Leonard Cohen (tradução de Daniel de Mesquita
Benevides; Todavia; 280 páginas; 79,90 reais e 49,90
reais em e-book)
Antes de se consagrar como poeta e
ídolo da música folk, o canadense Leo-
nard Cohen (1934-2016) se aventurou
brevemente pela prosa. Lançou só dois romances, dos quais
o segundo, Belos Fracassados, é o mais curioso: Cohen o
criou sob efeito de ácido e anfetaminas quando morava nu-
ma ilha grega. A obra de 1966 agora ganha sua primeira
edição no país. Cômica e delirante, segue um narrador sem
nome que reconta suas memórias a uma santa católica de
origem indígena, por quem nutre desejo obsessivo.

LITERATURA
POP Leonard
Cohen: romance
curioso escrito
sob efeito
de LSD
BRIAN RASIC/GETTY IMAGES

2|8
INÊS 249

DISCO
LIAM GALLAGHER & JOHN SQUIRE
(nas plataformas de streaming)
Irmão mais encrenqueiro do Oasis, Liam Gallagher já afir-
mou que até cogita uma volta da banda com Noel. Neste ál-
bum, em parceria com John Squire, guitarrista da igual-
mente influente banda dos anos 1990 Stone Roses, ele che-
ga o mais próximo possível do que seria um improvável re-
torno do grupo, ao resgatar a sonoridade do britpop em ar-
ranjos que misturam o DNA do Oasis e do Stone Roses.
Exemplos disso são a contagiante Just Another Rainbow e
pérolas como I’m So Bored, cujos riffs de guitarra remetem
a Beatles e Jimi Hendrix. ƒ

3|8
INÊS 249

CULTURA OS MAIS VENDIDOS

OS MAIS VENDIDOS
FICÇÃO
1 A BIBLIOTECA DA MEIA-NOITE
Matt Haig [2 | 77#] BERTRAND BRASIL

2 TUDO É RIO
Carla Madeira [3 | 75#] RECORD

3 É ASSIM QUE ACABA


Colleen Hoover [5 | 129#] GALERA RECORD

4 OS SETE MARIDOS DE EVELYN HUGO


Taylor Jenkins Reid [4 | 112#] PARALELA

5 A EMPREGADA
Freida McFadden [6 | 11#] ARQUEIRO

6 VERITY
Colleen Hoover [7 | 91#] GALERA RECORD

7 UM DEFEITO DE COR
Ana Maria Gonçalves [1 | 3] RECORD

8 É ASSIM QUE COMEÇA


Colleen Hoover [8 | 67] GALERA RECORD

9 IMPERFEITOS
Christina Lauren [9 | 20#] FARO EDITORIAL

10 A REVOLUÇÃO DOS BICHOS


George Orwell [0 | 243#] VÁRIAS EDITORAS

4|8
INÊS 249

NÃO FICÇÃO
1 MULHERES QUE CORREM COM OS LOBOS
Clarissa Pinkola Estés [0 | 179#] ROCCO

2 NAÇÃO DOPAMINA
Dra. Anna Lembke [2 | 33#] VESTÍGIO

3 QUARTO DE DESPEJO — DIÁRIO DE UMA FAVELADA


Carolina Maria de Jesus [3 | 66#] ÁTICA

4 O PRÍNCIPE
Nicolau Maquiavel [4 | 35#] VÁRIAS EDITORAS

5 EM BUSCA DE MIM
Viola Davis [9 | 69#] BEST SELLER

6 MEDITAÇÕES
Marco Aurélio [0 | 41#] VÁRIAS EDITORAS

7 SAPIENS: UMA BREVE HISTÓRIA DA HUMANIDADE


Yuval Noah Harari [0 | 359#] L&PM/COMPANHIA DAS LETRAS

8 OI, TCHURMA
Karla Felmanas [0 | 1] COMPANHIA EDITORA NACIONAL

9 O PARQUE DOS LOBOS


Henrique Prata [0 | 2#] GENTE

10 BOX BIBLIOTECA ESTOICA: GRANDES MESTRES


Vários autores [5 | 30#] CAMELOT EDITORA

5|8
INÊS 249

AUTOAJUDA E ESOTERISMO
1 CAFÉ COM DEUS PAI 2024
Junior Rostirola [1 | 11#] VÉLOS

2 EU, EMPREENDEDOR
Leonardo Mack [0 | 1] GENTE

3 INOVE PARA SER ÚNICO


Johnathan Alves [5 | 5#] GENTE

4 HÁBITOS ATÔMICOS
James Clear [7 | 38#] ALTA BOOKS

5 O HOMEM MAIS RICO DA BABILÔNIA


George S. Clason [6 | 158#] HARPERCOLLINS BRASIL

6 ALMA FERIDA, ALMA CURADA


Pe. Reginaldo Manzotti [2 | 2#] PETRA

7 FORTE
Lisa Bevere [3 | 9#] THOMAS NELSON BRASIL

8 A CORAGEM DE SER IMPERFEITO


Brené Brown [0 | 71#] SEXTANTE

9 A PSICOLOGIA FINANCEIRA
Morgan Housel [0 | 25#] HARPERCOLLINS BRASIL

10 ESSENCIALISMO
Greg McKeown [10 | 33#] SEXTANTE/GMT

6|8
INÊS 249

INFANTOJUVENIL
1 O PEQUENO PRÍNCIPE
Antoine de Saint-Exupéry [1 | 408#] VÁRIAS EDITORAS

2 DEUSA DE SANGUE
FML Pepper [0 | 2#] PLANETA MINOTAURO

3 MELHOR DO QUE NOS FILMES


Lynn Painter [2 | 10#] INTRÍNSECA

4 HARRY POTTER E A PEDRA FILOSOFAL


J.K. Rowling [4 | 417#] ROCCO

5 MALALA — A MENINA QUE QUERIA IR PARA A ESCOLA


Adriana Carranca [3 | 36#] COMPANHIA DAS LETRINHAS

6 O MAR ME LEVOU A VOCÊ


Pedro Rhuas [5 | 3] SEGUINTE

7 ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS


Lewis Carroll [0 | 1] VÁRIAS EDITORAS

8 CORALINE
Neil Gaiman [0 | 69#] INTRÍNSECA

9 O MENINO DO DEDO VERDE


Maurice Druon [6 | 3#] JOSÉ OLYMPIO

10 A DROGA DA OBEDIÊNCIA
Pedro Bandeira [10 | 10#] MODERNA

7|8
INÊS 249

[A|B#] — A] posição do livro na semana anterior B] há quantas semanas


o livro aparece na lista #] semanas não consecutivas

Pesquisa: Bookinfo / Fontes: Aracaju: Escariz, Balneário Camboriú: Curitiba, Barra Bonita: Real
Peruíbe, Barueri: Travessa, Belém: Leitura, SBS, Travessia, Belo Horizonte: Disal, Jenipapo,
Leitura, Livraria da Rua, SBS, Vozes, Bento Gonçalves: Santos, Betim: Leitura, Blumenau:
Curitiba, Brasília: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Vozes, Cabedelo: Leitura, Cachoeirinha:
Santos, Campina Grande: Leitura, Campinas: Disal, Leitura, Livraria da Vila, Loyola, Senhor
Livreiro, Vozes, Campo Grande: Leitura, Campos do Jordão: História sem Fim, Campos dos Goytacazes:
Leitura, Canoas: Mania de Ler, Santos, Capão da Canoa: Santos, Caruaru: Leitura, Cascavel: A
Página, Colombo: A Página, Confins: Leitura, Contagem: Leitura, Cotia: Prime, Um Livro, Criciúma:
Curitiba, Cuiabá: Vozes, Curitiba: A Página, Curitiba, Disal, Evangelizar, Livraria da Vila, SBS,
Vozes, Florianópolis: Curitiba, Catarinense, Fortaleza: Evangelizar, Leitura, Vozes, Foz do Iguaçu: A
Página, Frederico Westphalen: Vitrola, Garopaba: Livraria Navegar, Goiânia: Leitura, Palavrear, SBS,
Governador Valadares: Leitura, Gramado: Mania de Ler, Guaíba: Santos, Guarapuava: A Página,
Guarulhos: Disal, Leitura, Livraria da Vila, SBS, Ipatinga: Leitura, Itajaí: Curitiba, Jaú: Casa
Vamos Ler, João Pessoa: Leitura, Joinville: A Página, Curitiba, Juiz de Fora: Leitura, Vozes, Jundiaí:
Leitura, Limeira: Livruz, Lins: Koinonia, Londrina: A Página, Curitiba, Livraria da Vila, Macapá:
Leitura, Maceió: Leitura, Livro Presente, Maringá: Curitiba, Mogi das Cruzes: A Eólica Book Bar,
Leitura, Natal: Leitura, Niterói: Blooks, Palmas: Leitura, Paranaguá: A Página, Pelotas: Vanguarda,
Petrópolis: Vozes, Poços de Caldas: Livruz, Ponta Grossa: Curitiba, Porto Alegre: A Página, Cameron,
Disal, Leitura, Macun Livraria e Café, Mania de Ler, Santos, SBS, Taverna, Porto Velho:
Leitura, Recife: Disal, Leitura, SBS, Vozes, Ribeirão Preto: Disal, Livraria da Vila, Rio Claro: Livruz,
Rio de Janeiro: Blooks, Disal, Janela, Leitura, Leonardo da Vinci, Odontomedi, SBS, Rio Grande:
Vanguarda, Salvador: Disal, Escariz, LDM, Leitura, SBS, Santa Maria: Santos, Santana de Parnaíba:
Leitura, Santo André: Disal, Leitura, Santos: Loyola, São Bernardo do Campo: Leitura, São Caetano do
Sul: Disal, Livraria da Vila, São João de Meriti: Leitura, São José: A Página, Curitiba, São José do Rio
Preto: Leitura, São José dos Campos: Amo Ler, Curitiba, Leitura, São José dos Pinhais: Curitiba, São
Luís: Hélio Books, Leitura, São Paulo: A Página, B307, Círculo, Cult Café Livro Música, Curitiba,
Disal, Dois Pontos, Drummond, HiperLivros, Leitura, Livraria da Tarde, Livraria da Vila,
Loyola, Megafauna, Nobel Brooklin, Santuário, SBS, Simples, Vozes, Vida, WMF Martins
Fontes, Serra: Leitura, Sete Lagoas: Leitura, Taboão da Serra: Curitiba, Taguatinga: Leitura, Taubaté:
Leitura, Teresina: Leitura, Uberlândia: Leitura, SBS, Umuarama: A Página, Vila Velha: Leitura, Vitória:
Leitura, SBS, Vitória da Conquista: LDM, internet: Amazon, A Página, Authentic E-commerce,
Boa Viagem E-commerce, Canal dos Livros, Curitiba, Leitura, LT2 Shop, Magazine Luiza,
Sinopsys, Submarino, Travessa, Um Livro, Vanguarda, WMF Martins Fontes

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JOSÉ CASADO

O TEMPO E O EGO
LULA, na terça-feira 5, na semana passada: “Essa é a pri-
meira reunião em que a gente está assumindo publicamente
o compromisso de que, ao terminar o meu mandato, no dia
31 de dezembro (de 2026), a gente não vai ter mais ninguém
passando fome por falta de comida neste país. Esse é um
compromisso que nós temos que cumprir. Daqui pra frente é
muito trabalho e pouca conversa...”.
Lula, no domingo 26 de janeiro de 2003: “A face mais vi-
sível das disparidades são os mais de 45 milhões de brasilei-
ros que vivem abaixo da linha da pobreza. O seu lado mais
dramático é a fome, que atinge dezenas de milhões de ir-
mãos e irmãs brasileiras. Por essa razão, fizemos do comba-
te à fome nossa prioridade. Não me cansarei de repetir o
compromisso de assegurar que os brasileiros possam, todo
dia, tomar café, almoçar e jantar...”
Passaram-se vinte anos entre esses dois verões, metade de-
les com Lula no governo. Ele continua a surfar na ambiguida-
de sobre cumprir ou não o velho “compromisso” antes ou de-
pois da próxima eleição, em 2026: “Eu falei (em) quando ter-
minar o meu mandato, mas me deram tanto livro para ler (so-
bre a fome) que eu não sei se termina em um mandato só”. É a

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forma de lembrar seu direito de disputar a reeleição — que na


campanha prometeu acabar, mas esqueceu ao subir a rampa
do Palácio do Planalto, como fez o adversário Jair Bolsonaro,
agora inelegível.
Se até lá nada mudar, o Brasil estará bem próximo de
completar meio século estagnado no baixo crescimento, si-
tuação inédita na história da República. O resultado econô-
mico do ano passado (aumento de 2,9% no PIB) confirma o
ritmo insuficiente de desenvolvimento (média de 2,4% nos
últimos vinte anos) para mudar as condições básicas de vida
na sociedade de 203 milhões.
O país já percorreu quase um quarto do século XXI sus-
tentando, segundo a ONU, um nível de concentração de ren-
da pouco melhor que o do Zimbábue, pedaço do sul da Áfri-
ca onde sete em cada dez pessoas sobrevivem com menos
de 800 reais por mês. Pelas lentes privadas, como as do ban-
co suíço UBS, em 2023 manteve-se na liderança global de
iniquidade social.
Há gerações de brasileiros com ambições frustradas
nesse longo ciclo de esquálido desenvolvimento com ro-
busta desigualdade social. Mais de 100 milhões — meta-
de da população — vivem com renda média quarenta ve-
zes menor que a dos 2 milhões de brasileiros mais ricos.
Nesse grupo se destaca a multidão de prisioneiros da in-
segurança alimentar que há três governos Lula promete
resgatar. Desta vez, anuncia, com “muito trabalho e pou-
ca conversa”.

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“Lula tem 34 meses de


mandato, o suficiente
para as mudanças que
promete há vinte anos”
Restam-lhe 34 meses no Planalto. Talvez seja pouco para
governantes que só pensam na reeleição desde o primeiro
dia do mandato. Mas pode ser tempo suficiente para mu-
danças relevantes quando no governo se percebe a diferença
entre o futuro e o dia seguinte. Na política, como na física, o
tempo é relativo.
Uma decisão de Franklin Delano Roosevelt, na Casa
Branca, mudou o rumo da História. Passaram-se trinta me-
ses entre a segunda-feira 16 de novembro de 1942, quando o
físico Robert Oppenheimer escolheu o lugar para o seu la-
boratório em Los Alamos, no Novo México (EUA), e o lan-
çamento da bomba atômica nas cidade japonesa de Hiroshi-
ma, na segunda-feira 6 de agosto de 1945. Lula nasceu onze
semanas depois desse ataque.
Era um garoto de 11 anos na Vila Carioca, no bairro do
Ipiranga, em São Paulo, quando Juscelino Kubitschek assu-
miu o governo e tomou uma decisão que mudou o Brasil. No
dia seguinte à posse, quinta-feira 2 de fevereiro de 1956, ele

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reuniu o ministério no Palácio do Catete, no Rio, para o eco-


nomista Roberto Campos mostrar o Plano de Metas, versão
renovada da inovadora e bem-sucedida tática de governar
de Getúlio Vargas. Campos contou ao historiador Ronaldo
Costa Couto que, ao encerrar a apresentação, Juscelino pe-
diu-lhe a inclusão de uma “meta-síntese”, que harmonizaria
todas as demais com objetivo central do novo governo: a
construção de Brasília, inaugurada cinquenta meses depois,
à meia-noite da quinta-feira 21 de abril de 1960.
Aos 78 anos de idade, Lula governa pela terceira vez um
país com os mesmos problemas estruturais de renda, edu-
cação, saúde e segurança — inclusive alimentar — que
existiam quando chegou ao Planalto duas décadas atrás.
Ainda tem tempo para fazer as mudanças que julga neces-
sárias, até agora adiadas. As pesquisas dos últimos meses
sugerem que, aos olhos dos eleitores, talvez precise enco-
lher o ego para abrir mais espaço ao Brasil na cadeira de
presidente da República. ƒ

ƒ Os textos dos colunistas não refletem


necessariamente as opiniões de VEJA

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