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HU Lb. UU eer ~ ELSA VAZ DE SEQUEIRA (membro do CEID-CRCFL) SECCAO II Obrigagdes naturais Artigo 402.° Nogao A obrigacao diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem me ou social, cujo cumprimento nao é judicialmente exigivel, mas corresponde a | dever de justiga. Sumério da anotagao: ‘Antecedentes. Trabalhos preparatérios (anotacao 1) Bibliografia (anotagao 2) Jurisprudéncia (anotagao 3) Nogao de obrigagio natural (anotagio 4) Hipéteses legais de obrigacao natural (anotacao 5) Hipéteses de obrigacdo natural admitidas pela doutrina (anotacao 6) Obrigacao natural e autonomia privada (anotacao 7) O regime da obrigacao natural (anotacao 8) 42 Relatério sobre 0 Hrugrumu, u Curtenuy € v3in rniversidade Cat6lica, Porto, 2007, pp. 133-1 banite Civil Portugués, Vol. Il, Direito dee Obrigacées, T. I, Almedina, Coimbra, 2009, 1367-591; CORDEIKO, MENEZES, «Das Obrigacdes Naturais: Direito Moral?», PP jireito, Ano 141.°, III, 2009, pp. 505 a 537; BaRnosa, MAFALD © «Obrigacoes Naturais. Notas a Propésito do Acérdao do Supremo Tribunal de Justica de 19 de Dezembro de 2006 (Proceso W6A4210)», BFDUC, Vol, LXXXIX, t IL Coimbra, 2013, pp. 903-923; TELLES, GatvAo, Direito das Obrigagdes, 7." ed., Coimbra Editora, oan pp. 52-55; OLIVEIRA, Pinto, Prinetpios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, 348; COSTA, ALMEIDA, Direito das Obrigagdes, reimp. da 12." ed ‘Almedina, 2016, pp. 171-193; Justo, ANTONIO DOS SANTOS, «Obrigacao Natural. % Alguns Direitos Contemporaneos», BFDUC, 2016, pp. 623-698; VARELA, ANTUNES, Das Obrigagdes em Geral, vol. I, 14." reimp. da 402 ed, Almedina, 2017, pp. 719-741; LertAo, Menezes, Direito das Obrigagoes: Introdueto; Da Constituigio das Obrigacdes, vol. I, 14.° ed., Almedina, Coimbra, DOI7, pp. 121-126; PROENCA, BRANDAO, Ligdes de Cumprimento ¢ Nao Cumprimento dias Obrigacdes, 2." ed. (rev. e at.), UCE, Porto, 2017, pp. 122-129. Bibliggrafia: LIMA, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Codigo Civil Ano! 2 761."), 4. ed. rev. e at., Coimbra Editora, 2010a (reimp ), PP Civil Anotado, II (Artigos 762.° a 1250."), 4.* ed., Coimbra Editora, 2010b (reimp-); GonzAttz, J. ALBERTO, Cédigo Civil Anotado, I, direito das obrigagdes (artigos 397.2 a 873.) Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2012, pp. 17-19; PRATA ANA, ‘Anotagiio to art, 402.°, Cédigo Civil Anotado, Vol. I (arts. 1.° a 1250."), Almedina, Coimbra, 2017, pp. 496-497. Jurisprudéncia: Acs. ST} 14.05.2003 (03B4300), 19.12.2006 (064210), 13.02.2008 8TBVLF.C1S1), 15.12.2011 (0753386), 10.07.2008 (08A1471), 22.02.2011 (81/04. (649//08.7PVLSB S1), 08.02.2012 (746/ 08.STAVER.P1S1), 11.02.2015 (6301 13.0TBMTS. $1), RC 13.12.2000 (2873/00), CJ, 2000, V, pp. 58-59, 26.11.2006 (80/2012), CJ, 2006, V, pp. 33-35, e 03.12.2009 (4371 /07.0TJCBR.CL). ‘A nossa lei reconhece as obrigacdes naturais como solugao consagrada pelo CC67 (nao havia qualquer re! mengio em situagdes particulares). Isto significa que poderd verificar-se a exis téncia de uma obrigacao natural fora dos casos expressamente consagrados na lei (com entendimento diferente, MENEZES CoRDEIRO, 2009: 582-586). Nao existe um qualquer elenco legal que possa esgotar as hipsteses de obrigacao natural. Esta figura verificar-se-4 sempre que se apurarem 0s requisitos que este preceito da a conhecer. Sao trés esses requisitos. I. Nao pode tratar-se de uma prestacdo judicialmente exigivel. Este é um dos ele- mentos fundamentais do regime particular das obrigagées nacurais. Uma obrigagao deste tipo nao pode ser judicialmente exigida. Caso contrario, estarfamos perante uma verdadeira obrigagao civil. De acordo com o Ac. RC 03.12.2009 constitui uma obrigacao civil e nao uma obrigacao natural a declaracao escrita do pai no sentido de «se obrigar a pagar as despesas da Universidade da filha da autora, até a conclusao do curso», declaragao esta emitida como contrapartida para obter 35; CoRDEIRO, MENEZES, Tratuuy we Coimbra, Direito Romano: Breve Referéncia tado, 1 (Artigos 1.° 351-352, e Cédigo figura geral, em oposigio & feréncia geral, mas apenas 43 Comentario ao Cédigo Civil + parte da mae. Existe aqui a assungg, por Pp: a iste aqui a assung: 0 divércio por muituo consentimento um verdadeiro compromisso. Tr por outro lado, a obrigagdo natural deve fundar-se nen dever moral ou so ‘Tard dle atender-se aos conceitos e necessidades soria’® predominantes (que p oa 9 cotton fungao do tempo € do espaco ~ VAZ SERRA, 1956 m, No Ac. ST] 22.02.2011 foi apreciada uma situacdo onde se julgou nao existit oo: Fee social, Nao hd, pois, uma obrigacao natural, podendo o phi Ge ncordo com as regras do enriquecimento = us, despendeu quantias na reabilita ™m Sia habitar, objetivo frustrado com) ‘moral ou social, de acordo com se no entanto, ser vari dever moral repetir as quanti. causa, O autor, casad jas em caus io. com a filha dos ré a estes pertencentes, julgando que ‘0 do casal. Nao existe qualquer dever Concedes éticas dominantes, em beneficiar os SoBr™ At por fim, deve alertar-se para a insuficiencia de um Pu dever moral oy or in ee ove também corresponclera um dever de justice. A presacso social por am mero dever moral, sem a coexistencia de om dever de justica poderd ocasionar apenas uma liberalidade ¢ n20 sme obrigacao natural. Nao é consequentemente, uma obrigaca0 natural a situagao cujo cumprimento radica ne. pura esfera da moral individual, como €0 caso da doagio remutnerat6ria (gratticagio eat wervigos prestados), ou os donativos conformes 20% SS sociais, pot razbes Por services Pi pridade (por ex, contribuicao para as obras de reabifhasto de un Ian) Na obrigagdo natural existe um verdadero animus solvendi e nao apenas um animus donandi. Tal como foi decidido no Ac. STJ 13.02.2 da empregadora, a vitiva e filhos do sinistra @ até que se encontrasse definida a responsaP} de trabalho, da quantia de 600,00 € para minorar mesmos em virtude da perda do nico rendimen obrigacao natural e nao uma doagao. Sem aquele dever de justica ou, sequer, a intenga0 de beneficiar, nao existe qualquer obrigacao, nem sequer natural. Assim decidiu 0 ‘Ac. STJ 14.05.2003, reconhecendo a uma companhia de seguros 0 direito de repetic@ do excesso das quantias pagas, jclativas a uma pensao (decorrente de acidente de trabalho) reduzida, entretanto, judicialmente. Verificada a existéncia deste dever de justica, a uma obrigagao civil, uma vez que 0 direito nao a também a outros valores como a seguranga ou a certeza J 2016: 175). Estes podem impor 0 aparecimento de uma ‘obrigagao natural de uma obrigacao civil (por ex., obrigacao prescrita). Algumas hipoteses existem de reconhecimento legal expresso de obrigas 1. Completada e invocada a prescricao (artigo 304.°), tem o beneficidrio a de recusar o cumprimento da prestagao. Todavia, mostrando-se a prestaca0 realizada espontaneamente, ainda que com ignorancia da prescrigao, nao pode ser repetida. IL O artigo 495.°, n.°3, dirige-se a uma obrigacao natural de alimentos. Esta po : surgir em favor de familiares (que nao tenham o direito de exigir 0S Gu pelo empregador ao empregado que envelhece 20 seu rvigo (ALMEIDA COP 12,2011 e 08.02. 79) ou mesmo numa unido de facto (Acs. STJ 15. Itado de uma les4o ilicita, a 4 do natural poder so 1008 a entrega, mensal e sucessiva, por parte do (trabalhador), apés a morte deste idade pela reparagao do acidente as dificuldades sentidas pelos to de que dispunham é uma inda assim pode nao se configurar tende apenas a justica, mas uridica (ALMEIDA COSTA, | endo go natural. faculdade 201 © prestador de alimentos falecer em resul beneficiava dos alimentos cumpridos em respeito de uma obrigaga dada Esta indemnizagao, apesar ¢€ funda’ ando-se 2 ¥ exigir uma indemnizagao ao lesante. dos alimentos naturais, 6 uma obrigacao civil (report «violagao» Artigo 402.° hipétese de conversao ope legis de obrigacdo natural em civil, Pires de Lima / / ANTUNES VARELA, 2010a: 354 e Ac. ST) 11.02.2015). II. Também as obrigagdes resultantes de contratos relacionados com 0 jogo e a aposta podem eventualmente revestir a natureza de obrigagao natural. O artigo 1245.° determina que esses contratos (0 jogo e a aposia) sao, em regra, invalidos (nulidade), a nao ser que a sua validade seja admitida por legislacao especial (1247."). Nos demais casos, sempre que possam ser consideracos licitos, constituem fonte de obrigagao natural, aplicando-se o regime dos artigos 402.° a 404.” Reconhece-se que 0 cumprimento voluntario pelo devedor de uma obrigagao assim nascida corresponde a um dever social (Piri DE LIMA / ANTUNES VARELA, 2010b: 928). Nos termos do Ac. RC 01.04.2014, sendo a pratica do jogo e aposta considerada ilicita quando praticada fora dos casos previstos na lei (DL n.° 422/ 1989, de 02/12), nao pode nunca gerar uma obrigacao civil ou mesmo natural. Por outro lado, 0 Ac. RC 13.12.2000, CJ, 2000, V, p. 58, qualificou de obrigacao civil (e nao natural) a divida resultante da compra de fichas de jogo num casino, uma vez que essa atividade estd regulamentada e se mostra conforme a lei (1247.°). Jé 0 Ac. STJ 10.07.2008 identificou uma hipétese de obrigacao natural decorrente de um contrato de jogo e aposta. O prémio de um concurso televisivo («Quem quer ser miliondrio») deve ser considerado licito, mas nao esta regulado por lei especial (1247.°), pelo que deve ser qualificado como obrigagao natural. IV. Por fim, 0 artigo 1895.° considera que nao pode ser judicialmente exigido (obrigacao natural) 0 dever de os pais compensarem os filhos pelo trabalho prestado por estes. V. Apesar de nao se tratar de uma situagao expressamente reconhecida na lei, tem sido admitida pela doutrina (ALMEIDA Costa, 2016: 178, nt. 1) uma hipétese de obrigacao natural a propésito do artigo 632°, n.° 2. Admite-se na lei a possibilidade de, em certos casos, se manter a fianca, mesmo com a anulacao da obrigacao principal. Nesse enquadramento, 0 reembolso do fiador pelo devedor (com a obrigacao invalidada) corresponderia a uma obrigacao natural. A figura foi admitida com alguma amplitude, reconhecendo a doutrina algumas hipéteses para lé das legalmente previstas: ressarcimento de danos sem a verificagao de todos os pressupostos da responsabilidade civil; pagamento de divida nao reconhecida por decisao judicial injusta; até mesmo o cumprimento derivado de negécio formalmente nulo (uma hipotese destas foi admitida no Ac. RC 26.11.2006, CJ, 2006, V, p. 33 - considerou-se obrigacao natural, negando o direito a sua repeticdo, o pagamento de juros, decorrentes de um contrato de miituo, nulo por falta de forma). Nao parece que a obrigacao natural possa resultar de uma vinculacao assumida pelas partes, ao abrigo da autonomia privada. Tratando-se de uma hipétese de clara obrigacao civil, nao podem as partes, ainda que por acordo, convencionar a «criagdo» de uma simples obrigacao natural, uma vez que se mostra impedida ao credor a rentincia do direito de exigir 0 cumprimento da prestagao (artigo 809.°). Jéa operacao de sentido contrério, a transformagao de uma obrigagao natural em obrigacao civil, parece, em certos casos, de aceitar, desde que para tal concorra a vontade dos sujeitos. Assim, nada impedira que uma divida prescrita, mesmo depois de invocada a prescrigao, possa ser transformada em obrigacdo civil (Vaz SeRRa, 1956: 159, e ALMEIDA Costa, 2016: 182-183). O mesmo nao poderd suceder, no entanto, com a obrigacao natural de jogo e aposta. Aqui, a ratio legis subjacente ao artigo 1245.” permite concluir pela inadequagao da figura da obrigacao civil, pelo que tal possibilidade estar4 também vedada a au‘onomia privada. 8 Comentério ao Codigo Civil perfeita distingue-se da obrigacao civil pela sug esta caracteristica, tratando-se “e uma obrigaci, Mea esupostos da obrigacao civil (VAZ SERRA, 1956, deve reunir todos 08 demals Presa proprio artigo 404.” (Wer anot. correspon, 41, nt, 93). Bsa dist Pon (obrigagao natural) objeto deve ser determinado oy dente), Assitn tio 280." e 400."), devendo 0 devedor estar determinado e g determinavel (are (112). A auséncia destes pressupostos impede a formacio credor determin ive ital. Na lei portuguesa 0 objeto da obrigagio nao tem de {G98 n 2), O mesmo deve valer para as obrigagbes naturais, existam deveres morais ou sociais que possam ser eaprios mectiante atos sem valor patsimonial (Vaz, SERRA, 1956: 41, mt 93). No ‘Ae. 3T) 19.12.2006 admitiu-se uma hipétese desse tipo, qualificando como obrigacig ae yal a possibilidade de prestar culto a um ente querido falecido, depositado num gavetio pertencente a outra entidade. 5 IL As hipoteses legais de obrigacao natural podem nao obedecer todas ao mesmo regime. Com efeito, a prescrigao da obrigagao civil tem de ser invocada, nao podendo ser oficiosamente suprida pelo tribunal (artigo 303.°). Em todos os demais casos de obrigagao natural, 0 tribunal deve indeferir oficiosamente a aco (MENEZES LEITAO, 2017. 122, nt. 283). Esta disciplina diferenciada pode ser explicada pela natureza da prestagao. A obrigacao prescrita nasceu como obrigacao civil. LA obrigacao natural ou imi incoercibilidade. Com exclusao d de uma obi ser patrimoni No entanto, é duvidoso que ARMANDO TRIUNFANTE (membro do CEID-CRCFL) Artigo 403.° Nao repetigao do indevido 1. Nao pode ser repetido 0 que for prestado espontaneamente em cumprimento de obrigacao natural, exceto se o devedor nao tiver capacidade para efetuar a prestacio. 2. A prestacao considera-se espontanea, quando ¢ livre de toda a coacio. Sumério da anotagao: Antecedentes. Trabalhos preparaté1 Bibliografia (anotagao 2) Jurisprudéncia (anotagao 3) Irrepetibilidade da prestagao (anotagao 4) Espontaneidade da prestagao (anotagao 5) s (anotagao 1) Antecedentes: Preceito sem correspondéncia no Cédigo Civil de Seabra. Traballios preparatorios: Artigo 1.°, n.°* 2 e 3 («Conceito. Irrepetibilidade da prestacao. Aplicabilidade do regime das obrigacées civis»), do Anteprojeto de VAZ SERRA, BM], n.° 53, 1956, p. 162. Bibliografia: Gomes, JULIO, O Conceito de Enriquecimento, o Enriquecimento Forgado e os Varios Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, Universidade Catolica Portuguesa, 1998, Pp. 536-537; Lima, PIRES DE / VARELA, ANTUNES, Cédigo Civil Anotado, I (Artigos 1.°a 761."), 4." ed. rev. e at, Coimbra Editora, 2010a (reimp.), pp. 352-353, e Cédigo Civil Anotado, II (Artigos 762° a 1250°), 4.* ed., Coimbra Editora, 2010b (reimp.); Gonzhve7, J. ALBERTO, Cédigo Civil Anotado, II, direito das obrigagses (artigos 397.° 4 873."), Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2012, pp. 19-20; Prata, ANA, Anotagio oe 403. Cdigo Ci! Anotado, vol. (ats. 1° @ 12505), Almedina ‘Coimbra, Artigo 403." Jurisprudéncia: Ac. RC 26.11.2006 (80/2012), CJ, 2006, V, pp- 33-35. 3 1, Um dos efeitos mais caracteristicos da obrigagao natural consiste na irrepetibi- lidade da prestacao. Esse efeito decorre expressamente deste artigo 403.° Tendo a prestagio sido realizada de modo livre e espontaneo parece razoavel que o devedor nao possa repetir 0 que prestou. Uma eventual repetigao, exercida pelo devedor, nao poderia deixar de constituir um venire contra factum proprium, entrando em contradigdo com 0 seu comportamento anterior (Vaz SERRA, 1956: 132). No Ac. RC 26.11.2006, CJ, 2006, V, p. 33, negou-se o direito a restituicao, depois de qualificar © pagamento como obrigagio natural. Il. Nao havendo lugar & repeticao nao seré aplicdvel 0 regime da repeti¢ao do indevido (artigos 476.” a 478."), a propdsito do enriquecimento sem causa, como reconhecido, alids, no préprio artigo 476°, n° 1 IIL. A regra da irrepetibilidade da prestagao é plenamente aplicdvel ao devedor, mas nao necessariamente aos seus credores. Estes poderao recorrer & impugnagao pauliana, impugnado o cumprimento de uma obrigacao natural, ainda que ja vencida (artigo 615.°, n.° 2). 1. O tinico requisito legalmente exigido para a nao repeticao ¢ a espontaneidade da prestago. O mesmo nao acontece com o conhecimento da incoercibilidade. Ainda que o devedor cumpra a prestacao convencido, erroneamente, de que a mesma poderia ser judicialmente exigida, mantém-se 0 efeito da irrepetibilidade da obrigagao natural. Se a obrigacao natural foi livre e espontaneamente realizada, carece, pois, de fundamento uma eventual repetigdo. Esta tese encontra algum acolhimento na lei. Acresce a este artigo 403.° 0 artigo 304.°, n.° 2, referente ao cumprimento de uma obrigacdo prescrita. Nao pode «ser repetida a prestagao realizada espontaneamente em cumprimento de uma obrigagao prescrita, ainda quando feita com ignordincia da prescrigaio». Conclui-se, consequentemente, pela irrelevancia do erro sobre a impossibilidade de ser exigido judicialmente o cumprimento da obrigacao, pois nao afasta o mesmo a espontaneidade do devedor. I A irrepetibilidade da prestacao depende da espontaneidade no seu cumprimento. Sendo assim, estando comprometida essa mesma espontaneidade nao se aplicara 0 efeito descrito neste artigo 403.° Uma das hipoteses foi objeto de referéncia pelo legislador. A obrigacao natural cujo cumprimento tenha sido determinado por coagao nao é espontanea, pelo que poderd ser repetida. Estdo abrangidas a coagao fisica (246,°) e a coacao moral (255.°). No entanto, parece que também o cumprimento de uma obrigacao natural motivado por dolo nao pode ser considerado espontaneo, devendo-se, no entender da doutrina, aplicar-se 0 regime do artigo 254.° (Pires DE Lima / ANTUNES VARELA, 2010a: 353, ¢ ALMEIDA Costa, 2016: 190 - em sentido oposto veja-se JULIO GomES, 1998: 536-537), 7 Uma hipétese um pouco diferente, mas também prevista na lei, €0 cumprimento 'a obrigacao por incapaz. Também aqui, por forca do regime legal associado a esta condicao nao seré de aceitar o cumprimento eficaz de uma obrigacao natural No fundo, parece que ainda se pode considerar estarmos perante uma prestagao aroe aan No: entanto, parece ainda questionavel a aplicagao do artigo 764.°, 1, que permitiria ao credor natural a oposigio ao pedido de anulagio Se 0 devedor incapaz nao tiver tido prejuizo com o cumprimento. Em sentido Positivo, valorando também a remissio constante do artigo 404°, temos AN, Prata, 2017: 498, em sentido oposto, BRANDAO PRoENGa, 2017: 124,” a IV. A consequéncia para a falta de espontaneidade ou de capacidade pare a invalidade do ato de cumprimento. Nao parecem adequadas as a do enri- Auecimento sem causa. Solugao oposta determinaria uma assimetria significativa 47 = naturais, no que a impugnagac Oo ath) WY mente ento 1s civis & 2011: 47). entre obrigacde: NTO OLIVEIRA, diz respeito (assim, Pr |ARMANDO TRIUNFANTE (membro do CEID-CRCFL) Artigo 404." Regime s ao regime das obrigacdes civis em tudo ‘As obrigagées naturais estao sujeita: ‘sativa da prestacao, salvas as disposicies fo que nao se relacione com a realizagao especiais da lei. Sumario da anotagao: suttecedentes. Trabalhos preparatérios (anotagao 1) Bibliografia (anotacao 2) Jurisprudéncia (anotagao 3) Obrigacao natural e equiparagao com 4 ob! Extensdo da equiparagao entre obrigacao na civil (anotagao 4) ‘0 civil (anotacao 5) rigacao tural e obrigaca digo Civil de Seabra. dade da prestacao. jeto de VAZ SERRA, “Antecedentes: Preceito sem correspondéncia no Co °5 («Conceito. Irrepetibili Trabalhos preparatorios: Artigo 1.°, n- das obrigagoes civis»), do Antepro) Aplicabilidade do regime BM], n° 53, 1956, p. 163. Bibliografia: LIMA, PIRES DE | VARELA, ANTUNES, Cédigo Civil Anotado, I (Artigos 2010a (reimpressao), pp- 353-354; 1° a 761.°), 4.. ed. rev. at,, Coimbra Editora, ‘rotado, IL, direito das obrigacbes (artigos 39, 0-21; Prata, ANA, Anotagio GONZALEZ, J. ALBERTO, Cédigo Civil A 873.°), Quid Juris Sociedade Editora, Lisboa, 2012, pp. 2 to art, 404.%, Cédigo Civil Anotado, vol. 1 (arts. 1a 1250.°), Almedina, Coimbra, 2017, pp. 498-502; PROENGA, BRANDAQ, Ligdes de Cumprimento e Nao Cumprimento das Obrigacées, 2.° ed. (rev. ¢ at.), UCE, Porto, 2017, pp. 122-129. Jurisprudéncia: Ac. ST] 13.02. 2008 (0753386). ‘4 Jei concretiza o regime da obrigacao nal de equiparacao com as obrigacées civis. Sera disposicao legal especial ou se contrariar a re; prestagao. Em tudo 0 mais seré resolvido de ac as obrigacoes civis. Apesar da amplitude com que parece ter si efetivamente bastante limitada. Na verdade, se remete contendem direta ou indiretamente €©) natural, sendo, nessa medida, inaplicdveis. Mostra-se indispens intérprete para perceber 0 que pode efetivamente ser objeto de tr 1 As obrigagoes naturais s40, em principio, suscetiveis de revestir, ao seu objeto, as mesmas modalidades das obrigades civis (ALMEIDA COSTA, 2016: 181). Embora a obrigagao natural constitua normalmente uma obrigagao de dare (em regra, uma prestagao em dinheiro), nada parece impedir uma prestacao de facto. A obrigagao natural pode ter por objeto uma prestagao instantanea OU prestagdes periddicas (6 0 que sucede, por exemplo, na prestacao de alimentos), m2 neste caso, a realizagao de algumas prestag6es nao torna exigivel 0 cumprimento das demais (toda a obrigaao conserva a ‘incoercibilidade original). No Ac. Ito a um ente 19.12.2006 considerou-se como obrigaga0 natural a de prestar cul tural com o recurso a um principio essa a disciplina aplicavel, exceto gra da nao realizacao coativa da ‘ordo com o regime previsto para legal, éamesma lina para a qual a0 do prevista a remiss4o varios aspetos da disci ma incoercibilidade da presta vel o papel 40 Artigo 404.° a outra entidade. Nao obsta da prestacao. O devedor .stagdes correspondentes querido falecido depositado num gavetao pertencente aesta qualificacéo a natureza periddica e nao pecuniaria nao esta vinculado, assim sendo, ao cumprimento das pre aos perfodos subsequentes. Oseu objeto deve ser determinado ou determina o devedor estar determinado e 0 credor determinavel impedir, do mesmo modo, que a obrigagao natural tenha por obje (artigo 399. e ANA PRata, 2017: 499). Tl Amaioria da doutrina considera estar afastada da obrigacio natural a disciplina alusiva as seguintes matérias: modo, lugar, tempo da prestacao (artigos 672." @s.); imputacao do incumprimento (artigos 762.” e ss.); mora do credor, mora do devedor e incumprimento (artigos 790.” e ss.). Para alguns a exclusao ¢ total (Vaz SERRA, 1956: 169, e Pines DE Lima / ANTUNES VARELA, vol. II: 353), mas para outros (AumeiDa Costa, 2016: 182/3) alguns aspetos relacionados com esta disciplina podem ainda ser aplicaveis: 0 cumprimento da obrigacio natural pode ser efetuado pelo devedor ou por terceiro (artigos 767.’ ss.); esse mesmo cumprimento deve Subordinar-se ac principio da boa-fé (artigo 762°, n.° 2). Para outros seré ainda de aplicar 0 regime da mora do credor (ANA Prata, 2017: 499/500). IIL. No que diz respeito as diferentes modalidades de extingao da obrigacao elas parecem aplicaveis também as obrigagées naturais. Nao existe qualquer obstéculo 3 remissdo, confusio ou dacao em pagamento de tal obrigacao. Se o devedor natural proceder a uma dacdo em cumprimento (sendo inaplicavel o artigo 838.° — BRANDAO PROENCA, 2017: 129), ou mesmo a uma dagao «pro solvendo» (artigo '840.°), tal prestacdo serd tao irrepetivel quanto um eventual cumprimento (artigo 403), Maior cuidado € necessario para a compensagio entre a obrigacao natural ‘euma obrigagao civil. Verificados os seus requisitos, parece que apenas o devedor natural ou o credor da obrigacao civil (e nao a parte contraria - impedindo-se, desse modo, a aplicacéo plena do artigo 847., n.° 1) poderd declarar a compensacao. Permitir a compensacao ao credor natural implicaria indiretamente a exigibilidade do cumprimento. No Ac. ST] 13.02.2008 pode ser encontrada, precisamente, uma hipdtese em que a compensacio foi negada ao credor natural. ‘Anovagao de uma obrigacao natural sera também, em alguns casos, possivel. Particularmente interessante se revela a hipstese de transformagao de uma obrigacao natural em civil. Esta operacio serd, em regra, de admitir, desde que tal constitua, naturalmente, a vontade das partes, designadamente do devedor natural (em sentido oposto, rejeitando esta conversdo, ANA PRatA, 2017: 502, ou BRANDAO PROENGA, 2017: 128, com excegao da hipétese da divida prescrita). Contudo, esta transformacao deve ser rejeitada naqueles casos em que a solugao legal e a prdpria natureza da obrigagao se opdem. Assim, se uma obrigacao natural de alimentos ‘ou uma divida prescrita podem ser convertidas em obrigagdes civis, parece que 0 mesmo nao podera acontecer com a divida (natural) de jogo e aposta. Impedindo a ratio legis que uma divida de jogo possa constituir uma obrigacao civil, estar também essa possibilidade impedida por vontade das partes (Vaz SERRA, 1956: 159, e ALMEIDA Costa, 2016: 182-183). J4 parece de afastar a prescrigao da obrigacao natural. Com efeito, a consequéncia da prescrigao implica a transformagao em obrigacao natural, carecendo de sentido transformar a obrigagao natural em algo que constitui jé a sua propria natureza (Menezes LerrAq, 2017: 122), IV. E também discutida a possibilidade de ser efetuado um reconhecimento de divida ou uma promessa de cumprimento a propésito de uma obrigacao natural. A generalidade da doutrina admite tais figuras, alertando, no entanto, para o facto vel (artigos 280.” e 400.°), devendo (artigo 511.°). Nada parece to coisas futuras 49 Comentario ao Cédigo Civil de essa situagao implicar a existéncia de uma verdadeira obrigacao civil que tem por causa a anterior obrigagao natural (em sentido diferente, no entanto, ANA Prara, 2017: 500, para quem tais documentos sa0 admissiveis, mas insuscetiveis de utilizagao em juizo, uma vez que nao assistiria ao credor direito de agao) Sendo assim, apenas se poderd admitir a promessa ou 0 reconhecimento quando, trate de uma obrigagao natural que possa ser transformada em obrigacao civi staré afastada, por exemplo, a promessa de cumprimento de uma obrigacao de jogo ou aposta. V. Debatida também é a hipétese de garantir uma obrigagao natural. Nao estig em causa as garantias legais, como 0 privilégio creditorio ou o direito de retencio, pois estas sao atribuidas por lei a determinadas obrigagées, merecedoras, ng entender do legislador, de protecdo especial, o que nao sucede com as obrigacdes naturais (VAZ SERRA, 1956: 160). Interessa, sobretudo, discutir o tema a propisito das garantias convencionais e importa distinguir as situagGes em que o garante é © préprio devedor natural ou, entao, um terceiro. Se o devedor garante a propria divida, implicaré essa vontade que a obrigagao se transforme em obrigacao civil, permitindo-se ao credor obter a satisfagao do seu crédito por essa via. Se, diferentemente, a garantia é prestada por terceiro, nao podera este, uma vez satisfeito o credor, obter qualquer recuperacao por parte do devedor (nao tendo, naturalmente, 0 devedor natural prestado o seu assentimento a prestagao de garantia por terceiro). Note-se que a prestacao de garantias nao sera admissivel em todas as hipoteses de obrigagao natural. Com efeito, algumas delas sao incompativeis com 0 fortalecimento do vinculo, como sera o exemple, jd referido da obrigagao natural de jogo e aposta. Para terminar, cumpre alertar para a relacdo entre determinadas garantias e obrigacao garantida. A fianca de uma obrigacdo natural, quando admiss‘vel, parece ser ela mesma uma obrigacao natural em razdo do regime do artigo 631.° (ALMEIDA Costa, 2016: 186). VI. Nao existe consenso doutrinal sobre a possibilidade de a obrigacao natural ser objeto de uma assungao de divida ou de uma transmissao de créditos. Se BRANDAO PROENGA, 2017: 126, rejeita em absoluto tal hipdtese (em razdo de a obrigacao natural nao integrar, em rigor, 0 acervo patrimonial), j4 ANA PRATA 2017: 501, considera admissivel qualquer uma das hipoteses referidas e ainda a sub-rogacao da obrigacao natural, em qualquer um dos seus casos. Alerta somente para a eventualidade de o terceiro nao ter sido informado de que se trata de uma obrigacao natural na situagao particular da sub-rogacao efetuada por intermédio de empréstimo de terceiro (artigo 591.°). Sera, entao, razoavel, fazer incorrer 0 devedor natural originario em responsabilidade pré-contratual, a propésito do contrato de muituo que celebra com o terceiro. VII. Nem todas as obrigacées naturais assumem o mesmo regime. Com efeito, a obrigagao natural resultante da prescricao da obrigagao civil tem de ser invocada, nao podendo ser oficiosamente suprida pelo tribunal (artigo 303.°). Em todos 0s demais casos de obrigagao natural, o tribunal deve indeferir oficiosamente a aa0, caso 0 credor recorra a via judicial para obter a satisfagao do seu crédito natural (Menezes LetrAo, 2017: 122, nt. 283). Esta disciplina diferenciada pode ser explicada pela fonte da prestacao. A obrigagao prescrita nasceu como obrigagio civil. ARMANDO TRIUNFANTE (membro do CEID-CRCFL)

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