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UMA TRAJETORIA RACISTA: O IDEAL DE PUREZA DE SANGUE NA SOCIEDADE IBERICA E NA AMERICA PORTUGUESA Grayce Mayre Bonfim Souza RESUMO: Ente artigo tem por objetivo apresentar algimas considerarses acerca da politica de purexa de ssangue presente nas sociedadesibéricas durante o Antigo Regime. As instituigbes desse perioda estavam respaldatias por una ampla legislagto eclesiastica e civil tradusgida na forma de editos, decretos, ordenardese reginentos, que impedian os passuidores de sangue “maculado” ae ingressar em ordens militares, Miserivérdia, cargos piiblicos ¢ ecesidsticas, sobretudo nos correspondentes & bierarquita inguisitorial. Além dos judens, também os moures, cganos, negros ¢ indios foram estigmatizados pela legislagto vigente. Esta postura adotada pelas monarquias ibéricas se configures claramente como um racismo institucionalizade, reservando apenas aos cristdos-velbos a ocupactio de funeies na sociedade no dxmbito civil e religioso. PALAVRAS-CHAVE: Citto-noon Priticasjudaizantes: Pura ce saneye. Santo Opti (Os crimes cometidos pela Igreja sbérica na ¢poca modema ¢ pelo narismo no século NX sie encobertos pela tradicional judeofabia, que penetra cada ver mais fundo no inconsciente coletivo, Anita Novinsky ‘A jndeofobia é um fenédmeno histérico que se estende por varios sécuilos ese manifesta em diferentes culturas. Ainda no petiodo anterior ao surgimento * Professara da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uest)). Mestre em Cstncias Sociais pela Pontificia Universidade Catélica de SGo Paulo (PUC-SP) e doutorande em Historia Social pela Universidade Federal a Bahia (Ufba). E-mail: grayeebs@vahoo come. POLITELY Hist e Soe ‘Vises de Coaguaita se] alles 84 Grayce Mayre Bonfim Souza do ctistianismo, elementos marcantes do judaismo, como a circuncisio, 0 sabat, a abstencio de came suina, a asnolatria (adoracio da cabeca de asno) ¢ até mesmo © monoteismo foram vistos com estranheza e condenados por parte das populagées que compuseram o mundo greco-romano. A estigmatizacio dos judeus tomnou-se mais critica a partir do momento em que o ctistianismo foi elevado A categoria de “teligifio do Ocidente”. Desde entio, como resume Maria Tucci Carneizo (2000, p. 7), 0 tiatamento dispensado aos judeus foi “caracterizado por txés etapas: conversio, expulsio ¢ eliminacao” Em relacio ao cristianismo, podemos dizer que, desde a Antiguidade, a sua relacio com o judaismo foi bastante conflituosa, comecando pela acusacio de que os judeus seriam os responsiiveis pela morte de Cristo e deviam ser considetados, portanto, como um “povo deicida”. No final do Império Romano, embora a religiio judaica fosse tolerada, 0s judeus comecaram a softer restricdes e discriminacdes na vida civil: passaram a ser proibidos de casar com cristios, de servir no exército, de exercer cargos administrativos e de praticar a advocacia. No perfodo que comporta 0s séculos V ao IX, alguns governantes civis e religiosos buscaram adotar politicas de tolerancia e nao perseguicio aos judeus, Os exemplos mais claros foram o do papa Gregério I (590-604) — que nao permitin o ataque a sinagogas — eo de Carlos Magno (771-814) Entretanto, a partir do fim do periodo carolingio, a politica antijudaica se tornon parte integrante e importante de um projeto da Igreja crista do Ocidente, de solidificacio da hegemonia ¢ unidade monolitica da fé E nesse contexto que se verifica, na Peninsula Ibézica, a ampliacao das acnsacdes com relacao A chamada “gente da nacao”. Os judeus foram, desde entao, considerados responsveis por terremotos, culpados por envenenamento de cristdos, acusados de ajudar a resisténcia monra, na Peninsula Tbérica, e a ocupacdo nozmanda, no norte da Franca; foram sesponsabilizados, também, pelo fenémeno da peste negra, que assolou parte da Europa no século XIV,’ € por outras epidemias. As Cruzadas também estimulacam o fanatismo antijudaico — embora muitos papas tivessem condenado a perseguicao — ea literatura ¢ 0 teatzo se encarregaram de deixar para a posteridade a imagem que “Ducante a peste negca, um certo mimero de Sram: foi perpetrado na Rendnia pelos flagelantes, bandos e penitentes mistcos logo combatidos pels Ipzeja, mas que se tomavam por cristios de elite. Além disso, 2s pplopnas autoridades religiosas no haviam anteriormente sugesido que os judeus podiam ser enveneradores? Desde 1267 os concilios de Breslau e de Viens tinham proibido os ristios de comprar viveses dos isralitas” (Devumav, 1993, p. 283) Una irajetivia racista: o ideal de purega de sangue 85 os homens as instituicées faziam dos judeus na Peninsula Ibézica durante 0 petiodo medieval. Os boatos ¢ acusacdes contra os judeus s6 sumentavam: torna-se cotente a “citculacio do mito do assassinio ritual de um czistio para mistuzar © seu sangue ao piio azimo na Pasco” (Lorez, 1993, p. 66). Sdo reincidentes também as acusacées de profanacio da héstia, de envenenamento de pocos de agua etc. No final da Idade Média, a perseguico se fundamenta na associacio entre 0 sabat dos judeus e as ceriménias situais das bruxas. Um judeu nfio podia ter servidores cristfios ¢ nem bens iméveis, 0 que dificultava 0 seu acesso @ aguicultuza; por forca das espulsées as quais estava continuamente sujeito, $6 poderia ter um patriménio facil de carzegar Dentze outras limitacdes ¢ humilhagdes impostas aos judeus, pode-se citar a obsigatoriedade de utilizacio da rodela (cizculo de pano amarelo sobre a roupa), oconfinamento em guetos e a acusacio de avidez, de ganancia e de exercicio de priticas de usura. Em Avignon, eles s6 podiam sair 4s ruas utilizando brincos e, na Pérsia, durante o século XVI, para sair de casa, deveriam carregar uma tora de madeira Em 1628, Felipe III de Portugal fez algumas concessées possibilitando, pore semplo, o casamento entre judeus ¢ cristios em troca de grandes quantias. Porém, a reacio de setores da populacii foi tao ferrenha que o rei foi obrigado a tever stias decisées. Os judens foram, entio, acusados de provocar os males do eino, Divulgava-se, por meio de escritos, que eles “eram os culpados pelo enfraquecimento do valor lusitano, por terem inoculado 0 judaismo, religiao € raca, ow ainda, que o tinham debilitado pelo amor do Inxo e das riquezas inentidos a0 povo” (Satvapor, 1976, p. 4-5) As humilhacdes 4s quais 0s judens estavam sibmetidos nao eram atitudes aleatdrias de governantes, religiosos ou da populacio cristi-velha; exam, antes de tudo, priticas institucionalizadas por meio de editos, decretos ¢ Ordenacdes. As “Ordenacées Filipinas”, versio atualizada das “Ozdenacoes Manvelinas”, promulgadas no governo de Felipe II, no ano de 1603, detesminavam: Os Movsos ¢ Judeos, que em nossos Reinos andarem com nossa licenca, assi sejio conhecidos, convém a sabes, os judeos cazapuca, ou chapeu amarello, e os Mouros lmma lus de panno vermelho de quatzo dedos, cosida no hombio diseito, na capa e no pelote. E 0 que nao trouxer, ou 0 trouxer cobesto, seja preso, ¢ pague pola primeica vez mil rdis da Cadéa. E pola segunda dows mil séis para 86 Grayce Mayre Bonfim Souza © Meitinho, que o prendes. E pola terceira, seja confiseado, ora seja Oadvento das Reformas Protestantes nao modificou significativamente a situacio dos judeus. Embora, nos paises calvinistas, tenham sido adotadas politicas de tolexincia seligiosa, nas demais regides protestantes manteve-se o quadio de intolexincia e perseguicio: No século XVI, nas regiées calvinistas e nos paises anglo-saxdes, adotou- se uma politica de toler4ncia em relagio 20s judeus, os quais, inclusive, se tomazam um dos temas preferenciais da arte de Rembrandt. A tolexfincia calvinista era resultado da afinidade ideologica, jA que cles valorizavam, de um modo muito especial, o Velho Testamento. Quanto a Lutero,em 1523, conclamou a aceitacao dos juceus, mas, anos mais tarde, em 1542, exigin a destruicio das sinagogas ¢ a expulsio deles, presumivelmente frustrado em seus esfoxcos para converté-los (LozEz, 1993, p. 69). Mesmo entre os iluministas, de propalados ideais racionalistas e deistas, é possivel observar, em que pesem algumas condenacées & disctiminacéo aos judeus, manifestacdes racistas © preconceituosas, que prolongam conviccées exibidas por intelectuais e tedlogos dos séculos anteriores. Somente com a Constituicéo Francesa de 1791 os judeus tetiam acesso a um estatuto juridico de plena cidadania. © Luminismo nfo alumbrou, na mesma hora, todos os desviios da intolerincia. Mesmo na Franga manteve-se um ranco medieval na pregagio humanista dos filésofos, que combatiam as perseguicdes mas conviviam com preconceitos. Como todos os avancos, foi uma colecéo de ambigiiidades. Montesquieu sidiculasizou a Inquisicio mas registrou que “em qualquer paste que haja dinheiro, ha judeus” (SL). No Bupirite das Leis (SXV, 13), ataca 0 SO [Santo Oficio], mas nao hesita em propor a segregacao dos judeus em uma cidade fronteisica com a Espanhs, entreposto racial e de comércio. Voltaize disfarcava seu racismo com o Odio ao sectazismo scligioso, do qual 0 juden seria exemplo: “Se se pode conjeturar sobre o carater de uma nacio pelas preces que faz a Deus, pescebe-se facilmente que os judeus sio um povo sanguinario” (Ensa‘o sobre os Costumes das Nagtes) Diderot, em nome da tolerdncia, inimiga das religides, fustigava judens e galileus. Dos 618 verbetes do Dictionnaire Philosophique, cexca de trinta denegsiam os judeus ¢ um destes assim terminava: “porém Ordenagoes Filipinas, Livro V, Titulo XCIV; p. 1243. Compiledo da edisio de Cindido Mendes de Almeida Rio de Janciza, 1870) Una ivajetivia rack sa: 0 ideal de pureza de sangue 87 nao se deve queimé-los”. Rousseau, 0 idealista, também cometeu seu pecadilho iluminado: judeus so “o mais vil dos povos” [..] Drxzs, 1992, p. 78). Nas monarquias ibéricas do Antigo Regime, o preconceito histérico contra os judeus foi coroado com © racismo institucionalizado, como se pode atestar a partir de diversas disposicées das Ordenacdes do Reino! dos Estanutos das Ordens Militares, Religiosas e de Misericérdia e dos Regimentos da Inqnisicio+ Os procuradores que houverem de procusaz no santo officio da Inguisicio sezem pessoas de confianga leas conscigucia © sem suspeita de Raga de judeu nem mouro, os quais no procuraram por distsibuigao, mas antes ficara livre as partes, nomearem aqueles de que mais confianca tiveram e mais confiarem sua justica> No segundo pardgrafo do Regimento de 1640 do Santo Oficio da Inquisicio Portuguesa so feitas as seguintes exigéncias para os ministros € oficiais: que fossem naturais do reino, ctistios-velhos, limpos de sangue, nio tivessem “incozrido em alguma infiimia publica”, nem sido presos ou penitenciados pela Inquisigio e que sua descendéncia no fosse maculada. As exigéncias para os oficiais leigos se estendiam, também, para suas consortes.® Segundo Daniel Calainho, “nas Oxcenagdes Manuelinas de 1514/1521 os eristlos-novos passaram a ser isciminados na vida publica € religiosa, considecados como ‘flhos da maldiglo’, supostamente obstinados no dio 4 Fé Catélica e na promocio dos ‘grandes males’ ‘blasfémios contra o Reino’. Sev ‘sangve impuso” transformava-os em um grupo de paris, tomando o lugar dos judeus enquanto foco de estigma e persegucao, ‘expressos num sol de medidas egais que so tendeu a aumentara partido século XVI, genecalizando-se, portanto, fos estatutos de puseza de sangoe no mundo Tusitano que islam engiobar todas as instimigdes postuguesas. (Os judeus ¢ cristios-novos de Portugal sofreram toda a sorte de interdigSes: em 1499 iniciaram-se as lis snti-emigratériss; em 1514 foram proibidos de ocuper cargos publicos e,a parts de 1529, de ingressar em cordens rlitares, a partir de 1581 nfo mais se podiam casat com cristios-velhos, a partir de 1600 nio thes foi mais permitido ingressar nas misesicéudias; em 1004, vedou-selhes 0 acesso 4 Universidade de Coimbra ¢, «em 1671, impés-se 20s crstos-novos « proibicio de exigitem Morgados.[.] Nos Oxdenacdes Manvelinas de 1514 a inabiltac3o passoua inch, além daqueles,os ciganos ¢ descendentes de indios ou ‘mamelucos’[.]. As ‘Osdenacdes Filipinas de 1605 ampliaram o estigma para os mulatos e negros também considecados, aezemaio dos cxistios-novos, mousiseose indios, sagas infectas’ nos dominios dE! Rel”. (Carano, 1992, p 38-38) * Difecentemente da Inquisigo Espanhola (regida pelo Manual dos Inquisidores de Nicolau Eymerich ¢ por norms compiladas da époce do Inquisidor-mor Tomés de Torquemada), 2 Pormuguesa foi repida por quatro Regimentos (1552, 1613, 1640, 1774) elaborados de acordo com o contexto de cada momenta, Por meio destes segimentos podemos conhecer 0: sitos,cesiménias,etiquetas, formas de organizacio, modelos de acdes e sistemas de cepresentacSes, mecanismos de orientacio para 0 funcionamento do Santo Officio ¢ atnbuigées de seus agentes * Repimento de 1552. Revista do Instituto Histésico e Geognsfico Brasileico. Rio de Joneito, jul. /se. 1996, ». 609, © Regimento de 1640. Revista do Instituto Histésico e Geognsfico Brasileico. Rio de Joneito, jul. /set. 1996, p. 693-694. 88 Grayce Mayre Bonfim Souza O movimento iluminista teve inegivel impacto no cenatio politico portugués, sobretudo nas acdes de Sebastidio José de Carvalho ¢ Melo, o Marqués de Pombal, ministro de D. José I, nomeado em 1750. Foi nesta administracao que o Santo Oficio transformou-se em um Tzibunal Régio © Regimento de 1774 do Santo Oficio da Inguisicio Portuguesa (0 liltimo deles), que entra em vigor sob os auspicios do Marqués de Pombal, retina a exigéncia de limpeza de sangue ¢ as referéncias a cistios-noves ou c1istdios-velhos para os ministros e oficiais, e prima pela capacidade do aspizante em exercer a funclio cogitada; exige-se dele exemplo de vida e costume, “sem infamia alguma de fato, ou de Dizeito nas suas prOprias pessoas, ou para eles detivadas de seus pais e avés, nos casos expressos nas Ordenacdes € mais leis deste Reino”.> Anterior a Pombal, a investigacio da pureza do sangue para agentes da Inquisic&o era uma atribuicio dos Deputados do Conselho Geral do Santo Officio, “de maneira que nfio possa suceder por pouca adverténcia serem admitidas ao tal cargo pessoas suspeitas por qualquer via que seja, o que também se guardar4 como todos os mais oficiais” (apud SiquEia, 1978, p. 158). As perseguigdes e preconceitos contra os judeus, presentes na Legislacio Civil e Eclesidstica de Portugal, t8m stta otigem no préptio estabelecimento da Inquisicao. Ao solicitar ao papa licenca para estabelecer a instituicao em terras lusitanas, D. Joao IIT (1495-1557) alegava a necessidade de conter 0 crescimento de priticas judaizantes entre 0s nedfitos, ow seja, entre judeus recentemente convertidos ao cristianismo A conversio era uma necessidade devido ao fato de que os judeus, por nio fazerem parte (em termos religiosos) da ctistandade, tecnicamente também nao podiam ser jilados como heréticos por praticar a f mosaica.’ Perante a “© sbcolutisms itusteado na cociedade lusitana deve ser compzeendido atsavés do fendmeno dos ‘esteangeirados, geago de feerenhos celtics do atraso de Portugil em selaggo 20 resto da Europa [.] A influéacia destes intelecruais cobre 2 politica pombalina foi decisira, implicando mudencas de caciter econdaniea, administativo, burocaitico e legal, que procusasam ao mesmo tempo eforcar 0 pades do Estado absolussta e modernizar as esteutucss tradiconass postaguesas” (Falcon agud CALAINHO, 1992, 9. 43). ¢ Regimento de 1774, Revista do Instituto Histérico ¢ Geogeitico Brasileiro. Rio de Jancio, jul /set. 1996, p 886 "8 Inguisicio ocupou-se dos judeus enquento indiriduos e aio enquants grupo e na qualidade de converticos © no enquanto judess(..). Por nio ter jansdicio sobre quem no era hatizado, a Inqusicio so atiaha sobse 08 judeus. Eles nao podkam ser enqsadsados, teenicamente, como teasdozes da lexei, 2085, ‘enquanto praticentes de f€ mosaica, jamais haviam pertencido a els. A Igceja pod lancar mio de assitos argumentos teclogicas contra os judeus e forcou a expulsdo deles de vanios lugares © em visas epocas” Ingiatexca em 1290; Feanea ema 1306, 1394 e 1615; 0a Espanta em 1492; Portugal em 1496 Lorez, 1993, p. 70-71) Una irajetivia racista: o ideal de purega de sangue 89 Igreja Catdlica, eles s podetiam ser vistos como criminosos apés o batismo. Para os tribunais eclesiasticos, eram considerados hereges os cristios-novos que continuavam a praticar a antiga ctenca, e, nos locais em que o Santo Oficio foi estabelecido objetivando perseguir cristios-noves, o credo judaico no foi tolerado de maneiza alguma. Com o estabelecimento do Santo Oficio na Espanha, em 1478, muitos ctistios-novos ¢ judeus, com medo da morte ¢ maus-tratos, haviam migrado para Portugal. Porém, aqueles que chegaram em texras lusitanas tiveram suas vidas vasculhadas, sobretudo os conversos, cuja fama de niio serem bons c1istios ja havia chegado aquela regio. Ainda assim, 0 contingente de judeus dispostos a entrar em Portugal aumentou a partir do Deczeto de Alhambra, promulgado pelos 1eis catélicos — Fernando e Isabel da Espanha— em 1° de marco de 1492. Este decreto obtigou todos os sefarditas a deixar definitivamente as terras espanholas E ordenamos previamente neste édito que todos os judeus e judias de qualquer idade que residem em nossos dominios e territéxios, que salam com os seus filos e filhas, seus servos ¢ parentes, grandes ou pequenos, de qualquer idade, até 0 fim de julho deste ano, e que nao ousem setomnar a nossas terras, nem mesmo dar um passo nelas ou cruzélas de qualquer outra manciza. Qualquer juceu que nao cumprir este édito e for achado em nosso reino ou dominios, ou que retornar ao reino de qualquer modo, sexi punide com a morte ¢ com a confiscacio de todos os seus pertences” Segundo Carneiro, com base nos relatos dos cronistas da época, Portugal teria recebido, por conta deste evento, aproximadamente 120.000 judens espanhdis. O Estado portugués se beneficiou de varias maneiras deste contingente; familias possuidoras de recursos pagaram somas exorbitantes 4 Coroa. A necessidade de snptir os tesouros do Estado det margem a acordos vantajosos para o rei de Portugal, mesmo que isso viesse a contrariar a Corte. Além disso, muitos judeus portadores de conhecimentos cientificos foram aproveitados no reinado de D, Joao II ¢ outros ali se dedicazam a0 comézcio. maritime intecnacional. Tais circunstincias foram motivo de revoltas de cristaos velhos, sobretudo daqueles que se dedicavam a tais atividades. © Alvar de expulio dos deus da Espana assinado em 1° de marso de 1492 pelo Rei Fesnando « pela Rainha Isabel da Espanhs. Teaduzido do Inglés por Thiago Costa. Disponivel em http: / /www:geocities. com/‘beasilsefacad/. Acessado em 25/02/2006, 20 Grayce Mayre Bonfim Souza A autozizagio de permanéncia dos judeus em Portugal era limitada a um. petiodo determinado. Vencido o prazo, esses tetiam que renovar sua licenca, e aqueles que nao pudessem pagar a quantia estipulads texiam que se retizar do reino."! Mas essa possibilidade de protzogacio de permanéneia dos judeus em Portugal foi, no entanto, restuingida, Em 5 de dezembro de 1496, o rei D. Manuel, por imposicio da Espanha," assinou o decreto de expulsio dos “incrédulos judeus e mouros” de Portugal. O deczeto estipulava um prazo de dez meses paza que todos saissem do reino ou se convertessem; caso contuizio, seriam punidos com a morte e com 0 confisco dos bens. Diante do decreto, a maior parte dos judeus optou pela saida do Reino, a0 invés do batismo. Em conseqtiéncia, uma nova medida foi tomada, mesmo antes do término do prazo para o degredo ou conversio previsto no édito: foi estabelecido, por direito, o seqtiestro de criancas menores de 14 anos para que fossem educados na fé catélica. A medida causou panico e terror, sobretudo entre as miles, que tiveram os filhos arrancados de seus bracos. Segundo Tucci Carneiro, um forte maniqueismo se manifesta nos discursos voltados para justificar os procedimentos ctistios frente aos judeus: O anti-semitismo ¢ oziginalmente um maniqueismo; explica o ritmo do mundo “mediante a luta do principio do Bem contra o Mal”. Persiste sempre a idéia de que um poder malévolo inflige a sociedade. Dai a tarefa do anti-semita nfo sera de construir uma nova sociedade, mas a de pusificar a jé existente (CaRNeiRo, 2005, p. 43). Em fins de outubro de 1497 expizou o prazo pasa que os judeus deixassem Portugal. Milhares deles, que se ditigisam para o porto, receberam © comunicado de que, uma vez que ja havia se findado o prazo, eles seriam considetados, a partir de entio, escravos do xei, A ordem foi revogada logo em seguida, mas 0 rei ordenou que todos fossem batizados A forca. Esse episodio justifica, em parte, o giau elevado de criptojudeus em Poxtugal e seus dominios. “Em navios providenciados pelo monacca, esses judeus foram obsigados a se retitar [.]. Aqueles que permaneceram no pais, ap6s © prazo dado para emigrar, foram transformados em eseravos, «seus filhos, ceiangas entre dois e dez anos, foram transportadas para as ilhas de Sao Tomé ou Pesdidas. A maiosia as ceiangas mores durante 6 viagem e as que sobreviveram tomnacam-se, segundo os cronistas, seas plantadores” (Camvemo, 2005, p 42) + No contrato de casamento de D, Manuel I coma princess Isabel de Espanh havia uma cliusula que dizis sespeito 4 exigéneia da expulsio dos jude: Una ivajetivia rack ‘a: 0 ideal de purega de sangue on Aproximadamente 160.000 judeus saizam, neste contexto, da Peninsula Ibética. Muitos foram recebidos por governos ¢ comunidades judaicas em vitias partes do mundo: Paises Baixos (25.000), Franca (10.000), Italia (10.000), Império Otomano (90.000), Marrocos (20.000) e Amética (5.0002). Este € 0 quadzo da didspora na época moderna (CaxnEIRo, 2005, p. 45). Enquanto a economia portuguesa sentia 0 forte peso da expulsfio, muitos paises se beneficiaram com a migiacto judaica, dentre eles os Paises Baixos, a Inglaterra e a Dinamazca, que receberam uma grande leva de sefarditas € tiraram proveito das suas aptidées para as financas e 0 comércio. Neste contexto de inceztezas, sob 0 efeito dos éditos, decretos, bulas € outtos atos de discriminagio, muitos judeus se disigitam para a Amézica Portuguesa, visando, principalmente, escapar dos olhares do Estado e da Igzeja. Pata os czisttios-novos, em especial, nas terras menos vigiadas do Novo Continente, era mais facil ludibriar as instituicdes responsaveis pelas inquiricdes para habilitacio de genere. ‘A exigéncia da puseza de sangue foi um fator que, desde 0 século XVI, permeou toda a legislaco lusitana. Duzante séculos os portugueses colocaram uma “ténica no conceito de ‘limpeza’ on ‘pureza de sangue’ nfo apenas num 2), Neste sentido, raca aqui deve ser entendida historicamente, no contexto da época moderna: ponto de vista classista mas também racial” (BOXER, 1981, p. no existe un nes semiintico-ideolégico ents el téxmino “saza” utilizado en los siglos XVI-XVIL, con el utilizado en los siglos XVIII-XX. Esta aseveracién es valida, puesto que en el momento de su uso, el t “caza", fandamentado en la estructura de pensamiento de la “limpieza de sangre”, al parecer las formas de concebic los términos de “raza” y de “sangre maculada” se condicionaron mutuamente sin tener otras influencias conceptuales, De ésta manera, “12a” y “limpieza” confouman una especie de simbiosis ideologica. Es esta una de las diferencias mas significativas entre el uso del concepto de “raza” en la Edad Moderna yen la Epoca Contemporinea (TORRES, 2003, p. 11). “Hf evidéneias iscladas do uso do termo ‘t2ea’ nas Linguas rominicas a pastic do séeulo XIII. Mas a palacca pacece ter sido mais amplamente adotada cm inglés apenas no século XVI Inicialmente em feances € inglés, ‘raga’ se sefesia 20 fato de se pertencer a uma fomilis, ou dela ser descendente, ov a uma casa 20 sentido de linhagem nobre, e portanto tinka uma conotacio positiva [. ). Em castelhano, contudo, 0 termo foi contaminado a partir do século XVI pela doutsina de puseze de sangue adotada no procesto de expulsdo dos judeus dos mouros da peninsule [.] aparentemente esse uso difere da moderns nocio siunjica de tum grupo de pessoas que compactilham tracos comuns com raizes biolégicas No entanto, num nivel mais absteato, ambos os conceitos tem em comum idéia de que ‘aga’ é uma condicio insta e, portanto, hhevedicisia” Sroccxe, 1991, p. 111) 92 G yce Mayre Bonfim Songer A expiessio “tacas infectas” é uma constante na documentacio do petiodo. Podemos obsezvar ne documento de habilitacio do padre Afonso da Fianca Adomo, Comissitio do Tiibunal da Inquisicio de Lisboa na Bahia, em meados do século XVII, refeséncias a “pessoas nobres, brancos, lavradores e cristas velhas e por tais tidos e reputados sem raca de nacio infecta, nunca presos pelo Santo Oficio nem infimia ou pena vil”. Também bastante entitica é aafirmacio constante do processo do Pe. Goncalo de Sousa Faledo — também Comissatio da Bahia, habilitado em 17 de outubro de 1755 — de que ele exa “puro sangue sem muicula de raga de nacio infecta pela graca de Deus”. © que, a principio, pretendia ser uma medida de “defesa da ortodoxia catélica”, se tansformou em amazias, em impedimento para que pessoas de descendéncia hebtaica viessem a ocupar cargos ¢ fancées na sociedade civil ¢ eclesidstica: En esencia, este pasaje se refiere al cristiano que en su genealogia posea “sangre judia” y por consiguiente “impura™. Sin importar si su proporcion es de 1/2, 1/4 0 hasta 1/20, sera siempre considerado, con base en el principio del pecado original de San Agustin, como un judio “manchado™ (Torres, 2003, p. 13). A politica de limpeza de sangue foi adotada primeiramente pela Espanha, com o Estatuto de Exclusio, publicado em 1449 na cidade de Toledo, que, na avaliacao de Maria Tucci Carneiro, acabou sendo convestido em preconceito racista institucionalizado: os cristao: Neste Edite -noves cram acusados de indignidade em assunto de religiio, pelo fato de guardarem os preceitos da lei Mosaica ¢ xcfcrizemese a Jesus de Nazaré como sendo wm judcu [..]. Alegava também que na Sexta-Feita Grande, enquanto nas Igrejas era consagrado 0 dleo sagrado ea imagem do Redentor celebrizada no altar, os conversos matavam cordciros ¢ ofereciam sactificios (CARNEIRO, 2005, p. 37). Portanto, antes mesmo do estabelecimento do Santo Oficio espanhol, entram em vigor as primeiras medidas em favor da limpeza de sangue. O Estatuto de Toledo deve ser analisado como um acontecimento de ordem social € urbana que nascen da vontade de impedir uma maior insercao de cristaos- * Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Habilitagio do Santo Oficio, Maco 3-49. # Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Habilitacio do Santo Oficio, Maco 9-150. * Carneiro (2005, p. 15) compara aspectos do Estatuto de Toledo do século XV com algumas leis aplicadas pelo III Reich, como 2 Lei de Restourscio do Funcionalismo Pablico, a Lei para o: Cidadios do Reich e2 Lei para a Defesa do Sangue ¢ da Honsa Una irajetivia racista: o ideal de purega de sangue 93 novos na burguesia. “O Estatuto representou [..] uma luta de classes, visto que © fortalecimento econdmico ¢ social da burgnesia cristi-nova contrariava os interesses de ascenstio da burguesia cxist-velha” (Carneiro, 2005, p. 38). Mas 0 Ediito de Toledo tinha por objetivo, também, vetar “aos cxistaos-noves o acesso a cargos ptiblicos.” Progressivamente, foram sendo proibidos de ingressarem em cordens teligiosas e militares, de tornazem-se agentes inquisitoziais, de pertencerem a corporacées profissionais e de cursarem universidades” (Carano, 1992, p. 36). Exa-Ihes vetado, ainda, receber titulos honozificos A eexisténcia dessas proibicdes em Portugal, como na Espanha, pode ser facilmente comprovada a partir da documentacio que normatiza o Estado ea Igreja, como as ordenacées, bulas, breves papais e os regimentos.* A preocupacio com a limpeza de sangue “foi na vida social portuguesa fator de ilhamento dos cristos-novos, um incitamento ao retorno ao judafsmo ancestral, e, eventualmente, motivo de afirmagio exasperada da ortodoxia crista pelos neoconversos” (Siquema, 1978, p. 157-158). A exigéncia de pureza de sangue, sancionada pela Carta Régia ¢ pela Bula, ambas de 1612, embora jé vigorasse bem antes disso, sé seria extinta no perfodo pombalino. E esse 0 ponto inicial para a andlise de um racismo institucionalizado que, partindo da Espanha, teve forte repercussao em Portugal. Judens, mouros, ciganos, negros ¢ descendentes foram, desde o final século XV estigmatizados pela legislacao portugnesa. Essa s ftuacto perdurou até o reinado de D. José Te a administracio do Marqnés de Pombal, quando desapazeceu, em termos legais, o preconceito contia os cristios-noves, judeus ¢ mouros ¢ denominacdes como a de cristao-velho A politica contyatia a0 zacismo (que nfo estava restuita ao anti-semitism) tem continuidade no periodo pés-pombalino, sob D. Masia I. Por exemplo, 0 seu secretitio de Estado, em carta ao bispo de Cochim, “acentuava a necessidade que continuava a existir de conceder beneficios aos clérigos indianos que estivessem qualificados paza eles” (Boxe, 1981, p. 249) © Os:zinos ibézicos no colocaram em pritica plenamente a determinacio do TV Conelio de Latrio (1215), de exclu os deus das fungées puilicas, "Em Poctugal, no inicio do século XV, mais precisamente em 1408, D. Afonso proibiu os judeus de ocuparem cargos piblicos. Esta decisio foi confirmada e amplada, em 1412, por Hensique I de Castelae os judeus foram, sinda obsigados “ao uso de sinais distintivos. De ora em diante nenhum podesia invocar 0 titulo de ‘dom’ e nem ser admtido nas profissdes de boticéso, de fsico e de cieurpiio, as qusis, o entender dos queizosos, se prestavam ao cometimento de abusos. Mas, passadas as agitagSes, e tendo muitos deles ingressaco no rol da Igeeja atexcés do batismo, voltasam a gozar desses e de outros prvilégios, emboma tantos ainda persstssem a cmprir secretamente 2s tadicdes inscrtas no Antigo Testamento” Gatvanor, 1976, p. 21-29, 4 Grayce Mayre Bonfim Souza Na origem do conceito de pureza de sangue podemos encontrar, sobretudo, 0 chamado orgulho de ser fidalgo: “A aristocracia se valeu constantemente desse conceito que lhe fortalecia a posicio de grupo de status privilegiado enquanto casta” (CARNEIRO, 2005, p. 46), de uma linhagem Jafética® em oposicao a raca semita, interpretada como impura, pecaminosa (na qual se incluiam os nedfitos). Sua origem pode ser situada, na Peninsula Tbética, no peciodo imediatamente postesior as migrages getminicas, quando os descendentes de godos passaram a se considerar qualitativamente de raca superior: ser godo e1a ser nobre. ‘A ptova da pureza de sangue, em Portugal, eva realizada por meio de inquitigdes e processos de habilitaco de genere e moribus, obtigatérios para © ingtesso em cargos publicos, para receber titulos honotificos, freqiientar colégios teligiosos e ser aceito nas Ordens Sactas e Menozes. Os regimentos destas instituigdes entraram em vigor mesmo antes do século XVI: ‘Uma vez postulada a entuada em qualquer instituicgo publica, religiosa ov militar, o candidato sujeitava-se a longas averiguacdes de sua genealogia, € somente apés as chamadas “provas de sangue” ou ingnisicdes de _genere podesia ver-se contemplado com o beneficio pretendido, desde que nao se apurasse algum trago comprometedor cm sua pessoa ou. familia. Muitas instituicdes investigevam a ascendéncia do habilitando até (Catansxo, 1992, p. 41) quarta geracd As inquiricoes de geuere sao expzessoes da aplicabilidade dos estatutos de limpeza de sangne “e expressam o pensamento segregacionista que predominon na sociedade poctuguesa a partis do século XVI. A discriminacao chegou a ser tao rigida que se exchuiam também os individuos casados com cristaos-novos”” (Cansemo, 2005, p. 62) Os estatutos de pureza de sangue podem ser considerados como a expresso legal do racismo do Estado e da Igreja na sociedade portuguesa e, por es tenstio, na Amética Portuguesa. Sao, portanto os primeitos exemplos de um racismo organizado (Novassxy, 1992, p. 44). # “A primeisa osigem do racismo deriva do mito biblico de Noé do qual zesulta 2 primeisa classificaco, sdligiosa, da divessidade humana entse os teés filtos de Nog, ancestrais das tes racas: Jafé (ancestral da ace branca), Sem (ancestral da saca amarela) e Cam (ancestral da race negra). Segundo o nono capitulo do Genese, © patriarca Noe, depois de conduzir por muito tempo sua area nas aguas do diltmia, encontrou nalmente um oasis. Estenden sua tenda paca descansar, com seus teés filhos. Depois de tomar algumss races de vinko, ele se deitara numa porico indecente. Cam, 20 encontrar seu pai naquela postusa fez, junto jae e Sem, comentirios dessespeitosos sobre o pai. Foi assim que Noe, 20 ser informado pelos dois Silos descontentes da sisada no lisonjeica de Cam, amaldicoou este ultimo, dizendo: seus filhos sexio os iltimos a ser esexavizados pelos filhos de seus iemios” QMixiaxca, 2003, p. 8) Una irajetivia racista: o ideal de purega de sangue os ‘Até para prestar depoimentos e servir de testemunhas nos processos exa necessitio ter sangue imaculado. Exa preciso, portanto, ser cristiio-velho: A puseza de sangue do candidato tinha de ser provada awavés dum inguétito judicial, no qual sete ou oito cristos-vellios prestavam um juramento de conhecimento pessoal testemunhando que pais ¢ avés de ambos os lados estavam isentos de quaisquer manchas raciais ow religiosas [...] xa sempre mais £icil obter uma dispensa se 0 candidato tivesse qualquer antepassado remoto amerindio on protestante europen de 1aca bianca do que se Ihe couesse nas veias algum sangne judeu ou negro. Todas as ordens seligiosas que se haviam fixado no Brasil mantiveram uma disctiminacio zacial conta a admissio de mulatos (Boxer, 1951, p. 252), A prova de sangue limpo2* de nao pertencer & infecta nacao reprovada, fomnecida por meio dos inquéritos judiciais, era um mecanismo eficaz para impediz que descendentes de “gente da nacio” ocupassem posicées importantes nos meios decisdrios das monarquias ibéricas, mas, também, para suprir a deficiéncia dos cofies piblicos. Igieja e Estado se beneficiavam com as cobrancas de taxas ¢ confiscos de bens dos cristios-novos em toda a Peninsula Ibérica. Felipe IIL, por exemplo, ordenou que todos os bens confiscados pelos Tribunais do Santo Oficio de Portugal fossem imediatamente transformados em dinheizo, pois 0 Estado necessitava prover com urgéncia a Fazenda Real (Carneino, 2005). E solicitado, nesta orientagio, certo sigilo no procedimento. Os confiscos de bens feitos pela Inquisicio, conforme acordo entre Estado e Igteja, deveriam sez também controlados pelo fisco (Canxzmo, 2005, p. 59-60) A aplicagio da doutrina da puzeza de sangue também se estendeu 20 Brasil, ainda que no no mesmo sitmo ¢ nos mesmos moldes do verificado em Postugal. A presenca de descendentes de judeus na América Portuguesa vem desde os ptimeizos anos da descoberta e estes tiveram uma decisiva influéncia na formacio do povo brasileizo. Segundo José Goncalves Salvador De 1501 a 1516, 0 Brasil esteve arrendado a um consércio de cristios- novos, encabecado por Fernio de Noronha. Posteriormente, a Inquisicio Em seu livzo Rosa Egipciaca: uma santa afticana no Brasil, Luiz Mott fez diversas cefecéncias a essa ‘mentalidade na sociedade mineira e earioea do século XVIIL Citando o Reeolhimento do Parto, instituicio dda qual Rosa eca a made, ele diz: “A heterogencidade social, racial e etdria das ocupantes do secolhimento mpre foi a tonica desta conmnidade [.]. Nos conventos eesis, como no do Desterro da Bahia, no de Santa Teresa e no da Ajuda no Rio de Janeito, 2 impeza de sangue’ era uma das condicdes essenciais para a aceltacio de novigas, havendo mesmo casos de brasieicaslevemente amesticadas que, tendo sido secusadas, nos convento daqui, foram acsitas como enclausuradas nos do Reino” (Morr, 1992, p. 301) 96 G yce Mayre Bonfim Songer Jancou para cd intimeros judeus ¢ outros viecam espontaneamente. Por mmito tempo seriam a maioria da populacio branea. Esses primeiros individuos desempenharam papel de suma importincia no povoamento € na fiatura colonizacao da terra porque, granjeando a confianca dos indigenas, foram admitidos ao seu convivio, aprendendo a lingua nativa ¢ aparentando-se com cles através de unides ou casamentos. [...] através de ligagdes fortuitas ou de unides duradouras, sem a sancio ou com a bénglo da Igreja, sugizam os mamelueos, fuutos troncos das mais antigas familias. A mulher branca s6 tardiamente passou 20 Brasil, sendo. precario sempze o seu atimeso aqui [..]” (SALVADOR, 1976, p. 5-6). Coma celativa trangtillidade em tersas bzasileiras, quanto 4 perseguicio (inexistia, por exemplo, um Tribunal do Santo Oficio instituido aa colénia), 0, foram estimuladas a . Data deste periodo um fluxo migratézio estimulado muitas familias cristis-novas lusitanas, a partir de 1 transfexit-se para o Bra: tanto pelo povoamento litorfineo como pela cultura da cana-de-acticar. “A Bahia a Pernambuco, principalmente, ditigitam-se os c1istiios-novos, havendo deles aztesiios, lavradores, mercadozes e senhores de engenho, estabelecidos nas mais prdspezas capitanias da Amézica portuguesa” (Vamszas, 1997, p. 7) © percurso da “gente da naciio” pode ser vetificado nos primeiros registuos da Inquisi¢io de Lisboa em terzas brasileizas. Esses registros foram feitos pelo Bispado da Bahia, cziado em 1551 como um segmento da Igzeja responsivel pelos casos de competéncia do Santo Oficio. O bispo, que respondia pelo poder inquisitorial no Brasil, foi o responsavel pelas prisdes @ processos anteriores & primeira visitacio, do licenciado Heitor Furtado de Mendonca e sua comitiva, ocorrida no nordeste brasileiro no periodo de 1591 a 1593. Até ser designado como visitador, Heitor Furtado de Mendonca foi submetido a dezesseis investigacées de limpeza de sangue para provar que nao tinha “‘nédoa de sangue infecto’ de judeu, mouro negro, indio etc”, procedimento obtigatétio para todos os que ocupavam alguma funcio na inquisicao portuguesa (VamNras, 1997, p. 17). Os registros da primeira visitacio da Inquisicao em tetra brasileira sto de grande importineia para o pesqnisador que trabalha com religiao ¢ cultura Alzuns easos tivecam destaque nesse peciodo, coms 0 de Peco do Camzo Tousino, donatiso de Capitansa 6 Porzo Seguco, 22:0 em: 1546 por clésigos e seculaces « enviado a Lisboa (entes da cezeio do bispado de Bahia), acusado de blastémia, « do frances Joio de Cainta, que chegow a0 Brasil junto com os huguenotes «¢, embora tvesse se allado aos portuguece:, foi preso, exviado a Portugal e condenado, pela Inguisicio, 20 emuedo “nas pactes da India” por tex cometida exime de blasfEmia e hetexodosia Una irajetivia racista: o ideal de purega de sangue 2 na sociedade colonial, pois, por meio desta documentacio, é possivel ter uma ideia do cotidiano do homem deste periodo. Um monitotio, publicado no inicio dos trabalhos da visitaciio e ilustuativo das preocupacées da época, define desta maneira as priticas judaizantes: 1) guardar 0 sibado, vestindo-se com xoupas ¢ jéias de festas, limpando a casa na sexta-feiza ¢ accndendo candeciros limpos com mechas novas, mantendo-os acesos por toda a noite; 2) abster-se de comer toucinho, Iebre, coelho, aves afogadas, polvo, enguia, arzaia, congro, peseados sem escamas em geral; 3) degolar animais, mormente aves, ao modo judaico, “atcavessando-lhes a garganta”, testando primeiro o cutelo na unha do dedo da mio e cobrindo o sangue derramado com terra: 4) conservar os jejuns judaicos, a exemplo do “jejum maior dos judeus”, em setembzo, dia em que os judeus jejuavam até sairem as estrelas no céu, quando cntio comiam c pediam perdio uns aos outros, além do “jejum da zainha Ester” e 0 das segundas e quintas-feiras de cada semana; 5) celebrar festas judaicas como a Péscoa do pio dzimo (Pessarl), a das Cabanas © outras; 6) rezar oragdes judaicas, a exemplo dos salmos penitenciais sem dizer “Gloria Patri et Filia et Spiritu Sancio”,e owtras em que oravam contra a parede, abaixando ¢ levando a cabeca ¢ usando corzeias atadas nos bracos ou postas sobre a cabeca; 7) utilizar citos funerarios judaicos, a exemplo de comer em meses baixas pescado, ovos ¢ azeitonas quando mouse gente na casa de judeus, amostalhar os defuntos “com camisa comptida”, enterré-los em terra virgem, cortar-lhes as unhas para guardi-las, pondo-Ihes na boca uma pérola ou mesmo moeda de ouro ou prata ¢ dizendo-lhes “que é para pagar a primeica pousada”, mandaz Iancar fora a dgua dos potes e vasos da casa quando alguém morre na casa; 8) lancar ferz0s, pio ou vinho nos cintares da casa, nos dias de Sao Joao Batista e do Natal, dizendo que aquela agua se torna sangue; 9) abencoar 0s filhos pondo-lhes a mio na cabeca, abaixando-a pelo rosto sem fazer o sinal-da-cruz; 10) circuncidar os recém-nascidos, dar-lhes secretamente nomes judeus ou, batizando-os na igreja, “rapar 0 éleo ¢ 2 crisma” neles postos (WaINEaS, 1997, p. 22-23). Segundo Ronaldo Vaintas, do sécuilo XVI até meados do século XVIII, co destaque dado, nos monité:ios, aos indicios das priticas judaizantes indicava a suposicao de que elas exam executadas por cristaos-novos. Assim, nem todas as atividades elencadas podem ser consideradas como atitudes judaicas; muitas vezes referiam-se a aspectos da religiosidade dos judeus ibéricos (os sefaraditas) mantidas pelos c1istos-novos ou, em outros casos, a priticas “conservadas pela tradi¢io familiar, sem maior conexio com a vivéncia do judaismo que deles se suspeitava” (Vansras, 1997, p. 24) 98 Grayce Mayre Bonfim Souza Em alguns casos, os pecadilhos relatados pelas pessoas interrogadas pela Mesa Inquisitotial nao tinham zelacdo com os objetivos propostos para a Inquisiciio, o que demonstra o quiio apavorante era a presenca da autoridade inquisitozial, que levava pessoas a confessar supostos desvios, as vezes por medo, outras vezes com o intuito de desviar a atengio de uma verdadeiza culpa Uma confusio se estabelecia, inclusive, durante as confissdes inquisitotiais, freqiientemente confundidas com as confissdes sacramentais, feitas em confessionatio (Vamvras, 1997, p. 24-26). Os livros de confissdes e dentincias das visitas do Tuibunal do Santo Oficio® ¢ 0s processos de habilitacio do Conselho Geral compéem uma documentacio de grande valia para a histéria do Brasil, do século XVI ao XVIII ¢, sobretudo, lanca luzes sobre as praticas judaicas e a aplicabilidade da doutrina da pureza de sangue. As visitas episcopais ¢ as devassas, muito bem documentadas, exam instrumentos que funcionavam como complementos da instituicao inquisitorial. Para Luiz Mott (1989, p. 55), essas visitas certamente deslanchavam um afervoramento da religiosidade das populacées intesioranas, pois além da administeacao dos saccamentos ¢ priticas edificantes, os prelados tinham o poder de também processaz, prender, degredas, seqiiestrar os bens dos culpados em delitos graves, de modo que devia causar grande temor entre os delingitentes. Para além das visitacdes, as inquiticdes, ordenadas pela Inquisicio de Lisboa, denotam wma forte presenca do tribunal no Brasil Fora dos periodos de visitacdes ¢ inquiricdes, a atuacao da Inquisicao, portuguesa, a exemplo da espanhola, ocortia por meio de uma forte rede de oficiais encaregados de assegurar o contiole de terzitérios que nfo contavam com membros diretos do tribunal: comissétios, notarios, qualificadores, visitadozes das naus ¢ familiares. Dentze esses oficiais, os comissizios — eclesidsticos pertencentes aos quadros do Santo Oficio — ocupavam o nivel mais alto da hierarquia inquisitorial na colénia. © corpus documental do tribunal lisboeta, de grande impoztincia para os pesquisadoces que trabalham coma temitica da perseguicao aos judeuse da intolerdncia, permite ao historiador montar um quadro e proceder 8 anilise da presenca judaica no Brasil. A partir dele, um grupo de pesquisadozes e alunos da Universidade de So Paulo —vineulados 4 chamada Escala Novinaky e 20 LET (Laboratério de Estudos da Intolerncia), inaugurado em 2002 — produziu, Além da citeds acims, o Brasil teve mais duas visitacdes de peso: a visita de D. Mascos Teizess, restita 8 Bahia, que dusou de 1618 2 1620, e do Geio-Pard no séevlo XVIII (1763-1769).

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