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Esse Retrato falado seria o meu. Única pessoa que eu talvez conheça bem o bastante
para reproduzir só falando. E nem isso. Tenho ranço. E esse ranço de mim e do que escrevo vai
crescendo e crescendo, virando uma bolha de pus no meu interior prestes a explodir. E
explode, sou toda preenchida por esse pus nojento e degradante. E minha escrita fica cheia
dele também. O que estou dizendo além de asneiras e futilidades? O tal do surrealismo na
escrita que o Salvador Dalí idealizou como fez com os seus quadros é um tanto quanto
sufocante. Os pensamentos vão surgindo como aquela névoa de odor inexistente do
Grenouille, que o sufoca, pois esse odor não o revela. E como como com Grenouille, a nuvem
espessa dos meus pensamentos não me permite saber quem sou, só me sufoca. Não me
permite saber o que penso, como ao outro não permitia saber qual seu cheiro. Mas não vou
matar ninguém, mortos não pensam, não há pensamentos claros e leves em cadáveres para
substituir os meus confusos e espessos.
Mas só se fazem retratos falados de criminosos, qual teria sido meu crime? Segundo a
maravilhosa e cidadã constituição brasileira, nenhum. Segundo minha própria cabeça, tantos,
que o cadafalso da revolução francesa não seria o bastante para remediar meu atraso. Mas o
que vale, meus crimes foram só contra mim mesma, só a mim prejudiquei, até onde sei. E que
prejuízo.