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Ano 1,TA, ST6

Patrícia Carneiro da Silva

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO II


Professor Miguel Teixeira de Sousa

§ 13º Construção do sistema jurídico


Características do sistema
Um sistema pode ser definido como um conjunto de elementos que constituem um
todo organizado e consistente. Podemos, relativamente aos sistemas, afirmar que:
todos eles comportam um conjunto de elementos; todos eles são diferentes entre si e
diferentes do meio envolvente, diferença essa que é marcada por critérios próprios de
pertença dos seus elementos; todos os sistemas exigem consistência.
No que toca ao sistema jurídico, a sua decomposição pode ser feita da seguinte
maneira: o sistema jurídico é constituído por regras e princípios jurídicos, distinguindo-
se dos outros sistemas normativos pelo critério de validade aplicável aos tais princípios
e regras que o constituem. O sistema jurídico define-se como um conjunto consistente
de princípios e regras jurídicas. Falamos num conjunto de regras e proposições e não
num conjunto de fontes porque, se assim o disséssemos, só poderíamos considerar
pertencentes ao sistema as relações de produção e revogação entre elas. Desta maneira,
consideramos as relações de princípios com princípios, de princípios com regras e de
regras com regras.
O conjunto de princípios e regras que são passiveis de aplicação a um sistema é superior
ao conjunto de regras e princípios que integram esse sistema. Tal acontece porque num
sistema podem ser aplicadas regras que não estão já em vigor, assim como leis que
pertençam a um sistema jurídico estrangeiro.
EXEMPLO: a validade de um contracto é apreciada segundo a lei vigente no momento em que este foi
celebrado, mesmo que essa tenha depois sido revogada – art 12º, nº 1 CC
Para que os princípios e as regras jurídicas integrem o sistema jurídico é necessário que
este sistema já exista. No entanto, para que haja sistema, é necessário que existam
princípios e regras. Estamos então perante um paradoxo, que podemos solucionar
olhando para o sistema jurídico de uma perspectiva evolutiva: os sistemas jurídicos não
existem desde sempre e para sempre, dado que têm de ser criados e podem deixar de
existir. Assim, para que seja formado um sistema jurídico é necessário que haja uma
regra de produção desse mesmo sistema. Essa função produtiva de um sistema jurídico
é geralmente desempenhada por uma Constituição. Apesar disso, cabe referir que são
mais frequentes os casos de recepção de anteriores sistemas por novos sistemas
jurídicos e não a produção de um sistema totalmente novo – art 290º, nº 1 CRP.

Componentes do sistema
O sistema jurídico é composto por princípios jurídicos e por regras jurídicas.

PRINCÍPIOS JURÍDICOS
Podem ser tidos como programáticos, formais ou materiais:
o Princípios jurídicos programáticos – definem os fins e os objectivos que devem
ser alcançados pelo sistema jurídico. Apresentam, assim, uma função
orientadora: tornam obrigatórias todas as medidas que favoreçam a obtenção

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dos objectivos e fins definidos e proibidas todas as que impeçam vir a alcançá-
los.
EXEMPLO: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária – art 1º CRP.
A realização da democracia económica, social e cultural, bem como o aprofundamento da
democracia participativa – art 2º CRP
o Princípios formais – optimizam a efectividade do direito na sociedade, ao
construir uma ordem jurídica orientada pela justiça, pela confiança e pela
eficiência. O princípio da justiça impõe um sistema jurídico justo e equitativo; o
princípio da confiança impõe que o sistema jurídico seja previsível; o princípio da
eficiência torna obrigatório que o sistema jurídico procure sempre os melhores
resultados com o menor dispêndio de recursos (o sistema é tanto mais eficiente
quanto menos complexo for). Estes princípios formais são tanto constitutivos
como regulativos: o direito não pode ser construído sem eles e, ao mesmo
tempo, eles regulam situações jurídicas e fornecem critérios de solução.
o Princípios materiais – são a concretização dos princípios formais. Estes princípios
podem ser mais ou menos contingentes, realizando apenas uma função
regulativa. Cada um dos princípios formais é concretizado por vários princípios
materiais:
Princípio formal Princípios materiais
Princípio da igualdade: o que é igual deve ser
tratado de forma igual e o que é desigual deve ser
Princípio da justiça tratado de forma desigual;
Princípio da proporcionalidade: os meios
utilizados devem ser adequados aos fins que são
pretendidos.
Princípio de que a alteração da lei deve ser
Princípio da justificada por razões objectivas;
confiança/segurança Princípio de que a ignorância da lei não justifica a
sua violação;
Princípio da não retroactividade da lei nova.
Princípio da alocação dos meios necessários para
Princípio da atingir os objectivos definidos;
Princípio da alocação dos meios suficientes para
eficiência
atingir os objectivos definidos (evita redundâncias
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e a sobre-regulação).

Os princípios jurídicos só admitem uma medida de consagração possível – o máximo que


for compatível com os restantes princípios. Podemos, assim, falar dos princípios
jurídicos enquanto comandos de optimização.
Esse critério de optimização também se aplica aos limites materiais, uma vez que
também estes devem ser consagrados na medida máxima compatível com outros
princípios materiais. De acordo com este critério podemos distinguir princípios materiais
absolutos e relativos:
o Princípios materiais absolutos – não admitem nenhuma excepção segundo
outro princípio formal

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o Princípios materiais relativos – admitem uma excepção segundo um outro


princípio formal. (p.e. autonomia privada)
Na perspectiva de Dworkin, os princípios distinguem-se das regras por poderem ser
aplicados pelo juiz em diferentes medidas, ao contrário das regras que terão sempre de
ser aplicadas ou não na sua totalidade; por poderem entrar em choque com outros
princípios, prevalecendo o princípio com maior importância sem nenhum ser
considerado inválido, ao contrário das regras que, se entram em conflito, não poderão
todas elas ser válidas. Segundo esta construção de Dworkin, os princípios não nos dão
uma razão conclusiva ou definitiva, mas sim uma razão prima facie.
Uma das principais críticas que podemos fazer à teoria de Dworkin é o facto de o
princípio do “tudo ou nada” não se aplicar apenas às regras jurídicas, uma vez que
também há princípios que estão sujeitos a esse critério. Esse facto torna-se evidente
quando surge a necessidade de escolher entre a aplicação de um ou de outro de dois
princípios conflituantes. Os princípios, tal como as regras, só podem ser aplicados na
regra do “tudo”, pelo que também estes são ou não totalmente aplicados. Pode ainda
dizer-se que também as regras jurídicas podem conflituar sem que uma delas seja
inválida – é o que acontece quando temos uma regra geral e uma regra especial ou
excepcional.
Podemos, assim, distinguir os princípios das regras da seguinte maneira: os princípios
jurídicos referem-se a valores estruturantes do ordenamento jurídico, cujo objectivo é
melhorar o impacto do direito na sociedade à luz de critérios como a equidade, a justiça
ou a confiança; as regras jurídicas são a concretização desses mesmos valores. Os
princípios são estruturantes e valorativos; as regras são sempre instrumentais e podem
ou não ser valorativas. Cabe referir que os princípios jurídicos podem ser abertos ou
fechados.
EXEMPLO: princípio aberto: restrição de direitos, liberdades e garantias; princípio fechado: proibição da
pena de morte
Conclui-se que a diferença entre os princípios e as regras é apenas axiológica e não
ontológica. Os princípios não existem em si mesmos, sendo uma construção de um
observador do sistema. Se existe no ordenamento jurídico um critério de decisão de um
caso concreto, de nada importa se esse é um princípio ou uma regra jurídica, dado que
estes têm exactamente o mesmo valor. Os princípios jurídicos possuem a hierarquia
normativa das regras que os consagram ou das regras dos quais eles são inferidos.
O sistema jurídico é mais do que as regras que comporta. Em teoria, poderíamos dizer
que as fronteiras do sistema se determinam pelos princípios formais de justiça,
confiança e eficiência, pelo que o sistema deveria comportar tudo o necessário para
satisfazer esses valores na sua medida máxima. Na prática, no entanto, observamos que
as fronteiras do sistema são mais limitadas – estas fronteiras são na realidade definidas
pelo que o próprio sistema regula, pelo que é necessário para completar o sistema.

Autonomia do sistema
Para que o sistema jurídico seja autónomo, é necessário que este comporte princípios
e regras que possam ser avaliados como válidos à luz do próprio sistema. Parte da
doutrina defende que a validade do sistema jurídico assenta numa regra, diferente de

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todas as outras. É esta a posição de Kelsen – com a norma fundamental – e de Hart –


com a regra de reconhecimento1. Antes de saber o que fundamenta a validade do
sistema, cabe aferir se o sistema é autónomo, sendo essas duas realidades distintas:
um sistema pode ser subordinado perante outro e, ainda assim, ser válido (a
subordinação constitui até o fundamento da validade desse sistema). Assim, o que
importa é aferir se o sistema é autónomo uma vez que, se assim for, só será válido o
que ele próprio definir como tal.
Para um sistema ser autónomo tem de delimitar fronteiras, que o separem do meio
envolvente e, deste modo, de outros sistemas. Cada sistema normativo tem, assim, de
definir um critério que determine o que nele é válido, pois só é autónomo o sistema
que define por si próprio o que é válido. Basta, com isto, que o sistema tenha em si uma
regra de selecção capaz de definir o que lhe pertence – “Direito é o que o Direito
determina como Direito”.
A principal função da regra de selecção é a de identificar o que pertence a um sistema
normativo. Cabe referir que uma regra pode satisfazer mais do que um sistema.
EXEMPLO: a regra que proíbe o homicídio faz tanto parte da ordem jurídica como faz da ordem moral.
Essa função de identificação tem assim um aspecto positivo – o de identificar o que
pertence ao sistema – e um aspecto negativo – o de rejeitar tudo o que não pertence.
Outra das funções da regra de selecção é a de assegurar a identidade do sistema
jurídico. O sistema pode variar no seu conteúdo, mas manter-se-á igual até que seja
alterada a regra de selecção, ou seja, quando for considerado válido aquilo que antes
não era.
Com tudo isto, surge uma questão: está a regra de selecção positivada no sistema
jurídico português? Não de forma expressa. No entanto, podemos encontrar sinais
dessa regra, p.e., no art 203º CRP, que define que os tribunais apenas estão sujeitos à
lei – isto declara, de forma implícita, que as regras de outras ordens normativas não
podem servir de fundamento às decisões judiciais. Isto pressupõe que há uma regra de
selecção que determina o que é tido como direito no sistema jurídico português.
Se estivermos perante dois sistemas jurídicos autónomos, concluímos que as regras de
um sistema não dependem de forma alguma das regras do outro sistema. No entanto,
pode dar-se o caso de um sistema se subordinar a outro. Se assim for, geram-se duas
consequências: as fontes que são válidas no sistema subordinante são também válias
no sistema subordinado; as fontes produzidas no sistema subordinado apenas são
válidas se forem aceites pelo sistema subordinante. O sistema jurídico português não é
autónomo, uma vez que se subordina ao sistema de direito europeu.

Funcionamento do sistema
O sistema jurídico pode ser analisado de acordo com a sua construção, consistência e
abertura.

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Diferem por terem por base diferentes ideias de normatividade: a norma fundamental representa um
pressuposto da validade das regras do sistema, enquanto a regra de reconhecimento trata da aceitação
social das regras. A norma fundamental é necessária para justificar a validade das regras e a regra de
reconhecimento apenas reconhece como direito aquilo que é aceite como direito.

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Relativamente à sua construção, podemos caracterizá-lo como um sistema


autopoiético – o sistema jurídico constrói-se a si próprio, sendo assim auto-referencial.
Este carácter autopoiético é consequência da regra de selecção, uma vez que é essa
que assegura que o sistema só aceita o que pode aceitar como direito válido. Um sistema
subordinado não é um sistema autopoiético.
No que toca à consistência do sistema jurídico, pode dizer-se que este é constituído por
regras e princípios que não podem nunca conflituar nem entre si – consistência quanto
ao conteúdo – nem com as suas fontes de produção – consistência quanto à origem.
De acordo com Ross, podemos distinguir três formas de invalidade:
o Invalidade total-total – nenhuma das regras é aplicável sem conflituar uma com
a outra;
o Invalidade total-parcial – uma das regras não pode ser aplicada sem conflituar
com a outra, mas a outra apresenta um campo de aplicação que não conflitua
com a primeira;
o Invalidade parcial-parcial – ambas as regras apresentam campos de aplicação
adicionais que permite a sua aplicação sem que estas conflituem uma com a
outra.
Disto decorre que apenas o primeiro caso representa um verdadeiro conflito, sendo as
outras duas situações casos de “conflito aparente”.
Pode dar-se também o caso de estarmos perante um conflito que não pode ser resolvido
através da revogação ou da invalidade de uma das regras. Neste caso, estamos perante
um conflito irresolúvel. Para resolver esse conflito, dar-se-á preferência à regra que das
duas proteger os interesses mais relevantes, através de uma ponderação de interesses.
Tal acontece porque, se abdicássemos de ambas as regras, ficaríamos perante uma
lacuna.
Por fim, tendo em conta a abertura do sistema, podemos dizer que o sistema jurídico é
um sistema aberto – comunica com outros sistemas, normativos ou não normativos.
Este carácter de abertura do sistema permite-lhe uma maior flexibilidade.

§ 14º Situações subjectivas


Enunciado das fontes
A estatuição das regras relativas a uma conduta representa uma situação subjectiva. A
categoria dessa situação dependerá sempre do objecto da regra e do seu operador
deôntico.
Se a regra jurídica tiver por objecto uma conduta:
o Operador deôntico: comando ou proibição – situação jurídica é um dever
o Operador deôntico: permissão – situação jurídica é um direito
Estas situações, segundo a construção de Hohfeld, relacionam-se da seguinte
maneira:
o O direito é correlativo do dever
o O privilégio é correlativo do não direito
o O não direito é contraditório com o dever
o O privilégio é contraditório com o direito

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Se a regra tiver por objecto um poder:


o Operador deôntico: proibição – situação jurídica é uma sujeição
o Operador deôntico: permissão – situação jurídica é uma faculdade2
Estas situações, segundo a construção de Hohfeld, relacionam-se da seguinte
maneira:
o A faculdade é correlativa da sujeição
o A imunidade é correlativa da não-faculdade
o A imunidade é contraditória com a faculdade
o A não-faculdade é contraditória com a sujeição
Aos direitos que são correlativos dos deveres, chamamos direitos relativos; aos direitos
que implicam deveres chamamos direitos absolutos. As situações subjectivas podem,
assim, ser relativas ou absolutas.

Lógica da acção
A lógica da acção refere-se às opções de conduta – acção ou omissão – que o agente
tem em certo momento. Os agentes podem ser confrontados com regras contraditórias
sobre direitos ou deveres. Pode também dar-se o caso de haver direitos ou deveres cujo
gozo ou cumprimento impede o gozo ou cumprimento de outros direitos ou deveres.
Tal só nos mostra que, apesar da consistência do sistema, é impossível gozar todos os
direitos ou cumprir todos os deveres que constam de regras válidas.
Um sistema é consistente quando qualquer obrigação pode ser cumprida sem violar
qualquer outra e quando qualquer permissão pode ser gozada sem violar nenhuma
obrigação. Apesar disso, não é possível garantir que todos os direitos possam ser
gozados em simultâneo e que todas as obrigações possam, também elas, ser
simultaneamente cumpridas. Não é, assim, possível assegurar a consistência pragmática
de um sistema.
Esta impossibilidade de assegurar a consistência pragmática do sistema faz com que
se gerem por vezes conflitos, sendo possível isolar os mais frequentes: conflitos
interpessoais de direitos – impossibilidade de vários titulares gozarem dos mesmos
direitos ao mesmo tempo – e os conflitos unipessoais de deveres – impossibilidade de
uma mesma pessoa cumprir ao mesmo tempo todos os seus deveres.
o Colisão interpessoal de direitos homogénea – os direitos incompatíveis são
todos da mesma espécie;
o Colisão interpessoal de direitos heterogénea – os direitos conflituantes são de
espécies distintas;
o Conflito unipessoal de deveres homogéneo – os deveres pertencem à mesma
espécie;
o Conflito unipessoal de deveres heterogéneo – os deveres pertencem a espécies
diferentes.
A análise aos conflitos de deveres implica uma referência aos actos supra-rogatórios,
sendo estes aqueles cuja prática é louvada, mas cuja omissão não é censurada. O direito
positivo fornece alguns critérios para resolver este conflito de direitos: a

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Frequentemente relacionada com um direito potestativo

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hierarquização dos direitos conflituantes e a prioridade do direito ou do seu exercício.


Na falta de um critério legal, o problema pode ser solucionado através de uma
ponderação de interesses a que dizem respeito os direitos e deveres em questão. Essa
ponderação obedece à seguinte fórmula: prevalece o direito cujo gozo ou o dever cujo
cumprimento for mais importante que a contra-razão fornecida por m direito ou dever
incompatível; os direitos ou deveres são tidos como equivalentes quando a razão para
o gozo ou cumprimento de um deles é igual à contra-razão para o gozo ou
cumprimento de outro direito ou dever conflituante; as contras-razões são
influenciadas pela importância dos interesses a que dizem respeito.
Se após essa avaliação se concluir que um deles prevalece sobre os demais, cabe então
aferir se apenas esse pode ser gozado – situação em que o gozo de um direito superior
impede o gozo de um direito inferior (art 335º, nº 2 CC) – ou se o cumprimento do
dever que prevalece depois da ponderação não afasta o cumprimento do dever
inferior. Caso nenhum dos direitos prevaleça sobre os restantes, podem também ser
geradas duas situações: apesar de entrarem em conflito, todos os direitos podem ser
gozados, embora haja a necessidade de os gozar numa medida “sub-optimizada”
(art335º, nº 1CC); apesar de equivalentes, não é possível cumprir todos os deveres
conflituantes, pelo que pode ser cumprido qualquer dever.
A ponderação mostra-nos que nenhuma situação subjectiva pode ser tida como
absoluta – estas valem apenas prima facie, pois que em caso de colisão ou conflito, elas
podem ser “abandonadas” em detrimento de outras que prevalecem. As situações
subjectivas estão assim sujeitas a uma condição pragmática: o titular só pode gozar o
seu direito se nessa situação concreta não houver um direito de outrem que deva
prevalecer; o titular só está obrigado a cumprir o seu dever perante alguém se nessa
situação concreta não houver um dever perante outrem que deva prevalecer. As
situações subjectivas que cedem perante outras estão sujeitas a uma pragmatic
defeasibility.

§ 15º Direito transitório formal


Enquadramento geral
As fontes de direito são produzidas em certo momento e entram em vigor noutro certo
momento. Quando se dá o iniciar da vigência da LN3, dá-se também a revogação da LA4.
É este factor que permite assegurar a consistência do sistema, uma vez que é assim que
se evita a coexistência de duas leis que regulem a mesma matéria. Apesar disto, não
estão assim resolvidos todos os problemas relativos à lei aplicável, uma vez que há
situações jurídicas constituídas aquando da vigência da LA e que transitam para o
período de vigência da LN. Para resolver esta questão é necessário entender que as
situações jurídicas que se constituíram antes do início da vigência da LN continuam a
ser regidas pela LA. Disto resulta que as fontes aplicáveis nem sempre coincidem com
as fontes vigentes num sistema jurídico.

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Lei Nova
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Lei Antiga

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A LN pode referir-se a factos jurídicos ou a efeitos jurídicos.

Factos instantâneos: factos de verificação


factos jurídicos instantânea, p.e. celebração de um negócio jurídico
acontecimentos que
ocorreram em determinado
momento e lugar Factos duradouros: factos que perduram no
tempo, p.e. aquisição por usucapião
LN Efeitos instantâneos: consequências
efeitos jurídicos momentâneas do facto jurídico, p.e. efeitos da
morte
consequências de factos
jurídicos
Situações jurídicas: consequências duradouras
de factos jurídicos, p.e. direito de propriedade

Direito transitório
É Direito Transitório aquele que resolve os problemas gerados pelos conflitos das leis no
tempo. Este direito pode ser material – aquele que escolhe, entre a LA e a LN, qual será
a lei aplicável – ou formal – direito que comporta regimes específicos, um regime
especial e um regime geral.
o Regimes específicos – vigoram em alguns ramos do direito, como direito penal
ou processual;
o Regime geral – está presente nos arts 12º e 13º CC. É, também, tido como o
regime legal subsidiário;
o Regime especial – está presente no art 297º CC.
O direito transitório formal é constituído por regras de conflitos, uma vez que é através
deste que é feita a escolha entre a LA e a LN.

Solução do conflito
Existem quatro soluções possíveis para resolução do conflito das leis no tempo e no
espaço:
o Aplicação imediata da LN – art 12, nº1, 1ª parte e nº2, 2ª parte CC
o Sobrevigência da LA – art 12º, nº 2, 1ª parte CC
o Retroactividade da LN – art 12, nº 1, 2ª parte e art 13º, nº 1 CC
o Retroconexão da LN – art 12º, nº 1, 1ª parte CC
Disto resulta a necessidade de avaliar se a situação jurídica tem um conteúdo
dependente ou independente do seu facto constitutivo. Admite-se, com base nisto, duas
hipóteses:
o A situação jurídica tem sempre o mesmo conteúdo, independentemente do
título que lhe corresponde – art 12º, nº 2, 2ª parte
EXEMPLO: direito de propriedade é sempre igual, seja o título da sua aquisição um contracto de compra
e venda, um testamento ou a usucapião.
o A situação jurídica tem um conteúdo variável, que depende do respectivo título
constitutivo – art 12º, nº2, 1ª parte CC
EXEMPLO: o conteúdo de um contracto

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A melhor maneira de interpretar o art 12º CC é, assim, considerar que há uma


alternatividade entre o disposto na primeira – sobrevigência da LA – e na segunda parte
– aplicação imediata da LN.

Critérios subsidiários gerais


Aplicação imediata da lei nova
A aplicação imediata da LN implica esta lei regula tantos os factos jurídicos que
ocorram após a sua vigência, como os factos duradouros que se iniciaram ainda no
período de vigência da LA e que se mantêm no momento do início da vigência da LN.
EXEMPLO: uma lei que altere a lista das doenças prolongadas que permitem que o funcionário requeira
a sua aposentação aplica-se de forma imediata a todos os que padeçam dessas doenças.
Quando aplicada aos efeitos jurídicos instantâneos, a aplicação imediata da LN implica
que são abrangidos por ela os efeitos que se produzam depois do início da sua
vigência. A constituição de um efeito jurídico pode ainda decorrer da conjugação de
factos que ocorreram aquando da vigência da LA e de factos que se verificaram já na
vigência da LN. EXEMPLO: a atribuição da qualidade de herdeiro a alguém durante a vigência da LA de
um outro que morre já durante a vigência da LN. Se esse suposto herdeiro, aos olhos da LN, não o pode
ser, essa qualidade é-lhe retirada.
No que toca à aplicação imediata da LN às situações jurídicas que se constituíram na
vigência da LA, é necessário que a LN disponha sobre o conteúdo dessas mesmas
situações, abstraindo-se dos respectivos títulos constitutivos. EXEMPLO: a lei relativa ao
divórcio é aplicável a todos os casamentos que subsistam à data da sua entrada em vigor,
independentemente de terem sido celebrados por civil ou pela igreja.

Sobrevigência da lei antiga


A sobrevigência da LA verifica-se sempre que a LN se refere às condições de validade
de um acto jurídico ou ao seu conteúdo de situações jurídicas que não possam abstrair
do seu título constitutivo.
Quando a LN dispõe acerca das condições de validade de quaisquer factos, entende-se
que só visa os factos novos. EXEMPLO: LA admite a celebração de um negócio jurídico por forma
verbal; LN implica que esse mesmo tipo de negócio seja celebrado por escrito; negócios verbalmente
celebrados durante a vigência da LA permanecem válidos.
Quando a LN incide sobre o conteúdo de situações jurídicas, a sobrevigência da LA
ocorre se o título constitutivo dessas situações tiver um efeito modelador sobre o seu
conteúdo EXEMPLO: os efeitos de uma conduta ilícita são definidos pela lei em vigor no momento de
realização da conduta.

Retroactividade da lei nova


Verifica-se retroactividade da lei nova quando esta se aplica a factos já ocorridos ou
efeitos já produzidos antes da sua entrada em vigor. A LN também se mostra
retroactiva se produz ou extingue um efeito jurídico produzido com base num título
modelador anterior à sua entrada em vigor. EXEMPLO: contrato celebrado tinha produzido
apenas um efeito jurídico; LN que extrai desse mesmo contracto um segundo efeito é retroactiva.
A regra geral é a da não retroactividade da lei nova – art 12º, nº 1, 1ª parte CC. No
entanto, em caso de retroactividade, presume-se que ficam resguardados os efeitos já
produzidos pelos factos que essa lei se destina a regular. EXEMPLO: LN regula cumprimento
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das obrigações decorrentes de contratos já celebrados – não afecta os efeitos já produzidos por esses
contractos.
Essa retroactividade da LN tem limitações: na CRP está vedada a retroactividade a leis
penais5, fiscais e leis restritivas de direitos, liberdades e garantias. A lei interpretativa6,
por contrário, tem geralmente carácter retroactivo – art 13º, nº 1 CC. Essa
retroactividade não atinge, no entanto, nem o cumprimento de obrigações, nem a
sentença que adquiriu a força de caso julgado por não ser impugnável, nem a
transacção, nem os casos análogos. Se uma lei for falsamente interpretativa – lei é pelo
legislado classificada como tal ma apresenta afinal conteúdo inovador – esta não deixa
de poder ser retroactiva.
Pode dar-se o caso de a LN ser menos exigente quanto aos requisitos de validade de
um acto do que era a LA. Nesta situação, decorre do art 12º, nº2, 1ª parte CC que tal
não interfere com os actos jurídicos praticados aquando da vigência da LA. A aplicação
da LN não torna assim válido o que era inválido aos olhos da LA. No enanto, o mesmo
não acontece se a LN definir que são válidos actos que, praticados durante a vigência
da LA, preenchem os requisitos de validade presentes na LN – retroactividade in
mitius.
Pode dar-se o caso de esta retroactividade in mitius não ser expressa, por razão de a
LN não ter sentido confirmativo.
Na ordem jurídica portuguesa são admitidos os seguintes graus de retroactividade:
o Retroactividade ordinária (art 12º, nº 1, 2ª parte CC) – diz respeito a todos os
efeitos produzidos pela LA.
o Retroactividade agravada (art 13º, nº 1 CC) – diz respeito a apenas alguns dos
efeitos produzidos pela LA.
o Retroactividade quase extrema – diz apenas respeito ao caso julgado obtido
antes da vigência da LN.
o Retroactividade extrema – não diz sequer respeito ao caso julgado anterior à
vigência da LN. Só é admissível em matéria sancionatória e se a LN for mais
favorável ao agente.

Retroconexão da lei nova


A retroconexão da lei nova decorre do preenchimento da previsão da LN com factos
passados ou efeitos já produzidos. É a inclusão na previsão da LN de factos passados.
A retroconexão conduz à aplicação imediata da LN. Pode ser total ou parcial:
o Total – o facto ou efeito que serve de previsão da LN já se verificou totalmente
no passado. A LN é aplicada imediatamente a factos ou efeitos totalmente
passados. EXEMPLO: uma fundação que atribui um prémio aos melhores estudantes da FDL
nos dois anos lectivos anteriores
o Parcial – a previsão da LN engloba quer factos que ocorreram ou efeitos que se
produziram na vigência da LA, quer factos ou efeitos que se verificaram na

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Exceptua-se o caso em que a LN apresenta um conteúdo mais favorável que a LA (mesmo que a LN mais
favorável não seja retroactiva, ela não deixa de ser aplicada às condenações anteriores à sua entrada em
vigor, pelo que se pode dizer ser este caso redundante).
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Lei que realiza a interpretação autêntica e um acto normativo

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vigência da LN. A LN é imediatamente aplicada em parte, a factos ou efeitos


passados e, em parte, a factos ou a efeitos presentes. EXEMPLO: ocorre um acidente
de trabalho na vigência da LA, mas o direito à pensão nasceu na vigência da LN, sendo a remição
dessa pensão regulada pela LN.
À retroconexão da lei nova impõem-se os mesmos limites que são impostos à
retroactividade da lei nova.

Critério supletivo especial


Está no art 297º CC estabelecida uma regra especial para a sucessão de leis sobre
prazos:
o Se a LN estabelecer um prazo mais curto do que a LA, a LN é imediatamente
aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir
da entrada em vigor da LN, a não ser eu, segundo a LA, falte menos tempo para
o prazo se completar. Implica-se assim uma sobrevigência da LA, justificada pela
necessidade de evitar que haja um aumento do prazo que se pretende encurtar.
o Se a LN fixar um prazo mais longo do que aquele que era definido pela LA, a LN
é imediatamente aplicável aos prazos em curso. Implica-se assim a aplicação
imediata da LN.
Determina o nº 3 do artigo supracitado que estas regras são também aplicáveis aos
prazos fixados pelos tribunais ou por qualquer outra autoridade. Cabe determinar se
esse prazo pode ser aplicável a todos os prazos estatuídos pela LN: não pode. Este
regime não é aplicável quando os prazos tenham sido definidos pelas partes ou estas
não tenham fixado qualquer prazo, aceitando os prazos supletivos. Se a LN aumentar
o prazo que consta da LA, aplica-se sempre o disposto no art 297º, nº 2 CC; se a LN
encurtar o prazo que está determinado pela LA, verificam-se duas possibilidades: ou a
aplicação imediata do prazo mais curto cria desequilíbrio entre as partes – aplica-se o
art 297º, nº 1 CC; ou a aplicação do prazo mais curto não gera nenhum desequilíbrio
ente as partes – aplicação imediata da LN.

PARTE II
§ 16º Linguagem e Direito
Generalidades
O direito constrói-se através de fontes e essas exprimem-se por meio de enunciados
linguísticos. A linguagem integra em si três dimensões:
o Extensional/conceptual/classificatória – a extensão de um conceito é
determinada pela realidade extralinguística a que ele se refere, pela sua
referência;
o Intencional/tipológica/ordinatória – a intenção de um conceito é o seu sentido,
isto é, o que ele exprime.
Só depois de se perceber qual a intenção de um conceito podemos determinar a
realidade a que este se refere.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

Dualidade da linguagem
Em termos de linguagem jurídica, mais importante do que a confirmação de que os
conceitos possuem uma extensão e uma intenção é entender que o legislador se pode
exprimir tanto numa dimensão conceptual ou classificatória – que se reflete nos
conceitos jurídicos – como numa dimensão tipológica ou ordinatória – que se reflete
nos tipos legais.
Cabe fazer a distinção entre conceitos determinados e conceitos indeterminados.
o Conceitos determinados – são conceitos que possuem uma extensão
determinada. Podem ser normativos ou empíricos.
o Normativos – são próprios de uma ordem normativa; são conceitos que
só têm significado no âmbito de uma ordem normativa. EXEMPLO: acto
jurídicos. Englobam-se nestes os que têm uma acepção extrajurídica, mas
que para o direito só valem com o seu sentido jurídico. EXEMPLO: documento
o Empíricos – são conceitos próprios de uma realidade não normativa.
EXEMPLO: águas
o Conceitos indeterminados – são conceitos de extensão variável, ou seja,
conceitos vagos. Comportam em si um núcleo de significado certo, rodeado por
significados cada vez mais incertos. O juízo sobre um conceito indeterminado
por levar a um de três resultados:
o O conceito indeterminado é indiscutivelmente aplicável;
o O conceito indeterminado é manifestamente não aplicável, porque a
situação concreta está para além do que pode ser abrangido pela sua
parte incerta;
o O conceito indeterminado não é nem manifestamente aplicável, nem
claramente não aplicável, porque apesar da situação não se incluir no
núcleo certo do conceito, não é certo que não se inclua na parte incerta.
O problema dos conceitos indeterminados prende-se com o facto de eles
poderem ser concretizados em diferentes medidas, só podendo ser
compreendidos e aplicados através de uma concretização em que se ajuíza o que
neles se integra e o que deles se exclui.
Cabe ainda falar dos chamados tipos legais. Podemos falar de um tipo médio e de um
tipo constitutivo.
o Tipo médio – o que se verifica com maior frequência; o que é mais comum.
EXEMPLO: aluno médio.
o Tipo constitutivo – o que é característico ou essencial; o que nos permite
distinguir uma realidade perante outras. EXEMPLO: gastronomia tipicamente
portuguesa.

Redução tipológica
Através da distinção entre linguagem classificatória e linguagem ordinatória podemos
retirar a distinção entre conceito e tipo. O conceito tem uma função classificatória,
dado que procura distinguir realidades; o tipo tem uma função ordinatória, permitindo-
nos ordenar várias realidades de acordo com as suas características. Enquanto o
conceito é sempre mais ou menos abstracto; o tipo é sempre mais ou menos concreto.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

O conceito é fechado – exige que se verifiquem todos os seus elementos constitutivos;


o tipo é vago - está preenchido mesmo que os seus elementos se verifiquem em
diferentes configurações ou estejam combinados com elementos acessórios ou atípicos.
Uma mesma expressão linguística pode ser um conceito e um tipo, sendo que na
linguagem quotidiana os tipos mostram-se mais relevantes que os conceitos, pois esta
linguagem é maioritariamente tipológica. No caso da linguagem jurídica, é o legislador
se escolhe entre a dimensão conceptual e a dimensão tipológica, sendo a segunda a
escolha mais frequente.
Também as definições legais podem ser tidas dentro da dimensão tipológica, dado que
estas são descrições dos elementos típicos de certos conceitos. No que toca aos
conceitos indeterminados, a indeterminação desses conceitos é uma indeterminação
quanto aos casos que eles abrangem, pelo que também esses conceitos são eles
próprios tipos. O mesmo se diz dos conceitos determinados que são empregados na
dimensão tipológica.

Divisio e partitio
o Divisio – divisão da extensão de um conceito; divisão de um género nas suas
espécies;
o Partitio – decomposição de um conceito nas suas notas características.
A divisio é própria da dimensão conceptual da linguagem e, assim, de um sistema
fechado. A partitio, por contrário, é própria da dimensão tipológica da linguagem e,
portanto, de um sistema aberto. A divisio é a divisão de um conceito mais extenso – o
género – em todos os conceitos menos extensos – as espécies – que esse comporta. A
partitio é a decomposição de um conceito nos seus elementos característicos – esta está
na base da construção do tipo.
O tipo constrói-se com o decorrer de várias operações:
1. Através da partitio, o conceito é decomposto nos seus elementos típicos;
2. Cada um desses elementos é conjugado com elementos semelhantes de outros
conceitos.
EXEMPLO: contracto de compra e venda apresenta uma exigência formal (art 875º CC), pelo que, em
conjunto com outros negócios jurídicos, pode ser englobado no tipo dos negócios formais.

§ 17º Hermenêutica e Direito


Hermenêutica normativa
A hermenêutica normativa pode ser tida como uma orientação baseada na ideia de
que não há significados, mas sim atribuições de significados com base em certas
regras. Esta resulta quer do carácter prático da interpretação quer do facto de o
significado de uma palavra ser o seu uso na linguagem.
Interpretar uma fonte representa determinar o seu significado – é inferir a regra da
fonte, sendo a regra o seu significado prático. É através da interpretação que se passa
da fonte para a regra, pelo que a questão está em saber como se pode retirar a regra da
fonte. O objectivo da interpretação não é o de traduzir a fonte em regra, mas sim
determinar qual o significado do enunciado da fonte. Essa interpretação termina
apenas no momento em que se obtém a regra e, assim, o seu significado prático.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

A hermenêutica normativa implica uma pré-compreensão, pois antes de compreender


algo é necessário saber não só o que se quer compreender, mas também como se quer
fazê-lo.

Hermenêutica jurídica
A interpretação jurídica é a actividade através da qual se compreende uma fonte do
direito. Pode, neste âmbito, dizer-se que o texto da lei é a fonte e que a regra é o que
se extrai desse texto. Assim, é através da interpretação que se chega à regra contida
ana fonte. A interpretação não é, por isso, um acto. É um processo que visa retirar da
fonte o seu significado prático.
A tarefa da interpretação é a da concretização da lei em cada caso, pelo que é a
aplicação da lei. Para que se conheça a regra extraída da fonte é sempre necessário
saber quais os casos aos quais essa fonte é aplicável. Destes princípios retiram-se vários
corolários:
o A fonte não contém nenhum significado em si mesma, sendo o seu significado
aquele que lhe é dado pelo intérprete;
o Entre a fonte e a regra só se interpõem os casos – a fonte é o modo de revelação
da regra e esta revela-se através da aplicação dessa mesma fonte aos casos.
o Os casos a que a fonte é aplicável não são determinados depois da construção
da regra, mas sim antes desta. Parte-se do mundo para a regra e não o contrário.
o O conhecimento prático que resulta da interpretação da fonte antecede o
conhecimento teórico – conhecimento do que a fonte prescreve, pois que só é
possível saber o que a fonte prescreve depois de saber a que casos esta se aplica.
A hermenêutica jurídica implica um método, pois nenhuma fonte assegura ela mesma
a correcção da interpretação que a ela pode ser feita. Não sendo nunca um fim em si
mesmo, a hermenêutica jurídica é sim uma ferramenta para a aplicação do direito. A
vinculação à lei7 implica a vinculação ao método da sua interpretação.
A subsunção é a relação que existe entre duas extensões quando uma destas está
incluída na outra. Esta não representa um elemento da aplicação da regra, mas sim um
elemento da construção da regra aplicável, pois que esta é tida como o juízo que
permite determinar quais os casos abrangidos pela fonte e, assim, permite chegar à
regra. A subsunção levanta o problema da integração de um facto concreto na previsão
geral e abstracta da fonte. O problema está em perceber como podemos fazer a ponte
entre o facto concreto e a previsão geral e abstracta. A subsunção implica uma
comparação entre o facto concreto e o tipo legal utilizado na lei. Por exemplo, ao
conceito “abuso de direito” – conceito indeterminado – são subsumíveis todas as
condutas que possam ser consideradas abuso de direito.
A interpretação de uma fonte de direito é sempre pragmática, dado que a determinação
da regra presente numa fonte é sempre determinada pelos casos aos quais a fonte é
aplicável. Assim, é necessário comparar o facto em questão com factos que a lei, sem

7
Emanação directa do princípio da separação de poderes, pois esta significa que nenhum intérprete pode
assumir as funções que cabem ao legislador – o que está constitucionalmente previsto em relação aos
tribunais mas que se aplica a todos os intérpretes do direito.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

qualquer dúvida, se aplica. Se entre estes factos houver analogia, então o facto em
questão é subsumível à lei. A subsunção é assim a comparação entre vários conceitos.
Sem o caso não é assim possível extrair a regra contida na fonte.
Para que seja interpretada, a lei pode ser decomposta um elemento determinado –
estatuição – e num elemento indeterminado – previsão da lei. Disto resulta o facto de
o resultado da previsão ter de ser compatível com a estatuição. A interpretação é assim
feita da estatuição para a previsão. Este processo é sempre necessário, uma vez que
sem ela não é possível a compreensão da fonte. Contrária a isto é a ideia de que a
interpretação não é necessária quando não houver ambiguidade do texto ou quando o
significado da fonte for claro. No entanto, esta perspectiva assenta na ideia errada de
que a interpretação apenas serve para clarificar, quando na realidade esta é
indispensável para determinar o significado da fonte. Só após a interpretação se pode
saber qual a regra que dela resulta de forma inequívoca.
A interpretação jurídica enfrenta, para além de problemas específicos da ordem
jurídica, problemas de:
o Ambiguidade sintática – verifica-se quando a construção da expressão origina
dúvidas sobre o seu significado. EXEMPLO: “A Maria trouxe vinho do Porto”
o Polissemia ou ambiguidade semântica – verifica-se quando a mesma palavra
pode ter vários significados, dependendo do contexto. EXEMPLO: “É proibido comer
ou fumar na sala de aula”
o Vagueza do significado – verifica-se quando as palavras possuem um significado
indeterminado. EXEMPLO: “É proibida a circulação de carros com pneus gastos”.
o Modificabilidade do significado – verifica-se quando as palavras variam de
significado ao longo do tempo. EXEMPLO: liberdade.
A par destas existem complicações de ordem jurídica, tais como:
o Proliferação legislativa – há uma enorme produção legislativa impossibilitando
assim a certeza de que, na interpretação de uma fonte, não se está a descorar
uma outra determinada para essa interpretação.
o Hermetismo da linguagem jurídica – a linguagem usada na escritura das leis nem
sempre é clara para aqueles com um conhecimento dito normal (de não jurista)
do direito.
Os critérios de interpretação da lei estão presentes no art 9º CC, estando determinado
que a existência de uma lei interpretativa não exclui a necessidade de interpretação.
Influencia apenas no facto de ser necessário interpretar a lei interpretada de acordo
com a lei interpretativa e vice-versa.

§ 18º Interpretação da lei


Generalidades
A interpretação da lei segue os seguintes pontos:
1. Finalidade da interpretação – cabe aferir se a interpretação tem por objectio
descobrir a vontade do legislador ou o significado objectivo da lei;
2. Elementos da interpretação – é necessário selecionar os elementos que vão ser
utilizados para a interpretação;

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

3. Inferência da regra jurídica – do processo de interpretação que conjuga os vários


elementos interpretativos, resulta a inferência de uma regra jurídica, ou seja,
quais os casos a que a lei é aplicável.
A interpretação tem um carácter normativo, ao qual se acrescenta o recurso a regras
específicas da interpretação da lei, presentes no art 9º CC. O objectivo não é o de saber
como é interpretada a lei, mas sim como deve ser.

Finalidades da interpretação
No que toca à finalidade da interpretação, podemos identificar uma orientação
subjectivista e uma orientação objectivista.
o Orientação subjectivista – a finalidade da interpretação é a reconstrução da
intenção do legislador. Caso haja um conflito entre o legislador e um intérprete,
prevalece a posição do legislador. (Savigny e Windsheid)
o Orientação objectivista – a finalidade da interpretação é a determinação do
significado objectivo da lei, independentemente de qual tenha sido a intenção
do legislador. De acordo com esta, em caso de conflito, prevalece a posição do
intérprete.
Escolher uma orientação objectivista ou subjectivista pode influenciar todo o processo
de interpretação e, por conseguinte, a regra que pode resultar desse mesmo processo.
Actualmente, apesar de em versões distintas, tende a prevalecer a concepção
objectivista. Em todas essas versões está presente que o que realmente importa é o
sentido da lei. Estas concepções geram uma importante consequência – não há
nenhuma continuidade entre a produção da lei e a sua interpretação.
A favor das correntes objectivistas estão os argumentos da igualdade perante a lei, da
impossibilidade de determinar a intenção do legislador histórico8 e da necessidade de
assegurar a integração da lei no ambiente social. Relativamente à argumentação
utilizada em tribunal, é frequente invocar a relevância da vontade do legislador, pois
essa é a intenção com a qual o legislador agiu.
Se a lei é um enunciado linguístico através do qual o legislador estabelece um
determinado dever para os destinatários, então cabe saber se, independentemente de
se adoptar uma orientação objectivista, não importa sempre ter em conta a vontade
do legislador. A resposta é negativa. Mesmo que essa vontade seja conhecida, isso não
justifica nem que o legislador possa invocar contra eles a sua intenção nem que os
destinatários possam utilizar a seu favor a intenção do legislador. Isto porque ninguém
pode ser prejudicado por uma intenção do legislador que não está expressa no texto
da lei. O que conta, por força do art 9º CC, é o que está expresso na lei. É aqui que reside
a diferença entre a interpretação da lei e a interpretação de negócios jurídicos – na
interpretação da lei, a intenção do legislador não se pode sobrepor ao sentido objectivo
da lei; na interpretação de negócios jurídicos, para que se proteja o declarante, há uma
prevalência da sua vontade real.

8
Há uma impossibilidade de definir uma vontade comum a todos os intervenientes no processo
legislativo.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

Como consequências das orientações objectivistas, temos a ideia de que o intérprete


não tem de tentar discernir a intenção do legislador. Tal significa que a competência
para legislar não coincide com a competência para interpretar e que o poder
jurisdicional prevalece sobre o poder legislativo – o direito não é o que o legislador quis
que fosse mas sim o que o juiz considera que é. São assim essenciais as regras que
vinculam o processo de interpretação, pois são estas as únicas que limitam a actividade
do juiz.
Cabe referir que a orientação objectivista não tem como irrelevante a intenção do
legislador, pois esta não impede que a vontade do legislador coincida com o sentido
objectivo da lei. No entanto, as probabilidades de tal acontecer são tanto maiores
quanto mais recente for a lei em questão. Tendo em conta que, ao legislar, o legislador
tem em atenção a realidade política, social, económica e cultural que se vive nesse
momento, então é de esperar que uma lei mais recente esteja mais de acordo com essa
realidade do que estará uma lei mais antiga.
No direito português, o art 9º, nº 1 CC estatui que a interpretação tem por finalidade a
reconstrução do pensamento legislativo a partir do texto da lei. A expressão
“pensamento legislativo” tanto pode significar o pensamento do legislador
(perspectiva subjectivista) como o pensamento da lei (perspectiva objectivista). Do nº
2 do mesmo artigo resulta que não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento
legislativo que não tenha, na leitra da lei, um mínimo de expressão.
Para resolver o problema que advém da utilização da expressão “pensamento
legislativo”, cabe analisar a oposição entre o actualismo e o historicismo:
o Actualismo – o que conta é o significado actual da lei;
o Historicismo – o que conta é o significado que a lei tinha no momento da sua
criação.
A oposição entre estas duas correntes corresponde, em certa parte, à oposição entre as
orientações subjectivistas e objectivistas. Assim:
o Orientação subjectivista historicista – o significado da lei é aquele que o
legislador lhe deu no momento da sua elaboração;
o Orientação subjectivista actualista – o significado da lei é aquele que o
legislador lhe daria se tivesse de legislar na actualidade;
o Orientação objectivista historicista – o significado da lei é aquele que ela tinha
no momento da sua criação;
o Orientação objectivista actualista – o significado da lei é aquele que ela tem na
actualidade.
Cabe ainda referir que o actualismo, per si, pode ser entendido de duas maneiras:
o Actualismo projectivo (subjectivista) – projecção na actualidade da vontade do
legislador histórico;
o Actualismo projectivo (objectivista) – projecção na actualidade do significado
objectivo histórico
o Actualismo prospectivo (subjectivista) – prospecção da vontade do legislador
actual;
o Actualismo prospectivo (objectivista) – prospecção do significado objectivo
actual

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

É com isto possível concluir que o complemento natural do subjectivismo é o


historicismo e o do objectivismo é o actualismo prospectivo.
Conclui-se, assim, que o art 9º, nº 1 CC (que manda atender às condições específicas do
tempo em que a lei é aplicada) consagra uma orientação actualista prospectiva – o
significado que o intérprete deve atribuir à lei é aquele que ela possui no momento da
sua interpretação. A expressão “pensamento legislativo” adopta então uma natureza
actualista, pelo que deve ser entendido no sentido do pensamento da lei.
A finalidade da interpretação é, então, aplicar a lei e encontrar a sua razão de ser como
elemento de um raciocínio prático. O processo de interpretação é feito da fonte para a
sua aplicação, sou seja, numa perspectiva actualista e objectivista.

Elementos da interpretação
A interpretação da lei tem de obedecer a determinadas regras. A essas regras dá-se o
nome de elementos da interpretação. É com estas que se torna possível não só escolher
entre várias interpretações, como determinar se a interpretação feita é correcta ou
incorrecta.
Savigny estabeleceu, como elementos da interpretação: o elemento gramatical
(sentido literal da lei), o elemento lógico (construção lógica da lei), o elemento
sistemático (conexão sistemática existente entre as várias regras que constam da lei) e
o elemento histórico (circunstância que motivou a elaboração da lei). Os elementos que
hoje se utilizam não diferem muito destes estabelecidos por Savigny. A interpretação
da lei resulta da análise da sua letra, do que resulta da sua história, da sua teleologia
e da sua contextualização no sistema jurídico em que se insere.
Consideram-se, actualmente, como elementos da interpretação: o elemento literal, o
elemento histórico, o elemento sistemático e o elemento teleológico. Os elementos
histórico e sistemático, em conjunto, são elementos de contexto e, em conjunto com o
elemento teleológico, representam os elementos não literais da interpretação.
O presente no art 9º CC aplica-se a qualquer lei em sentido material, pelo que se
estende aos actos regulamentares. Este processo vale, mutatis mutandis, para a
interpretação de cada um dos seus preceitos. Se a regra jurídica é o resultado do
processo de interpretação, então é errado falarmos em “interpretação da regra”.
No ordenamento português, distingue-se entre uma hierarquia relativa ao método de
interpretação e uma hierarquia relativa ao resultado da interpretação.
o Hierarquia relativa ao método da interpretação – advém do art 9º, nº 1 CC que
a interpretação deve reconstituir o pensamento legislativo a partir dos textos,
pelo que há uma superioridade do elemento gramatical perante os outros;
o Hierarquia relativa ao resultado da interpretação – advém também do art 9º,
nº 1 CC que os elementos não literais prevalecem sobre o elemento gramatical.
A partir dos vários elementos de interpretação é possível construir uma meta-regra de
prevalência – a dimensão pragmática da lei prevalece sobre o que resulta da sua letra.
Os elementos da interpretação apresentam um valor próprio, devendo todos eles ser
utilizados e nãos e podendo utilizar mais do que os resultantes do art 9º CC. São, estes,
critérios normativos. Tendo cada um deles um valor próprio conclui-se que valem de
forma diferente em cada situação.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

Significado literal
O processo de interpretação da lei começa com a análise da sua letra, com o objectivo
de compreender o seu significado. A letra da lei não é apenas um dos elementos da
interpretação, mas sim a base textual da mesma. Esta deve, como resultado de uma
análise do art 9º CC de acordo com uma perspectiva actualista, ser interpretada de
acordo com o seu significado actual.
O elemento literal tem uma dimensão sintática – que diz respeito à estrutura gramatical
da lei e que a considera na total do seu enunciado – e uma dimensão semântica – que
se refere ao significado das palavras utilizadas na lei e no contexto da sua estrutura. Na
determinação do significado literal da lei é necessário observar certas regras: o
intérprete não deve deixar de atribuir um significado a todas as expressões da lei e é
necessário evitar a atribuição de significados incompatíveis – significados que não
respeitam relações de implicação ou de equivalência entre palavras ou expressões.
É necessário distinguir as palavras de linguagem jurídica, de linguagem técnica e de
linguagem corrente.
o Palavras de linguagem jurídica – devem ser interpretadas de acordo com o
significado que estas possuem no direito em geral ou no ramo do direito em que
se insere a lei interpretada. É neste âmbito que reside a importância das
definições legais.
o Palavras de linguagem técnica – devem ser interpretadas com o significado que
elas têm no respectivo campo do conhecimento, a menos que haja que concluir
que elas são empregues com o seu sentido mais corrente.
o Palavras de linguagem corrente – devem ser interpretadas com o significado
que possuem no seu uso quotidiano.
A letra da lei tem um valor próprio, impondo assim dois limites – há que considerar que
o legislador consagrou as soluções mais acertadas e que o legislador soube exprimir o
seu pensamento em termos adequados; não pode ser considerado pelo intérprete um
significado que não tenha na letra da lei a mínima expressão verbal. Deste segundo
princípio retiram-se duas ilações – a letra da lei representa um limite a todos os outros
elementos da interpretação; não pode ser qualificada como interpretação a conclusão
do intérprete que não seja compatível com a letra da lei.
A letra da lei pode sempre ser ultrapassada pelo espírito da lei, uma vez que nada exige
que o intérprete se cinja apenas ao que na lei está directamente expresso. O que se
exige, sim, é que haja uma correspondência, ainda que mínima se for esse o caso, entre
a interpretação e a letra da lei. Cabe aferir, então, até onde pode ir a interpretação. De
acordo com uma perspectiva objectivista, a interpretação da lei pode ir até onde os
elementos não literais da interpretação permitirem. Tanto se pode ficar pelo
significado literal da lei, como se pode restringir – interpretação restritiva – ou alargar
– interpretação extensiva – esse mesmo.
A interpretação da lei parte do seu significado literal para a consideração dos
elementos não literais da interpretação. No entanto, após isso, é necessário retornar
ao elemento literal para aferir se a interpretação foi feita conforme o significado desse.
Este é um princípio que advém do art 9º, nº2 CC.

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Ano 1,TA, ST6
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Elemento histórico
O elemento histórico, também elemento genético, diz respeito à justificação da fonte.
É o que nos informa acerca do motivo que levou à produção da fonte, dos factos que
levaram o legislador a produzir uma lei sobre determinada matéria e acerca de quais
as necessidades que era suposto a lei satisfazer. Está presente no art 9º, nº 1, CC.
Dentro deste elemento podemos identificar aspectos objectivos e subjectivos:
o Aspectos objectivos – dizem respeito à situação social e jurídica existente no
momento da formação da lei. Aqui pertencem os precedentes normativos e
doutrinários, bem como a occasio legis.
o Precedentes normativos
 Históricos – leis que antecederam a lei que se interpreta;
 Doutrinários – leis vigentes em diferentes ordenamentos
jurídicos aquando da formação da lei.
o Precedentes doutrinários – diz respeito ao ambiente doutrinário no qual
foi elaborada a lei em interpretação.
o Occasio legis – trata do condicionalismo que esteve presente na
formação da lei. Qualquer lei tem implicações na realidade política,
social, económica e cultural que se vive no momento em que esta vigora.
o Aspectos subjectivos – dizem respeito à intenção do legislador que produziu a
lei. Para ajudar a determinar essa intenção podem ser usados certos meios
auxiliares: exposições oficiais de motivos, trabalhos preparatórios, anteprojectos
e projectos que antecederam a sua versão final, bem como a discussão que teve
lugar nos órgãos legislativos. Pode também contar-se com os preâmbulos dos
diplomas legais. Disto tudo resulta que a intenção do legislador é muito mais
uma construção do intérprete do que, de facto, a intenção do legislador
propriamente dita.
O elemento histórico tem ainda uma dimensão evolutiva, que se resume à necessidade
de saber qual a interpretação que tem sido dada, pela jurisprudência e pela doutrina,
a uma determinada lei após o início da sua vigência. Torna-se, para isso, essencial
conhecer a aplicação da lei, pois só através disso poderemos interpretar essa fonte.

Elemento sistemático
O elemento sistemático tem por base o princípio segundo o qual o significado de uma
lei resulta do seu contexto. Este elemento impõe uma interpretação sistemática, mas
não garante por si que o resultado dessa interpretação seja conforme o sistema. Caso
essa solução não seja, de facto, conforme o sistema, torna-se necessário resolver o
conflito normativo. A resolução pode passar pela revogação ou invalidade de uma das
regras, pela classificação de uma como excepcional ou especial perante a outra, ou
ainda pela escolha de uma dessas por meio de uma ponderação dos respectivos
interesses.
O elemento sistemático está consagrado no art 9º, nº 1 CC, quando este impõe que se
considere a unidade do sistema jurídico. É deste que resulta a imposição de a lei seja
interpretada no respectivo ambiente sistemático, pois nenhuma lei deve ser

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

interpretada enquanto separada das outras leis com as quais naturalmente se relaciona.
Este elemento sistemático orienta-se por meio do princípio da igualdade, na medida
em que o que é igual deve ser tratado de forma igual. O facto de a interpretação ocorrer
no contexto em que a lei vigora faz com que seja evitada ambiguidade semântica das
palavras da lei.
Podemos considerar o elemento sistemático segundo uma perspectiva histórica e
segundo uma perspectiva actualista:
o Perspectiva histórica – o intérprete considera a integração sistemática que
existia no momento de produção da lei;
o Perspectiva actualista – o intérprete considera a integração sistemática da lei na
actualidade.
O art 9º CC aponta claramente para que este elemento seja entendido segundo uma
perspectiva actualista. O elemento sistemático expressa-se em duas vertentes:
o Relação de contexto – o intérprete só pode interpretar a lei depois de a
enquadrar no conjunto mais vasto em que esta se integra;
o Princípio de consistência – princípio que representa não só uma consequência
da unidade do sistema jurídico mas também um preceito necessário para essa
unidade.
O elemento sistemático traduz-se em duas regras interpretativas, uma de carácter
positivo e uma outra de carácter negativo.
o Regra positiva – o significado atribuído à lei tem de ser o que mais se conforma
com as restantes fontes ou com os outros preceitos da mesma fonte.
o Regra negativa – impede que o intérprete atribua à lei um significado que não
seja consistente com outras fontes ou com outros preceitos da mesma fonte.
No enquadramento sistemático da lei podemos ter em conta um contexto vertical e um
contexto horizontal:
o Contexto vertical – trata da conexão da lei com outras leis de hierarquia superior
que tratam da mesma matéria. Este contexto implica que tenhamos por base a
fonte de produção, havendo assim a considerar diversas modalidades de
interpretação:
o Interpretação conforme à Constituição;
o Interpretação conforme ao direito europeu;
o Interpretação conforme ao direito ordinário.
o Contexto horizontal – trata da conexão da lei com outras leis de igual hierarquia
que tratam da mesma matéria, tanto no mesmo como em diferentes regimes
jurídicos. Este contexto mostra-se relevante quando tratamos da interpretação
de uma lei especial ou excepcional. A interpretação de uma lei especial tem de
ter em conta a respectiva lei geral, bem como a interpretação da lei excepcional
tem de ter em conta a respectiva lei geral. Já a interpretação da lei remissiva tem
de ter em conta a lei para a qual essa primeira remete.
Da unidade do sistema jurídico decorre o princípio da consistência. Este mostra-se
essencial não só para encontrar o significado da lei na unidade do sistema jurídico, mas
também para afastar significados incompatíveis com essa mesma unidade. Conclui-se
assim que a unidade do sistema é construída pelo intérprete através da sua actividade

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

de interpretação das fontes. Essa consistência é essencial não só no sistema jurídico mas
também em cada um dos seus subsistemas.

Elemento teleológico
O elemento teleológico diz respeito à finalidade da lei. Procura, assim, determinar quais
são os objectivos que a lei pode prosseguir. Distingue-se do elemento histórico porque,
enquanto este procura justificação para a produção da lei, o elemento teleológico
procura a finalidade que justifica a vigência dessa mesma lei. Impõe-se ao intérprete,
assim, que descubra a ratio legis. Este elemento pode ser retirado do art 9º, nº 1 CC e
pretende determinar o espírito da lei. Para entender a finalidade da lei, é necessário
primeiro entender o que esta estatui, pelo que poderá ser necessário considerar o
enquadramento sistemático da lei.
A teleologia pode ser observada de acordo com uma perspectiva histórica e de acordo
com uma perspectiva actualista:
o Perspectiva histórica
o Perspectiva histórica subjectivista – o intérprete procura discernir a
finalidade que o legislador procurava prosseguir com a lei;
o Perspectiva histórica objectivista - o intérprete procura discernir a
finalidade que a lei poderia realizar no momento em que foi elaborada;
o Perspectiva actualista – o intérprete atribui à lei um significado que corresponda
à finalidade que ela pode realizar no momento em que está a ser interpretada.
Manda o Direito Positivo, no art 9º, nº 1 CC, adoptar a perspectiva actualista.
Para determinar a teleologia da fonte mostra-se necessário observar o ambiente sócio-
económico, político e cultural em que a fonte está a ser interpretada. Para além destes,
é também necessário atender a factores jurídicos. A interpretação da lei deve
considerar princípios do sistema jurídico e do respectivo subsistema em que a lei se
insere. Disto se retira que a lei deve ser interpretada em consonância com os princípios
formais e materiais que concretiza. Cabe ao intérprete descobrir qual o princípio
formal ou material que fundamenta a lei. Uma boa interpretação será aquela que
conseguir uma optimização do princípio subjacente à lei interpretada. Em caso de
dificuldade do intérprete em definir o princípio subjacente à lei em interpretação, há
que realizar uma ponderação entre os princípios de justiça, confiança e eficiência e
escolher o que melhor se adequar aos interesses que a lei protege.
Para que seja determinada a teleologia da fonte, é preciso atentar às consequências da
mesma. Disto resulta que, havendo duas ou mais teleologias possíveis, cabe ao
intérprete evitar as que sejam incompatíveis com o sistema e escolher a que melhor
se concilia com esse mesmo sistema. A melhor interpretação é assim a que acrescenta
alo de novo ao sistema e permite dessa maneira proteger interesses que antes não se
encontravam protegidos.
Para que a interpretação seja feita de forma certeira mostra-se necessário que se tenha
atenção a experiências da vida quotidiana, através das regras de experiência. É com
estas que o intérprete ganha uma noção do que melhor se adequa à normalidade da
vida em sociedade.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

O elemento teleológico é o que melhor permite controlar a correcção da interpretação.


É também este que permite ao intérprete utilizar valores éticos, políticos ou
económicos na procura de optimização do princípio que subjaz à lei. Tem uma
dimensão consequencialista, uma vez que deve sempre atentar às consequências que
resultam da sua aplicação. No entanto, quaisquer que essas sejam, a finalidade
encontrada pelo intérprete tem de ser valorada como positiva.
É através do elemento teleológico que podemos identificar os casos de fraude à lei,
sendo esses situações artificialmente criadas pelos interessados para evitar a aplicação
da lei.

Conjugação dos elementos


Nenhum dos vários elementos de interpretação é suficiente por si próprio, sendo a
interpretação um processo que envolve obrigatoriamente todos os elementos em
causa. A interpretação resulta da conjugação de cada um destes elementos, pelo que
os elementos histórico, teleológico e sistemático devem ser vistos de uma força
“aditiva”, ou seja, pela perspectiva de que cada um deles acrescenta algo à
interpretação.

§ 19º Resultados da interpretação


Generalidades
São os vários elementos da interpretação que tornam possível determinar os casos a
que a lei em interpretação é aplicável, ou seja, que tornam possível determinar a sua
dimensão pragmática. No que toca à dimensão semântica da fonte de direito, esta é
determinada pelo significado literal da lei.
A reconstrução do pensamento legislativo pode gerar situações de coincidência ou de
não coincidência entre o significado literal e o espírito da lei, ou seja, entre a dimensão
semântica e a dimensão pragmática. As situações de coincidência geram uma
interpretação declarativa (ou confirmatória) e as situações de não coincidência geram
uma interpretação reconstrutiva.

Interpretação declarativa
A interpretação declarativa é a que resulta da coincidência entre o significado literal e
o espírito da lei. É, portanto, uma interpretação secundum litteram, em que a
dimensão semântica coincide com a dimensão pragmática.
Podemos ter uma interpretação declarativa lata, média e restrita:
o Interpretação declarativa lata – aquela em que o significado literal é o mais
extenso possível;
o Interpretação declarativa restrita – aquela em que o significado literal é o
menos extenso possível;
o Interpretação declarativa média – aquela em que o significado literal é o que
corresponde ao significado mais frequente da palavra.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

Interpretação reconstrutiva
O significado literal e o espírito da lei podem, no entanto, não coincidir. Se assim
acontecer, estamos perante uma interpretação reconstrutiva – é necessário reconstruir
o significado da lei a partir do seu texto e com apoio no seu espírito. Só vale como
espírito da lei, no entanto, aquele que tenha um mínimo de correspondência com a
letra da mesma – art 9º, nº 2 CC.
Esta atribuição de um significado à lei interpretada pode ser mais ampla ou mais
restrita, pelo que podemos distinguir a interpretação extensiva da interpretação
restritiva:
o Interpretação extensiva – é aquela em que o resultado da interpretação é mais
amplo do que o significado literal da lei. O espírito da lei ultrapassa a sua letra,
ficando nós com uma interpretação praeter letteram, em que a dimensão
pragmática da lei vai para além da sua dimensão semântica. Disto resulta que
haverá casos que não são abrangidos pela letra da lei, mas que acabam por o ser
pelo seu respectivo espírito. A interpretação extensiva tem presente um juízo de
agregação – o que vale para a parte deve valer igualmente para o todo. Cabe
referir que a interpretação extensiva pode ser a base da criação de uma regra
excepcional.
Diferente da interpretação extensiva é a interpretação declarativa lata, pois que nesta
segunda o significado da lei é o seu significado literal mais extenso, não indo o espírito
da lei para lá do que é esse significado literal. Também não deve a interpretação
extensiva ser confundida com os casos em que cabem na previsão legal não só os casos
nela presentes mas também os casos a eles análogos.
o Interpretação restritiva - o resultado da interpretação é mais restrito do que é o
significado literal da lei, pois que o espírito da lei fica aquém da letra da mesma.
Esta é uma interpretação citra litteram, na qual a dimensão pragmática da lei
fica aquém da sua dimensão semântica. Prevalece um juízo de desagregação –
o que vale para o todo só deve valer para a parte. Nesta interpretação, a letra da
lei é derrotada pelo seu espírito, implicando este que a lei seja interpretada
como se comportasse uma excepção. Há uma self defeasibility, pois que a lei se
diminui a si mesma. EXEMPLO: a letra da lei define que essa lei é aplicável ao caso C, com a
característica x. Pela interpretação restritiva esta não se aplicará, por exemplo, ao caso D com as
características x e y. A lei aplica-se a todos os casos que tenham a característica x, excepto
aqueles que tenham outra para além dessa.
A interpretação restritiva leva assim à inaplicabilidade da lei a factos ou
situações que são abrangidos pela sua letra, pelo que estes terão que ser
regulados por outro regime jurídico. Disto resulta a necessidade de saber como
se determina esse regime jurídico, o que leva a três situações:
o O caso não tem relevância jurídica, pertencendo assim ao espaço livre
de direito;
o A interpretação restritiva da lei deixa espaço para que se aplique uma
outra lei, também vigente no ordenamento;
o A interpretação restritiva da lei não leva à aplicação de uma outra lei
vigente, pois que este não tem em si nenhuma lei que se aplique aos

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

factos ou situações que não são abrangidos ela lei interpretada. Dá-se
assim a construção de uma regra excepcional que se aplicará aos factos
ou situações em questão.
Diferente da interpretação restritiva é a interpretação declarativa restritiva. Nesta, o
significado da lei é o seu significado literal menos extenso (por contrário da
interpretação declarativa lata).

Desconsideração da regra
O art 203º CRP estabelece que os tribunais se vinculam à lei, para garantir o Estado de
Direito e a separação de poderes. Desta norma decorre a prevalência da lei sobre
qualquer intuição do juiz. A vinculação do juiz não é á letra da lei mas sim à
interpretação da mesma, ou seja, à interpretação declarativa, à interpretação
extensiva e à interpretação restritiva.
A vinculação do juiz à lei deixa em aberto o problema de saber em que condições este
juiz pode não aplicar a regra inferida da fonte. Para tal é necessário proceder a uma
análise da interpretação ab-rogante e da interpretação correctiva.
o Interpretação ab-rogante –
o Interpretação correctiva – manifesta-se tanto na aplicação da lei a um caso que
esta exclui (eliminação de uma excepção prevista na lei), como na não aplicação
da lei a um caso que ela abrange (criação de uma excepção não prevista na lei).
Dizia Aristóteles que a interpretação correctiva é a base da equidade.
Diferente da interpretação correctiva é a interpretação restritiva ou extensiva. Nestas,
os elementos não literais levam a uma extensão ou redução do seu significado literal.
Na interpretação correctiva, a letra e o espírito da lei são ambos desconsiderados, pois
que a lei deixa de se aplicar a um caso que abrange. O Direito Português, como outras
ordens jurídicas, exclui a interpretação correctiva – art 8º, nº 2 CC – uma vez que o
dever de obediência à lei não pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o
conteúdo do preceito legal. Trata-se de respeitar a separação entre as funções
jurisdicional e legislativa. Uma interpretação correctiva da lei seria uma interpretação
contrária aos critérios de interpretação presentes no art 9º CC e contrária à própria lei
interpretada – levaria a uma interpretação contra legem em duplo sentido.
O art 8º, nº 2 CC resolve o problema ao estatuir que o intérprete – maxime, o juiz – está
vinculado à lei. Disso resulta que este não pode ser culpabilizado pelas suas decisões,
quando estas são simplesmente resultado da sua vinculação à lei.

§20º Detecção de lacunas


Determinação da lacuna
Falamos em lacuna quando nos referimos à inexistência de uma regra para regular um
determinado caso jurídico. Falta, nestas situações, uma regra legal – e não uma regra
jurídica – dado que não existe sequer uma regra inferida de outra fonte (como o
costume). Não estaremos perante uma lacuna se o caso puder ser resolvido por um
princípio implícito ou por uma regra derivada. Para que seja uma lacuna, tem de haver
uma total falta de regulamentação – tem de haver uma lacuna iuris.

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Patrícia Carneiro da Silva

Conclui-se, assim, que só existe lacuna quando de nenhuma fonte pode ser retirada
uma regra que se possa aplicar a determinado caso. Esta questão é abrangida pelo art
10º CC, sendo preciso fazer dele uma interpretação extensiva, pois que o problema de
integração de lacunas só se coloca quando falta, em absoluto, qualquer regra para
regular o caso. Diferentes das lacunas legais são as insuficiências axiológicas do sistema
jurídico – as lacunas axiológicas. Nestas, ocorre que algo deve estar regulado, não
porque a completude do sistema assim o exija, mas porque se entende que o sistema
deve conter uma solução para um caso ou não deve dar a um caso a mesma solução
que dá a outro.
Como causas da existência de uma lacuna no sistema podemos ter:
o O facto de o legislador não querer regular uma determinada matéria;
o O facto de a técnica legislativo ser deficiente, dado que o legislador não previu
todas as situações que devia ter previsto;
o O facto de a fonte não ter valor jurídico, dado que a fonte que regula uma
determinada matéria é inexistente, inválida ou ineficaz;
o O facto de a evolução social ou tecnológica ter aberto uma lacuna que não
existia anteriormente.
As lacunas representam uma inevitabilidade. No entanto, é possível combatê-las. A
lacuna pressupõe uma incompletude do sistema jurídico, pelo que decorre da junção
de dois factores: um factor negativo – ausência de regulamentação – e um factor
positivo – exigência dessa regulamentação.
Há, no entanto, doutrina que defende a impossibilidade de o ordenamento jurídico ser
incompleto. É o caso de Kelsen, que defendeu que quando a ordem jurídica não
estabelece qualquer proibição, então está implícita uma permissão para realizar ou
não realizar o que não é proibido. Disto resultaria, diz o autor, a obrigatória
completude do sistema. No entanto, tal não é verdade: o facto de o sistema não ter
uma conduta como proibida não faz com que ele seja completo, pois que basta que ele
exija uma regulamentação diferente da não proibição da conduta para que não haja
completude. Diferente de o legislador estabelecer que tudo o que não é proibido é
permitido, é o legislador não se pronunciar sobre se o que não é proibido deve ser
considerado permitido. No primeiro caso estamos perante um sistema fechado; no
segundo, estamos perante um sistema incompleto.
O art 10º CC estabelece os critérios para a integração de lacunas presentes no sistema.
São estes:
o Analogia – art 10, nº 1 CC;
o Regra hipotética criada no espírito do sistema – art 10º, nº 3 CC;
Da existência destes critérios resulta que, apesar de poder haver um sistema incompleto
quanto às fontes, não pode haver um sistema incompleto quanto às regras. Tal
acontece porque o sistema abarca critérios para se completar a si próprio. Fala-se de
uma incompletude no sistema, mas não do sistema. Só há lacuna se o caso em questão
não fizer parte do espaço livre de direito. Uma lacuna encontra-se sempre “no direito”,
estando o espaço livre de direito “à volta do direito”.
No ordenamento jurídico português é claro que a aplicação de um regime a casos
análogos aos quais esse regime se aplica é um caso de existência de lacunas no sistema,

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

até porque a analogia é um dos critérios presentes no art 10º CC para a integração
destas lacunas. Se a analogia pode ser tida com um indício de incompletude, então
torna-se claro que um sistema que não admite a analogia não pode comportar
nenhuma incompletude. Há sistemas e até subsistemas que a excluem, como é o caso
do direito penal, relativamente às regras que qualificam um factor como crime. A
analogia também está excluída dos casos em que o facto a que se aplica é o único que
pode desencadear a aplicação dessa mesma regra. EXEMPLO: a regra “aquele que perfizer 18
anos torna-se maior”.
A incompletude do sistema é uma impossibilidade não só quando o sistema é completo,
mas também quando o sistema é fechado. No sistema fechado não há lacunas porque
o sistema não admite a sua aplicação a casos omissos – tudo o que não é proibido é
permitido. Um sistema completo representa quase que uma impossibilidade prática.

Classificação das lacunas


As lacunas podem ser classificadas de acordo com vários critérios:
o Lacunas normativas – falta de uma regra jurídica ou incompletude numa regra
jurídica;
o Lacunas de regulação – falta de todo um regime jurídico;
o Lacunas intencionais – resultam de circunstâncias em que o legislador não quis
regular uma determinada matéria, por considerar que esta viria a ser regulada
por soluções desenvolvidas pela jurisprudência ou pela doutrina;
o Lacunas não intencionais – devem-se a equívoco ou imperícia do legislador;
o Lacunas iniciais – aquelas que se verificam desde o início da vigência de um
regime jurídico;
o Lacunas subsequentes – aquelas que se geram, por motivos por exemplo
económicos ou sociais, após a entrada em vigor do regime;
o Lacunas patentes – falta de uma regra ou de um regime jurídico que é
imediatamente detectada;
o Lacunas ocultas – as que decorrem de uma interpretação ab-rogante, da qual
resulta que, afinal, não há nenhuma regra aplicável à situação em causa.
Cabe referir que a interpretação restritiva não leva a lacunas ocultas. Esta
interpretação determina, na ausência de outra solução, que se aplica ao caso concreto
uma regra de sentido contrário à regra que se retira da fonte, pelo que não há nenhuma
falta de regra aplicável ao caso.

§21º Integração de lacunas


Enquadramento geral
Após detectada uma lacuna, verifica-se a existência de duas soluções:
o Juiz considera que o caso não pode ser juridicamente resolvido por falta de
regulamentação aplicável, não proferindo assim qualquer decisão.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

o Juiz tem de, ainda assim, proferir uma decisão acerca do caso em questão. Esta
é a solução que vigora no ordenamento jurídico português, por força do
disposto no art 8º CC.
Para que o juiz possa então decidir relativamente ao caso omisso é necessário que o
próprio sistema lhe faculte ferramentas para isso. Para que as lacunas sejam integradas,
o art 10º CC estabelece dois métodos – a analogia e a regra hipotética.

Analogia jurídica
A analogia representa, dizia Aristóteles, a comunhão de qualidades em dois
particulares. Pressupõe a partilha de pelo menos uma qualidade entre duas realidades
distintas.
Por força do art 10º, nº 2 CC, a analogia jurídica aplica-se sempre que, no caso omisso,
se justifique a aplicação da regulamentação aplicável ao caso presente na lei. Há
restrições à utilização da analogia jurídica no âmbito do Direito Penal e do Direito
Fiscal. No art 11º CC está presente que as regras excepcionais não comportam
aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva. Atenta-se aqui para o facto
de, como visto, não haver interpretação extensiva de regras mas sim de fontes. A
solução presente no art 11º CC advém do facto de o conjunto da regra excepcional e da
regra geral não poder admitir nenhuma lacuna. No entanto, esta solução nem sempre
é satisfatória. É então necessário encontrar um critério que permita justificar a
proibição da aplicação analógica das regras excepcionais presente no artigo em causa.
Esse critério assenta na distinção entre uma excepcionalidade substancial e uma
excepcionalidade formal:
o Excepcionalidade substancial – aquela que origina um ius singulare – direito que
é introduzido por mostrar utilidade substancial em relação à regra geral. É
incompatível como a aplicação analógica a casos omissos;
o Excepcionalidade formal – contraria uma regra geral sem contrariar quaisquer
valores fundamentais do sistema jurídico ou, apesar de contrariar os valores
fundamentais da regra geral, se apoie em outros valores fundamentais. É
compatível com a aplicação analógica a casos omissos.
O art 10º, nº 2 CC determina que há analogia sempre que, no caso omisso, haja
justificação para que seja aplicada a regulamentação do caso previsto na lei. A analogia
implica que comparemos duas realidades simultaneamente idênticas e diversas, sendo
então importante aferir qual o critério que nos permitirá tirar essas conclusões. O
critério é o seguinte: os casos são semelhantes se eles apresentarem as mesmas
características essenciais, pelo que são análogos os casos que pertencem a um mesmo
tipo. Pode assim dizer-se que o raciocínio analógico é também um raciocínio tipológico.
A analogia jurídica assenta num juízo valorativo, uma vez que não só a escolha entre o
que é considerado essencial ou não é feita com base nisso, como esse é necessário para
comparar as características essenciais do caso previsto e do caso omisso. Para que a
aplicação analógica seja correcta, é necessário que a consequência prevista para o caso
previsto seja adequada ao caso omisso.
A distinção entre a interpretação da fonte e a aplicação analógica da regra é clara: a
interpretação destina-se a retirar a regra da fonte; a aplicação analógica destina-se a

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Patrícia Carneiro da Silva

aplicar a regra obtida através da interpretação ao caso omisso. Mais difícil é a distinção
entre a interpretação extensiva e a aplicação analógica. Conclui-se que a aplicação
analógica começa onde a interpretação extensiva acaba, pois que esta segunda não
abrange ainda assim os casos omissos.
Há duas modalidades da analogia, que diferem de acordo com a forma como se
descobrem os princípios formais e materiais que permitem a solução jurídica:
o Analogia legis – utiliza-se na procura dos princípios orientadores de um regime
jurídico. Há uma regra jurídica que regula um caso semelhante;
o Analogia iuris – utiliza-se, na procura desses princípios, uma pluralidade de
regras jurídicas. Não há uma regra jurídica que regule um caso semelhante, mas
decorre do ordenamento jurídico um princípio que torna possível solucionar o
caso. Não há assim, neste caso, uma verdadeira lacuna, pois que há um princípio
aplicável ao caso em análise. Assim, esta modalidade de analogia não pode ser
incluída no art 10º CC como forma de interpretação de lacunas, pois que esta
pressupõe a inexistência de uma.

Regra hipotética
Não havendo um caso análogo ao caso omisso, a lacuna é preenchida por meio da
criação de uma regra hipotética – a regra que o intérprete criaria se houvesse de legislar
dentro do espírito do sistema (art 10º, nº 3 CC). Esta só serve como modo de integração
de uma lacuna, claro está, se não for possível aplicar a analogia. A regra hipotética é
também excluída se o sistema jurídico for fechado.
A regra que o intérprete constrói deve ter sempre em conta os princípios de
generalidade e abstracção característicos das regras jurídicas, pelo que estão afastados
critérios como a discricionariedade ou a equidade. Esta regra tem de respeitar o que é
já o espírito do sistema, tendo assim de considerar os princípios materiais e formais
presentes no mesmo. O mesmo vale para qualquer subsistema jurídico.
A construção de uma regra hipotética é uma solução subsidiária para a integração de
lacunas em relação à aplicação analógica de uma regra. No entanto, em ambas as
soluções são essenciais os princípios, dado que estes servem (na analogia) para verificar
se o regime é adequado para regular o caso omisso e servem (na regra hipotética) como
base de criação da mesma. No direito português, pode assim dizer-se, a integração de
lacunas orienta-se por meio de princípios formais e materiais.
A regra hipotética não cria direito, pois que não é fonte de direito. Nada impede, no
entanto, que não seja tida como uma forma de construção jurisprudencial de direito.
SOLUÇÃO DE CASOS CONCRETOS
§22º Critérios de solução
Generalidades
Um caso com relevância jurídica pode ser resolvido por via normativa ou não
normativa. Os critérios normativos são leis, gerais e abstractas, pelo que assentam num
princípio de universalização – todos os casos semelhantes devem ser decididos do
mesmo modo. Os critérios não normativos, por sua vez, são critérios que se baseiam

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

num princípio de especialidade – cada caso deve ser decidido atendendo às suas
particularidades.
A escolha entre os critérios normativos ou não normativos prende-se com optar por
uma prevalência da confiança ou optar por uma prevalência da justiça. A escolha de
critérios normativos dá uma maior confiança, pois que há uma certa previsibilidade; a
escolha de critérios não normativos dá prevalência à justiça, dado que há a
possibilidade de resolver o caso de forma individual e concreta, atendendo a todas as
suas características.
Há ainda possibilidade de optar entre uma aplicação automática da lei ou a
intermediação de um órgão decisório na solução de um caso concreto. Na primeira
situação, o caso concreto é resolvido sem que intervenha qualquer decisor. O mesmo
não acontece se se optar por critérios não normativos, pois que será nesse caso
necessária a intervenção de um órgão que aplique os critérios.

Critérios não normativos


No âmbito de aplicação dos critérios não normativos, o decisor assume a possibilidade
de agir segundo o que for mais conveniente e oportuno para a prossecução de certos
interesses.
A equidade representa a justiça do caso concreto. Foi teorizada em primeiro por
Aristóteles, atendendo esta à especificidade dos casos (ao contrário da lei por ser geral
e abstracta). O art 4º CC trata da relevância da equidade, sendo que esta está
supostamente integrada nas fontes de direito (arts 1º a 4º CC). Cabe aqui referir a
estranheza desta realidade, visto que a equidade não pode nunca ser geral e abstracta.
A equidade pode ser um critério exclusivo ou concorrente da solução de casos
concretos. As situações em que a equidade se mostra como a única solução para a
resolução dos casos são as previstas no art 4º CC. Esta também pode, como muitas
vezes acontece, ser concorrente com outros critérios para a decisão de casos concretos.
Seja como for, o recurso à equidade só pode ser feito nos casos em que houver uma
disposição legal ou negocial que assim o determine. Não pode, portanto, ser utilizada
fora do enquadramento do sistema jurídico ou da vontade das partes.

Critérios normativos
Os critérios normativos são os que conduzem à aplicação de uma regra jurídica na
resolução de um caso concreto.
Se houver no ordenamento jurídico apenas uma regra que regule o caso, então será
essa, naturalmente, a que se aplicará. Se, por contrário, houver várias regras passíveis
de serem aplicadas ao caso em questão, pode ocorrer uma de três situações:
o Cumulação de regras – todas as regras são aplicadas ao caso, pois que estas
levam a efeitos jurídicos diferentes e são compatíveis entre si. Esta situação é
bastante frequente, uma vez que o ordenamento jurídico olha para a mesma
questão de várias perspectivas diferentes.
o Concurso de regras – qualquer das regras pode ser aplicada, pois que todas elas
levam ao mesmo efeito jurídico. Este implica uma relação de alternatividade
entre as regras em causa, sendo qualquer delas utilizável.
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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

o Conflito pragmático de regras – só uma das regras pode ser aplicada, pois que
elas são incompatíveis entre si. A escolha entre estas regras é feita com base nos
princípios da especialidade, da subsidiariedade e da consumpção. Se uma regra
for especial perante outra, então será essa a que prevalece; se uma regra for
subsidiária e outra for principal, prevalece a regra principal; se uma regra
consumir outra, então só se aplica a regra comsumptiva.
Os princípios jurídicos são também critérios normativos de decisão de casos concretos.

§23º Teoria da Argumentação Jurídica


Função da argumentação
A argumentação jurídica serve para criar uma convicção num determinado
destinatário. Esta resulta da existência de um interesse, havendo geralmente um
interessado e um contra-interessado. Há ainda uma terceira parte – o juiz – que os
interessados procuram convencer, de maneira a que o juiz tome a decisão que lhes é
mais favorável.
A argumentação jurídica pode ser aberta – quando o interessado pode argumentar
sobre qualquer tema – ou fechada – quando o interessado está limitado a determinados
temas.

Teoria processual
Alexy criou a chamada teoria processual da argumentação, com base no facto de as
questões práticas poderem ser resolvidas através da argumentação. É possível nesta
distinguir bons e maus fundamentos, argumentos válidos e inválidos.
Para que possamos falar de um discurso prático racional, dizia Alexy, é necessário que
se verifique o cumprimento de certas regras e formas de argumentação próprias do
discurso prático. Entende o autor que a razão prática é a faculdade de chegar a
conhecimentos práticos através do sistema de regras próprias do discurso. O discurso
jurídico, por sua vez, ocorre num ambiente que limita os argumentos que podem ser
pelos seus participantes utilizados.
A correcção de uma decisão pode ser obtida através de um discurso prático, mas tal
não significa que esse discurso conduza à obtenção de um consenso entre os
participantes, nem que a decisão que dessa argumentação resulta seja correcta.
Alexy distingue entre a justificação interna – que diz respeito à questão de saber se a
decisão decorre logicamente das premissas constantes da fundamentação – e a
justificação externa – que trata da correcção das premissas que constituem a
fundamentação.

Dissenso racional e irracional


Está claro que, ao participar numa discussão racional, é necessário que os participantes
obedeçam a certas regras. O resultado do discurso é então correcto se tiverem sido
observadas todas as regras de argumentação. No entanto, tal não faz com que se possa
aceitar qualquer decisão que resulte da discussão em causa, simplesmente porque esta
ocorreu de acordo com os parâmetros supostos. O discurso é apenas um meio para

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

atingir a verdade, mas a sua utilização não garante a obtenção da verdade. Para além
disso, as regras em causa pressupõem um ambiente ideal em que ocorre a discussão, o
que nem sempre se verifica.
A teoria processual da argumentação falha quando determina que o seu grande
objectivo é a obtenção de um consenso. Na realidade, o verdadeiro objectivo é a
demonstração de que qualquer discordância da solução encontrada é irracional. Nesta
linha, o dissenso pode ser racional ou irracional. Para que este possa ser considerado
irracional mostra-se necessário que se verifiquem certas regras na discussão:
o Regra da universalidade;
o Regra da exaustão;
o Regra da igualdade;
o Regra do contraditório;
o Regra do ónus da prova;
o Regra da indiscutibilidade.
Observadas estas, todo o dissenso será necessariamente irracional, pois que a
argumentação racional não se destina a obter a racionalidade do consenso, mas sim a
irracionalidade do dissenso. Garantida a racionalidade do discurso, diz o Professor
Regente, é assegurada a irracionalidade do dissenso. Fala da teoria de Alexy como uma
teoria muito optimista, pois que na maioria das vezes não há consenso entre as partes
após a observância de todas as regras supostas.

§24º Análise da argumentação jurídica


Elementos da argumentação
O argumento pode ser definido como um meio de fundamentação da relação entre
uma premissa e uma conclusão. É, assim, algo que permite transferir a aceitabilidade
das premissas para a conclusão a que elas levam.
Toulmin distingue, num argumento, os seguintes elementos:
o Conclusão
o Dados que conduzem à conclusão
o Razões que justificam a relação entre os dados e a conclusão
o Excepções à relação entre os dados e a conclusão;
o Fundamento que alicerça as razões.
“O dado implica a conclusão com base na razão que se alicerça no fundamento, a não
ser que se verifique uma excepção.”
A aplicação do direito, num caso concreto, é realizada através de uma decisão. Esta,
por sua vez, assenta em certas premissas de facto e de direito.

Matéria de direito
Podemos distinguir, nesta matéria, três tipos de argumentos que permitem descobrir
no sistema jurídico regras derivadas de outras regras:
o Argumente a simile – é um argumento com base na analogia entre dois ou mais
casos. Deste se retira que, se A é um caso análogo a B, então o argumento que
vale para o caso A valerá também para o caso B. Baseia-se no princípio de

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

igualdade, que determina a necessidade de tratar de forma igual o que é igual.


Este argumento permite integrar lacunas, como previsto no art 10º CC. Serve,
também, para delimitar a aplicabilidade de uma regra, pois que o legislador
previne a existência de uma lacuna por integrar na regra os casos análogos a que
ela se poderá aplicar. Isto pode ser feito tanto através de uma remissão para
outra regra como através de uma tipologia ou enumeração extensiva.
o Tipologia – contém várias concretizações de um mesmo tipo
o Enumeração – contém várias concretizações avulsas, não pertencentes a
um mesmo tipo.
Se a tipologia for enunciativa, é possível estendê-la a outras concretizações do
mesmo tipo; se a enumeração for exemplificativa, só é possível estender uma
ou várias enumerações a casos análogos.
o Argumento a contrario – da interpretação de uma fonte resulta sempre uma
regra positiva, que corresponde ao conjunto de casos a que a regra se poderá
aplicar. Resulta, também, uma regra negativa, sendo essa o conjunto de casos
aos quais a regra não se aplica. É através do argumento a contrario que nos é
possível concluir que a regra negativa é uma regra de sentido contrário ao da
regra positiva. Trata-se de saber se a regra, ao regular um caso, exclui do seu
âmbito todos os outros ou se, apesar disso, deve ser também aplicada aos casos
não previstos. Para a utilização do argumento a contrario é necessário utilizar
parâmetros puramente objectivos. Este argumento pode ser entendido num
sentido forte e num sentido fraco.
o Sentido forte – a regra que fundamenta o argumento é uma regra
insusceptível de aplicação analógica aos casos nela não previstos. Tem
por base a inadmissibilidade da analogia. Esta impossibilidade verifica-
se quando as regras contêm uma tipologia taxativa ou quando são
submetidas a uma interpretação restritiva.
o Sentido fraco – é constituído a partir do silêncio de uma regra. Tem por
base uma relação de alternatividade entre dois contrários.
O argumento a contrario só pode ser utilizado quando se mostra impossível
utilizar o argumento a simile. Este pressupõe que a regra só é aplicável aos casos
que ela abrange. O argumento a simile, por sua vez, requer que a regra seja
aplicável aos casos análogos àqueles que que ela abrange.
o Argumento a fortiori – este argumento pode assumir três modalidades:
o Argumento a minori ad maius, que suporta duas formulações
 Uma que atende à previsão da regra – se o menos é suficiente
para produzir certos efeitos, então o mais também o será.
 Uma que atende à estatuição da regra e ao correspondente
efeito jurídico – se a regra proíbe o menos, então também
proibirá o mais.
o Argumento a minori ad minus, que suporta duas formulações
 Uma que parte da previsão da regra – se o mais não produz certos
efeitos, então o menos também não o fará;

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

 Uma que parte da estatuição da regra – se a regra permite o mais,


então também permite o menos.
Matéria de facto
Num processo jurisdicional, o que é conhecido sobre a matéria de facto pode ser tanto
uma premissa de facto, como uma conclusão de facto.
o Premissa de facto – o argumento pretende fundamentar a conclusão que pode
dessa premissa ser extraída;
o Conclusão de facto – o argumento pretende determinar o facto que a ela
conduziu.
Esta distinção permite enumerar dois tipos de argumentos – argumentos presumptivos
e argumentos abdutivos:
o Argumentos presumptivos – procura justificar uma conclusão de facto, pelo que
é aquele que procura estabelecer a relação entre um facto e uma conclusão de
facto;
o Argumentos abdutivos – são aqueles que, partindo de uma conclusão de facto,
procuram encontrar os factos que a justificam de forma mias plausível possível.
Este argumento abdutivo pretende determinar o facto que constitui a causa de
uma conclusão de facto. Perante uma conclusão de facto, este argumento
pretende encontrar as suas causas, sendo que essas condicionam a regra
aplicável ao caso em si.

§25º Construção da decisão


Generalidades
No âmbito da filosofia da ciência é feita a distinção entre:
o Contexto da descoberta (ars inveniendi) – diz respeito à formulação de uma
teoria. Está relacionado com a decisão;
o Contexto da justificação (ars iudicandi) – diz respeito à demonstração dessa
teoria formulada. Está relacionado com a justificação da decisão.
Estas actividades são indissociáveis, pois que a decisão tem sempre de ser justificada.
Teoricamente, a decisão é tomada depois de estarem apurados todos os factos e de ser
determinada a regra aplicável. No entanto, nem sempre isso acontece. Pode dar-se o
caso de o juiz começar por tomar a decisão e só depois procurar fundamentá-la. É o
que sucede no sistema da common law. Este sistema apenas implica que tem de ser
encontrada uma justificação para a decisão que foi previamente construída. No
entanto, esta justificação não pode nunca ser influenciada pela decisão tomada. Não
pode a vontade de manter uma certa decisão influenciar o apuramento dos factos.
As decisões dos tribunais resultam da aplicação do direito a um caso concreto, pois que
aplicam uma regra a um facto. É assim conjugada matéria de facto – constituída pelos
factos juridicamente relevantes – com a matéria de direito – constituída pela regra
jurídica aplicável.
A fundamentação da decisão é especial para que se controle a sua racionalidade. Os
tribunais devem fundamentar todas as suas decisões – art 205º CRP – dada a
necessidade de controlar a coerência interna e externa da mesma.

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

o Coerência interna – representa a coerência das respectivas premissas de factos


e de direito;
o Coerência externa – representa a coerência da construção das premissas de
facto e de direito, pois que uma decisão não pode ser correcta se as premissas
não tiverem sido obtidas correctamente.
Muitas vezes, a dificuldade prende-se não com a coerência interna mas sim com a
coerência externa da decisão – a extração da conclusão adequada das premissas de
facto e de direito decorre da lógica; difícil é estabelecer essas premissas. Esta é a
realidade que estabelece a diferença entre os easy e os hard cases.

Coerência externa
Esta passa pela correcção das premissas de facto e de direito. Implica a determinação
dos factos relevantes, bem como a correspondência desses factos com a previsão da
regra escolhida. Implica, assim, a conjugação de elementos cognitivos – para a
determinação das premissas de facto -, de elementos valorativos – para a construção
da regra aplicável e para a concretização do efeito que decorre dessa regra – e de
elementos volitivos – para a tomada da decisão.
As provas têm como objectivo demonstrar a veracidade dos factos. Estas recaem sobre
determinados factos – os objectos das provas – utilizam determinados meios – os meios
das provas – e destinam-se a ser valoradas pelos tribunais. Um argumento é derrotável
se a sua força puder ser questionada por factos que não põem em questão as suas
premissas. No que toca ao problema da distribuição do ónus da prova, determinou-se
o seguinte:
o O autor só tem de provar os factos constitutivos do direito de que se arroga;
o O réu tem de provar qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito invocado pelo autor.
O valor da prova, por sua vez, pode ou não ser fixado pela lei. Se o for, falamos de
provas legais ou tarifadas. Se não o for, falamos de provas livres, pois que estas são
livremente valoradas pelo julgador. É exemplo de uma prova livre a prova testemunhal.
Para estas relevam geralmente regras da experiência, que permitem normalmente
inferir resultados indiscutíveis9.
Depois da realização da prova, verificar-se-á uma de três situações:
o A prova realizada levou a que se considerasse o facto como provado;
o A prova realizada levou a que se considerasse o caso como não provado;
o A prova realizada foi insuficiente, não permitindo tirar conclusões.
Nas duas primeiras situações não se verifica qualquer problema. A terceira, porém,
levanta questões. Há nesta a necessidade de encontrar um critério que permita
ultrapassar a dúvida em causa: o tribunal decide contra a parte sobre a qual recai o
ónus de provar o facto controvertido. A solução é distinta se estivermos no âmbito do
processo penal: a presunção de inocência do arguido leva à aplicação do princípio in
dubio pro reu, que determina que a dúvida é resolvida em favor do arguido.

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“Se se provar que A, a determinada hora de certo dia, estava no Porto, então prova-se que não estava,
nesse mesmo momento, em Lisboa”

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Ano 1,TA, ST6
Patrícia Carneiro da Silva

A decisão é construída a partir da regra aplicável ao caso concreto, pelo que a


construção da regra antecede obrigatoriamente a construção da decisão. São factos
jurídicos aqueles que são susceptíveis de aplicação de regras jurídicas.
A decisão pode exigir um exercício de ponderação para que seja possível escolher entre
dois princípios ou duas regras conflituantes. Nessa ponderação prevalece o princípio
ou a regra que derrotar a contra-razão fornecida pelo outro princípio ou pela outra
regra. A decisão também pode ser construída a partir da ausência de uma regra
aplicável ao caso. Desta realidade advém duas situações:
o Caso concreto tem relevância jurídica mas não tem uma regra aplicável, pelo
que é necessário integrar a lacuna existente;
o Caso concreto não tem relevância jurídica, pertencendo assim ao espaço
ajurídico.
Depois de ser escolhida a regra aplicável, são conhecidos os efeitos jurídicos. Resta
agora aplicar a estatuição ao caso concreto. O efeito jurídico pode ser determinado ou
indeterminado.
o Efeito jurídico determinado – é completamente definido pela estatuição da
regra;
o Efeito jurídico indeterminado – admite uma concretização feita pelo aplicador
da regra. EXEMPLO: necessidade de concretizar a medida da pena de prisão. Neste caso, é
necessário concretizá-lo através de uma ponderação ou valoração. No caso de
ocorrer uma ponderação, cabe saber se o direito permite concluir que há
apenas uma resposta correcta para cada caso concreto. Dworkin definiu que
sim, sendo este entendimento próximo de um positivismo radical; o Professor
Regente, Miguel Teixeira de Sousa, defende que nunca pode haver certeza de
que a decisão proferida é a única decisão correcta. Fala-se, então, de uma
aceitabilidade racional.
Por vezes, o efeito jurídico tem de ser concretizado em função de um critério de
proporcionalidade do tipo “quanto mais, tanto mais; quanto menos, tanto menos”.
São as regras por vezes chamadas de regras comparativas.

Coerência interna
A coerência interna trata da adequação da decisão com as respectivas premissas de
facto e de direito.
A aplicação da regra jurídica é feita tendo por base um silogismo judiciário:
Premissa maior – regra jurídica;
Premissa menor – facto incluído na previsão da regra jurídica;
Conclusão – constituída pelo efeito jurídico da aplicação da regra jurídica ao facto.
A falta de coerência entre as premissas e a conclusão é assim um vício lógico, levando
à nulidade da decisão. A este esquema de silogismo judiciário podem ser feitas duas
críticas: há uma inversão metodológica, pois que o ponto de partida é a circunstância
da vida que leva à necessidade de intervenção do direito e não a regra jurídica; a
premissa menor não é apenas a descrição de um facto, não podendo esta ser
independente da premissa maior. Assim, mais correcto seria dizer:
“Aconteceu x”

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“O facto x integra a previsão da regra 1”


“A regra 1 determina que A”
“Logo, o facto x produz o efeito A”

Aceitabilidade da decisão
A decisão não pode abstrair-se de factores externos, como factores sociais, culturais,
étnicos, (…). A observância do ambiente em que se toma determinada decisão
possibilita uma aceitabilidade racional.
É inevitável uma certa subjectividade na tomada de uma decisão, não podendo essa ser
controlada por qualquer critério. Apesar disso, há um facto objectivo que permite a
diminuição dessa subjectividade – é ele o imperativo relativo à interpretação e
aplicação uniformes do direito aos casos análogos. Esta é ditada pelos critérios da
confiança e da justiça.
Para a concretização de efeitos indeterminados que por vezes é necessariamente
levada a cabo pelo aplicador, é necessário atender a certos critérios. Geralmente, dar-
se-á prevalência aos princípios materiais e formais que estão subjacentes à regra
aplicável. Tenta-se assim optimizar os princípios da justiça, da confiança e da eficiência
que estejam subjacentes à regra. Quando houver mais do que um princípio presente,
levar-se-á então a cabo uma ponderação entre eles.
Ver efeito jurídico indeterminado – página 36

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