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Pessoa e Humanidade Yanomami
Pessoa e Humanidade Yanomami
MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Rio de Janeiro
2010
Livros Grátis
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Orientadora:
Profª. Drª.Aparecida Vilaça
Rio de Janeiro
2010
3
Ficha Catalográfica
Pessoa e humanidade nas etnografias Yanomami/ Tainah Víctor Silva Leite. Rio de
Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2010.
Inclui bibliografia.
___________________________________________________
Profª. Drª. Aparecida Maria Neiva Vilaça – PPGAS/MN/UFRJ
(orientadora)
______________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro – PPGAS/MN/UFRJ
______________________________________________________
Prof. Dr. José Antonio Kelly Luciani – UFSC
______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto – PPGAS/MN/UFRJ (suplente)
______________________________________________________
Dra. Lydie Oiara Bonilla – Pós-Doc PPGAS/MN/UFRJ (suplente)
RESUMO
Para Felipe
7
Agradecimentos
A José Kelly, pela generosidade, traço que comparte com os Yanomami que me apoiou e
estimulou a estudar. A Maria Inês Smiljanic pela solicitude e abertura na interlocução
sobre os Yanomami. À equipe do ISA Boa Vista, por me acolherem durante a XII etapa do
curso de formação de professores: Lídia, Clarisse, Ana, Gisele... E sobretudo a Hanna, que
me deu casa, comida e ouvidos. Aos professores Yanomami pelo acolhimento e entusiasmo
em me ensinar as primeiras palavras em Yanomami, em especial a Eliseu Xirixana que me
convenceu a realizar minha pesquisa de campo seguinte em sua comunidade. A Davi
Kopenawa, por me ceder um pouco do seu tempo e por suas palavras sempre instigantes.
Aos colegas do PPGAS: Aline, Bruno, Caio, Gustavo, Isabel, Isis, Laura, Luana, Thiago,
pelo que experimentamos juntos. E ainda Lara, Martinho, Paula, Patrícia e outros que se
juntaram a esta turma de 2008. Àqueles que ao longo do mestrado multiplicaram alegria e
dividiram aflições cotidianas: Cèline e Sapori; Juliana e Osvaldo. Aos amigos mineiros e
outros migrantes por fazerem do Rio de Janeiro um lugar surpreendentemente acolhedor.
Às minhas adoráveis mulheres: Paula, Cinthyia, Laetitia, e aos queridos Otavio e Theo. A
Clarissa, Flávio, Fernando, Luciana, Luísa, Marcus e Thiago, por um tudo de muitos anos
de amizade.
À minha família: avós, tios, primos. A tia Tatá, pelo carinho e bondade sem limites. Ao
meu pai, pelas conversas sobre tudo e qualquer coisa. À minha mãe, pelo apoio e amor, e
por ser um exemplo na capacidade de se re-inventar. A ela e Fernando meu agradecimento
ainda por me acolherem de volta em casa, oferecendo condições efetivas e afetivas para
esta escrita. Aos meus irmãos, Caio e Sophia, por tudo que me ensinam enquanto inventam
o mundo. A César, pelo porvir.
8
Sumário
Introdução 11
Plano da dissertação 27
Capítulo 1.
“No tempo dos ancestrais os homens já existiam”:
desdobrando pessoa e humanidade na mitologia yanomami 29
Capítulo 2.
Humanos, espíritos e animais 52
2.2. Yaropë 58
Capítulo 3.
Contra inimigos: parentesco e moralidade 84
3.1. “Omama nos deu uma nova pele”: a fabricação dos corpos 88
Capítulo 4. 130
Os Brancos
Introdução
acerca dos Yanomami, tendo como fio condutor a noção de pessoa e o problema da
humanidade. A bem da verdade, ao iniciar a leitura das etnografias sobre essa população
amazônica, o objetivo era realizar uma revisão bibliográfica destacando a relação entre
(Robbins 2004; Cannell 2006; Vilaça & Wright 2009) quanto com problemas colocados
pela etnologia amazônica. Nesse quadro, a questão da pessoa surgia como um articulador
importante dessa relação, dada a relevância que tem para as cosmologias ameríndia e
Durante o percurso de leituras, fiz uma viagem à Boa Vista (RR), com o intuito de
encontro foi uma das etapas de formação intensiva do curso de magistério dos professores
Este primeiro contato, por sua curta duração e caráter excepcional, não servirá de
base à exploração realizada aqui, mas contribuiu para iluminar a relevância de algumas
sua articulação com outras questões da etnologia amazônica, foi me obsedando – e tanto
desta população estudados pelos antropólogos Napoleon Chagnon e Jacques Lizot, nas
próprios nativos para referirem-se à etnia como um todo, isto é, ao conjunto de pessoas
ligadas por laços de parentesco e aliança que partilham do mesmo território e são falantes
de línguas aparentadas entre si. Trata-se de uma população de cerca de 30.000 pessoas
192.000 km². No Brasil, a Terra Indígena Yanomami ocupa uma área de 96.650 km², nos
margem direita do rio Negro, e a estimativa da população em 2010 era de 17.000 pessoas5
3
Acrescente-se ainda o fato de que a bibliografia acessível sobre os Yanomami é muito mais vasta do que
aquela sobre os missionários cristãos que atuam ou atuaram na região. Há, é verdade, uma bibliografia
dos missionários sobre os Yanomami – que não deixa de ser, evidentemente, uma bibliografia sobre a
relação entre eles – mas que nem sempre é disponibilizada para aqueles que possuem outra profissão de
fé, de modo que meu interesse nessa relação foi postergado para uma outra etapa de pesquisa que espero
realizar em breve.
4
Essa expressão tem importância capital no desenvolvimento da dissertação, posto que articula diferentes
sentidos de humanidade mais ou menso inclusiva.
5
Na TI Yanomami, além dos próprios, há ainda algumas comunidades Ye'kuana (grupo falante de uma
língua Karib) sobretudo ao norte de Roraima.
13
menos quatro línguas distintas faladas por esta população: Yanõmamɨ, Yanomam, Sanɨma
pelos próprios Yanomami, isto não impede que redes sociais de aliança atravessem
trabalho, farei recurso a diversas fontes bibliográficas sobre diferentes sub-grupos com o
objetivo de traçar um quadro geral “yanomami” a partir do tema central desta dissertação –
a noção de pessoa. Ao tomar por objeto a etnia como um todo, ao invés de algum sub-
especificidades que emergem desse exercício. 7 Entretanto, tampouco busco realizar aqui
pessoas, pensados como entidades políticas e econômicas autônomas, ainda que imersos
em uma rede de relações intercomunitárias que associa e opõe aliados e inimigos de uma
abertas no meio – nas quais podem residir duas ou mais seções, com os fogos domésticos
(que marcam normalmente uma família nuclear) distribuídos junto à parede externa, ao
7
Como ficará claro ao longo da leitura, tomarei como referência principal etnografias sobre os subgrupos
Yanomam (Albert 1985; Smiljanic 1999) e Yanomamɨ (Lizot 1984a, 1988 [1976]; Kelly 2003; Carrera
2004), sobre os quais há um maior número de trabalhos publicados e que são considerados mais
“próximos” do ponto de vista lingüístico e territorial em comparação aos outros dois sub-grupos. O
material sobre os Sanumá (Ramos 1990; Guimarães 2005a) servirá sobretudo como uma fonte de
comparação e controle.
15
redor da praça central 8–, as aldeias Sanumá e Ninam são formadas por várias pequenas
casas retangulares distribuídas de maneira irregular sobre o terreno – nas quais famílias
conjugais, extensas (um casal com suas filhas e genros) ou poligínicas, distribuem-se ao
Yanomami são a caça (com uso de flechas), a pesca (com veneno e com linha), a coleta, e
uma agricultura itinerante de coivara, na qual a banana e a mandioca têm destaque, mas
onde também há espaço para a taioba, o inhame, a cana, o tabaco e mesmo plantas
naturais, acesso a estes recursos e modos de exploração bastante variados 10 (Albert 1985:
8-9).
8
Por seção – ou facção – refiro-me a uma parentela endogâmica, encabeçada por um pata thë (homem
importante, ancião. Comumente o sogro) que comporta-se como grupo em relação a outros grupos no
interior de uma mesma comunidade, mas solidários entre si vis-à-vis o exterior. Cf. Alès 2006: 54-63;
Albert 1985: 206s; Lizot 1984b.
9
Embora não haja nas aldeias Sanumá e Ninam a delimitação de uma espaço público ritual como ocorre
nas casas comunais, é notável a observação de Ramos (1990: 43), de que o nome das festas inter-
comunitárias entre os Sanumás (sabomono) é muito próximo, morfologicamente falando da nomenclatura
das casas coletivas entre os outros sub-grupos (shapono), “ligando o cerimonial sem espaço próprio [dos
Sanumá] ao espaço próprio de cerimonial [Yanomamɨ]”.
10
Há, no território yanomami, uma diferença entre as terras altas da região da Serra Parima e Serra do
Surucucus e terras baixas, marcada pelos próprios Yanomami que se referem aos habitantes das terras
altas como horebɨtheribë e reservam yarɨtheribë para os habitantes das terras baixas, além de regiões de
floresta e de savana (Albert 1985: 8). Além disso, observa-se entre os Sanumá uma série de restrições e
tabus alimentares associadas a grupos etários, enquanto entre outros grupos estes tabus são menos
rígidos, restritos a determinadas fases da vida ou a períodos de reclusão ritual (K.Taylor 1976; Smiljanic
1999: 12).
16
aliadas (Albert 1985: 16-17; Lizot 1986: 39; Good 1989: 88). Esse concentrismo definiria
acréscimo de hostilidade como estabelecido pelo argumento já clássico de Albert (1985; cf.
Capítulo 3 supra).
que obriga ao abandono da casa coletiva. Desse modo, “trilhas e igarapés, nervos e veias,
universo de eventos marcantes e relações em fluxo”, como descreveu Ramos (1990: 29).
despertaram grande interesse no mundo acadêmico por sua diversidade interna e pela
vitalidade social e cultural que apresentavam no momento destes primeiros contatos, sendo
hoje muito vasta a literatura etnográfica sobre essa população. 12 Um dos primeiros escritos
em que surgem referidos como Yanomami é o relato etnográfico de Becher (1957), embora
11
Os Yanomami podem passar de um terço à metade do ano em acampamentos provisórios plurifamiliares
na floresta (naa nahipë). Este tempo tende a diminuir no entanto quando os Yanomami estabelecem
contato regular com os brancos (Enciclopédia dos povos indígenas/ISA verbete Yanomami:Albert 1999).
12
As fontes históricas, entretanto, são quase inexistentes e/ou pouco exploradas, as principais sendo os
relatos do viajante Koch-Grünberg (Vom Roroima zum Orinoco), do início do século XX e os arquivos
missionários carmelitas (que penetraram na região do rio Branco no primeiro quarto do século XVIII)
(Albert 1985: 32). No mapa etno-histórico de Nimuendaju, os Yanomami – referidos como Siriana –
ocupavam um território restrito nas terras altas das nascentes dos rios Parima e Mucajaí – localização
originária confirmada por relatos míticos (ibid.: 39-40) –, cercados ao sul e oeste por grupos arawaks e
makus do alto rio negro e a norte e leste por alguns grupos caribes.
17
dita.13 Em sua monografia, os Yanomami surgem, desde o título (“ Yanomamo: The Fierce
entanto, uma inegável influência sobre a produção etnográfica subseqüente: seja porque
cunhou uma série de descrições relevantes – determinando temas como a guerra, os rituais
Orinoco-Mavaca, a mesma região que Chagnon. Em seu trabalho mais conhecido e talvez
mais importante, “Le circle de feux” (1988 [1976]), os Yanomami surgem como um povo
objeto a vida ritual inter-comunitária Yanomami. Embora não publicado na forma de livro,
principalmente entre os trabalhos levados a cabo por antropólogos brasileiros – mas não só
entre eles (ver Kelly 2003) –, em grande medida devido à importância de sua contribuição
para a renovação do cenário da etnologia amazônica a partir do final dos anos 1970. 15
13
Não tomo em consideração entretanto os estudos filiados à antropologia física, por exemplo.
14
Sobre as quais, no entanto, me furto a comentar.
15
Refiro-me aqui, principalmente, aos desdobramentos do XLII Congresso de Americanistas. cf. Overing
18
A escolha dos trabalhos aqui utilizados como referências principais foi motivada
por sua afinidade com o tema que se pretendia colocar em revisão. Os trabalhos de Albert
sobre o sistema ritual dos Yanomae do Demini e Catrimani (Brasil) (Albert 1985) e sobre a
relação com os brancos na história do contato (1988, 1993) foram fundamentais para o
de suas implicações para as práticas sociais. Algumas das muitas publicações de Lizot
sobre os Yanomamɨ (1984, 1988, 2004, 2007), ao lado de etnografias mais recentes
Javier Carrera (2004) como trabalhos que, por se alinharem mais abertamente à orientação
teórica associada à escola britânica de etnologia e promovida pela obra de Joanna Overing
(1991, 2003; Overing & Passes 2000), ofereceram um contraponto importante para uma
bibliografia que tende a conferir maior destaque às relações de predação. 17 A tese de José
Kaplan 1977.
16
Interessantemente, ganham destaque também temas relacionados à saúde Yanomami, penso que por uma
dupla confluência da relevância de sua teoria etiológica, mas também pelos choques epidemiológicos
enfrentados pelos Yanomami e situação sanitária em flagrante depreciação por motivos de conflitos e
invasões de terra, sobretudo nos anos 80 e 90. Ao lada de questões relativas a terra e educação, a saúde é
um dos principais pontos de reivindicação desses povos. Alguns trabalhos sobre saúde são Pellegrinni
1998; Kelly 2003; Biserra 2006, dentre outros.
17
Para a expressão “economia moral da intimidade” em sua contraposição a uma “economia simbólica da
predação” cf. Viveiros de Castro 2002: 334-336. Ver também infra, nota 30.
19
Antônio Kelly (2003) sobre as relações dos Yanomamɨ do Alto Orinoco com o sistema de
saúde também foi, pela riqueza de sua etnografia e por suas escolhas e formulações
neste trabalho por não pretender realizar aqui uma revisão exaustiva da literatura sobre os
ameríndias na década de 1970 (ver Overing Kaplan 1977), alguns autores, com destaque
(ibid: 12). Disto decorre que o idioma preferencial para abordar as sociedades amazônicas
18
Helena Valero, de uma família ribeirinha – reconhecida posteriormente como Baré – em um dos
tributários do rio Negro, foi raptada pelos Yanomami de Cauaburi e Maruaca nos idos da década de 30
quando tinha 13 anos e viveu entre eles, casando e tendo filhos, por cerca de 20 anos (Valero 1984). Parte
do material jornalístico e polêmico a que me refiro é sumarizado e bem representado pelo livro Darkness
in Eldorado (Tierney 2001). Dentre os relatos missionários destaco Cocco (1972), missionário salesiano
que viveu por 15 anos em Mavaca e também “All the day long: missionaries reaching the tribes in the
Amazon” (Dawson 2000), sobre uma família de missionários protestantes vivendo junto aos Yanomami
de Ocamo. Ver ainda Wilbert & Simoneau (1990) que reúnem uma série de mitos apresentados por vários
antropólogos.
20
passou a girar em torno de conceitos como “corpo, alma, morte, alteridade, mais que
125).
lastro recua até o texto clássico de Marcel Mauss sobre o problema (2003 [1938]) –
sociedades ameríndias. Não se trata mais, nesse contexto de pesquisas, apenas de tomar em
postos em operação por estas sociedades – modos de subjetivação que fundam ao mesmo
imagem fractal, tal como elaborada por Wagner (1991) e desenvolvida pelos trabalhos
problema da pessoa na Amazônia (Kelly 2001, 2005; A-C.Taylor 2000; Viveiros de Castro
da pessoa fractal não se poderia dizer onde ela começa e acaba sem uma
certa arbitrariedade. E se nos acontece secioná-la ora como um ser humano,
ora como um clã, o que estamos fazendo é criar (algo arbitrariamente)
19
Refletindo sobre o uso da noção de pessoa na antropologia das sociedades complexas, Goldman afirma
que para fazer equivaler o conceito antropológico de “noção de pessoa” ao de “modos de subjetivação”,
cuja inspiração são os trabalhos de Michel Foucault “seria preciso reconhecer que situar-se sobre o plano
puramente representacional é insuficiente, e que este plano constitui apenas parte do fenômeno, sendo
necessária a inclusão das múltiplas esferas relativas às práticas institucionais e individuais. Se desejarmos
permanecer fiéis à tradição antropológica, deveríamos reconhecer que após toda essa discussão, é ainda
Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo, basta reunir ao texto sobre a pessoa
suas análises a respeito da ‘expressão obrigatória dos sentimentos’ e das ‘técnicas corporais’.
Recuperaríamos, assim, o plano do ‘fato social total’, onde físico, psíquico e social não mais podem ser
distinguidos, e onde representações e processos empíricos não constituem mais que dimensões ou
expressões sempre articuladas das práticas humanas que pretendemos investigar” (1999: 27).
21
cotidianas, à socialidade, à subjetividade, etc. E ainda, à relação entre todas essas esferas.
forma ao que será desenvolvido aqui, com o tema da pessoa nos oferecendo um fio
fabricação do corpo; a relação com os brancos e com inimigos; a mitologia; etc. – reunindo
dessa forma uma bibliografia que, por sua heterogeneidade, encontra-se usualmente
dispersa.
pessoa e humanidade, é preciso reconhecer que, a rigor, esses conceitos não são
humanidade ganha maior relevância nas produções etnológicas sobre a região, sobretudo, a
20
E talvez apenas do primeiro possa ser dito tratar-se de um conceito antropológico.
21
Conferir maiores explanações sobre o perspectivismo capítulos 1 e 2.
22
origens mais remotas, sobre o animismo. Entretanto, uma das conseqüências da elaboração
imanência.
plausível pensar que suas extensões se apresentam sob formas ora mais ora menos
exclusivas, podendo por vezes até mesmo coincidir. As modulações específicas das
alguns contextos da vida (às artes, por exemplo) e não a outros (o casamento, digamos)
seria apenas uma variação muito particular da experiência (e, portanto, da invenção). Uma
O princípio básico de seu modelo é a assunção de que toda ação humana se faz em
Em linhas gerais, pode-se dizer que uma tradição coletivizante (a cultura norte-
próprias convenções para mascarar a invenção de uma natureza inata, mais resistente do
que motivante, reafirmando em cada ação o contraste entre o dado e a fabricação sob as
24
Nas tradições diferenciantes, por sua vez, esse contraste é obviado: a Cultura aqui – se a
forma implícita para mascarar sua própria invenção, tomando-a como dado e motivação.
deliberadamente reafirmam sua própria convenção –, ou, ao contrário, para não se perder
dialética entre convenção e diferenciação deve se manter sempre aberta para incluir outros
efetivada é uma questão de invenção. 24 Em outras palavras, cada tradição deve ser capaz de
(convencionalmente) é dado. 25
de pessoa em cada qual dessas diferentes tradições não são poucas.26 Segundo o autor, em
uma tradição coletivizante o “eu” seria inato e não fabricado; uma vez que o dado é aqui
ser controlado/educado como condição para se fazer “sociedade” (1981: 69). Já nas
singulariza cada pessoa, lhe empresta poder27 – devendo ser socializada e coletivizada
através de convenções explícitas –, a alma, por sua vez, seria o depositário das convenções
socialidade dada na forma da pessoa, cabendo ao sujeito se tornar singular e poderoso pelo
entre a imagem convencional que o ator tem de si mesmo – o que ele é, ou seja, aquilo
que, no campo relacional da pessoa, é considerado da ordem do dado – e o que ele pode
fazer (ou que pode ser feito com ele). Sem esse compromisso, corre-se o risco de
invenção da pessoa passa pelo controle da personalidade, esse risco se apresenta sob a
e expressivo que não encontra, entretanto, comunicação. Em um mundo de almas, por sua
vez, o risco é o da ambigüidade – uma conexão com outras formas motivantes que,
contudo, não levam em conta esse “compromisso” com a convenção –, o perigo sempre
apresenta nos universos ameríndios (Viveiros de Castro 2002: 391). E se os riscos são
27
Poder aqui relaciona-se sobretudo à criatividade.
28
Moralidade refere-se justamente a imagem convencional da própria socialidade (Wagner 1981:70-71;. cf.
infra p. 37s)
29
Wagner (1981: 64-65) usa na verdade a expressão esquizofrenia, em um sentido próximo ao de Bateson.
Tomei a liberdade de substituí-la pelo solipsismo, pelo eco que encontra na formulação de Viveiros de
Castro (2002: 391).
26
entretanto, ocorre justamente pela assunção desses riscos em sua radicalidade: é preciso
que (ao menos) algumas pessoas possam estar aptas a se aventurarem nesses riscos – sem,
operação.
da qual participam todas os seres e acessível aos xamãs mais experientes, que podem dele
se valer para se tornarem pessoas mais poderosas e criativas. As convenções não existem,
portanto, para serem deliberadamente desempenhadas, mas tomadas como base para uma
singularização inventiva, ainda que lidando sempre com o risco de uma relativização
está em jogo na invenção da pessoa yanomami seria uma dialética sob a forma do
30
O recurso à dialética wagneriana pareceu-me promissor também por permitir tratar de maneira não
excludente, duas imagens da socialidade Yanomami – bem expressas no título de uma coletânea de
artigos de Catherine Alès (2006) “Yanomami – l'ire et le désir”. Imagens essas que parecem replicar – se
tomadas com uma ampla margem de liberdade de interpretação – as diferenças entre as imagens da
sociedade na Amazônia informadas pelas abordagens definidas por Viveiros de Castro (2002: 334-336)
como a “economia moral da intimidade” e a “economia simbólica da alteridade”. Em linhas gerais,
enquanto a primeira enfatiza a produção e a “ética da consanguinidade” – construindo uma imagem moral
da socialidade nativa –, a segunda enfatizaria a predação e os processos de troca simbólica como guerra,
canibalismo, xamanismo, caça, etc. figurando a socialidade nativa por sua relação com formas de
Alteridade. Sugiro que estas duas imagens – da moralidade e da predação – não são apenas perspectivas
diferentes pelas quais a socialidade Yanomami se deixa apreender, mas o modo próprio da dialética pela
qual esta socialidade se efetua/inventa.
27
Plano da dissertação
duas imagens de humanidade informadas por diferentes conjuntos míticos que parecem
moral, restrito a esferas mais ou menos exclusivas de sociabilidade. Sugerirei que esses
Nos capítulos seguintes, passo à descrição das implicações dessa dialética nos
tal como apresentada acima. Não se trata, contudo, de tomar essa taxionomia de maneira
As relações entre Yanomami thëpë, yaropë e yai thëpë são tratadas no segundo
capítulo, que tem por objeto a análise do problema do metamorfismo e a explicitação dos
diferentes componentes da pessoa yanomami. Este capítulo busca ainda situar as relações
especificamente, nas relações intra-comunitárias. Procuro mostrar como em seu nível mais
exercício moral da socialidade e das ações rituais incidentes sobre o corpo – para a
estabilização da pessoa.
fortemente pelo trabalho de Kelly (2003), no qual uma teoria do 'virar branco' surge lado a
lado da análise dos processos de domesticação dos mesmos. Nesse contexto relacional
de maneira ainda mais evidente que nos demais, como se, por se tratar de um encontro
Kopenawa Yanomami, Albert chama a atenção para dois grandes blocos de mitos
les transformations em gibier (yaro) des ancêtres yaroripë font l'objet d'un vaste
ensemble de mythes qui mettent em scéne une sorte de 'pathologie de l'alliance
matrimoniale'. [...] La creation de l'humanité et de la société yanomami actuelle
est par contre attribuée au démiurge Omama. Ces deux “ensembles flous”
constituent l'essentiel de la mythologie yanomami, au sein de laquelle se
manifeste ainsi parfois un certain effet de redondance. On y trouve ainsi, par
example deux mythes d'origine des plantes cultivées, l'un au temps des ancêtres
animaux, l'autre au temps d'Omama (Albert & Kopenawa 2003: 76 n.35).
destacado pelo antropólogo, também se revela uma aparente contradição entre uma
humanidade que sempre existiu, e que teria sido perdida pelos animais, e uma humanidade
que foi criada e moldada pela ação do demiurgo Omama. Ao trabalhar neste capítulo com
desses dois conjuntos míticos para o entendimento nativo da pessoa. Procurarei demonstrar
como tal contradição encobre diferentes sentidos que “humanidade” pode assumir entre os
sua própria socialidade.31 Esses dois sentidos são justamente expressões de diferentes
maneiras de se conceber e experimentar uma humanidade que, não importa por onde se
31
O nosso próprio conceito de humanidade recobre diferentes sentidos: humankind (espécie humana) e
humanity (condição de humanidade) (ver: Viveiros de Castro 2002: 381; Wagner 1981: 95; Ingold 1999).
Se do último sentido talvez possa ser dito coincidir com a idéia de humanidade como condição
compartilhada entre os Yanomami, porém com uma distribuição diferenciada, o primeiro eu apostaria
estranho ao pensamento yanomami, embora venha sendo alvo de inúmeras experimentações a partir do
contato com os brancos.
30
animais de caça – yaropë –, ou seja, narrativas que expõem como os primeiros Yanomami
observou Lévi-Strauss, “um mito é uma história do tempo em que os homens e os animais
ainda não eram diferentes” – e isto porque todos eram, em alguma medida, humanos
(Lévi-Strauss & Eribon 1990: 178). Desenha-se um mundo no qual todos os seres
Esse fundo comum de socialidade que se deixa apreender no tempo mítico como
um fluxo comunicativo, transparente (Viveiros de Castro 2006: 321-324), ou, por vezes,
como uma espécie de consciência elementar e a priori (Wagner 1981: 70), pode atualizar-
narrativas sobre os ancestrais animais se põem a contar, por conseguinte, como ocorreu a
visível (Viveiros de Castro 1996: 128; Vilaça 2005: 450). Ao mesmo tempo, ao partirem
também para o caráter 'cronicamente instável' dessas formas corporais. As diferenças não
32
Sobre a noção de humanidade imanente em sociedades tribais, v. Wagner 1981: 87-88. Para o
desenvolvimento desta noção entre as sociedades ameríndias, cf. Viveiros de Castro 1996, 1998, 2002,
2006.
31
forma de assegurar sua própria humanidade, já que esta é uma posição a ser ocupada
As narrativas sobre os ancestrais animais não são apenas histórias sobre como os
animais perderam a humanidade ou sobre a origem das diferentes espécies naturais. Elas
mundo atual, precipitado na idéia de “alma” – que, tal como formulada por Wagner (1981:
70), “resume as maneiras pelas quais aquele que a possui é similar a outros, acima e além
das maneiras pelas quais ele difere deles” –, ou ainda na forma de inúmeros 'espíritos' que
(Viveiros de Castro 2006: 324). E é 'contra' esse fundo que se desenha o espaço da agência
comiam frutas shosho (não identificada), o movimento que faziam para consumir as frutas
ia esticando-lhes o nariz, que tomou a forma comprida que têm os focinhos dos quatis hoje
em dia. Uma versão yanomamɨ deste mesmo mito se distingue por uma inversão de
perspectivas que identifica os inimigos aos waika34 (Wilbert & Simoneau 1990: 141,143).
sua mãe, sobe em uma árvore alta, e ao cair, transforma-se em tartaruga (ibid: 293).
33
O guerreiro yanomami deve submeter-se a uma reclusão após matar sua vítima, mantendo jejum, para, de
certa maneira, desintoxicar-se do sangue da vítima. Cf. Albert 1985: 341-382; v. infra 99-102.
34
Shamatari é o modo com os Yanomami orientais referem-se a grupos do oeste/norte, enquanto são
referidos por estes como waika. Trata-se de um par de oposição, e possuem uma conotação pejorativa
sendo sempre utilizados para designar terceiros (Lizot 1984: 27; Ramirez 1999: 12).
32
origem dos animais. Diversas versões, apresentadas por diferentes autores, tratam o
surgimento dos pecaris como resultado da queda dos homens de um cipó preso a uma
árvore: desejosos de recolher seus frutos, os homens não se deram conta de que o cipó que
utilizavam para subir era frágil; quando este se rompeu, todos caíram transformando-se em
uma manada de queixadas. 35 Em algumas versões são os macacos cuxiús-negros que dão
origem aos pecaris; em outra, são os inimigos que se submetem a esta transformação. Esse
grupo de mitos sobre a origem dos pecaris, recolhido entre os Sanumá, Yanomae e
Yanomami, parece apontar para o aspecto fluido das posições de animais, yanomamis ou
inimigos no ciclo mítico dos ancestrais Yaroripë. Essas posições são facilmente transpostas
humanidade de fundo.
iswanizo, que remete à perda indesejável de uma condição preferencial (K.Taylor 1976:
40).36 Mesmo quando não se trata do não cumprimento de uma prescrição social explícita –
da avidez e do excesso, ou seja, o tema da boa distância, tal como assinalado por Lévi-
“bens culturais”, como, por exemplo, algumas espécies de plantas cultivadas. Quando
35
Lizot (2007: 273) acrescenta que esta queda é na verdade a origem de todos os animais: daqueles que
voam, dos que se movimentam pelas árvores e dos que vivem sobre a terra, tal como os classificam os
Yanomami. Os homens que já estavam no alto da árvore se transformaram em animais arborícolas ou em
pássaros, enquanto aqueles que estavam no solo se converteram em animais terrestres, manadas de
pecaris.
36
O verbo iswanizo também refere-se à transformação que alguém pode passar ao infringir certos tabus
alimentares: o uku dubu do animal (seu espírito) faz a vítima infratora “ficar como” o animal. Por
exemplo um adolescente pode ficar peludo se comer paca etc. (K.Taylor 1976: 40).
33
maravilhada com aquele novo grão e ávida por espigas maiores, adentrou ao roçado e se
enlouqueceu de prazer depois de haver experimentado o tabaco que Tomï-riwe lhe ensinou
a plantar, e, dando grandes saltos, foi para a selva onde se transformou em jupará (ibid.:
308). Um mito yanomamɨ sobre a aquisição da pupunha no tempo dos ancestrais também
Nessas narrativas sobre a aquisição de novos bens culturais, chama atenção o fato
de que os bens culturais “adquiridos” já eram conhecidos – o que dá origem, nesses mitos,
a uma série de equívocos. Esses episódios, nos quais os protagonistas parecem tomar “gato
por lebre”, ou, melhor dizendo, tucumã por pupunha – ou ainda, ceiba por mandioca, como
em um outro mito, no qual uma esposa, farta de ralar raiz de ceiba para a fabricação de
beijus que o marido insistia em dizer que eram feitos de mandioca, apresenta-lhe a
respeito do modo como humanos, animais e espíritos vêem-se a si mesmos e aos outros
seres do mundo” (Viveiros de Castro 1996: 115). Segundo essas cosmologias, diferentes
casos, plantas, minerais e até mesmo artefatos – apreendem o mundo sob pontos de vistas
acordo –, mas eles não estão de acordo sobre o que vem a ser pupunha ou mandioca. Essa
diversidade real” (Viveiros de Castro 2002: 379). Em outras palavras, é como se esses
tampouco enxergassem um mesmo mundo. E não poderia ser de outro modo, uma vez que
esta “cultura” é aquilo que, da ordem do dado e inato, é compartilhada por todos os seres
“alma” sempre formalmente idêntica e que só enxerga a mesma coisa (Viveiros de Castro
uma diversidade dos corpos. A 'cultura' ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a
veados, pássaros, esposos e esposas fabricam pra si corpos diferenciados – no sentido tanto
de sua aparência física quanto de seus hábitos e afetos específicos – que eles vêem mundos
diferentes.39 Como dito anteriormente, em uma tal ontologia, o espaço da ação humana é
generalizada à qual estão submetidos mesmo as não-pessoas: uma pedra, por exemplo, não
é nada se não for uma pedra para alguém. Não há uma natureza irredutível e independente
das relações.40
que uma se afirme sobre a outra. Na narrativa yanomami que apresentei aqui o equívoco
pai veado. Pode-se aqui estender o argumento de Lima (2002) acerca da cosmologia
Yudjá41, afirmando que diferentes perspectivas não são a priori nem mais ou menos
verdadeiras (ou mais ou menos humanas). A assimetria entre duas ou mais perspectivas é
sempre uma questão e uma disputa: “dado que a existência humana ali apareça
alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os
pontos de vista (e um ponto de vista não é senão diferença) não está na alma, pois esta, formalmente
idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte — a diferença é dada pela
especificidade dos corpos” (1996: 128)
39
No caso de esposos e esposas a ação é voltada justamente para a fabricação de corpos semelhantes. Ver
infra capítulo 3.
40
Sobre este espaço da ação humana ver Wagner 1981: 76 et passim. Sobre o efeito perspectivista sobre os
não-sujeitos ver Viveiros de Castro 2002: 382-7; Lima 2002: 15-17; Vilaça 2005: 455-7; dentre outros.
41
Grupo falante de uma língua Juruna, do tronco Tupi, habitantes do Pará e Mato Grosso.
36
Compare-se o silêncio do pai veado diante da pupunha que lhe oferece o genro com
a recomendação dos Achuar42 de se afirmar “eu também sou pessoa” quando do encontro
com seres desconhecidos (A-C. Taylor apud Viveiros de Castro 2002: 397). O silêncio do
reconhecer a pupunha que lhe oferece o genro estrangeiro como sendo “a verdadeira
pupunha”43, não resta à família senão transformar-se em veados, coisa que na verdade já o
eram, como indica seu nome e a preferência por tucumãs.44 E aqui não quero dizer que, na
verdade, eles já eram veados ao invés de humanos, mas justamente que eles já eram veados
sendo humanos. Afinal, “cada ser mítico, sendo pura virtualidade, 'já era antes' o que 'iria
ser depois', e por isso não é, pois não permanece sendo, nada de atualmente determinado”
(Viveiros de Castro 2006: 324). O problema colocado pela mitologia dos ancestrais
segunda pessoa, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não-humano
[…]” (Viveiros de Castro 2002: 397), no presente caso o que ocorre é uma não-resposta ao
t u dito por um humano, o que é a mesma situação vista pelo outro lado. Mas adotar a
ao contrário, a captura da perspectiva do Outro muitas vezes é uma forma de se fazer mais
42
População habitante das fronteiras do Peru e Equador, falantes de uma língua Jívaro.
43
Trata-se aparentemente de um mito contado pela perspectiva dos pássaros, com quem os Yanomami
parecem compartilhar da perspectiva do que seria a “verdadeira pupunha”.
44
Tucumã constituem uma das bases das dietas dos veados na região em que foi recolhida este mito, de
acordo com Cocco (1972: 363 n.) Além disso, a importância do nome para a determinação da pessoa
entre os Yanomami não pode ser minimizada. Cf. infra 39 n.15.
45
Mas como observou Viveiros de Castro o recurso à linguagem de uma ontologia – se não se refere a uma
metafísica do Ser – mantém ainda um valor tático, de “sublinhar que esse pensamento [ameríndio] é
inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior” (2001a: 10).
37
subjetivacão (Viveiros de Castro 2002: 287-291). Vilaça apresenta um mito wari' 46 em que
o mesmo tipo de equívoco – um estrangeiro apresenta a caça aos Wari', que antes
(2008: 178-183). Mas há aqui algumas diferenças: primeiro, o mito yanomami não é
contado do ponto de vista de quem se transforma (no caso, os veados), mas de quem, ao
Além disso, a transformação aqui se dá pela recusa – mais ou menos passiva – de uma
perspectiva e não pela apropriação de uma perspectiva estrangeira: a agência fica dessa
forma restrita ao outro. Se a transformação em animais pode ser vista como a perda da
humanidade, não é pela adoção da perspectiva do outro, mas pela perda da agentividade:
“humano” aqui quer dizer sujeito, pessoa, e implica necessariamente agência e perspectiva.
embora animado, não participa mais desse precipitado de socialidade senão como objeto
animais na narrativa cuja nota abriu essa discussão. Passo à citação de um trecho desta
Au premier temps, lorsque la forêt était encore jeune, nos ancêtres, qui
étaient des êtres humains avec des noms d'animaux, se sont métamorphosés
em gibier. Yanomami pécaris, ils sont devenus pécaris; Yanomami cervidés,
ils sont devenus cervidés. Yanomami agoutis, ils sont devenus agoutis;
Yanomami aras, ils sont devenus aras. Ils ont pris la forme des pécaris, des
cervidés, des agoutis et des aras qui habitent la forêt d'aujourd'hui. Ce sont
ces ancêtres transformés que nous chassons et que nous mangeons. Au
premier temps, touts les animaux étaient des Yanomami [...] Les animaux
que nous mangeons sont différents. Ils étaient des humains et sont devenus
46
Wari' são uma população habitante do estado de Rondônia, também conhecidos como Pakaa Nova,
falantes de uma língua da família Txapacura.
38
gibier. Nous les voyons comme des animaux, mais ce sont des Yanomami.
Ce sont simplement des habitants de la forêt. Ils ne sont pas autres. Nous
sommes semblables à eux. Nous sommes aussi du gibier. Notre chair est
identique, nous ne faisons que porter le nom d'êtres humains. Au premier
temps, lorsque nos ancêtres n'étaitent pas encore devenus autres, nous étions
tous des humains; les aras, les tapirs, les pécaris étaient tous des humais.
Puis ces ancêtres animaux se sont transformés en gibier. Cependant, pour
eux, nous sommes toujours les mêmes, nous sommes aussi des animaux;
nous sommes le gibier habitant des maisons tandis qu'ils sont les habitants de
la forêt. Mais nous, qui sommes restés, nous les mangeons, et ils nous
trouvent effrayants, car nous sommes affamés de leur chair. Les tatous, les
tortues, les cérvides sont d'autres humains que nous, mais nous les dévorons.
C'est ainsi. Nous Yanomami qui ne sommes pas devenus gibier et agissons
encore comme des humains, nous mangeons nos frères les tapirs et tous les
autres (Albert & Kopenawa 2003: 73-76).
relação aos Yanomami surge como uma tomada de posição na relação predador/presa. Não
se trata tanto dos animais reconhecerem os Yanomami como os verdadeiros humanos, pois
eles vêem os humanos antes como semelhantes que se tornaram habitantes de malocas
(ibid: 68 n.2). De fato, apesar das transformações e da “perda” da humanidade por parte
dos animais, a distância ontológica entre estes e os Yanomami não é fortemente marcada
nas narrativas sobre os ancestrais animais: eles não são outros. Contudo, os Yanomami
vêem os animais como presas – “nós os vemos como animais, mas eles são na verdade
medida, caça: “Nós também somos caça. Nossa carne é idêntica, nós apenas portamos o
comerem seus irmãos tapires, os cunhados caititus, etc., tornando-os presas, os Yanomami
consequentemente, de humanos. Pois, de fato, a predação opera como uma forma forte e
na Amazônia.47 Conclui-se assim que nesse conjunto mítico sobre os ancestrais animais, a
por estas narrativas encobre o amplo espectro da personitude, tendo como traços
atuais são aqueles que restaram sem se transformar, diferenciando-se dos animais porque
“portam o nome de seres humanos”48, e, sobretudo, porque ainda agem como humanos
(isto é, comem os outros animais). Mas, apesar desta aparente continuidade do estatuto de
humanidade dos Yanomami que essa narrativa parece encerrar, outros mitos apontam uma
ancestralidade dos animais míticos – yaroripë – parece estar em conflito com a afirmação
Em sua primeira parte, esta narrativa conta como o céu caiu sobre a terra,
precipitando floresta, montanha e antigos ancestrais para o mundo subterrâneo, onde eles
provocada pela ira dos espíritos auxiliares de um xamã morto que, desolados por estarem
48
A importância do “portar o nome” não pode ser minimizada. Além de ser considerado entre os Yanomami
um dos componentes da pessoa, o nome ainda é fundamental para uma dinâmica perspectivista, como
observou Kelly (2001: 99): “São, parcialmente, nomes e ornamentos que permitem a sustentação de um
ontologia perspectivista em face da fixidez das peles humana e animal.” Em algum sentido, pode-se dizer
que os Yanomami eram, à semelhança dos Yanomami queixadas e dos Yanomami antas, Yanomami
yanomamis. Mas esta repetição não significa uma redundância, ou que os Yanomami atuais sejam auto-
idênticos e a forma da humanidade por excelência. Se o primeiro Yanomami refere-se à humanidade
como subjetividade e socialidade comum, o segundo refere-se a uma forma corporal específica (corpo
entendido como feixe de afecções e moralidade) e só em alguns contextos muito definidos, eles se
tornariam coincidentes.
40
órfãos, atacaram o céu com suas armas. Alguns ancestrais resistiram a essa queda,
protegidos sob um grande cacaueiro. Junto com eles, também preso sob o céu que caiu,
estava um papagaio que abre então com seu bico um orifício por onde eles conseguem sair.
Ao sair, eles vêem então a floresta, o dorso do céu. E se espalham por ali, fazendo roças.
Embora sobreviventes à a queda do céu, esses ancestrais terminam por desaparecer. São
eles que dão origem à fauna. Segue-se a isso a descrição da ação de Omama após a queda
Os ancestrais que foram criados nos primeiros tempos, há muito tempo, eram
ignorantes. Eles não tratavam as cinzas funerárias. Eles comiam uns aos outros: a
cada vez que um entre eles se transformava, eles o comiam. Como nós comemos
caça. Eles não “colocavam suas cinzas em diálogo cerimonial”, eles não ficavam de
luto. Era assim que eles faziam em sua ignorância. Eles acabaram por desaparecer.
Nós que estamos aqui, foi Omama quem nos criou depois da morte destes
primeiros ancestrais. Omama nos criou, nós, que somos outra gente; ele nos recriou
e nós pudemos aumentar novamente. Nós que existimos hoje, nós somos os
espectros dos primeiros ancestrais que foram precipitados ao mundo subterrâneo.
Omama, depois de ter tombado conosco ao dorso do céu, ficou para nos criar.
Omama: simplesmente existe (est simplesment advenu à l'existence) Ele é um ser
sobrenatural que existe sem causa nenhuma e ele nos cria assim também,
simplesmente. Nós éramos os espectros fechados no caule de uma jovem palmeira
de onde se fazem zarabatanas, como ovos de formigas. Ele percebeu o ruído que
escapava da palmeira, aproximando-se para escutar. Depois ele corta o caule e o
abre longitudinalmente. Nós éramos espectros como ovos de formigas. Ele nos
coloca em uma grande folha de heliconia sob o sol. Ele nos transforma em
Yanomami nos devolvendo a pele. Depois ele nos cria, nos dando a palavra e ele
nos coloca de pé. E ele diz assim a cada um: “Você, você fará o diálogo cerimonial
wayamu!”; “Você, você fará o diálogo cerimonial hiimu!”, “você será xamã!”,
“Você fará das falas Hwërëamu!”
(resumo e tradução a partir da versão francesa em Albert 1985: 745-747)
Esse ciclo narra a epopéia do demiurgo Omama e seu irmão Yoase, responsáveis por
conferirem ao cosmos sua forma atual. A cosmologia yanomae é apresentada por Albert
dos andares dos cosmos (mundo subterrâneo, terra, céu e céu embrionário), que distingue
animais, a era do ancestral canibal (que surge em alguns mitos como pai dos gêmeos
humanidade atual, criada pelo demiurgo Omawë, ele mesmo um sobrevivente do dilúvio
(Lizot 1994; Cocco 1972). Entretanto, essas diferentes eras e seres parecem co-existir
quem os cria de fato, como Yanomami. No mito da queda do céu, os verdadeiros humanos
são não mais aqueles Yanomami que restaram sem se transformar em animais, mas os que
não se refere tanto a um dado comum que pode eventualmente ser perdido, mas a algo que
predicados e atividades que definem o modo da socialidade dos Yanomami. Mas Omama é
acompanhado por seu irmão gêmeo Yoasi, que sempre atrapalha ou deturpa sua “criação”.
Quando Omama pede ao irmão que busque madeira para a fabricação dos corpos
yanomami, por exemplo, Yoasi – por conta de seu temperamento preguiçoso, diz o
50
O dorso do céu é a morada dos mortos, justamente por isso, estes seres que aí habitavam e que caíram
junto com o céu, só podem ser considerados os fantasmas dos primeiros Yanomami que habitavam a terra
(cf. Albert 1985: 633). É notável de toda maneira que os Yanomami atuais sejam o resultado de uma
metamorfose operada entre os espectros, já que os fantasmas – porë – são usualmente a categoria de
alteridade privilegiada entre estes.
42
narrador – escolhe uma madeira mais mole do que deveria. Dessa escolha resulta a
partir de uma madeira dura (Guimarães 2005a: 29-32). Pares de irmãos cujas ações são
como antíteses umas das outras são comuns na mitologia ameríndia. Ao explorar a figura
desses mitos, exprime um gosto pela assimetria no pensamento ameríndio, e uma dinâmica
que ele viria a caracterizar como “dualismo em desequilíbrio pérpetuo”. Retomarei este
Omama ensina aos Yanomami como fazer o ritual funerário e as festas reahu; a
praticar sexo de maneira apropriada, sem muito ruído; é ele também quem transmite as
homicida e de menstruação. Enfim, tudo aquilo que diversas etnografias apontam como
sua “ignorância” – como frisam alguns comentários nativos – parecem ter a sua
Entretanto, alguns dos traços definidores da nova humanidade já tinham sua origem
narrada nos mitos sobre os ancestrais animais – a redundância entre os dois conjuntos
míticos referida por Albert (supra 29). Comentei anteriormente como por vezes era a
própria aquisição dos bens culturais que levava, algo contraditoriamente, à transformação
dos ancestrais em animais. O ponto nevrálgico de distinção desta nova humanidade com
relação àquela dos ancestrais animais não é, portanto, a aquisição de novos padrões de
comportamento – posto que estes nem são tão inéditos assim, já que são atributos de uma
43
socialidade inata e compartilhada –, mas o fato de que esses padrões são retomados como
não se encerram nunca. No próprio mito da pupunha, o pai, após se transformar em veado,
se transforma em pedra, que se torna então a morada dos hekura... e assim por diante. E se
Outro, isto não é garantia para a estabilização da posição deste Outro: aqueles que
tradições diferenciantes como aceito ser a yanomami, a urgência no que tange à invenção
indomável, como parece ser o caso entre 'nós', mas a de evitar conexões indesejáveis que
colocariam em risco a própria base convencional contra a qual (mas também sobre a qual)
A soul is not disciplined. As the possessor's "touch" and rapport with others
and with society, the thing perceived as "soul" is constantly being
transformed in the course of inventive action, in the implicit and explicit
"representation" of it by the actor and others. Should an inappropriate
convention be realized and internalized in the course of such objectification,
an inventive orientation out of relation to convention, then the problems of
"possession" or "soul-loss" would become very real for the actor (Wagner
1981: 72).
“não é um processo tranqüilo, e muito menos uma meta.” Não é sem alívio que o
humano do animal, e, sobretudo, o temor de se ver a alma humana que insiste sob o corpo
“selvagem” seguem juntos na concepção yanomami, como faz saber a passagem abaixo:
certa medida, da própria metamorfose) operada por diversas sociedades ameríndias (ver
p.ex. Arhem 1993, sobre os Makuna; Vilaça 1992, sobre os Wari') é realizada na mitologia
demiurgo, o corpo dos animais deixa de ser um corpo humano e potencialmente perigoso –
comer um dos seus, ou de se confundir com aquilo que é comido. Essa transformação
canibalismo culinário, ritual, instituído por Omama entre a humanidade atual, que opera
em um mundo de almas a pessoa se realiza pela escolha entre diferentes relações “dadas”
que irão permitir ativar seu potencial criativo – e não tanto por seus feitos “culturais” –, a
estabilização de uma forma específica e apropriada de ser humano (Wagner 1981: 70). A
saga de Omama não se refere, portanto, à subjetividade comum que faz de todos os seres,
em alguma medida, humanos (yanomamis potenciais). Antes, ela parece indicar que há
uma maneira específica e adequada de ser humano e que esta corresponde à própria
moralidade Yanomami – o que é um outro modo de dizer que nem todos são exatamente
Utilizo moralidade aqui em um sentido próximo ao que lhe confere Wagner (1981),
51
A socialidade propriamente Yanomami se funda em um canibalismo cultural, efetivado por uma
série de ritos que lhe acentuam os traços hiperculinário ou para-culinário, opondo-se do interior à
predação imediata do canibalismo selvagem dos ancestrais animais mitológicos – yaroribë – e dos
não-humanos atuais – naikiribë. Este canibalismo cultural tem sua expressão no ritual funerário –
reahu – quando as cinzas dos parentes podem ser ingeridas (endo-canibalismo), mas também no
ritual de reclusão do guerreiro, destinado a desintoxicá-lo do sangue da vítima (exo-canibalismo).
Cf. Albert 1985: 340-569.
46
O autor observa como tradições diferenciantes por vezes invertem o direcionamento de sua
ação de modo a impedir uma relativização excessiva de sua própria socialidade (ou base
convencional), risco contra o qual essas tradições estariam sempre confrontadas no curso
Yanomami yayë .
da ação ritual correta, tomado pela pessoa comum quando confundida e confrontada pela
Yanomami, agir moralmente implica, entre outras coisas: falar uma língua e saber
obedecer às reclusões rituais, dormir em rede, carregar tabaco; realizar reahu, visitar-se
reciprocamente, chorar seus mortos... e claro, fazer isso apropriadamente, ou seja, a partir
corpo específico e distinto de outros corpos. Omama não só “ensina” todas essas coisas
aos Yanomami como lhes dá uma nova pele. 53 É importante lembrar que toda ação sobre o
52
Essa relativização excessiva é uma espécie de “auto-sabotagem”, que nos faz lembrar o espanto expresso
em outros termos por Levi-Strauss diante das sociedades ameríndias que, fundando-se em uma abertura
ao outro, trariam em si a semente de sua própria danação.
53
A “pele” (pei sikë) para os yanomami designa o invólucro corporal por oposição aos componentes
internos “imateriais” que são distribuídos de maneira diferenciada entre vários seres. Este invólucro é
justamente o lugar da diferença podendo ser adjetivado yanomami pei sikë, yaro pei sikë, napë pei sikë .
47
corpo revela uma intenção de constituição e fixação de uma humanidade específica, “de
coletivos humanos tanto quanto de outras espécies” (Viveiros de Castro 2002: 388). A ação
“igualmente” humanos.
No caso indígena é a condição que tem primazia sobre a espécie, e a segunda é atribuída a
todo ser que se postula compartilhar da primeira” (2002: 382). Entre os Yanomami, não
parece haver uma restrição da humanidade enquanto condição – dada pela presença da
“alma” – ao homem como espécie, esta última apenas uma das muitas formas possíveis da
e é algo que está sempre em disputa nas interações entre diferentes seres, um atributo
relacional que pode inclusive ser perdido, como revelam os mitos dos ancestrais animais.
(grupo caribe vizinho) – para não dizer da diferença entre um Yanomami e um branco
(nabë) – pode ser tão ou mais relevante que a distinção entre um “humano” e um queixada.
Em uma conversa informal, após assistir uma aula de biologia sobre a quantidade de água
seres humanos e os napë (brancos) também, por que os animais não são?” Pareceria que a
idéia de humanidade como espécie “natural” é bastante estranha aos Yanomami. A saga de
Omama revela que o sentido específico (no sentido de exclusivo) de humanidade é dado
pela retomada deliberada de uma yanomamidade, entendida aqui como moralidade, isto é,
a “imagem do próprio eu coletivo” – todo um modo de ser, que pode ser induzido e
por definição, mas certamente por interesse e relação – diversos coletivos humanos
(aqueles que nós chamamos assim, como outros grupos indígenas e os brancos, e ainda
os ciclos míticos nos oferecem, ora infinitamente abrangente e da ordem do dado, ora
fenômeno vivido. O conjunto mítico dos ancestrais animais aponta para o fundo humano e
54
Essa percepção dos humanos como uma espécie entre muitas outras, e capaz de ter diferenças “internas”
equivalentes ou mais relevantes que as distinções inter-específicas dada pela nossa biologia se faz notar
entre outros grupos também. “Os Jívaro”, observa A-C. Taylor, “vêem a humanidade como uma coleção
de sociedades naturais; a condição biológica comum dos humanos interessa-lhes muito menos que as
diferenças entre as formas de existência social” (1993: 658).
49
Yanomami, a saber, que o compromisso com a estabilização de uma forma específica não
moralmente são sua relação com diversas formas de alteridade e o risco de metamorfose
daí decorrente.
yanomami– é seguida de perto por seu irmão Yoase, gêmeo deceptor responsável por
buscada pelos Yanomami e propiciada por Omama, não chegará nunca, pela influência de
pode durar” (Lévi-Strauss 1993: 208). Como observa Guimarães (2005a: 29) acerca dos
pois com elas se constitui a alteridade tão essencial para que os sanumás se definam como
vem novamente reunir o que parecia separado: a instabilidade do ciclo mítico dos
convenção – atestando que, de fato, os dois sentidos de humanidade que nos revelam os
sistema, que, sem isso, estaria constantemente ameaçado de cair num estado de inércia”
(ibid: 65).
Sugiro que esse desequilíbrio dinâmico pode ser compreendido nos termos de
Wagner como uma dialética entre a convenção e a invenção que, excluindo a possibilidade
criativo (1981: 44). Nesse sentido, uma observação de Wagner me parece elucidativa sobre
o papel de Yoase no que concerne à articulação dessa dupla mitologia para o entendimento
esforço de diferenciação a partir de uma humanidade imanente (esforço esse que contra-
caso, aprender a ser yanomami – significa exatamente encontrar a dose suficiente entre
alteração e estabilização.
Essa dose de estabilidade e alteração irá diferir caso esteja em foco a relação com
pensamento usualmente faz uso de uma lógica linear que tenta excluir e desfazer as contradições, o
pensamento de povos tribais e outras tradições diferenciantes se vale de uma lógica dialética (no sentido
grego, mais que hegeliano), a qual, excluída a possibilidade de síntese ou de transcendência, se realiza
multiplicando as contradições. O próprio autor aproxima essa contradição das oposições de Lévi-Strauss.
51
moralidade exclusiva – pode ser tomado ora como (1) contexto motivante para uma ação
diferenciante, ora como (2) algo a ser fabricado/'induzido' por ações coletivizantes. No
primeiro caso (1), quando o sentido de humanidade tomado como contexto motivante é o
singulares. No segundo caso (2), por sua vez, as ações coletivizantes podem se referir tanto
ao processo do parentesco – que assume a “imagem coletiva do eu” como modelo para a
Nos próximos capítulos, tentarei explorar esta dialética privilegiando a cada vez
(cap. 2), a esfera do parentesco e da aliança (cap. 3), e a relação com os brancos e outros
estrangeiros (cap. 4). Essa separação é evidentemente um efeito da análise, pois, a pessoa
yanomami é, como nos lembra Lizot (2007: 288), “tudo isso em si mesma e ao mesmo
tempo”.
52
yaropë – animais da floresta, literalmente, a caça – e os yai thëpë – criaturas invisíveis e/ou
sem nome, comumente traduzidas por “espíritos” nas etnografias. Yãnomami thëpë se opõe
ainda a napë thëpë – inimigos, estrangeiros, e hoje também os “brancos” (Albert 1985:
190-192; Smiljanic 1999: 55-56). Entre os Sanumá, também é apontada uma distinção
entre Sanima dïbï, os seres humanos, e os não-humanos, sejam eles sai dïbï – maus
espíritos – ou galo dïbï – animais comestíveis (Ramos 1990: 295). Neste nível mais
abrangente, onde parece efetuar-se uma distinção ontológica propriamente dita, a posição
mas um composto dinâmico: alguns deles parecem remeter à própria imagem moral do
um claro diálogo com a mitologia dos ancestrais animais. Seja como for, eles evidenciam
imanente dada. Sua cosmologia, com a constante substituição dos andares do mundo “é
sobretudo um processo, e não uma armadura cósmica” (Albert 1985: 651) de maneira que
a classificação dos seres que habitam este cosmos também não deve ser lida como uma
tipologia fixa, mas antes como uma série de posições a serem definidas na interação e a
posteriori. As três classes de seres às quais me refiro neste capítulo – os yai thëpë, os
53
yaropë e os yãnomamë thëpë – são flexíveis o bastante para assumir diferentes significados
de acordo com a relação em questão e cada qual pode, por vezes, vir a reunir espécies mais
diferentes entre si do que a suposta diferença entre as classes. Mais correto seria dizer que
elas não são nem mesmo classes, posto que designam seres que são apenas as formas
2.1-Yai thëpë
maléficos da floresta (në wãripë), aos quais são imputados ataques e adoecimentos; aos
dos ancestrais animais e espíritos das plantas (Smiljanic 1999: 62). Albert traduz yai thëpë
Kopenawa 2003: 68 n.2). Yai thëpë denota ainda tudo o que não possui nome, o que é
desconhecido e potencialmente perigoso, assim como tudo aquilo que não é comestível
invisibilidade é dada pelo acréscimo do sufixo -ri (em yanomae, -riwë em yanomamɨ)
indício também de intensidade (Albert & Kopenawa 2003: 73 n.30). Assim, o espírito do
trovão, por exemplo, é Yapirari; Xamari é o espírito da anta, e os espíritos ancestrais dos
animais, em geral, são Yarori pë. Cada um desses nomes, mesmo quando singular, designa
54
uma série numerosa de espíritos, e não um único espírito individual. A impressão que se
tem é que os yai thëpë são sempre um coletivo, ou no mínimo, uma duplicidade: K.Taylor
(1976: 36) comenta que os xamãs sanumá durante sua iniciação, devem necessariamente
convocar e atrair um par de irmãos de espíritos animais para se alojarem em seu peito, que
passa então a ser a casa destes espíritos, onde durante o dia eles repousam em suas redes e
fazem vigília e xamanismo à noite56 (Albert & Kopenawa 2003: 76; Smiljanic 1999: 62-
73).
Yai thëpë são muitos e diversos, podendo viver nos mais variados espaços. Os
xapiripë vêm da região onde acaba o solo da floresta e começam os pés do céu 57 e, quando
ainda não estão na casa interior no peito do xamã, também podem habitar as montanhas
(Albert & Kopenawa loc.cit.). Yapirari, o espírito do trovão, e outros espíritos da noite,
vivem no dorso do céu – a terra dos mortos. Há também uma série de seres que habitam o
subterrâneo, sem falar nos próprios espíritos animais que habitam as florestas (Smiljanic
1999: 64, 79). Todos os espaços do cosmos yanomami são habitados pelos espíritos: não
há espaço vazio, ou “terra e montanha que exista sem razão”(Albert & Kopenawa loc.cit.).
Disso decorra, talvez, o conceito de urihi, a terra-floresta, como uma “entidade viva,
humanos” (Albert 1999; ver também id. 2002). O xamã David Kopenawa diz que só os
brancos podem pensar que a floresta não é senão um monte de árvores, “porque eles olham
e não vêem os espíritos, quando os xamãs yanomami sabem que a floresta pertence aos
Pois ainda que geralmente invisíveis, os xapiripë e outros espíritos são vistos pelos
56
Os espíritos auxiliares de um xamã habitam em seu peito, em uma maloca construída durante a iniciação
xamânica que em tudo assemelha-se às casas coletivas yanomami. Depois de uma vez atraídos, os
espíritos entram nesta casa por um caminho luminoso e então, amarram suas redes, cantam, dançam, etc.
Para uma descrição minuciosa da construção dessa casa entre os Yanomae ver Smiljanic 1999: 111-119.
Ainda de acordo com Smiljanic o corpo do xamã pode ser pensado mesmo como uma sinédoque do
cosmos (ibid.: 122).
57
O nível celeste é uma abóbada que se aproxima do nível terrestre – concebido como um plano – nas suas
extremidades, onde ficam os pés que a sustentam (ibid: 53).
55
relativa compete aos próprios yai thëpë: mais do que vistos, eles se fazem visíveis. “Quem
não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão” afirma Davi
vincula-se diretamente à questão de ser visto por estes. Mesmo os xamãs, só podem ver os
espíritos, porque no transe xamânico, pela inalação da yakõana58, eles “se tornam outros”,
eles também são xapiripë.: “não se vê um espírito, senão através dos olhos de um outro
espírito ao qual nos encontramos identificados” (Albert & Kopenawa 2003: 77 n.39). Ver
uma criatura yai thëpë é, por conseguinte, sempre o indício e o catalisador de uma
alteração.59
com algum xamã, os yai thëpë possuem uma postura de franca hostilidade com os
Ocamo, os yai são referidos como demonios (em espanhol), acentuando o caráter
usualmente belicoso destas criaturas (Kelly 2003: 74). Em parte, esse perigo se deve
justamente ao fato de que as pessoas comuns – não-xamãs – não possuem controle sobre
as transformações desencadeadas pelos encontros com os yai thëpë. Além disso, essas
criaturas são consideradas responsáveis por diversas doenças e ataques aos componentes
núcleo vital da pessoa yanomami 60 (Lizot 2004: 496). Para estes seres maléficos, os
58
Yakõana é um aditivo com efeitos alucinógenos produzido a partir da casca seca da árvore virola
enlogata, transformada em um pó fino que é soprado, com a ajuda de um tubo vegetal, na narina dos
xamãs e assim inalado por estes. É utilizado também nas pontas de flechas para caçar macacos e outros
animais arborícolas por seu efeito de relaxante muscular (Albert 1985:140; Smiljanic 1999:107).
59
Esta possibilidade de alteração, que parece fundamental para a experiência humana dos Yanomami, isto é,
para que não se tenha uma “existência à toa”, é um ponto que retomarei mais adiante (infra 70).
60
Sobre uma revisão sobre este e outros componentes da pessoa v. infra: 61-79.
56
expressão yai thawë, significa “diferente”, “de outro tipo”, “desconhecido”. Na verdade,
parece que a percepção e definição de um ser como “espírito” passa necessariamente pela
yanomami. Logo no início de uma narrativa sobre esses seres da floresta, Kopenawa diz ao
seu interlocutor: “Vocês, brancos, os chamam espíritos, mas eles são outros” (Albert &
Entre os Sanumás, esses diferentes espíritos são chamados sai töpo (ou sai dïbï em
Ramos 1990). Sai töpo, portanto, se refere às “criaturas da floresta”, seres que não são
animais, nem pessoas, apresentando a mesma invisibilidade relativa que os Yai thëpë. Os
hostil aleatório – sobretudo porque é difícil identificar com precisão quando se trata
realmente de um sai de61, pois estas criaturas podem assumir diversas formas corporais,
a ingestão de uma caça provoca mal-estar, conclui-se que isso ocorreu porque aquele
animal era, na verdade, um sai de. Todo ser animado que não se come (algumas lagartas,
cobras, escorpiões, dentre outros) também é considerado um sai de (Guimarães 2005a: 76-
89). Os sai töpo, como yai thepë, são, portanto, aqueles que “comem”e atacam, mas que
Ainda segundo Guimarães (ibid.: 40), os sai töpo são criaturas com uma
61
Sai de é a forma singular de sai töpö. O sufixo töpö indica plural, mas com referência preferencialmente
a um grupo de seres ou povo (Guimarães 2005a: 18. n.11).
62
Guimarães (ibid. 76) comenta que quando algum animal silvestre se aproxima da aldeia e não teme a
presença das pessoas, os Sanumá, observando o comportamento estranho deste animal concluem que se
trata de um sai de transfigurado em caça, e, neste caso, procuram afugentar a criatura, temerosos, mas em
hipótese alguma matá-la ou comê-la.
57
“corporalidade exótica e bizarra: são grandes ou pequenos; altos ou baixos; com pêlos ou
sem pêlos, com pernas e braços ou sem eles; com vários olhos ou nenhum; com pele ou
sem pele; andam com uma, duas três ou quatro pernas, etc.” Eles não se definem tanto por
uma incorporeidade, como às vezes parecia ser o caso dos yai thëpë (cf. Smiljanic 1999,
supra 54), são, antes, seres multi-corpóreos. Não se trata de tentar resolver a aparente
dos yai thëpë, mas de tomá-la como dupla afirmativa de um “indecidível” 63: os espíritos
yanomami são seres incorpóreos e possuem múltiplos corpos. Pois, o quê essas diferentes
Yanomami.
Evidentemente, corpo aqui quer dizer alguma coisa outra que um corpo como
afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das
corpo” (Viveiros de Castro 1996: 128). O corpo é portanto aquilo que diferencia os
notado.
acerca dos animais ancestrais (Albert & Kopenawa 2003). Corpos demais e metamórficos;
63
Diz-se indecidível de uma proposição matemática que pode ser nem falsa nem verdadeira. Viveiros de
Castro (1996, 2006) também utiliza a expressão para referir ao problema colocado pelas etnografias
ameríndias de saber se o jaguar mítico é um bloco de afecções humanas em uma forma jaguar ou o
contrário.
58
minúsculos, os yai thëpë (e outros espíritos amazônicos) – conclui o autor – seriam, menos
voltará à tona.
2.2.Yaropë
dos atuais Yanomami. Embora não possua a mesma generalidade que o emprego do termo
em português “animais”64 pode sugerir, já que não se aplica a todas as classes de animais, é
yaropë – e não outro termo, como, por exemplo, yuripë (peixes) – a categoria utilizada
64
Esta não é uma especificidade yanomami. Como observa, Viveiros de Castro, “são, com efeito, raras, se
existentes, as línguas amazônicas que empregam um conceito co-extensivo ao nosso “animal”, embora
não seja nada incomum ouvirmos termos mais ou menos correspondentes a um dos sentidos corriqueiros
de “animal” em inglês (e menos comum em português): animais terrestres relativamente grandes,
tipicamente mamíferos, por oposição a “peixe”, “ave”, “inseto”e outras formas de vida. Suspeito que a
maioria das palavras indígenas que foram traduzidas por “animal” nas etnografias significam, na
verdade, algo desse tipo”(2006: 327).
59
para contrastar com os yanomami thëpë e yai thëpë. E se esta última é utilizada para
designar genericamente tudo aquilo que não é comestível, o fato de yaropë “significa[r]
essencialmente 'caça' [...], isto é, corpo-carne definido por sua destinação alimentar”
(Viveiros de Castro 2006: 328), é certamente da maior relevância, como ficará claro a
seguir.
yanomami: não só é uma das principais atividades a que se dedicam os homens, como é
um assunto de predileção (Chagnon 1976; K.Taylor 1972; Albert 1985; entre outros). Uma
refeição sem carne não é considerada uma refeição completa. Os Yanomami possuem uma
palavra específica para distinguir a “fome de carne”, 65 que não pode ser saciada por maior
que seja a fartura de outros alimentos, traduzindo também certa ansiedade que pode levar a
brigas matrimoniais e ao aviltamento de um marido por seus familiares (Lizot 1988: 226;
Ramos 1990: 34). Dentre os principais animais caçados estão a anta, queixadas e caititus,
sofridas pelos ancestrais míticos, como destacado no capítulo anterior. Eles também eram
restando apenas este corpo mortal e perecível, corpo-carne 67 (Smiljanic 1999: 61). Antes
65
A palavra é naiki ( nagi, em sanumá ) por oposição à ohi, uma fome mais generalizada, de estômago
vazio. Naiki também refere-se a monstros canibais.
66
Os Sanumá possuem uma série mais detalhada de restrições alimentares do que os outros grupos. Entre
estes, o tabu incide usualmente, sobre a espécie animal equivalente ao duplo animal da pessoa. (Sobre o
duplo animal conferir mais a frente. Infra 74 Sobre os tabus alimentares entre os Sanumá, conferir
K.Taylor 1972; 1976).
67
Os animais atuais surgiram e se multiplicaram a partir do sangue destes primeiros animais
metamorfoseados. Smiljanic esclarece que os animais são constituídos por um envelope corporal (bei
sikë) e um princípio vital (wixi a) (Smiljanic 1999:61). Diferentemente dos Yanomami, contudo, eles não
possuiriam ani porepe ou ani utupë, componentes responsáveis pela agência e subjetividade. Guimarães
(2005a:155) também observa que de acordo com os Sanumá os animais não possuem pili õxi, espécie de
corpo interior subjetivo sanumá, sede do sentir e pensar.
60
disso, eles se apresentavam sob a forma humana – uma forma humana genérica e mais ou
menos indiferenciada. Sua forma atual – corpo animal específico – surge apenas no
de acordo com Smiljanic e ainda outros autores, os yaropë, tal como conhecidos hoje em
dia, “são destituídos do poder de agência”, tanto assim que “as agressões animais que
colocam em risco a integridade física e psíquica dos humanos são interpretadas pelos
Yanomae como decorrentes da influência maléfica dos homens e dos espíritos, pois só
Yanomami podem comê-los/atacá-los, não há espaço para a ação reversa: se algum animal
porta-se como predador diante dos Yanomami, é porque já não se trata exatamente de um
animal, mas mais provavelmente de um espírito 69 (Ramos 1990: 192; Smiljanic 1999: 61).
Mas se, a exemplo de outras cosmologias ameríndias, os Yanomami parecem “negar aos
eles mantêm os espíritos dos ancestrais animais como esse campo “intersubjetivo humano-
montanhas (Smiljanic 1999: 92; K.Taylor 1976). Assim, estes componentes ainda existem
convocados pelos xapori durante as sessões xamânicas, e estas imagem utupë dos espíritos
68
Um outro indicativo de que, aparentemente, os animais atuais não são usualmente pensados como
sujeitos entre os Yanomami é a própria escolha de estrutura linguístico para compor sua forma plural:
enquanto os yanomami e os yai a recebem o plural pela forma thëpë, que sinaliza na verdade um coletivo,
povo, conjuntos de pessoas, portanto, etc., os yaro a nunca recebem essa pluralização e são designados
apenas como yaro pë (plural simples).
69
Cf. pag. 44 supra
61
animais, apresentam uma forma humana.70 Estabelece-se, deste modo, uma importante
(imagens animais xamânicas atuais), que articula, justamente, mito, caça e xamanismo
agentivos – faz com que os animais sejam apenas carne e não mais “inimigos” em
potencial, envolvidos em uma disputa perspectiva. Mas o próprio guerreiro inimigo pode
ser designado yaro. (Lizot 2004: 500). A morte de um inimigo é vivida entre os Yanomami
valor alimentício que o inimigo pode ser chamado de yaro (mesmo porque, trata-se de uma
canibalismo simbólico) senão pela subordinação hierárquica contida em uma tal referência.
Yaro refere-se, assim, ao inimigo morto, já “consumido” em seus aspectos vitais pelo
70
Cf. sobre o componente utupë pags 71-73 infra
71
Esta completa dessubjetivação dos animais também deve ser relativizada uma vez que, como já foi
observado, muitos dos animais que se vê na floresta são na verdade o duplo animal de alguém, e
enquanto tal, partilham da mesma moralidade humana que os Yanomami.
72
Observe-se também o caso dos Wari', e a oposição Wari (ser humano, pessoa) X karawa (animal, presa,
comida e que inclui inimigo: wijan) (Vilaça 1992; 2006). Nunca é demais atentar no entanto que a
“animalização” dos inimigos, “depende de uma primeira, e bem mais fundamental, humanização do
animal” e que guerra e caça só estão em continuidade por que são, ambos, “um combate entre seres
sociais” (Viveiros de Castro 2002: 286).
62
mundo: uma série de estados, ligados em uma cadeia de transformação. Por ora, vou me
deter na relação corpo e alma, mais exatamente no modo como os Yanomami concebem os
diversos componentes da pessoa. É preciso que fique claro, contudo, que a oposição entre
corpo e alma representa aqui apenas um ponto de partida, e não de chegada – ou seja, as
questões do que é um corpo e do que é a alma, e, sobretudo, de que tipo de relação há entre
eles, são precisamente o que motiva esta exploração. Do mesmo modo a abordagem
entre bei sikë (ou bei sibosikë) e bei õshi (ou bei mëamo), que significam, respectivamente,
“a pele” (ou “pele de fora”) e o “interior” (“meio”, “centro”) 73 (Albert 1985: 139-140). O
ontológico'.74 Não se trata no entanto de uma oposição entre exterior e interior: bei õshi se
decompõe em uma série de outros componentes – bei bihi, bei a në borebi, bei a në ũtũbi e
bei a në rishibi, em yanomam –, nem todos eles podendo ser definidos como internos. Por
seu turno, bei sikë pode referir-se ao invólucro de alguns órgãos internos, ou, em alguns
73
Bei é um pronome possessivo que indica posse não alienável e precede, desta forma, os nomes dos
constituintes da pessoa e das partes do corpo (Pottier 1974: 204 e Migliazza 1972: 123 apud Albert
1985:139). Smiljanic (1999: 56) grafa estes termos também em yanomae como pei ũũxi e pei sikë.
74
Õshi pode designar a medula óssea, ou o miolo dos ossos (Albert loc.cit.).
63
contextos, ao corpo orgânico como um todo, bem como aos componentes que passam pelo
pei sikɨ (“pele, envelope”) e um corpo “ontológico”, pei hushomi (“interior”) ou pei mɨ
amo (“o centro, o meio”), composto por diferentes aspectos vitais imateriais (Kelly 2003:
71).
pili õxi. De acordo com Guimarães, pili õxi é uma réplica do corpo exterior, localizada no
interior deste e invisível aos não-xamãs; sede do sentir e pensar, tanto quanto das dores
físicas. A autora destaca a ênfase que os Sanumá dão à materialidade deste “corpo
subjetivo”:
Esse outro corpo, visível a todos e “com o qual interagimos”, é por seu turno
referido por um “coletivo”: pili pewö, designa o conjunto das partes ou componentes
corporais, enquanto pili pewö kokapali (todo o corpo reunido) equivale à pessoa. “Por
referindo à noção sanumá de reunião das partes que formam a pessoa e não a uma estrutura
básica, uma matéria principal, una e indivisível”, resume Guimarães (ibid.: 127).
pessoa; coincidência que não é, no entanto, exclusiva dos Sanumá, ou mesmo dos
Yanomami. Lima, etnógrafa dos Yudjá, afirma que, para estes, corpo não é outra coisa
senão a forma da pessoa e antes de opor-se à noção de alma, engloba-a: a alma é “uma
parte do corpo ou um componente da pessoa” (2002: 12). Um corpo não se opõe portanto a
64
uma alma, prossegue a autora, mas a outros corpos: corpo de onça, corpo de peixe, etc. 75
Como entre os Yanomami, a pele (se-sa) tem entre os Yudjá um lugar de destaque entre os
componentes da pessoa:
Entre os Yanomami, bei sikë pode referir-se ao envelope corporal dos animais:
yaro a sikë por oposição ao envelope corporal humano, yanomame a sikë, ou ainda napë a
sikë, para referir-se ao invólucro corporal dos brancos. Se o corpo é, como referimos, a
atualização de um conjunto de modos de ser e agir, a pele – bei sikë – é o local privilegiado
onde são inscritas e explicitadas as diferenças entre estes. Não por acaso, metamorfoses
são frequentemente descritas na Amazônia como uma mudança de pele (ver, p.ex.,Vilaça
“modo de ser” determinado (Viveiros de Castro 1996: 128; Vilaça 2005: 450) – , de
maneira que a alma possa ser vislumbrada então como este repertório, as várias formas-
corpos virtuais em que a pessoa pode vir a se atualizar. Em seu trabalho sobre os Wari',
Vilaça formula a relação corpo e alma exatamente nestes termos: o corpo metamorfoseado
pelas relações com a alteridade é um dos aspectos do que os Wari' concebem como alma
(jam) (loc.cit.). No caso Yanomami, esta alma, “corpo ontológico” (bei õshi), é ela mesma
pessoa.76
75
De maneira semelhante, o termo wari' -kwere, que pode ser traduzido como corpo, só existe em sua forma
possessiva, ou seja refere-se sempre a um corpo específico (Vilaça 2005: 449).
76
Justamente a oposição entre um princípio de diferenciação (corpo) e um princípio de coletivização não é
assim tão simples e coincidente com a distinção bei sikë e bei õshi, uma vez que bei õshi se fragmenta em
65
atualização) e a forma como elas são mediadas por práticas como o xamanismo, o rito
funerário, a feitiçaria, etc. Cada um desses componentes, e a maneira pela qual estão
implicados nestas diversas práticas foram magistralmente descritos por Albert (1985), e
aqui vou segui-lo de perto, o que justifica a grafia dos termos em Yanomae. Como já
observei, os principais destes elementos são bei bihi, bei a në borebi, bei a në ũtũbi e bei a
në rishibe.77
Bei bihi
Bei bihi, é traduzido literalmente por Albert (1985: 141) como visage, em francês, e
Kelly (2003: 72) traduz seu correspondente em yanomamɨ, pei puhi/pufi, por face, em
atividade intelectual ou emocional. Bei bihi é, ainda, a sede da vontade, das emoções, da
subjetividade, enfim, de tudo aquilo que pode ser entendido como “consciência desperta”
(Albert op.cit.:141). Bei bihi está ligado portanto aos estados e atividades ordinárias da
pessoa, e tem uma importância fundamental nas elaborações sobre as relações entre
vários elementos.
77
Fora estes quatro elementos, Albert (1985: 156-162) destaca ainda certas qualidades morais e físicas
apreciadas que integram a pessoa sob a forma de assimilação da imagem vital de um certo conjunto de
animais aos quais estas qualidades são atribuídas. No entanto, dado o caráter por vezes transitório destas
imagens e sobretudo, seu aspecto essencialmente profano, o autor considera-as secundárias para a teoria
ontológica yanomami. Além disso, penso ser possível acrescentar o nome próprio, bei waha, entre os
componentes da pessoa.
78
A idéia da face como um dos componentes da pessoa aparece também entre os Jivaro, e de acordo com
A-C.Taylor (1993: 659), eles “reconhecem que a face é a parte do corpo mais apta para manifestar
singularidade”. Ver também A-C. Taylor 2002.
79
A forma verbal bihio pode ser traduzida em alguns casos literalmente como “eu quero”. De acordo com
Albert (1985:141), bihi é utilizado ainda para conotação da instrumentalidade de um objeto, por exemplo:
xama bihi, designa uma ponta de flecha para caçar anta (xama: anta)
66
Bei a në borebi
Bei a në borebi pode ser entendido como o duplo ou espectro de uma pessoa,
grega, mas ao mesmo tempo traz consigo uma forte carga de alteridade: suas
não – induzidos pelo uso da yõkoana, ou ainda, durante as alucinações e crises sensoriais
boremi ou në aibi, que pode ser traduzida como ser/estar outro (être autre) (Albert 1985:
144-145).
relaciona-se certamente com sua proximidade aos mortos. Bore, o “princípio imaterial
produzido pela liberação do pei mɨ amo [bei õshi] após a morte” (Kelly 2003: 72), indica
“o espectro de uma pessoa falecida, seu fantasma por oposição aos vivos: temirime thë”
(Albert op.cit.:142). É neste sentido que os sonhos – situação em que o bei a në borebi se
desprende do envelope corporal bei sikë e age autonomamente – podem ser pensados como
uma forma intensa de experiência da morte em vida. Albert (ibid: 142) apresenta a
seguinte explicação nativa sobre essa experiência: “Durante o sonho, minha forma
espectral se vai ao longe.... meu envelope corporal está simplesmente dormindo... ele
80
A idéia de princípio vital também pode aparecer como um componente separado wixi a, espécie de
“sopro”, responsável pela animação dos seres em geral, animais inclusive (Smiljanic 1999: 61).
67
– pessoa do sonho – e oxi dẽ – espectro anunciado como duplo interior (Guimarães 2005a:
físico como o corpo visível, entretanto, imperceptível aos sentidos. Embora a realidade
onírica seja uma dimensão à parte do mundo em vigília, os acontecimentos que lá ocorrem
de boa saúde – depende, entre outras coisas, da integridade dessa porção e qualquer ataque
a o mani de durante um sonho pode ser fatal. Diz-se que o mani de (mesmo de um feto,
p.ex.) viu as coisas por onde passeou e por isso as conhece81: as faculdades sensoriais de
uma pessoa durante o sonho são expandidas e ela pode ver coisas que os não-xamãs não
vêem no estado de vigília, como os sai töpö e os mortos (Guimarães loc.cit.: 150-151).
Oxi dẽ refere-se por sua vez ao componente corporal humano que persiste após a
morte transfigurando-se no morto (heno polepö de). Guimarães apresenta uma descrição
borëbi é, contudo, um dos componentes fundamentais para que um ser possa vir a ser
identificado como Yanomami thëpë. A expressão ani porepë pode ser utilizada no discurso
81
“Ver (tai) está relacionado a viver ou experimentar, ações feitas necessariamente por corporalidades
materiais” (Guimarães 2005a: 152).
68
xamânico para referir-se ao conjunto dos constituintes espirituais que todo ser humano
ancestrais. (Smiljanic 1999: 57). Um dos marcos distintivos entre yaropë e Yanomami
thëpë – que faz com que os primeiros não sejam considerados pessoas pelos Yanomae –
pareceria ser assim a ausência desse espectro. A bem dizer, sem esse outro dentro de si,
não se é um Yanomami.
intrapessoais. Efetivamente, “uma pessoa viva não é um indivíduo, mas uma singularidade
É pela relação com Outro que um desses termos pode ser eclipsado ou atualizado,
atualização de uma humanidade específica depende das relações entretidas com outros,
82
Entre os Wari', faz saber Vilaça (2005: 452-453), a alma (jam) refere-se justamente à essa potencialidade
de atualizar um outro tipo de humanidade, contudo, uma pessoa em seu estado ordinário, recusa-se a
admitir que tenha alma – pois que a alma é um outro corpo, visível portanto em sua atualização apenas a
outros seres – mas também porque uma tal composição, e o potencial de alteração decorrentes daí,
conferem grande vulnerabilidade à pessoa.
69
dos principais elementos da pessoa Yanomami responsável por seu potencial de alteração.
não-humano (Viveiros de Castro 2002: 445). 83 Todavia, entre os Yanomami, o corpo assim
decomposto em duas formas estáveis – bei sikë fadado à putrefacão e ani porëpë feito
espectro imortal –, já não é tampouco uma pessoa, ao contrário. O mundo dos mortos –
de sua cosmologia, práticas rituais e cotidianas (Albert 1985: 382-569, 622-673). Assim, se
a presença do ani porepe, entre os componentes da pessoa yanomami, pode levar a estados
de alteração (poremu), que, no limite, implica um deixar de ser pessoa,84 a exclusão total
deste potencial de alteração também resulta em um deixar de ser pessoa – afinal, um corpo
Posto que este potencial de alteração não pode ser excluído, uma forma de
83
Guimarães trata essa disjunção provocada pela morte, entre os Sanumá, como um atestado da imanência
do inimigo. :“No caso dos sanumás, essa imanência é evidente, pois o morto que não é imaterial ou
evanescente, está contido no interior e provém dele. Embora o heno polepö de tenha a aparência do
corpo exterior e do õxi de, sua substância física é distinta das várias partes do corpo do sanumá vivo.
A transfiguração modifica a qualidade da matéria do morto, que passa a ser “duro” (amatoxi) e,
consequentemente, imortal. A modificação substancial do morto revela que se trata de um outro ser,
que deve ser evitado pelos sanumás, pois é perigoso, pode agredir as pessoas”(2005a: 136).
84
Os Yanomami de Ocamo referem-se ao estado de morbidez provocado pelo adoecimento como um deixar
de ser pessoa (Kelly, com. Pessoal 2009).
85
Em um sentido semelhante, Lima (2002: 12) observa que, entre os Yudjá, todo corpo que já não se
transforma é, por definição, o corpo de um morto, e portanto, o avesso de uma pessoa.
70
como forma, digamos, de assumir o controle sobre sua própria alteração.86 Recordo aqui
das conclusões de A.C.Taylor (1996) sobre os Achuar, entre os quais, para ser considerado
um 'verdadeiro humano vivo' (uma pessoa Shuar), tão importante quanto apresentar um
rituais Arutam (um certo tipo de encontro especial com seres da floresta com grande poder
perspectiva com outras formas de alteridade, essenciais para a construção de uma pessoa
(A.C.Taylor 1996: 204-205). Entre os Yanomami, o xamanismo é, sem dúvida, uma forma
87
privilegiada para a experimentação destes estados extremos.
vista – ou melhor, o ponto de vista do outro (dos xapiripë, no caso) também sobre si
mas também criativa. A-C.Taylor parece sugerir que metamorfose – essa experiência da
self. “Subjetividade é, antes de mais nada, inter-subjetividade”, o que pode ser alinhado
alteração habilita certo grau de estabilidade à pessoa na medida em que oferece outras
visadas sobre o corpo, ou seja, informa como ele é visto por outros – e um corpo não é
apenas sede das perspectivas como é ele próprio, senão outra coisa que uma perspectiva
86
Esta estabilidade, pode ser atingido também pela minimização deste potencial de alteração, pela via do
parentesco e práticas que visam a construção e fixação de um corpo específico (A-C.Taylor 1996;Vilaça
2005). A maneira como os Yanomami lidam com este tema tal como aparece em algumas etnografias é o
tema do próximo capítulo.
87
Refiro-me aqui menos ao uso terapêutico do xamanismo e mais ao seu potencial de alteração e
comunicação com os espíritos. K.Taylor (1976: 34), trata de um tipo de xamanismo praticado entre os
Sanumá “por diversão”, cujas sessões são referidas pelo termo polemo e não õkamo como os outros tipos
de xamanismo. E ele traduz polemo por “make like a jaguar” .
71
(1996: 206-209). Não se trata, porém, de obter uma percepção total do corpo, pela soma de
Albert indica um contraste entre os xamãs – xapiri thëpë – e as pessoas que existem
simplesmente – kuapora thëpë –, este existir simplesmente, sem razão, bio, opondo-se a
uma existência yai, verdadeira (Albert & Kopenawa 2003: 68 n.3). Assim, o xamã, com
sua habilidade para atualizar formas outras de humanidade mas de forma minimamente
controlada, parece ser um modelo valorizado da “personitude” yanomami, para que não se
leve uma vida à toa. Mesmo um não-xamã, deve submeter-se às sessões de xamanismo
para ser considerado realmente uma pessoa (Smiljanic com.pessoal. 2009). Mais até do
subjetividade partilhada por outrem.89 O impulso para a produção de pessoas criativas não
parece caracterizar entre os Yanomami um estado de exceção – ainda que possa ser extra-
ordinário – nem restrito a um grupo seleto de pessoas. Mas se o xamã é assim, modelo
preferencial para a 'personitude' Yanomami, o xamanismo não será, por certo, o único
88
A caracterização da experiência de estados extremos – e da perspectiva do outro sobre si – como meio de
conferir estabilidade a uma forma corporal específica, remete-nos também ao imperativo de produção de
pessoas criativas colocado por Wagner. Ali também está implicada a necessidade de sucumbir à
influência de outras almas/poderes, invertendo o curso da ação “apropriadamente humana”, mas de modo
a extrair dessa “relativização da imagem do eu” todo seu potencial criativo capaz de precipitar uma
imagem renovada da própria convenção, ou seja, de sua própria humanidade. Um dos exemplos oferecido
pelo autor é, não por acaso, o dos xamãs (siberianos, no caso) (Wagner 1981: 64, 74. ver pag.26 supra ).
89
Partindo de uma outra problemática, mas deparando-se com questões semelhantes, Guatarri observa que a
subjetividade é necessariamente social e que, portanto, “o processo de singularização da subjetividade se
faz emprestando, associando, aglomerando dimensões de diferentes espécies”, o que me parece muito
pertinente com o que vem sendo dito (Guatarri & Rolnik 1986: 37)
72
Bei a në ũtũpi
unidade corporal e da sede do princípio vital”, bei a në ũtũpi, espécie de “núcleo dinâmico
coração.90 Em um sentido mais amplo, bei a në ũtũpi designa todo tipo de reprodução
imagética (reflexo, fotos, escultura, etc.) ou sonora de alguém. Albert resume bei a në
simplesmente, a “imagem vital” (1985: 147). Parte considerável das doenças que afligem
Entre os Sanumá, Guimarães (2005a) descreve esta imagem vital, chamada uku
dubu, como uma espécie em miniatura da pessoa localizada no interior do corpo, mas que
toma forma apenas quando retirada desse invólucro.91 “Matéria semelhante a uma réplica
do corpo exterior, como uma foto ou um desenho, e invisível, também, para todos que não
sejam xamãs(...)”, o uku dubu “tem dimensões reduzidas, é leve e passível de ser apanhado
por qualquer criatura, está sempre parado, incapaz de qualquer tipo de movimento” (ibid:
155). Seu destaque na cosmologia Sanumá é devido principalmente ao fato de que ele pode
ser facilmente sequestrado, e é quando ele se encontra nesta situação, fora do corpo, que se
torna não apenas mais relevante como mais inteligível. 92 Uku dubu e bei a në ũtũpi
90
Viveiros de Castro (2002: 443 n.36) sugere que “a distinção básica a fazer é entre um conceito de alma
como representação do corpo e um outro conceito de alma que não designa uma mera imagem do corpo,
mas o outro do corpo.” O bei a në ũtũpi, certamente corresponde a esta primeira formulação, enquanto o
bei a në borebi refere-se à segunda.
91
Ramos (1990: 195) toma uku dubu, como o nome genérico das “almas” de uma pessoa, fazendo do mani
de e nï pole bï dïbï, tipos específicos de uku dubu. Esses uku dubu seriam passados às pessoas da mesma
forma que outras substâncias corporais como o sangue, os ossos, etc., pela concepção e conseguinte
fabricação do corpo (cf.próximo capítulo).
92
A técnica dos sai töpö para raptar o uku dubu de uma pessoa é semelhante à de fotografar (Guimarães
2005a: 154 n.40).
73
parecem portanto retirar sua significação, da interação com outros seres e pessoas.
Os animais, embora não tenham pili õxi, ou pëi a në porepi, possuem uku dubu
K.Taylor. (1976:40) define essas imagens uku dubu dos animais como “espíritos
animalóides”, por oposição aos “espíritos humanóides”, que seriam os outros componentes
imateriais da pessoas, os espíritos auxiliares dos xamãs, sai töpo etc.93 Na verdade, não só
os animais, como tudo aquilo que perece libera o seu uku dubu, e são estas “imagens” que
formam o mundo dos mortos: uku dubu das plantas, das caças, e mesmo dos objetos.
Também entre os Yanomae, “tudo aquilo que existe ou possa vir a existir possui uma
existência paralela no mundo dos espíritos sob a forma de utupë” (Smiljanic 1999: 58-59).
Componente imaterial não exclusivo, essa imagem vital de outros seres pode por vezes
agência, utupë confunde-se com o conceito de noremi, um advérbio que se aplica a toda
xamânico. Nos cantos xamânicos as imagens vitais dos espíritos animais são invocadas e é
com estas “imagens em ação” que os xamãs estão a interagir em sua prática (Guimarães
2005a: 155-n.41). Esses utupë são o conteúdo das visões xamânicas por excelência: pelo
uso da yokoãna, o xamã se torna apto a interagir com o bei a në utubi de outros seres. De
yanomami para a distinção entre uma realidade profana visível a todos e uma realidade
visível apenas aos xamãs. (loc.cit.). Bei a në utubi refere-se, por exemplo, aos ancestrais
mitológicos em sua relação com as espécies atuais e, mais do que imagens, revestem-se do
sentido de “verdadeiros animais”. Kopenawa, referindo-se a estas imagens utupë diz que
93
Embora sejam capazes de agredir ao Sanumá que desrespeita um tabu alimentar, estes uku dubu podem
ser mortos, o que, para além da aparência animalóide também os diferencia do restante dos espíritos.
94
Noremi se liga ainda a ações que poderíamos pensar como de representação: um simulacro, figuração
ritual, retórica, etc. (Albert 1985: 149).
74
elas seriam “os representantes” dos animais (Albert & Kopenawa 2003 :73).
espaços paralelos por onde viaja com o auxílio de seus espíritos, e nisto reside a
narrativas míticas, os xamãs não estão apenas recontando histórias que ouviram: seu “saber
falar” relaciona-se diretamente ao fato de que podem ver estas imagens ao mesmo mesmo
tempo em que são vistos por elas. Ver e ser visto, significa, neste contexto, que o xamã é
capaz de estabelecer relações subjetivas com outras espécies de seres, e esta é a base de
imanente, sobretudo naquilo que há de fluxo comunicativo, pois ela é o componente que
Bei a në rishibi
rishibi dos Yanomae (também chamado de pei noreshi, entre os Yanomami, e nonoxi entre
se de um indivíduo animal específico, ao qual a pessoa tem seu destino intimamente ligado
– eles nascem, se desenvolvem e morrem simultaneamente – de tal maneira que aquilo que
ocorre com um, tem conseqüências imediatas para o outro, e qualquer coisa que venha a
gêneros clara: usualmente, o duplo animal feminino é algum animal terrestre ou aquático,
95
Sobre a conformação desses espaços paralelos cf. Smiljanic 1999; Guimarães 2005a.
96
Conferir Viveiros de Castro 1998, 2002.Sobre as bases subjetivas do conhecimento xamânico
97
Nonoxi em sanumá também designa a sombra da pessoa, e o noreshi em yanomami também é usado para
referir-se a imagens como fotografias, desenhos, etc. V. Kelly 2003: 72; Guimarães 2005: 157-161;
Ramos 1990: 191-193.
75
pessoa a pessoa, entretanto.98 Entre os Sanumá, os homens possuem como duplo animal
(criatura perigosa, com corpo de cobra e cabeça grande, relacionada às mulheres altas e
que brigam muito (Ramos 1990: 191; Guimarães 2005a: 158). Percebe-se assim, como a
relação entre uma pessoa e seu bei a në rishibi é tão estreita a ponto de compartilharem
inclusive alguns traços físicos e/ou morais. Uma mulher que tem como duplo-animal um
veado, possui as pernas longas, e os olhos claros, enquanto um homem que tenha a harpia
por alter-ego animal será de baixa estatura, a pele clara e as arcadas superiores
Entretanto, ainda que ontologicamente contíguos à pessoa – afinal, são um dos seus
rishibi de uma pessoa sempre vive em regiões longínquas e desconhecidas, habitadas por
apesar do forte vínculo (ou talvez justamente por ele) repousa uma regra de evitação entre
a pessoa e seu rishibi: todo contato entre eles, mesmo um olhar, poderia levar à morte da
pessoa, e por isso também o consumo de caça da mesma espécie que seu duplo animal está
proibido (ibid.:157).
mate seu duplo por acidente, mas traz, obviamente, uma série de implicações para as
98
Esta transmissão genealógica abriu espaço para uma discussão sobre o caráter totêmico ou não destes
duplos animais (Lizot 1984). Ramos (1990:192) no entanto parece negar mesmo o aspecto genealógico,
afirmando que o nonoxi sanumá não é herdado dos pais e nem pode ser mudado, para ela trata-se,
justamente de um dos elementos de individualização entre os Sanumá. Mas mesmo autores que afirmam
seu caráter genealógico negam contudentemente a hipótese de alguma associação totêmica: justamente
por serem marcados genericamente, não há como formarem classes matrimoniais, não se prestando a
nenhum outro tipo de arranjo sociológico, afora o das relações inter-tribais como a ser visto (Albert
1985:154-155).
76
caminha pela maloca sem demonstração de medo, por exemplo – é suspeito de ser o
rishibi de alguém, ou um espírito disfarçado, e deve ser evitado: ele não é morto, e muito
menos comido. Aquele que mata, ainda que por engano, o alter-ego de alguém que vive
distante, deve se submeter à mesma reclusão ritual do matador (Ramos 1990: 192).
De acordo com os Sanumá, os duplos animais não vivem como os animais yaropë,
“eles se reúnem e fazem casas como a dos Sanumás, em lugares inóspitos que não são o
habitat de animais de caça”100 (Guimarães 2005a: 159). Os duplos animais das mulheres,
por exemplo, não são propriamente animais, mas criaturas da floresta do tipo sai de (ibid.:
158). Entre os Yanomae, explica Albert, a relação que liga uma pessoa ao seu duplo animal
não é pensada tendo por referência o animal propriamente dito – seu invólucro corporal,
mas com o rishi a deste animal. O animal rishi a se apresenta com o mesmo aspecto e
carne” –, porém ele é mais branco e brilhante, ele é o “corpo espiritual do animal”. Esse
Guimarães (2005a: 157) utiliza a feliz expressão “corpo à longa distância” para
alteridade interna à própria pessoa, o bei a në rishibi remete a uma espécie de relação de
identidade exteriorizada. Albert (1985: 151-152), comentando a força do vínculo que une
uma pessoa ao seu análogo animal, acrescenta um comentário nativo no qual é dito que o
99
A distribuição é recíproca: se os duplos animais de uma certa comunidade habitam a floresta em torno da
comunidade y, os duplos animais desta comunidade y habitam o entorno da comunidade x.
100
Um comentário nativo acrescenta que os duplos animais, no entanto, não choram a morte de seus
parentes, esta é uma prerrogativa que só os sanumás apresentam (Guimarães 2005a: 159). Uma
observação semelhante é constatada por Vilaça entre os Wari'. De acordo com estes, os animais não
choram nem comem seus mortos, porque “todos os animais dotados de espírito têm o dom de não
perceber a morte”(Vilaça 1998: 1,2)
77
envelope corporal (bei sikë) tem uma existência sem importância (bio), enquanto o
verdadeiro corpo (bei õshi) está longe, é o duplo animal (bei a në rishibi). Tendo um
pode ser este precipitado de memória singularizado senão o “verdadeiro corpo”? Mas não
deixa de ser notável, que este corpo seja um corpo animal. Pareceria justamente que
enquanto a alma é sempre e em toda parte humana, o corpo animal é o modelo por
Bei wãha
bei, indica o nome próprio e pode ser pensado como parte constitutiva da pessoa (Albert
1985: 395 n.25). Assim como o bei a në ũtũpi e outros componentes da pessoa, o nome
como alguns sai töpo, após ouvirem um nome próprio pronunciado em voz alta, o anotam
o adoecimento, e até mesmo a morte, daquele que teve seu nome raptado (Guimarães
2005a: 162). Não por acaso, repousa sobre os nomes próprios yanomami uma regra geral
de evitação.
As crianças yanomami são nomeadas entre um ou dois anos. Esse nome, dado
preferencialmente por seus pais ou avós, pode fazer referência a circunstâncias e lugares
101
Viveiros de Castro comentava esta dupla atração entre corpos animais e almas humanas, em um contexto
perspectivista: “se as almas dos animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana, é
bastante lógico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou
como entrando em um corpo animal, de modo a poder ser eventualmente morta e comida pelos viventes”
(2006: 330). No caso yanomami isso é mais radical, pois com o duplo animal, a possibilidade de uma
pessoa ter seu corpo animal morto e comido por um outro humano está dada desde o seu nascimento.
78
aleatoriedade extrema. O nome da criança é público e seu uso é livre, mas uma série de
pessoa ou de seus parentes próximos, que tampouco podem eles mesmos pronunciá-lo. 103
Faz-se o uso então da tecnonímia, referindo-se à pessoa a partir de seu laço com algum
parente jovem – pai de fulano, irmão de sicrano, etc. – ou ainda pelo uso dos termos de
parentesco.
principalmente quando feita por aliados. A evitação do nome próprio dos parentes
próximos e o seu próprio, por sua vez, parece encontrar justificativa em uma preocupação
com a morte: pronunciar o nome de um parente é apressar sua morte, e mais ainda quando
refere-se ao seu próprio nome. Do mesmo modo, repousa sobre o nome dos mortos uma
interdição ainda mais forte, neste caso, sob o risco de provocar o retorno de um fantasma
que evita a todo custo a repetição de nomes – serve mais à individuação do que à
102
Ramos (1990: 240-241) descreve uma técnica de nomeação entre os Sanumá – que não encontra
correspondência nas etnografias sobre os outros sub-grupos –, chamada “fazer o cócix”: “quando cai o
cordão umbilical de um bebê, menino ou menina, o pai vai à mata procurar um animal […] para dar um
nome ao filho. No processo de receber o nome do animal, a criança também recebe um espírito desse
animal, um uku dubu que lhe entra pelo cóccix, humabï, e que fica com ela pelo resto da vida”. Esse
espírito protegerá a criança contra espíritos malévolos (meini dïbï), e serve de estímulo ao crescimento,
sobretudo, é a associação com este espírito humabï que impede que a alma da criança retorne à aldeia dos
mortos, fixando-a no corpo.
103
Os Yanomami recebem ainda uma série de apelidos ao longo da vida, usualmente jocosos ou ofensivos,
cujo uso também é restrito.
79
escolhas que se valem ao chamar e nomear alguém, e não no nomeado. Ramos (1990: 240)
também argumenta que o nome próprio é aquilo que há de mais próximo ao que se pode
identificação pessoal: uma pessoa (adulta) não pode nunca proferir seu nome próprio, este
é sempre uma marca que lhe chega por outros. Trata-se portanto de uma individuação que
deve necessariamente passar pelos outros. A conjunção da singularidade que é o bei wãha
com o próprio sujeito que o sustenta – e isso inclui seus parentes – deve ser evitada sob o
risco de morte. A singularidade objetiva do nome só pode ser empregada por outros
sujeitos, é como se uma pessoa não pudesse ser socialmente um indivíduo senão por e
para outros – justamente os parentes classificatórios e aliados, que fazem uso do nome
(Albert op.cit.: 402). O nome próprio, parece assim selar uma concepção de pessoa que,
***
Penso ser possível retomar alguns fios do que foi escrito neste capítulo,
alinhavando-os com discussões mais gerais sobre espíritos, animais e humanos nas sócio-
cosmologias ameríndias – tal como formuladas em Viveiros de Castro (2006) 104 e Kelly
(2001) –, de modo a extrair ainda outras implicações da relação entre yai thëpë, yaropë e
yanomami thëpë para a definição da pessoa entre os Yanomami. O que interessa aqui é o
104
O citado artigo traz em seu título, “A floresta de cristais”, uma imagem oferecida pelo xamanismo
Yanomami e a narrativa de Davi Kopenawa sobre os animais ancestrais e os espíritos xapiripë – a que já
me referi aqui – é componente central na argumentação do autor. Mas a referência a este artigo parece
importante sobretudo por encontrar nele um desenvolvimento ímpar do que se formula como o
perspectivismo ameríndio
80
aqui, não apenas com uma dialética entre convenção e a invenção, mas ainda outra, “entre
o ver e o comer” (Mentore 1993: 29 apud Viveiros de Castro 2006: 330). Neste quadro, os
yai thëpë são seres marcados pela invisibilidade – relativa, convém não esquecer –, ao
mesmo tempo que definindo uma posição de super-predadores, já que são, por definição,
incomestíveis.105 Talvez se pudesse pensar que a tradução mais segura de yai thëpë seja
mesmo “aquilo que não se come”, antes que espíritos. Como ocupar a posição de predador
é necessariamente estar investido de agência, os yai thëpë apresentam-se como seres super-
desses seres de ver sua perspectiva englobada, e a metamorfose daí resultante. Os yaropë,
experimentado pelos Yanomami – o invólucro corporal dos animais que se dão a conhecer
hoje – e são definidos justamente por sua posição de presa. Desprovidos de agência, os
yaropë são sempre os objetos em uma relação, seja como mediadores entre os homens e os
espíritos animais no xamanismo, como caça e alimento nas relações intra-sociais ou ainda
Tanto yai thëpë quanto yaropë definiriam posições não-reversíveis: um yai thë
nunca é presa, e nem tampouco um animal, yaro a, possui alma que o torne capaz de impor
105
Perguntei a um jovem Yanomama que me contava que yei thëpë referia-se também a bichos como
escorpião, aranha, cobras, se uma cobra que se come (algumas espécies podem ser comidas
eventualmente) ainda poderia ser considerada yei thëpë, e após alguma hesitação, ele concluiu que se ela
era comida, não podia ser yei thepe. Sobre o lugar dos espíritos na cadeia trófica entre as populações
indígenas na Amazônia, Viveiros de Castro (2006: 21) escreveu: “Podemos assim estender o escopo do
continuum amazônico de comestibilidade (no que concerne às fontes de proteína animal) proposto por
Hugh-Jones, fazendo-o ir dos peixes aos espíritos, e não apenas aos seres humanos.”
81
os deuses […] nunca são devorados (nunca são presa), eles são puro sujeito.
[…] No outro extremo encontramos a natureza, ou seja, animais sem alma,
plantas e coisas que são sempre presa ou puro objeto (o que não significa
que não sejam submetidos à dinâmica do perspectivismo: o sangue humano
pode ser o cauim do jaguar) (2001: 100. grifos do autor).
cultura, entendido fundamentalmente como personitude e que pode muito bem ser
associado aos próprios Yanomami thëpë. Trata-se de um entre lugar: os Yanomami são
presa (dos espíritos) e predadores (dos animais); possuem uma forma corporal visível e
podem ter “olhos de espíritos” e estão aptos a interagir com estes seres invisíveis,
transformando-se. Este entre lugar, expressão da possibilidade de ser uma coisa e outra,
parecer ser o que define o domínio da personitude, e aqui continuo a seguir Kelly:
“cultura”), a verdade é que outros seres, além dos próprios Yanomami, também podem ser
pessoas. Lembremos que estamos diante de um mundo onde a cultura é da ordem “dado”:
refere a seres específicos, tampouco delimita uma classe restrita ou uma etnia. Marca de
queixada, yanomami anta, yanomami veados que surgem nos mitos dos ancestrais animais:
categorizando-o, as distinções yanomami entre yai thëpë, yaro pë e yanomami thëpë não
são categorias classificatórias tais que espíritos, animais e humanos – mas as marcas de
imaginação:
certamente porque foram também uma de suas inspirações: os yaropë como modelo para o
corpo e referência de visibilidade, os espíritos (yai thë pë) e almas (alguns dos
106
No sentido que confere Wagner, por oposição a uma simbolização convencionalziante: “A conventional
symbolization objectifies its disparate context by bestowing order and rational integration upon it; a
differentiating symbolization specifies and concretizes the conventional world by drawing radical
distinctions and delineating its individualities”(1981: 39).
83
momento de transparência mítica, em que tudo e todos seriam cogniscíveis uns aos outros
opacidade – o corpo, como pele – é a instauração de uma especiação, que tem como
tatus e antas. Mas a opacidade não é total, e como diz o autor: “o problema do infinito nas
diferentes yai thëpë, situando-se fora deste campo da visibilidade ordinária, são a
manifestação que comprova que o fluxo comunicativo não foi totalmente interrompido,
sua forma animal visível, como descrito pelos Sanumá (K.Taylor 1976) – da instauração de
dose de casualidade suficiente entre convenção e invenção,” tal como sugerido por Wagner
Yanomamis, espíritos e animais – uma tal dose, tendia mais à invenção e à diferenciação –
humanidade como imagem moral do homem ganha proeminência lado a lado à convenção,
ao mesmo tempo que os espíritos e animais cedem lugar aos inimigos e aliados.
84
vida moralmente produtiva e livre dos perigos e transformações indesejadas, tal como
usualmente o contexto invisível da ação diferenciante (posto que as relações são dadas),
nesta esfera de interação, essas relações 'dadas' são retomadas como aquilo a ser
risco a própria base convencional yanomami (Wagner 1981: 70-71). Os diferentes grupos
locais são, portanto, expressão de um ideal de vida “entre si”, continuamente buscado e
inimigo, o que torna impossível pensar as relações sociais fora de um quadro de relações
de predação.
mais hostis na medida em que se passa às esferas mais exteriores, ou seja, em que se
substituídas por agressões simbólicas Esse espaço sócio-político diz respeito às relações
85
‘intra-étnicas’, especificação que implica, por si só, o fechamento da taxonomia aberta pela
nomenclatura ontológica entre seres humanos, espíritos e animais comestíveis. 107 Aqui,
–, ainda mais, todos são Yanomami thëbë yaye, “seres humanos verdadeiros”, criados por
Omama. Entretanto, isto não significa que todos sejam igualmente humanos. Embora
ontológicos – partilhando em larga medida dos mesmos afetos e moralidade, ocorre aqui
uma espécie de gradação: se todos são humanos, ninguém é, contudo, mais “moral” – e,
em certo sentido, mais humano – do que o grupo de parentes. De outro modo, se no limite
relações marcado pela predação generalizada: a “aliança reiterada e a troca simétrica são
de Castro 2002: 175). Entretanto, ainda que o espaço político yanomami seja sócio-
centrado, seu vetor determinante operaria de fora para dentro, uma vez que o corpo de
parentes não seria senão uma estabilização particular da diferença dada – “é a predação
que é generalizada, não o parentesco; ela é a Relação” (ibid.: 165). Pode-se dizer que o
como não há ausência de relação, mesmo os grupos desconhecidos são, por princípio,
‘relacionados’, isto é, inimigos. 108 É contra esse fundo genérico de inimizade que os
dos grupos locais. Tal como proposto por Albert (1985: 189-221) o espaço sócio-político
Albert, esse tipo de agressão não tem muitos efeitos cognitivos ou práticos no sistema
São tomadas como o conjunto dos inimigos antigos ou virtuais – nabëbë thëbë
109
Alès também apresenta uma caracterização semelhante para os Yanomamɨ, observando ainda que mesmo
as esferas mais interiores comportam sua própria distinção “nós x outros” (2006:52-54).
87
1985: 219-220). Entre os nabëbë thëbë wathoho são usuais as agressões simbólicas
recíprocas, tal como epitomizadas pelo xamanismo agressivo: os xamãs enviam pelo ar os
“filhos dos espíritos maléficos da natureza”, que, por sua vez, atacam com suas armas a
Nesse caso, ele é direcionado contra o grupo dos ‘inimigos atuais’, os nabë thëbë. Entre as
mulheres), seja no econômico (os roubos e as pilhagens ocasionais), seja ainda no das
incursões guerreiras esporádicas, cujo aspecto recíproco é marcado pelo próprio verbo
1985: 217-218; Duarte do Pateo 2005: 3). Nas relações entre os nabë thëbë é também
incursões secretas, individuais ou coletivas, nas quais substâncias letais são insufladas
sobre a vítima (Albert op.cit.: 283, 287). Há ainda um segundo tipo de feitiçaria – dita por
intermediário, alguém que, possuindo acesso facilitado à vítima, deve recolher os traços
por ela deixados sobre a terra, que serão então oferecidos à manipulação mágica da parte
inimiga.110 Trata-se de uma feitiçaria que ocorre na “franja cinza” entre a inimizade e a
aliança, uma vez que o intermediário da agressão deve ser encontrado na esfera dos
110
Esta feitiçaria consiste na manipulação, junto com substâncias de feitiçaria, da terra da pegada da vítima
ou de sua “trouxinha” de tabaco, recolhidos por um aliado por ocasião de visitas. Ver Albert 1985: 268-
271.
88
275, 309).
um aliado também será tomado como aliado, porém do tipo bio.111 A relação com esses
aliados de segundo grau, entretanto, é marcada pela ambigüidade e pela incerteza – são
enquanto os aliados yayë praticam apenas formas não letais de agressão (Albert 1985: 208-
211). Entre aliados nohimotimë thëbë se estabelece uma intensa interação ritual e festiva
discursivas.
A imagem da moralidade que nos foi indicada pela mitologia de Omama se destaca a
partir dessa esfera de relações entre aliados e co-residentes. Passo à apresentação de alguns
criação dos homens por Omama como fio condutor. Destacarei sobretudo os traços
característicos do ideal de vida produtiva “entre si” dos co-residentes kamyieaka thëbë.
3.1. “Omama nos deu uma nova pele”: a fabricação dos corpos
surge nas etnografias Yanomami principalmente a partir da consideração das teorias sobre
111
A mesma distinção é utilizada no nível do parentesco, marcando os parentes “verdadeiros” yayë em
relação àqueles bio, “sem razão”, “à toa”, os parentes classificatórios.
112
Em um texto seminal, Seeger, da Matta e Viveiros de Castro (1987 [1979]) destacaram a importância da
corporalidade nas sociedades ameríndias: a socio-lógica ameríndia apoiaria-se sobretudo em uma fisio-
lógica, e as diferenciações e laços entre grupos e pessoas dariam-se por um compartilhamento de
substâncias. Desde então, diversos trabalhos focaram a fabricação do corpo nas sociedades ameríndias:
um corpo que é construído ao longo da vida pelas relações sociais (cf. Vilaça 1998, 2002; Gow 1991;
Conklin 1996; McCallum 1996, 2001; entre outros).
89
corpo iniciada pela concepção, buscam o controle e a estabilização de uma forma corporal
específica. Segundo Albert (1985: 592), a teoria fisiológica yanomami postularia uma
relações. Nesse sentido, os corpos, tanto quanto os grupos ou as classes, não seriam
desenvolvimento biológico dos seres humanos repousa de fato sobre uma teoria implícita
sangue está ainda relacionado à animação do corpo e à imagem vital bei a në utupë de cada
pessoa, podendo ser pensado como o “elemento de ligação entre corpo ontológico e corpo
também pela putrefação do corpo –, o sangue é contraposto aos ossos, outra substância de
113
O autor está se opondo aqui à idéia de “grupos corporados” tal como trabalhado por Chagnon (1976)
entre os Yanomami.
90
associados à forma espectral da pessoa por conta de seu aspecto imputrefável (Albert
1985: 348-350, 433). Seguiremos agora as articulações a que são submetidas essas duas
Concepção e nascimento
são distintos por sua densidade: o esperma denso e coagulado é contraposto ao sangue e ao
leite materno, considerados diluídos e ralos (Alès 2006: 97). Essa distinção tem
substâncias e características.
Para a constituição do feto, são necessárias muitas relações sexuais, das quais
recipiente a ser preenchido pelo esperma masculino, que forma progressivamente, por sua
os Yanomami a concepção é literalmente um processo de fabricação 116 (Alès 2006: 196; cf.
também Albert 1985: 431; ver ainda, Lagrou 2007, para os Kaxinawa; Van Velthen 2003,
para os Wayana, dentre outros). A mãe, ela própria tomada por uma espécie de invólucro, é
substância mole intra-óssea chamada de bei õshi, de onde deriva a idéia do ‘corpo
ontológico’ interior.
Os alimentos consumidos pela mãe, sobretudo as carnes que lhe são oferecidas pelo
pai da criança, também possuem um papel importante nesse processo, sendo responsáveis
pela transformação do líquido seminal em carne (Alès 2006: 196). Na circulação dos
vasta e duradoura do que aquela subsumida pelo sangue e esperma. Entretanto, não é
qualquer alimento que poderá servir à constituição do novo corpo: durante a gravidez,
tanto a mulher quanto seu marido devem evitar alguns alimentos cuja ingestão traria
conseqüências funestas para o feto. Entre os Yanomamɨ Centrais, por exemplo, o consumo
de peixes considerados grandes é proibido uma vez que o princípio vital destes poderia
apoderar-se do feto, levando-o à morte. O marido compartilha não apenas das restrições
como também das preferências alimentares da mulher enquanto esta se encontra grávida
2006: 185), no sentido preciso de que o gênero, os traços físicos e outras qualidades da
criança – como, por exemplo, o duplo animal – são transmitidas aos homens pela linha
paterna e às mulheres pela linha materna, isto é, sem a interferência do outro gênero. O
fator determinante para o sexo da criança é a capacidade do pei pufi (bei bihi, entre os
maior pujança ocasional do pufi feminino no período de concepção: quando a mulher está
em cólera e agressiva, seu pufi se enche de calor e o sangue em seu coração entra em
ebulição e penetra no feto, transmitindo desse modo seu próprio sexo à criança em vias de
idealmente esperado das mulheres, que devem se manter calmas (okewë) e reservadas
fabricação do corpo intra-uterino –, o sangue feminino, por sua vez, exerce papel
contrações, uma mulher deve dirigir-se à floresta na companhia de outras mulheres (mãe,
irmã ou cunhada), que irão auxiliá-la neste momento. O sangue é condição imprescindível
ao nascimento; é o seu escoamento que permite que o bebê saia do corpo da mãe (Lizot
1988: 86). O “receptáculo feminino” tem ainda um forte significado para a articulação do
parentesco: uma vez que participam da constituição do feto diferentes homens, o vínculo
materno é condição para a germanidade. Grupos de irmãos filhos de uma mesma mãe
constituem uma unidade solidária – masi –, informada pela referência a uma “mesma
93
Nos primeiros anos de vida, a contigüidade física entre a mãe e o filho mantém-se
em um nível próximo ao que existia ainda no útero: a criança está sempre dependurada
junto ao corpo da mãe e só depois dos quatro anos deixa de dormir junto com ela
ganhando sua própria rede (Lizot 1988: 87-88). Como observa Alès (2006: 274), “as
crianças nos seus primeiros anos, como em muitas outras sociedades, têm uma existência
ainda incerta, elas não são ainda totalmente indivíduos (eles ainda não possuem nome
pessoal), […] continuam ligados à sua mãe e sua participação social futura está em
latência”. Um recém-nascido ainda não tem seu corpo estabilizado, este é demasiado mole
e se encontra, por conseqüência, mais sujeito aos ataques de seres sobrenaturais. Uma série
de cuidados deve, portanto, ser tomada. Tais cuidados incidem principalmente sobre os
hábitos alimentares dos pais da criança: a mãe deixa temporariamente de comer peixe
caribe para que a língua do bebê não apodreça; o pai fica formalmente proibido de comer
carne de tamanduá – o que provocaria a morte do filho – e também de anta, que causaria
Lizot observa que quando da morte de alguma criança pequena, há uma completa
ausência de caça em seu funeral, contrastando com o ritual funerário destinado aos adultos
falecidos, nos quais a oferta de carne aos convidados e oficiantes é parte obrigatória e
essencial (ibid.: 96). Na verdade, tudo se passa como se no funeral infantil fosse
imprescindível dissociar a caça dessa morte prematura, como se – e aqui tomo liberdade de
desenvolver a observação de Lizot – fosse necessário produzir uma diferença onde ela não
é tão clara: distinguindo entre o corpo da criança e o corpo do animal. Lembremos que já
117
Os filhos de mulheres irmãs entre si, também são considerados de uma mesma vagina . Daí a preferência
pela poliginia sororal, que permite aos Yanomami a construção de um grupo de germanos unidos, uma
fratria forte (Alès 2006: 199).
94
1987 [1977]: 32; ver também Descola 2001: 108; Vilaça 2005: 450). De fato, entre os
ainda em “transição” e não um ser completo, podendo ser morto se tiver alguma
criar uma criança ou mesmo se não o desejarem. Depois de o bebê ser amamentado, no
entanto, o infanticídio deixa de ser uma possibilidade (Lizot 1988: 16). O alimento
parente. A estabilização dessa forma, ou seja, a negação dos outros corpos possíveis, não é
algo que ocorre em um repente ou através de uma única mediação. São necessárias uma
série de relações e cuidados, em um processo vital que talvez resumisse o que se poderia
de seu sangue, bem como do endurecimento de seus ossos. As crianças (oshe thë) possuem
a carne branca (iyẽhikë au) porque seu sangue é pouco abundante e ainda em formação –
ele é iyẽ ehereshi, “diluído”. Pouco a pouco pode se observar um aumento do calor
massa muscular. Esse período na vida de uma pessoa chama-se witarayu, literalmente
“engorda-se”. É nessa fase que as crianças começam a desejar a carne de caça, um claro
indício de humanização. Essa mudança alimentar ocorre apenas quando a criança começa a
andar, o que atesta um maior endurecimento e enrijecimento dos seus ossos e de seu corpo.
Essa estabilização mínima do corpo é necessária para que se possa comer de outros corpos
sem o risco eminente da transformação (Albert 1985: 606, 607 n.58). Ademais, o desejo de
carne também significa a entrada da criança no ciclo mais amplo das reciprocidades
pessoa atingem seu ponto máximo: na “adolescência” (hɨia thë e moko thë), a corpulência
torna-se ideal e a alimentação passa a ter por base a carne. Seu sangue agora está vermelho
abundância de modo que o volume de sangue não passe da medida limite, arriscando
que o sangue da menina, ralo na infância, adquiriu maturidade e densidade (Albert 1985:
572-573; Alès 2006: 195). Tão logo surjam os primeiros sinais de menstruação, a menina
deve avisar à sua mãe, que então irá construir um abrigo ao fundo do fogo doméstico –
utilizando galhos de uma planta chamada por sua floração púrpura “folhas da
menstruação” (Lizot 1988: 90) –, no qual a jovem deverá permanecer por alguns dias,
seus ornamentos: cordões de algodão que mantém ao redor da cintura e dos membros
inferiores e superiores, e também os bastonetes que utiliza nas orelhas e no rosto. Nas
palavras de Lizot (1988: 91), ela deve “renunciar a todos os elementos culturais ou
relacionados às plantas cultivadas”: usa inclusive uma rede de cipó, e não de algodão, e só
pode usar o tabaco se ele for nosi, ou seja, insosso e seco de tanto já ter sido chupado. A
jovem obedece a restrições alimentares severas, comendo uma única refeição frugal de
banana e raízes. Além disso, deve seguir uma estreita etiqueta que regula seus “modos à
96
mesa”, valendo-se de pauzinhos como talheres para se alimentar – já que não pode tocar
com as mãos os alimentos. Ela também deve usar uma varetinha para se coçar, evitando
tocar sua própria pele. E, sobretudo, não deve deixar seu isolamento de maneira alguma,
nem mesmo para realizar suas necessidades fisiológicas, defecando sobre folhas com as
quais faz um embrulho que sua mãe jogará fora depois. De modo geral, a jovem reclusa
deve procurar se movimentar o mínimo possível, mantendo-se sempre com o corpo rijo e
os braços cruzados ao redor do corpo, abraçados aos seios (Albert 1985: 576-579; Lizot
1988: 91).
sangue e, portanto, “amolecido”, suscetível a alterações. Por isso também sua mãe
encarrega-se de manter o fogo sempre aceso perto dela, para acelerar o “secamento” do
sangue de sua vagina. Os Yanomae dizem que se a jovem fizesse algum movimento
transformações menos drásticas: o contato direto com o solo lhe deixaria as nádegas
“murchas” e lhe alongaria os lábios da vulva; se não mantiver os braços cruzados, seus
seios cairiam, e assim por diante. A utilização de ornamentos ou o uso das mãos para
coçar-se sem mediações, podem lhe causar lesões cutâneas profundas e incuráveis
(washia), e, caso a água toque seus dentes, estes cairiam abruptamente. A jovem deve
Albert (ibid.: 583) observa como boa parte das consequências derivadas da
inapropriado da reclusão resulta em uma aceleração da morte. Lembremos do que foi dito
sobre o sangue ser o principal regulador do tempo linear individual entre os Yanomami: se
sangue; os anciões possuem o interior seco, seu sangue está em decomposição (Albert
1985: 606). A reclusão da jovem púbere, portanto, busca não apenas conter a
maleabilidade do corpo provocado pelo excesso de sangue, como também impedir seu
escoamento desmesurado, pois isto tornaria a jovem demasiada seca e poderia provocar
sua morte prematura. O ponto ótimo do corpo Yanomami é, como já dissemos, em algum
não apenas para a jovem, mas para toda a comunidade (Albert 1985: 607). O fluxo
considerado poluente; se não for contido e mediado pela reclusão, afirma-se que
despertaria a ira da árvore da chuva Maahi, ser mitológico que se encontra na junção do
céu com a terra, responsável por todas as águas. Ao redor de Maahi, há um mundo de
escuridão e umidade que se espalharia sobre a terra caso o rito de puberdade não fosse
cumprido: furiosa e ofendida com o cheiro do sangue, essa árvore mitológica inundaria a
terra e levaria a todos com a força da água (ibid.: 575 n.11). De acordo com os Yanomamɨ,
a comunidade seria coberta por uma água que brotaria incessante e violentamente do chão
e a terra mole faria afundar a todos, que seriam em seguida petrificados no mundo
sol.
sangue, é, por conseguinte, medida necessária não apenas para a sua proteção, mas de toda
1985: 603). De fato, o sangue em geral – e não apenas o menstrual –, quando fora do
corpo, é dotado de um poder deletério. O sangue da caça, porque associado à imagem vital
inimigo morto (ibid.: 574). Na verdade, sangue menstrual, sangue da caça e sangue
O excesso de sangue no corpo da jovem faz com que ela seja considerada “crua”, o
quê, em uma sociedade que valoriza ao extremo o cozimento como forma de socialização e
“culturalização” e cujo horror diante de uma carne mal-passada está diretamente associado
afirma Albert, mais do que por sua crueza, é por seu excesso de mutabilidade que a jovem
púbere ameaça a si e ao resto do universo (1985: 585). O sangue traz consigo um grande
potencial transformador, como já indicavam os riscos que corre a jovem que não cumpre
uma jovem, o pai comenta com seus companheiros para alertá-los da situação : iba tuushia
a në aibirayoma, “minha filha tornou-se outra” (ibid.: 580). Não ao acaso, a fúria de
Maahi e a instauração do mundo úmido e podre é seguida no mito pela criação dos
canibal – todos eles figuras de alteridade (Lizot 1988; Albert 1985: 592, 750-772).
secar: ela emagreceu e seu corpo está “vazio”. Usualmente, após um semana a reclusão
chega realmente ao fim. A jovem é pintada com urucum por sua mãe, que privilegia os
Embora já tenha saído da reclusão, ela ainda não é considerada completamente seca: a
pintura vertical – em contraste com os motivos circulares e curvilíneos mais usuais entre
os Yanomami –, opõe-se à maleabilidade que ainda é imputada ao seu corpo e visa ajudar
no processo de fixação,118 que se completará em poucos dias (Albert op.cit.: 581). Entre os
Yanomamɨ uma cerimônia envolvendo toda a comunidade marca o fim do ritual. A jovem
é levada à floresta por algumas mulheres, onde tem seu cabelo cortado e sua pele decorada
com urucum, além de receber diversos ornamentos de palmeiras novas e flores. No seu
retorno ao shapono a s outras pessoas também estão enfeitadas e o clima é de festa: ela
passou da categoria de menina verde, ruwë, para madura, tathe (Lizot 1988: 93).
118
A tintura com urucum é pensada em correlação com um processo de “reculturação” e por vezes inclusive
de um cozimento. Ver p.ex. Albert 1985:414 n.5.
100
Unokaimu:ritual de matador119
menstruação feminina é flagrante: ela é marcada por uma defecação de sangue que
ponto máximo (Albert 1985: 600-601). Tal rito, entretanto, é pouco comentado na
hematofagia. Após executar seu inimigo, seja em um ataque físico ou pelo recurso à
feitiçaria ou ao xamanismo, o guerreiro fica cheio do sangue de sua vítima: é esse “estado
119
O unokaimu é na verdade a etapa de fechamento de um rito mais elaborado que é o rito de guerra. Sua
abertura, watubamu, é realizada antes de uma incursão guerreira e visa preparar os guerreiros,
assimilando-os à imagem vital dos grande pássaros (Albert 1985: 352-381). Mas interessa-nos aqui,
apenas esse fechamento, que é o rito realizado após a morte de um inimigo, mesmo quando trata-se da
morte por xamanismo, feitiçaria, ou agressão do duplo animal. Mas é importante ter em mente que essa
associação à imagem vital dos pássaros necrófagos, explica também o estado de homicida, e possibilita a
“consumação” dos traços do morto.
101
submetesse aos rituais de reclusão. A qualidade poluente desse sangue é reforçada ainda
pelo fato de ser uma substância originária de um inimigo (Albert 1985: 342-347, 351).
semelhantes aqueles que encontramos nos ritos de puberdade (ibid.: 365). O homicida
deve ficar isolado em sua seção da casa coletiva, mantendo-se o máximo possível imóvel e
em postura ereta, com um fogo constantemente aceso ao seu redor. Além disso, deve
abster-se de se tocar diretamente e deve falar o mínimo possível. As carnes de caça são
rigorosamente proibidas, assim como os peixes maiores. 120 A suspensão desses interditos
A reclusão ritual do matador e todos os interditos que a cercam buscam uma dupla
demarcação das suas fronteiras corporais individuais,121 evitando tanto o contato com o
possível, portanto, que os traços do morto alojados no interior do corpo do matador entrem
em decomposição e sejam devorados pelas imagens vitais dos hekuras necrófagos que
habitam em seu peito, mantendo sua integridade ontológica e biológica. Terminada essa
morto: cabelos, unhas, coágulos de sangue, etc. Após banhar-se, o matador pode voltar a se
pintar com urucum, mas fazendo uso de um motivo particular: três formas circulares sobre
120
Albert (1985: 370) observa que encontra-se neste rito a oposição simbólica culturalmente fundadora entre
canibalismo e alimentação, que impõe a disjunção simbólica/material entre caça animal e inimigo
humano.
121
Albert (ibid.: 371 n.45) destaca a diferença deste rito para as outras reclusões e para a couvade, pois aqui,
o único afetado pela imagem vital deste sangue é o matador, enquanto nos outros casos há uma
comunicação de substâncias entre marido e mulher, ou pais e filhos, e ainda, um risco maior de
contaminação de toda a comunidade.
102
a testa e maçãs do rosto, áreas por onde a sudorese da gordura podre da vítima é
da gordura. O rito se encerra quando o matador amarra a rede que utilizou durante a
reclusão no alto de alguma árvore – diz-se que para evitar que as crianças a toquem, mas
pela absorção de um sangue exógeno, celebra o início da predação entre os homens. 122
conseqüências nefastas de sua inobservância: após matar o Jaguar, devorando suas vísceras
e cérebro, Tartaruga explode ao atravessar uma ponte sobre um riacho, espalhando pelas
águas todo o excesso de sangue que havia no interior de seu corpo. A imagem vital desse
122
Digo “início” por referência ao jovem que se submete pela primeira vez a um tal rito. Quase todos os
jovens devem se submeter a este rito, bastando, por exemplo, flechar um inimigo já morto por um
guerreiro mais experiente.
103
todo o cosmos, reativado pelos homicídios atuais cometidos pelos homens Yanomami
(Alés 2006: 186-187, 216-217). Essa articulação entre reprodução e predação é explicitada
por Alès:
a estabilização de um corpo ocorre não apenas pela negação de um outro corpo possível,
mas pela destruição de outros corpos efetivo, mais especificamente, do corpo do inimigo.
Mais do que isso, o rito do matador parece lembrar aos Yanomami que a produção de
3.2. “Ele nos recriou e nós pudemos aumentar novamente”: fertilidade como marca de
moralidade
novamente. Contida no mito da queda do céu, essa afirmação nos remete ao tema da
fertilidade do grupo, fertilidade esta que não é outra coisa senão a produção de pessoas, e
tenha gerado frutíferas páginas que demonstram a grande variabilidade das estruturas e
123
Para outras explorações sobre a articulação entre produção e predação cf. Fausto 2001, 2007.
104
organizações sociais das comunidades yanomami, ela não será focalizada na apresentação
que se segue.124 Meu interesse se voltará para o entendimento do parentesco yanomami não
apenas a partir do ponto de vista de sua estrutura, mas sobretudo do de sua fabricação e
consubstancialização.
ponto já estabelecido na etnologia amazônica, resumidos por Vilaça nos seguintes termos:
que vai da alteridade em direção à identidade 125 (Kelly 2003: 96). No idioma amazônico de
consanguinidade:
124
Sobre esta discussão ver: Shapiro 1975; Ramos & Taylor 1979, Ramos & Albert 1977; Lizot 1975, 1984;
Alès 2006. Para uma síntese e comparação do estado atual do tema ver: Duarte do Pateo, 2005: 156-179.
125
Identidade que nunca é de fato alcançada, posto que, como notamos acerca dos constituintes da pessoa,
nem mesmo os indivíduos são exatamente indivíduos “auto identificados”.
105
parentes, nos dois sentidos apontados acima? Em sua tese sobre linguagem e socialidade
para uma vida sociável entre “iguais” (Carrera 2004: 83). Vilaça também sugere a mesma
afirma que o ponto relevante desta ênfase não é a falta de uma teoria genética sobre o
humanidade” (2002: 354). Isto significa que “saber fazer parentesco” é fundamental para
que se possa ser considerado humano, e os Yanomami são mestres neste tipo de feitio. É
seguindo essas duas indicações que proponho entender o parentesco yanomami como um
atributo constituído por (e, não menos importante, constitutivo de) uma imagem moral da
pessoa.126
maciço guianense (ver p.ex., Overing 1975, para os Piaroa; Riviére 1969, para os Trio;
126
Cabe aqui um esclarecimento: usarei os termos parente/parentesco, pra referir-me sobretudo à cognação,
às relações de consanguinidade e ou afinidade real, no interior do grupo de co-residentes. A expressão
corpo de parente refere-se tanto a es conjunto de pessoas, como ao corpo “bloco de afecções” de uma
pessoa específica. Do mesmo modo, sigo uma diferenciação entre os termos sociabilidade para referir-me
às relações de parentesco e aliança no seio da comunidade, e socialidade para as relações sociais em
geral– inclusive de predação.
127
Valendo-se de uma terminologia de parentesco do tipo dravidiano, no qual as marcações de sexo e de
consanguinidade/afinidade são de extrema relevância, os Yanomami são ainda um caso exemplar do tipo
de configuração comum no parentesco na Amazônia na qual essas categorias dravidianas sofrem uma
inflexão a partir de um gradiente de proximidade espacial. V. Albert 1985: 221-235.
106
concebido idealmente, em contraste com o exterior, como uma mônada política zelosa de
uma casa vazia: o silêncio e a ausência de pessoas, não são apenas angustiantes, mas um
índice de doença e morte. Essas habitações vazias ou pouco povoadas remetem a contextos
comportamentos que vão na contramão desta moralidade do parentesco, como espero fazer
residente ser considerado um parente mais verdadeiro do que um “parente” que reside em
domínio exterior ao parentesco, 128 "desafinizando" os co-residentes: o afim real, aquele que
ações (Viveiros de Castro 2002: 123). Albert (1985: 197 n.8) esclarece que os Yanomami
qualificativo yayë, “verdadeiro”, enquanto os outros são designados por bio, que possui o
On notera ici que les affins reales à l'origine des affins classificatoires se
voient également attribuer le qualificatif yayë appliqué aux cognats tandis que
les affins cognats avec lesquels aucune alliance matrimoniale concrête n'est
contractée, auront tendance, à la longue, à se voir reclassifiés comme des
affins bio (ibid.: 223).
128
A afinidade é o exterior do e é exterior ao parentesco. Cf. Viveiros de Castro 2002: 401-456.
107
moralmente como parente, o que inclui relações de cuidado, uso de termos de parentesco e
Yanomami sobre a concepção, sugeri que o nascimento era apenas o início desse processo
de fabricação de parentesco que incide principalmente sobre o corpo. Como observa Kelly
perspectivas via a moralidade de ser humano”, não apenas nos momentos rituais que já
processo: seja pela sua produção, circulação, consumo ou interdição, eles são elemento
que significa dizer que estão impregnados da subjetividade daquela pessoa: “todos os
adquirir sua substância” (Guimarães 2005a: 68). A comensalidade se torna assim um ato de
marca do corpo de quem o produziu. Guimarães observa como a nutrição tem um papel
filho durante a concepção, a consubstancialização do filho com sua mãe se realiza pela
alimentação. É pela mediação do leite materno e do chibé 130 preparado pela mãe que a
criança – a princípio um afim da própria mãe 131 – pode se tornar efetivamente parente
(ibid.: 169). Também entre esposos a alimentação tem um papel fundamental na criação de
129
Ramos (1990: 51.) sugere inclusive que o termo iba nimïpö töpö – um equivalente em Sanumá para o iba
yahitheribë Yanomae – seja traduzido por “os meus comensais”.
130
Chibé é uma mistura de água e farinha de mandioca, muito consumida pelos Yanomami e outros grupos
da região, e uma das principais fontes de hidratação, já que o consumo de água pura é raro entre estes
povos. O chibé possui o mesmo “poder” de produção de parentesco que o leite materno, essa observação
impede uma interpretação que essencializasse as substâncias na fabricação do parentesco: elas são
sobretudo, veículo de relações.
131
Entre os Sanumá, a questão da descendência paterna é mais marcada, chegando a ser tratado como uma
configuração linhageiras, o que torna ainda mais relevante o papel da alimentação pela mãe. V. Ramos
1990; Ramos & Albert 1977.
108
continuado pelo casamento; nele o esposo fornece caça e outros ingredientes coletados à
esposa e à sua família (afins por definição), que lhe retribuem com alimentos preparados.
selvagem praticado por aqueles que têm assim sua humanidade posta em xeque: inimigos,
apropriadamente humano. Os Sanumá, por exemplo, fazem uma distinção entre alimentos
sanumás e alimentos dos brancos – que corresponde à oposição entre alimentos cultivados
(ainda que tenham sido importados dos Ye'kuana ou dos brancos) e alimentos
exemplo – só pode nutrir-se dos alimentos sanumás, sob pena de sofrer metamorfoses
indesejadas. E não apenas o que se come, mas também o modo de comer tem um papel
pessoas pela convivência e tempo despendido juntos. Alès (2006: 170) observa como o
essencial para a fabricação dos vínculos entre um casal, ou entre pais e filhos. É certo que
109
econômico. Quanto mais pessoas puderem ser envolvidas nessa rede de trocas, tanto
melhor: essa partilha não é fundamentada pela idéia de divisão de alimentos, mas pela de
diplomacia entre grupos vizinhos. O chibé sanumá, por exemplo, tem um papel
fundamental para selar relações de paz com os estrangeiros: servido a todo mensageiro ou
latente sempre presente entre estranhos. Guimarães afirma que a bebida permite aos
Sanumá uma “aproximação daqueles que lhe são outros” 132 (2005a: 171). A relevância
ao deixar alguém passar fome – ou, ao contrário, da troca de alimentos – são utilizadas
para indicar relações de guerra ou de aliança. De acordo com Carrera (2004: 233) o verbo
Percebe-se que alimentação e cuidado, por vezes, têm uma extensão semelhante: o
132
Em contraposição a algumas socialidades amazônicas na qual a bebida tem um papel fundamental de
alteração. cf. Lima 2005, sobre a cauinagem entre os Yudjá. No entanto, há um consumo crescente entre
os Yanomami – e Sanumá, principalmente – do caxiri, bebida fermentada importada de seus vizinhos
carib e pemon, sobre o qual não há ainda muitos estudos.
133
A comensalidade também tem um papel fundamental na “domesticação de estrangeiros” como faz saber
Kelly (2003: 130 e passim) ver infra capítulo 4.
110
Carrera (2004: 68) comenta que, ao ouvir uma criança chorando noite adentro, os
Yanomami explicam que ela não comeu o suficiente: seu sofrimento é porque ela ainda
tem fome, pë ohi shoawë yaro . Mas se a alimentação pode ser pensada como uma forma
de cuidado, parece haver entre os Yanomami uma “ética do cuidado” que possui
certamente um sentido mais amplo do que apenas a nutrição. Essa “ética do cuidado”
sofrimento dos outros (Alès 2006: 161-175; ver também Kelly 2003).
gestos de afeição. Entre os cônjuges, espera-se que o marido cuide não apenas da esposa,
mas de toda sua família, fornecendo-lhes alimentos e apresentando-se como aliado nos
momentos de conflito. A esposa por sua vez deve oferecer companhia ao marido em suas
atividades – de acordo com Alès, não é raro ver uma mulher sentada junto à roça sem
tomar pequenos cuidados com sua pele e cabelo, catando-lhe os piolhos ou apertando com
a unha os pequenos pontos vermelhos que as picadas de insetos deixam na pele: esses
da relação entre marido e mulher (Alès 2006: 171; Lizot 1988: 48).
Alès destaca ainda como estes cuidados entre os cônjuges, e também outras
134
O preparo de alimentos não é uma atividade exclusivamente feminina entre os Yanomami, o preparo do
tabaco sim.
111
apenas de visitas formais em épocas de festas. 135 Entre os Yanomami, o verbo roo (que
significa literalmente “se assentar”) é utilizado para indicar pequenas visitas entre co-
de trabalho, nos quais o “não fazer nada é o equivalente a um convite para a interação
social […] um comportamento que encorpora uma estética de vida que considera que a
Essa 'ética do cuidado' encontra-se relacionada também a uma concepção acerca dos
ações de uma pessoa são realizadas de modo a propiciar, àqueles que a cercam, bem-estar
e felicidade: pufi toprao (onde pufi, como notamos, é o princípio vital centro das emoções,
também chamado bei bihi. cf. pag. 65 supra). O estado contrário, pufi hushuo, que
significa tanto triste quanto colérico, deve ser evitado a todo custo (Alès 2006: 163).
when talking about their own social relations, Yanomami people place strong
stress, not only upon their good, but also their negative qualities. In these
conversations on the social the expression of the mutuality of feelings and
emotions constitutes a fundamental aspect of their judgments and
evaluations of their interpersonal relations (2004: 27).
Dizer que os sentimentos de alegria, raiva, tristeza, etc. são comunicáveis, não é nada
banal. Implica, na verdade, que eles podem passar de uma pessoa a outra e afetam a todos
aqueles que convivem em uma mesma comunidade: longe de constituir uma marca de
135
Para modalidades de visitas entre shaponos e comunidades aliadas cf., por exemplo, Alès 2006: 173-176.
112
Yanomami. Alès destaca a grande importância que os Yanomami conferem aos estados
psicológicos e sentimentos de cada pessoa, de tal maneira que “quando alguém se sente
(2006: 163-166).
sofrimento que ela causa ou evita ao sujeito da ação e àqueles que lhe são próximos. Tal
avaliação respalda a idéia de que algumas virtudes são valorizadas e necessárias na estética
sociabilidade (Overing & Passes 2000; ver tb Overing 1999) ameríndia: a capacidade para
uma comunicação apropriada, a confiança, o amor, o cuidado (Carrera 2004: 147). Não
podemos esquecer que a tristeza e a raiva são estados que indicam uma alteração no
o que confere um sentido complementar ao bem-viver, na qual pufi tropao nos remete à
ética do cuidado: dar e trocar bens é também uma forma de causar alegria, do mesmo
modo que recusar qualquer coisa a um parente ou amigo é fazê-lo sofrer ao ver seu desejo
negado (ibid.: 165). A expressão wahereki hõripraamatihe, “não nos deixe sofrer”, é
utilizada inclusive como forma de demandar presentes (Kelly 2003: 276). A mesquinharia
os Yanomami que não foram generosos com seus bens durante a sua
existência não vão para a casa grande das almas. Agachado na beira de um
caminho está um ser medonho, é Watawatawë. Ele indica às suas almas
perdidas o caminho que devem tomar; então elas percorrem uma picada
136
“A idéia principal é que um indivíduo não deve sofrer ou sentir dor – ni preai – e que não se deve deixar
um dos seus em um tal estado”, resume Alès (2006: 163). Em seu trabalho sobre a relação dos Yanomami
com o sistema de saúde, Kelly (2003: 85) constata que uma das principais reclamações dos indígenas
com relação aos médicos é que estes não se importavam com o sofrimento dos outros, e não faziam nada
para impedir este estado, o que parece confirmar a centralidade destas questões.
113
Generosidade deve aqui ser entendida em um sentido amplo: não significa apenas a
considerado uma atitude imoral sobretudo porque equivale a uma recusa em entreter
relações (Kelly 2003: 85, ver também Overing & Passes 2000). Alès resume nos seguintes
generosidade:
Nombre d'actions sont conçues em termes de “ne pas soufrir” […] Dans le
cadre de la plus banale à la plus sérieuse des situations, les proches parents
et amis cherchent donc mutuellement à éviter de se faire souffrir ou de se
laisser les uns les autres dans la peine. Afin qu'ils ne souffrent pas, chacun
doit prêter attention à rendre les siens heureux et donc à être généreux: c'est
aussi la raison porquoi l'avarice est perçue si négativement chez les
Yanomami. Par conséquent, il est difficile de refuser de contenter quelqu'un
qui manque de tabac, de nourriture, d'un bien ou encore de compagnie ou
d'un conjoint. Tout sera mis em oeuvre afin de satisfaire les besoins et les
désirs d'un parent, d'un affin ou d'un ami. L'ensemble de ces actions sont des
marques d'attention, d'affection et d'amitié qui construisent la sociabilité et la
convivialité dans la vie de tout le jour (2006: 164-165).
que se trata de uma população na qual a guerra e a violência – ainda que “melhores a
pensar do que a matar” (Albert 1985: 98) – ocupam um lugar proeminente. Desse modo,
são repassados às crianças não apenas os valores ligados ao cuidado e ao afeto, como
dor, imbuir-se da idéia de que a vingança sempre deve ser levada a cabo e que toda
violência sofrida tem de ter uma resposta” (Lizot 1988: 88). Lizot argumenta que o código
moral yanomami, tal como pode ser apreendido pela educação das crianças, constrói-se
em torno de duas virtudes complementares: “de um lado, deve-se trocar bens e alimentos
ideal de masculinidade não se constrói por referência direta à figura do matador (unokai)137
– a valorização do guerreiro não parece passar pelo número suas vítimas, e nenhum tipo de
humor e estoicismo (Lizot 1994b; Albert 1985: 97-98; Alès 2006: 43). Lizot observa que
os animais que, aos olhos dos Yanomami, melhor incorporam o comportamento waitheri
situações adversas (Lizot 1994b: 857 apud Carrera 2004: 180). Humor cotidiano, bravura
capacidade de proteger aqueles que lhe são próximos (seus parentes e aliados), seja no
137
Esta expressão como vimos na seção precedente, refere-se na verdade à um estado de “poluição” pela
marca do morto, e tira sua relevância justamente desta poluição e dos rituais de purificação a que deve se
submeter.
138
Estas correções e comentários se fazem sobretudo contra Chagnon (1976), que traduziu o que chamou de
“complexo waitheri” apenas como “ferocidade”.
115
cólera é marca do amor”. E, tal como esse amor e cuidado não se referem a sentimentos
vítimas efetivas a uma taxa relativamente baixa enquanto a violência anômica se encontra
subterfúgios são utilizados para evitar a violência 'pura e simples': combates ritualizados
tornar derrisória a situação conflituosa (ibid.: 97-98; Alès 2006: 22-30, 39-41, 176-181). É
generoso entre os seus parentes é tão desprestigiado quanto aquele que se mostra covarde
entre inimigos.139
139
A guerra yanomami foi certamente um dos aspectos da socialidade mais estudado entre esta população e
foi alvo de inúmeras e divergentes interpretações – desde trabalhos baseados na sociobiologia (Chagnon
1976), passando por abordagens histórico-materialistas (Fergurson 1995), até análises estruturais que
inserem a guerra em um sistema mais amplo de predação ontológica da pessoa que envolve agressões
xamânicas e a reciprocidade ritual (Albert 1985): explorá-las certamente nos levaria para longe do tema
proposto aqui e escapa ao escopo deste trabalho (para uma revisão recente desse problema ver Duarte do
Pateo 2005). Cabe ressaltar entretanto uma importante distinção entre interpretações que tomam a
violência e a guerra como um sintoma de anomia, e uma falha a ser superada na socialidade Yanomami
116
rivais em presença são bem mais diversas do que apenas aliados e inimigos – abrangendo
também espíritos, animais, fantasmas e mesmo figuras tão estranhas quantos os brancos –
de tal maneira que a própria fabricação do parentesco yanomami pode ser entendida a
partir de uma dinâmica com a alteridade que envolve uma disputa por pessoas, e cujo
fracasso é experimentado pelo corpo de parentes como doença e/ou traição. Note-se ainda
que tornar-se parente ou espírito, virar aliado ou inimigo, é uma questão de perspectiva, e
conjunto de forças agressivas, sociais ou sobrenaturais que vêem subverter este edifício
reconhecem dois tipos de doença: aquelas referidas por neni, que afetam exclusivamente o
(ibid.: 166-168), e as expressas pelo verbo bëi, que indica uma alteração das sensações
(Chagnon) ou ainda resultado perverso do contato com a sociedade nacional (Fergurson), daquelas
interpretações que, mesmo que divergentes entre si, consideram a guerra yanomami como uma instituição
social (Albert 1985), ou um traço cultural (Lizot 1984), imbricado na constituição de uma moralidade
específica yanomami (Alès 2006; Carrera 2004).
140
Sigo aqui as sugestões de Vilaça (2002; 2005) e Kelly (2003). Kelly sugere que as transformações do tipo
“mudança de roupa/pele” presentes nos mitos ou em narrativas de encontros com seres sobrenaturais, são
uma versão temporalmente comprimida [time-compressed] das transformações decorrentes pelo
“comportar-se como parente”. Assim, “responder a um interlocutor Yanomami em yanomami; preocupar-
se com o sofrimento de outrem; conceber e educar uma criança estão em um continuum performativo
com […] confundir um espírito na floresta com um Yanomami”(2003: 97). Inversamente, comportar-se
de maneira não-moral (ou não sociável) pode ser o disparador de uma transformação não desejada,
assimilada como adoecimento. Guimarães observa como entre os Sanumá dada a transformabilidade do
mundo, não agir de maneira socialmente aceitável/prescrita é um passo para se transformar em outra
criatura, e este processo é frequentemente irreversível. (2005a: 47-48)
117
corporais e a perda progressiva da consciência, estas últimas sendo doenças mais graves
duplo animal. Como já observamos anteriormente, essas doenças podem levar a uma
inversão da relação entre forma espectral (bei a në borebi) e “consciência” (bei bihi) (p. 65
sua rede longe do convívio com as pessoas e permanecendo em silêncio. 141 Seu
pessoa está a “fazer parentesco com outro”, ativando outros laços – com espíritos, talvez –
de parentesco com pessoas 'outras' (isto é, não-yanomami) fica ainda mais evidente. Nela,
a morte é narrada como um itinerário espacial – o espectro do morto sobe pela corda que
amarra sua antiga rede em direção à morada dos mortos. As narrativas dessa passagem
vivos e dos mortos, na franja da fronteira espacial e metafísica que separa esses dois
universos. Entre os Yanomae, morrer para o mundo dos vivos significa nascer para o
independentemente de sua idade, ela se torna o recém-nascido que já foi um dia (Albert
1985: 624). A descrição desse itinerário pode ser vista, portanto, como a narrativa de uma
'vencedor' é aquele que se mostra mais apto a cuidar e estabelecer relações morais com
141
A rede do doente é amarrada no limite exterior da casa comunitária, sendo transferida para o centro desta
apenas nos momentos de realização das sessões xamânicas em seu benefício. Além disso o silêncio é uma
marca da gravidade e do risco eminente de metamorfose, pois nos outros estágios de adoecimento, e em
situações ordinárias, as pessoas estão a comentar entre si incessante e detalhadamente suas sensações e
sintomas (Albert 1985: 169).
118
uma pessoa.
Ainda no caminho para a casa das almas, os (ex-)parentes mais próximos do doente
que morreram antes dele se põem a acenar para recebê-lo em sua nova casa, incentivando-
o a deixar os vivos. Eles acusam os vivos de não lhe tratar bem – lembremos que os
pela falta de cuidado dos parentes –, enquanto em sua nova casa (dos mortos) o espectro é
recebido com euforia e festas. A essa fase corresponde, no mundo dos vivos, o afastamento
do doente do convívio social, embora neste momento a recuperação ainda seja uma
semelhante, dizem que um morto pode voltar atrás em seu caminho até a aldeia dos
mortos, e que, se fizer isso antes de ingerir a comida que lhe oferecem os mortos, ele
realmente volta a ser Sanumá (isto é, ressuscita): afinal, a transformação dos Sanumá em
passam a compartilhar substâncias (comidas) (Guimarães 2005: 39).142 Passada esta festa
semelhantes àquelas que exercia no mundo dos vivos (Albert 1985: 627-629). Ramos
A gente morre, dizia Zeca, porque a alma de um parente próximo, o pai, por
exemplo, aparece em sonhos oferecendo comida. A pessoa pára de comer
comida normal, vai ficando magra, acaba morrendo e então vai para a casa
d o s nï pole bï dïbï onde há fartura. Se, ao contrário, a pessoa continua
comendo, mesmo magra, os nï pole bï dïbï não aparecem, dizem que ela
ainda quer ficar com sua gente, com seus sanïma dïbï. Quando deixa de se
alimentar é porque os nï pole bï dïbï estão lhe dando comida e, aí sim, ela
morre (1990: 195).
o alimento que lhe é oferecido, porque já está sendo alimentada por outros seres –,
142
De acordo com os Yanomae, em alguns casos, os mortos podem se mostrar sensibilizados a uma
depopulação muito alta no mundo dos vivos e superpopulação dos mortos, tentando convencer o retorno
do espectro dizendo: “você abandonou sua gente que já é pouco numerosa...”.
119
agravamento da doença. A morte é causada, muitas vezes, pelo simples fato de que a
pessoa (seu espectro) resolve entreter relações e “fazer parentesco” com seres Outros. 143
O morto yanomami é o não-parente, mas ele não é o inimigo predador exterior como
simbolicamente aos afins classificatórios (Albert 1985: 665), esses “aliados sem
substância” entre os quais a sociabilidade é construída por meio das trocas e das visitas
letais e a feitiçaria excluídas dessa esfera de proximidade. Essa expulsão nunca é completa
ou definitiva e a traição é uma constante como suspeita e como fato: “seria pouco dizer
que a 'confiança' constitui um ponto permanente de dúvida para o Yanomami” (Alès 2006:
177).
de feitiçaria mesmo entre co-residentes torna a convivência bastante tensa: não há melhor
momento para se atacar alguém do que quando ele se encontra despreocupado entre
amigos. Há até mesmo um termo específico para se designar a traição de aliados e amigos,
ainda sobre essa prática ver também Albert 1985 e também p. 87 supra). Mas a labilidade
é um dos traços centrais da aliança yanomami justamente porque há sempre mais pessoas
143
Para uma elaboração desse tema na Amazônia ver Vilaça 2005.
120
solidariedade com outros aliados.144 O próprio processo de fissão de uma comunidade pode
ocorrer “pelo destino matrimonial divergente dos irmãos, que se vêem então submetidos a
intencional de estabelecer relações moralmente apropriadas – recusa que não é outra coisa
1987 [1977]: 32), podemos compreender a doença e a feitiçaria como uma espécie de
efetivação destes laços negados – são as portas por onde a alteridade “destacada” e
socialidade yanomami.
3.3. “Depois ele nos criou nos dando a palavra”: discursos cerimoniais e a arte do bem-
falar
Yanomami. Obviamente não se trata aqui de qualquer fala, mas do domínio da língua
yanomami, linguagem humana por definição (Smiljanic 1999: 141). De acordo com Lizot
(1984a: 22), “para um Yanomami, aquele que não fala sua língua é como mudo e encontra-
mesma expressão estar mudo (aka borebi), ou melhor, não falar” duas condições que
144
A esta instabilidade, opões-se um conceito que é o de “amizade verdadeira”, referente aquela amizade
que se constitui em tempos de guerra (Alès 2006: 179-180)
121
denotam uma posição francamente anti-social. Carrera explora uma série de correlações
interações que vão “dos sons da floresta às vozes da comunidade”, opondo o interior, a
a importância desse saber falar para a estabilização de uma humanidade específica (2004:
54).
aferida aos discursos e diálogos cerimoniais entre os Yanomami. Após dar a palavra aos
Yanomami, Omama diz a cada um deles: “Você fará o diálogo cerimonial wayamu!”;
“Você fará o diálogos cerimonial hiimu!”; “Você será xamã!”; “Você fará das arengas
hwërëatiu!”145 (Albert 1985: 747. Cf. p. 40 supra). Essas formas ritualizadas de discurso
são opostas à fala cotidiana, chamada apenas kahinë hwa, “falar com a boca”. Altamente
posteriormente por um tipo de educação formal ou informal essas falas cerimoniais são
discursos é não apenas uma fonte de prestígio, mas também condição necessária para que
145
A inclusão do xamanismo entre “rituais de fala” é certamente digna de nota e remete à importância dos
cantos xamânicos. Em seu trabalho sobre o xamanismo Yanomae, Smiljanic(1999:138-160) dedica-se
também à análise e origem destes cantos. Eles foram dados aos xamãs pela árvore Amoahi, que guarda,
como um agravador, todos os cantos com os quais os xamãs e seus espíritos auxiliares podem seduzir,
ludibriar, ou mesmo usar como moeda de troca na relação com os espíritos maléficos. Na verdade, estes
cantos são repassados aos xamãs pela inserção dos galhos de Amoahi no interior de seu corpo. A autora
prossegue, observando que os Yanomae realizam uma extensão desta simbologia xamânica associada às
árvores do canto, para a capacidade de fala em geral: o aprendizado da língua pelas crianças é comparado
ao ato de inserção de um galho de Amoahi na traquéia do neófito, e mesmo o bom desempenho em outros
diálogos e rituais é atribuído ao fato de que a pessoa tem dentro de si um galho de Amoahi (ibid:157)
146
Miglliazia (1972: 54-62) caracteriza esse quadro como uma situação de diglossia, no qual duas variantes
linguísticas convivem em uma mesma população, porém com contextos marcadamente diferenciados. Ele
considera esta linguagem ritual uma forma arcaica da língua que serviria à comunicação inter-
comunitária, um tipo de linguagem “trade and news”, que, supostamente, já teria sido a linguagem
primária, antes dos grupos Yanomami começarem a se separar. Por ser altamente codificada e utilizada
em situações rituais, esta linguagem sofre transformações mais lentas e por isso é francamente
compreendida, enquanto algumas das variantes são praticamente incompreensíveis. Lizot (1994) por sua
vez argumenta justamente o contrário, que entre grupos muito distantes a linguagem do wayamou é ainda
mais difícil de se entender por seu caráter aberto à improvisação.
122
um jovem seja considerado realmente um adulto: tomar lugar nos diálogos cerimoniais
Wayamou147
anfitriões e visitantes, durante as noites das festas reahu. Considerado um diálogo no qual
mesmo também uma instituição de troca, na qual os principais bens reciprocados são as
que, ainda com pouca prática nesse discurso, evitam improvisações e apenas repetem
fórmulas mais ou menos esteriotipadas. Tomar lugar pela primeira vez em um destes
adulto. À medida que a noite avança entram em cena os homens mais experientes, que
conseguem não apenas improvisar e criar fórmulas novas, como transmitir mensagens,
fazer pedidos, e mesmo expressar seu descontentamento nas situações em que a relação
entre os aliados não se encontra tão pacífica (Lizot 1994: 415; Albert 1985: 460).
desempenhando alternativamente o papel daquele que “entrega sua palavra” ( thë a weyeɨ),
e passivo, respondendo à palavra (thë a huaɨ), repetindo o fim das frases de seu parceiro ou
pontuando-as com marcas de assentimento (Albert 1985: 459). Ainda de acordo com
Albert, durante o fechamento do diálogo wayamou, tem lugar uma forma discursiva
chamada yaimou – que pode também ocorrer como modalidade autônoma de interação,
provocado pela repetição concatenada das falas pode chegar ao paroxismo: enquanto
se houver entre anfitriões e aliados algum tipo de desentendimento ou rumor prévio – estas
provocações podem desencadear um tipo de duelo a mãos ou com bastão 148 (ibid.: 509-
511). Preferencialmente, após um embate desse tipo, as relações pacíficas são re-
Hiimu
pontual (Albert 1985: 490; Alès 2006: 40; Migliazza 1972: 49). Quando uma comunidade
decide realizar uma festa – seja um reahu funerário, ou apenas pela abundância de alguma
convite é feito sob a forma de um diálogo hiimu, cujo uso nestes contextos é tão
proeminente que alguns autores traduzem o termo hiimu por “diálogo de convite”.150 O
148
Sobre os duelos formalizados Yanomami conferir Alès 2006: 22-31.
149
Entre os Yanomamɨ, de acordo com Alès, são estes os discursos chamados yaɨmou (2006:41).
150
É o caso de Albert (1985) Migliazza (1972) Carrera (2004). Lizot por sua vez, refere-se aos convites
124
lhe receber. O convite propriamente dito é feito aos homens de prestígio e “líderes locais”:
semelhante. Desta vez, são os hóspedes que, acampados próximo à comunidade anfitriã,
enviam um mensageiro que irá discursar sobre a viagem, re-afirmar a amizade e a intenção
pacífica de sua vinda, lamentar a morte de alguém (no caso de festas funerárias) e receberá
em troca alimentos para levar até o acampamento de seu grupo (Guimarães 2005a: 201;
Lizot 2000: 166). O hiimu é utilizado ainda, durante a cerimônia funerária, para convidar
às coisas do morto, tornando necessária uma retórica super complexificada (Albert 1985:
490-491).
Hëwerëamou/ Hwereamou
formais, sobretudo àquele que ocorre quando os hóspedes chegam próximos à comunidade anfitriã e
enviam-lhe o mensageiro, pela expressão teshomou, traduzida como “alocucão de boas-vindas”. Ele
designa himou sobretudo os diálogos que expressam uma demanda (ajuda alimentar, aliança militar,
restituição de uma mulher, etc.), realizados por diversos pares simultaneamente, durante as visitas
intercomunitárias (Lizot 2000:166).
125
nome deste tipo de arenga hwerehweremu: ofegar –, cada frase é apoiada por uma violenta
expiração e é encerrada por sílabas características: yë !, shë !, kë ! (Albert 1985: 441 n.10).
Executados pelos homens mais velhos, considerados líderes (pata thëbë) de uma
cunho coletivo – uma grande caçada, a abertura de uma nova roça, a reforma do telhado da
casa coletiva. É também através do hëwerëamöu que são reclamados os diagnósticos sobre
a morte de algum familiar e o planejamento de sua vingança. Além disso, ele é utilizado
do falante: embora usualmente sejam os líderes de facção recorrem recurso a este tipo de
fala, não raro outros homens importantes e mesmo mulheres mais velhas também
executam essas arengas (2006: 40). O próprio ato de discursar em público pode ser
referido como patamou, que significa, literalmente, “agir como um velho/grande”. Ao falar
sobre algum perigo específico ou mesmo comentar um problema (Lizot 1988: 557). No
prosseguimento da fala por meio de afirmações como Awei kë ! Awei kë ! Peheti rë kë! wa
peheti totihiwë kë! “Sim! Sim! Você está certo! Isso que vc diz é realmente certo!”;
algumas vezes, as pessoas podem demonstrar desacordo, passando então a uma conversa
mais ou menos aberta entre várias pessoas, cada qual deitada na sua rede (Carrera 2004:
60); ou podem simplesmente cair no sono embalados pela fala ritmada (Chagnon 1983
126
[1968]: 92).
É importante ter claro o tipo de liderança que performa esse gênero de discurso:
aquele que dá voz ao grupo e que assume assim a posição de líder cumpre um papel de
“conselheiro”, muito mais do que de chefia. 151 Seja falando da necessidade de se executar
um trabalho, recomendando aos jovens que controlem seus desejos e não se deitem com as
os conflitos apartados do grupo doméstico, os oradores sempre tomam muito cuidado com
o que falam para não ferir o senso de autonomia individual de seus co-residentes (Carrera
2004: 58). Seu discurso é composto de conselhos (wasii) e delegações (shimai), e nunca
exatamente censuras ou ordens: “eles recomendam, não comandam” (Alès 2006: 169).
patamou são definidos por Carrera como “inside language” (op.cit.: 17 et passim). Tendo
por referência a 'ética do cuidado', Alès comenta que as falas matinais dos pata152, “são
encerrar discussões (2006: 168). O hereamou é portanto uma fala que visa regulamentar as
determinação do conjunto de co-residentes como um grupo: é pela palavra do pata thë que
***
151
Para discussões sobre “chefia” ameríndia v. Clastres 2003.
152
Alès chama estes arengues de konoamou, “discurso em forma de monólogo para informar, educar,
influenciar, se lamentar ou arengar” (2006: 39)
127
A importância do bem falar para a trama da sociabilidade yanomami só pode ser bem
dimensionada se consideramos que não se trata apenas de uma habilidade linguística, mas
de saber como se comportar moralmente. Uma pessoa que não fala bem ou que não sabe
fazer pedidos de uma maneira apropriada, ou ainda, aqueles que não estão aptos a
participar dos diálogos cerimoniais, ou que não se expressam claramente, todos essas
pessoas são referidas pela expressão aka porepi, que significa literalmente, “falar como um
fantasma” (Lizot 1994; Carrera 2004). Os fantasmas são, a bem da verdade, contraponto
Embora os fantasmas levem uma vida semelhante à dos vivos (com suas roças,
casas, parentes, etc.) eles se caracterizam por falar de forma ininteligível e confusa.
Poremu é, como já destacado, um verbo que, tanto em yanomae quanto em sanumá, indica
alguns estados alterados da consciência (Albert 1985: 144-145; cf. 69 supra). Mas aka
porepi e outras expressões relacionadas à pore são utilizadas também para indicar
possuem uma inabilidade para falar e/ou apresentam comportamento mesquinho. O mito
sobre a origem das plantas cultivadas é esclarecedor acerca dessas correlações que traçam
que vive isolado em seu shapono, apenas com sua esposa e filhos. Um dia os Yanomami se
eles descubram em sua casa espécies de plantas desconhecidas e seu filho sugira que se
ofereça mingau de banana aos visitantes, Poreawë se recusa a fazê-lo falando com sua voz
153
E não deixa de ser digno de nota, que neste mesmo mito é dito que os Yanomami foram criados por
Omama a partir dos espectros, em forma de ovos de formiga, dos antigos ancestrais.
154
Este mito foi tratado a partir destas correlações por Carrera (2004) e Kelly (2003), o segundo, referindo-
se ainda ao caráter quase metafórico deste mito para explicitar as relações entre Yanomami e Brancos.
128
feia. Do mesmo modo, ele se recusa a dar essas plantas aos visitantes ou a ensinar-lhes
como produzi-las. Em uma visita posterior, Poreawë aceita ceder apenas algumas espécies
de plantas aos Yanomami, que acabam por roubar as mudas restantes de seu jardim.
Quando um dia vai à comunidade dos Yanomami como visitante, o Fantasma fica furioso
ao se descobrir roubado. Em uma outra versão do mito (Lizot apud Wilbert & Simoneau
1990: 153-155), Hõrõnãmɨ se encontra com Poreawë no meio de uma trilha. Este
carregava consigo um cacho de bananas, planta que Hõrõnãmɨ jamais havia visto. Ao
tentar conversar com o desconhecido, o Yanomami observa que embora ele lhe responda
sobre a planta desconhecida, tem um problema de fala que torna sua resposta de difícil
compreensão. Mais tarde, quando Hõrõnãmɨ pergunta se poderia ir visitá-lo com seus
familiares para que eles também pudessem provar da banana, Poreawë lhe diz que não
faça isso, afirmando que encontraria sua casa vazia quando lá chegasse caso se arriscasse a
fazê-lo
À voz feia de Poreawë, e sua dificuldade para falar, associam-se ainda sua
Poreawë – vivendo sozinho e isolado, com sua voz feia e comportamento mesquinho é a
específica.
associado aos brancos, que encarnam todo este espectro de comportamento não-humano
129
atuais não podem ser minimizadas. No capítulo seguinte, passo em revista justamente
como a relação com os brancos articula questões sobre alteridade e moralidade, convenção
4.Os brancos
foram, nos primeiros contatos com os Yanomami, associados aos fantasmas e/ou espíritos
pareciam possuir um corpo como o dos Yanomami e nem ao menos falavam alguma língua
entanto, uma revisão de sua classificação ontológica. As análises realizadas por Albert do
histórico do contato (1992, mas também 1985, 2002 [1995]), bem como o trabalho de
Kelly (2000, 2003) sobre as transformações decorrentes deste encontro, são não apenas as
principais fontes para a exposição que se segue, como oferecerem a grade estruturante
deste capítulo.
relevância que acabam por assumir em novos contextos de interações sociais, os brancos –
suas intenções, comportamentos, origem, etc. – têm passado por uma constante re-
categorias ontológicas e os predicados morais que vim apresentando aqui por seu aspecto
Yanomami, parece se revelar com mais clareza no contexto de contato, uma vez que a
155
A sociedade Yanomami, como já notado, se funda em um canibalismo cultural, por oposição ao
canibalismo selvagem dos ancestrais animais mitológicos – yaroribë – e dos não-humanos atuais –
naikiribë (Albert 1985: 503. ver cap1 n. 20 supra).
131
uma forma de predação ontológica, enquanto os brancos e seus bens foram incluídos,
(shawara) diferiam dos males causados pela agressão de outras formas de alteridade social
explicações diversas à medida que aos brancos eram atribuídas diferentes formas de
para a compreensão destes novos fatos e agentes em seu universo. Ao fazê-lo, no entanto,
convencionais157 (cf. Kelly 2003, 2005). Esse trabalho de extensão e inovação sobre o
lugar reservado aos brancos em seu universo, em continuidade com o modo como se
156
A importância desses dois elementos nas elaborações sobre encontros inter-étnicos é observada não
apenas entre os Yanomami, mas também em outras regiões da Amazônia (ver p.ex. Gow 1993, sobre os
Piro; Hugh-Jones 1988, para os Barasana; Vilaça 2002, sobre os Wari'; dentre outros).
157
A dialética extensão e inovação não deixa de ser um outro modo da dialética invenção convenção. cf.
Wagner 1981.
132
própria questão da personitude entre os Yanomami. Não convém esquecer que estamos
início do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, o contato com os brancos –
indireta, mediado pelas etnias Carib e Arawak que circundavam o território ocupado pelos
Yanomami. Albert refere-se a estas populações como “etnias-tampão”, pois barraram, por
algumas novidades tecnológicas – como o uso de lâminas de metal acopladas ao cabo das
demográfica e territorial yanomami possibilitada pelo vazio aberto à medida que as etnias
vizinhas iam sendo dizimadas por epidemias e confrontos diretos com os brancos (1985:
64-66).
contatos diretos com os brancos – iniciando uma segunda fase marcada pelo contato
expansão sob este território semi-vazio” (Albert 1985: 64). Entretanto, foram precisamente
índio recentemente estabelecidas na região, a partir da década de 50. Esse contato direto e
amenizar, ao menos em alguns casos, os efeitos destruidores das doenças levadas pelos
contato são válidas para as comunidades e grupos situados nas regiões de fronteira do
mesmo modo, a avaliação e elaboração conceitual com relação aos brancos serão
diversificadas, de tal maneira que algumas divergências entre as etnografias parecem ser,
acesso aos bens manufaturados apenas a partir da troca ou saque com as etnias vizinhas, as
lembranças dos homens mais velhos registram poucos casos de epidemias. Estas, quando
costumavam ser associadas na explicação para dar conta do traço diferencial que era o
por exemplo, que tinham um contato muito mais próximo com etnias vizinhas como os
que tinham a aparência de seus vizinhos (Albert 1992: 163 n.26; ver também Guimarães
2005b). De todo modo, consideradas a partir das práticas tradicionais, as epidemias eram
maiores elaborações. Os brancos, por sua vez, eram conhecidos apenas a partir de rumores
de encontros nas florestas entre Yanomami e seres esbranquiçados e estranhos que vinham
subindo os rios, seres que eram pensados como os fantasmas que voltam das costas dos
céus para buscar seus parentes vivos. Albert resume esse período:
forma em toda a região, dentre outras coisas, porque esses “brancos” – tanto quanto os
proteção aos índios (SPI). Em linhas gerais, Albert sinaliza que durante o período de
contato intermitente, episódios violentos foram mais frequentes ao sul (na região dos rios
Cauaburis a Catrimani), onde havia uma disputa territorial em curso entre indígenas e a
158
Para uma revisão destes primeiros encontros em diversas regiões cf. Albert 1985: 51-54.
135
Yanomami tentavam manter os invasores longe, ou, quando eles próprios invasores,
invariavelmente marcados por uma série de equívocos (Viveiros de Castro 2004) e não
ocorreram sem uma dose de pavor. Albert, a partir de uma série de depoimentos da região
Diante dos rumores que pareciam indicar que estes seres, por seu exotismo corporal
e hábitos estranhos, seriam na verdade fantasmas, a decisão dos Yanomam de realizar uma
visita tentando estabelecer algum tipo de relação, pode ser comparada à coragem
demonstrada por Hõrõnãmɨ ao visitar o estranho Porëawë (p. 126 supra). A inabilidade
desavisados que recebem a visita inesperada destes brancos em suas malocas. “A maior
parte deles foge imediatamente para as roças ou para a floresta, e apenas alguns homens
de se deixar agarrar, tremendo, por seus pacificadores” (Albert op.cit.: 165). Davi
Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites – à sua aldeia, em meados da década de 50:
eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que eles
existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam
136
encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais
e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos.
Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia
nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua
de fantasmas. […] Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa
habitação, minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no
fundo de nossa casa. Ela me me dizia então: 'Não tenha medo! Não diga uma
palavra!', e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me
lembro, no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria
cabido debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia
que os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas
crianças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava
aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens
dos brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas
lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos, de seus relógios. Tinha
medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de gasolina. Tudo me assustava,
porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando
seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os adultos
também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em soluços, e todo
mundo fugia para a mata vizinha!(Kopenawa 2001b: 20).
associação dos brancos aos fantasmas, como já destacado. Sua invasão ao território
yanomami é assim vista com um temor adicional, pois evoca o episódio do retorno dos
fantasmas que culminou com a queda do céu e a morte da primeira humanidade (Smiljanic
1999: 179). Por sua vez, seus estranhos corpos – “sua horrível pilosidade, suas andanças
pela mata fechada, sua ausência de dedos nos pés (sapatos), sua capacidade de sair
facilmente das próprias peles (roupas)” (Albert 1992: 166) – e todas as suas posses
superlativas – “uma vasta parafernália para escrever os nomes, captar imagens das
pessoas, gravar sua voz, e […] muitos outros objetos para cozinhar, fazer roça, caçar,
pescar” (Guimarães 2005b: 64) – fazia com que fossem associados a espíritos maléficos.
encontros e trocas com os brancos, os Yanomami desenvolveram uma teoria que associava
metal e os tecidos vermelhos – eram vistas como superlativos dos instrumentos yanomami
próprios espíritos (Albert 1992: 166-168). Ainda hoje os Sanumá observam como a
estranha obsessão dos brancos por sequestrar componentes das pessoas e seus inúmeros
instrumentos para isso – gravando as vozes, escrevendo os nomes, tirando fotos – coloca-
matihibë, expressão polissêmica que designa tanto “bem precioso” quanto “objeto
mais exata, os ornamentos de plumas e ossos dos mortos ou as cabaças contendo cinzas
mortuárias. Trata-se de bens que, fora do circuito de trocas, devem ser destruídos, para que
não evoquem constantemente a ausência do parente morto, mas também porque sua
manutenção traria efeitos nefastos, provocando a ação deletéria dos fantasmas dos mortos
Em sanumá, os objetos dos brancos são chamados de wani de, que designa os
pertences de uma pessoa, de maneira genérica, mas é também a raiz de um verbo que
comentário de um ancião que, referindo-se aos objetos dos brancos, lamentava-se dizendo
que antigamente os antigos não possuíam nada – e por isso às vezes passavam necessidade
– mas os Sanumá hoje em dia têm muitas coisas que não querem perder – o que contraria o
que marcava estes primeiros contatos, os Yanomami estreitaram ainda mais suas relações
se obter ferramentas de metal. Uma vez realizado o contato, é como se tivesse início um
processo irreversível de aproximação (cf. p. 160 infra; Kelly 2003). Em alguns lugares e
Essa aproximação quase compulsória dava início a uma situação em que brancos e
desconfiança – as visitas rápidas e tensas dos brancos, as epidemias que tinham lugar logo
após sua partida – era interpretada de acordo com as práticas de uma interação política
guerreira, mas desta vez eram atribuídas aos próprios brancos e não mais a outros grupos
139
inimigos Yanomami. Tratava-se de uma nova técnica de feitiçaria, já que causava a morte
só causava mortes individuais. Essa nova técnica consistia na produção intencional de uma
que ocorriam em comunidades que não estavam em contato direto com os brancos. Já
tokoribë, sedentos de carne humana, viriam pelos ares, das cidades para as comunidades
narrativas, assim como uma re-ordenação de suas principais categorias ontológicas, para
termo kraiwa usado pelas etnias vizinhas para se referir aos brancos, enquanto estas outras
etnias continuavam a ser chamadas de yãnomamë thëbë nabë159 (ibid.: 172). Nabë, como
159
Estas classificações, justamente por seu caráter “experimental” e “experiencial”, variavam muito entre as
regiões e os sub-grupos. Os Sanumá por exemplo, chamam de kobakaitili töpö os primeiros brancos que
conheceram, considerados ancestrais dos “americanos ”, missionários da MEVA (Missão Evangélica da
140
vimos é uma palavra relacional que forma um par contrastivo com yanomami do tipo “nós
X eles”, e é usada em seu sentido mais restrito para designar os inimig os (cap. 3 supra.). O
fato dos brancos e outros estrangeiros serem designados por expressões derivadas
marcação de sua humanidade na própria forma como são designados, eles são yãnomamë
próprios Yanomami, parece claro que os brancos entram neste gradiente por seu limite
inferior.
(ibid.: 163-164, cf. p. 133 supra), a diferença e gradação entre nabë kraiwabë e yanomae
thëbë nabë foi evidenciada de variadas formas, que podiam inclusive ser re-combinadas
entre si: podia-se postular uma distância temporal ou espacial (rio acima/rio abaixo) entre
Amazônia). Eles eram diferentes, não tinham cabelo ou tinham o cabelo vermelho e falavam estranho
(Guimarães 2005b: 62) Os Ninam, por sua vez, dizem que as pessoas mais velhas até hoje se referem aos
brancos como ôlamis polamotima (algo como “aquele cuja voz de traquéia faz como a cachoeira”) em
uma referência ao barulho dos aviões que sobrevoavam suas aldeias antes mesmo da chegada dos
próprios brancos (Ivan Xirixana, com.pessoal 2009).
141
essas variações não são “uma transformação mítica, senão hipóteses em experiência,
Questão que está longe de ser passada ou resolvida.160 Smiljanic (1999: 179-180)
bíblicas e interpretações diversas sobre a mitologia yanomami tentam dar conta da origem
dos brancos, seu espaço na cosmologia, seus atributos morais, etc. Além do mito de
surgimento dos brancos através do isolamento de alguns Yanomae nas bordas do mundo,
fazem dos brancos frutos da ação de Omama. Este teria criado o primeiro branco a partir
do barro, retirando-lhe uma costela para fazer as mulheres e também outros homens,
outra narrativa parece fazer crer que os brancos são Yanomami metamorfoseados devido
no princípio, Omama fez tudo certo: ele amassou o barro e fez um homem,
Adão. Ele fez também uma mulher para o homem que criou do barro.
Entretanto, Adão e sua mulher pensaram que os brancos eram melhores que
os Yanomae e quiseram transformar-se em brancos. Pensando assim, Adão
matou seu irmão mais novo por causa de uma mulher. Omama então os
expulsou para longe de sua casa, os dois taparam o sexo com folhas. Com as
folhas eles fizeram uma veste como as roupas de pano e se vestiram com ela.
Assim foi, porque os dois cometeram um erro, os dois pensaram que os
brancos eram outros, melhores que os Yanomae (ibid: 182 ).
160
Ainda de acordo com Albert (1992: 173), “esses esforços de diferenciação mitológica e classificatória no
seio da categoria dos inimigos-estrangeiros se mantiveram, entretanto, no estado embrionário,
simplesmente porque, pelo menos na região estudada, o período de contato intermitente foi também o do
desaparecimento dos últimos sobreviventes das etnias vizinhas. […] entre o contato indireto e o contato
intermitente, o mito de origem dos índios não-yanomam foi progressivamente se transformando no mito
de origem dos brancos, enquanto a categoria de estrangeiros (nabë) acabou por designá-los
exclusivamente.” Mas mesmo que os brancos tenham subsumido por completo a categoria de
estrangeiros hoje em dia, sua posição ainda não é definida e está aberta a constantes experimentações.
142
brancos, Viveiros de Castro (2001b) observa como estas articulam-se frequentemente aos
mitos de origem da vida breve pelo mote da “má escolha”. 161 Nos mitos ameríndios que
contam como os humanos perderam sua imortalidade originária, a “vida breve” é resultado
de algum erro ou descaso relacionado aos cinco sentidos: ouvir, falar, tocar, ver ou provar
o que não deveria – ou, ao contrário, ignorar o que deveria ser ouvido, dito, tocado, visto e
provado – é o que faz com que os humanos tenham uma vida perecível, enquanto outras
espécies que fizeram a “escolha certa” continuam imortais pois trocam de pele
constantemente (ibid.: 51; sobre este tema ver também Levi-Strauss 2004 [1964]). O autor
faz notar ainda como nas narrativas sobre a origem dos brancos, a escolha fatídica ganha
(para além dos cinco sentidos) uma dimensão de cálculo e entendimento. Um dos
Jones (1988), no qual o demiurgo oferece aos ancestrais humanos a opção entre o arco e a
escolheram o arco. Os brancos aparecem aqui como aquilo que as populações ameríndias
“poderiam ter sido” se tivessem feito a escolha pela tecnologia mais “eficiente”.
narrativa de Remori, os brancos não são os descendentes destes que fizeram a melhor
escolha, mas justamente o resultado de uma “má escolha” – o não cumprimento do rito de
puberdade, ou seja, uma infração dos sentidos por excesso – feita pelos Yanomami,
indicando uma avaliação talvez diferente dos brancos e sua tecnologia daquela presente no
mito barasana. E mesmo na narrativa yanomae que traz o casal Adão e Eva, a
brancos fossem melhores que os Yanomami. Essas articulações míticas – em constante re-
elaboração como já foi salientado – revelam como a estimativa da diferença entre brancos
e Yanomami parece ser feita em termos pouco simpáticos aos primeiros. Nessas narrativas,
161
Sobre estes temas na mitologia ameríndia cf. Levi-Strauss 2004 [1964]; Da Matta 1970; e outros.
143
os brancos não são apenas Yanomami metamorfoseados, eles são, literalmente, Yanomami
ancestrais Sanumá não quiseram ser. Entretanto, a recusa das posses tecnológicas
escolherem entre diferentes posses, e estes acabam por optar por seus artefatos
brancos –, Omao decidiu introduzir entre os primeiros diversos bens e atributos culturais
para que “eles pudessem viver como os setenabi.” No entanto, cada objeto oferecido por
Omao – livros, canetas, aviões, etc. – é recusado veementemente pelos ancestrais, e não
sem alguma zombaria. Diante da oferta de uma espingarda eles comentam: “Isto? É
estúpido e pesado! Como alguém pode trabalhar com isso? Esta coisa ridícula e preta, é
realmente complicado”. Omao então considera que talvez deva esperar mais um tempo,
antes de finalizar a fabricação dos Sanumá, oferecendo-lhes novamente estes bens mais
tarde. Contudo, neste interstício, Soawö – o gêmeo deceptor – lhes oferece os arcos e
outros objetos tradicionais que eles aceitam de bom grado 163; e assim foi que apenas os
brancos tiveram acesso à escrita, ao avião e aos objetos manufaturados. Ao fim do mito, o
162
Os Sanumá, por apresentarem uma relação muito próxima com outros estrangeiros não-yanomami, além
dos brancos, apresentam uma classificação que distingue entre nabis e setenabis, reservando o primeiro
termo para os outros índios, em especial os Yekuana, seus vizinhos próximos. Esta distinção entre dois
conjuntos de estrangeiros está referenciada na observação de seus habitus específico: “enquanto os nabï
dibï são arrogantes, embriagam-se com caxiri, cometem incestos como animais, têm uma tecnologia mais
elaborada, são mais desenvoltos com os brancos porque lhes falam a língua e, naturalmente, não são
falantes de Sanumá, os setenabi dïbï distinguem-se pela cor da pele, pelas roupas, pelo hábito de escrever
constantemente, pela adoração religiosa (deusïmo, fazer deus) e por serem imprevisíveis e, em última
instância, a fonte desejada de bens ocidentais; além disso, ou não falam nada de Sanumá, ou falam como
crianças” (Ramos 1990: 295).
163
Há nesta narrativa uma inversão em que Omama aparece vinculado ao exterior (os bens estrangeiros) e
Yoase ao interior (artefatos tradicionais). Esta inversão parece apoiar-se e justificar-se na valoração
atribuída a estes bens, Omama continua assim a ser associado ao que é bom/próprio.
144
narrador se revela bastante indignado com seus ancestrais: “oh! Meus ancestrais, eles
realmente me deixam nervoso! Andar devagar sobre a terra – cruzando montanhas, rios,
sobre as trilhas – isto tudo é realmente cansativo. E enquanto isso os outros vão
tranquilamente voando... e tudo graças aos nossos ancestrais” (Colchester 1981 apud
ambiguidade dos brancos é recorrente nas narrativas míticas espraiadas pelas Américas.
Viveiros de Castro observava como os mitos acerca da origem dos brancos – articulando-
mortalidade. E acrescentava:
Essa pequena digressão à mitologia foi feita aqui porque o entendimento das
relações atuais entre brancos e Yanomami não pode ocorrer sem levarmos em consideração
contato.
missões na região. Esses brancos que se estabeleceram junto aos Yanomami eram, em um
assistência aos índios (SPI e posteriormente FUNAI) tenham sido instalados na região
referência para os estudos que servem de base à esta revisão – Yanomam do Catrimani e
Yanomamɨ do Ocamo, além dos Sanumá de Auaris –, sem exceção, vieram a se constituir,
missões permanece pelas décadas seguintes – um relatório de 1982 (CCPY apud Albert
brancos sofre uma inflexão pelos hábitos e predicados característicos dos Theusitheri (o
ao longo dos rios (lembremos que os Yanomami decidem se instalar próximos aos rios
sobretudo no que diz respeito ao fluxo de bens e serviços, tratando os brancos aí instalados
exclusivista diminui o impacto direto sobre os grupos circunvizinhos, por outro lado, ela
tem repercussões políticas sobre vastas regiões. O monopólio dos bens manufaturados leva
distribuidores de bens. A rede de relações inter-comunitárias vai sendo desta forma atraída
e polarizada para a área de influência branca.164 Além disso, em suas contendas internas, as
164
Importante notar que, entretanto, esta estratégia de orientação das alianças políticas em direção ao afluxo
146
comunidades mais distantes: como estas são usualmente atingidas mais severamente por
epidemias do que as que contam com a assistência médica da missão, a ameaça ganha
valor de verdade (Albert 1985: 85-86; 1992: 173-174. ver também Duarte do Pateo 2005).
abrir uma pista de pouso nos anos 60 (Guimarães 2005b: 53), eles dedicaram e dedicam
bens que não lhes fariam falta, enquanto para os próprios Ye'kuana estes bens são
Seja como for, os primeiros anos de convívio com os padres e missionários não
trazem grandes novidades em relação ao contato estabelecido com outras frentes pioneiras,
já que as epidemias continuam a se alastrar e são atribuídas a ações agressivas dos brancos.
No entanto, com o passar do tempo, dois aspectos da lógica missionária – assistência e co-
[u]m xamã que beneficia com suas curas os doentes de uma aldeia à qual não
pertence (visita, rito intercomunitário) prova com isso sua inocência, e a do
seu grupo na etiologia dos casos de que trata. […] os missionários co-
residentes, que não fugiam nem antes nem durante as epidemias e que
objeto de uma nova adaptação na teoria indígena sendo re-classificados não mais como
inimigos, mas como “quase-parentes” (Kelly 2003: 90). Esses brancos passaram por um
humana que a fabricação do parentesco” 165 (ibid.: 131). Viver junto, ser generoso,
que isso, esses comportamentos foram tomados como expressão do “desejo destes de se
p. 104 supra). E eles serão de fato adotados pelos Yanomami: um líder de uma “aldeia de
missão” da região do Catrimani, por exemplo, se referirá aos missionários como “meus
brancos” (iba nabëbë), “que tenho aos meus cuidados” (ya ka thabuwi), sendo que o verbo
thabu geralmente se aplica justamente aos órfãos e refugiados (Albert 1992: 174-176).
estranho. Afinal, eles não são da região, não se casam com nenhum Yanomami e,
principalmente, são parentes de todos os Yanomami, o que – como constata Kelly (2003:
98) –, é de fato muito pouco Yanomami; uma vez que o parentesco com alguns implica
165
Trata-se de um processo de obviação (sensu Wagner 1981), no qual as relações morais e coletivizantes
são enfatizadas em detrimento da diferença inata e potencialmente perigosa dos brancos (Kelly 2003:
136).
148
que sempre pode agredir ou trapacear os Yanomami (ibid: 121). Entre os Sanumá, o branco
os Sanumá estão afastando-os ainda mais daqueles brancos que são seus co-residentes,
bebida alcóolica, inclusive o caxiri de seus vizinhos Ye'kuana (Ramos 1990: 279).
observa que, ao menos na região do Catrimani, a partir dos anos 70, a relação entre
brancos e Yanomami é novamente alterada, desta vez pela explosão de pontos de contato
intermitente com os agentes da frente de expansão econômica que, seja pela construção da
perimetral norte, seja pela mineração, começam a invadir o território yanomami. 166
166
A abertura da estrada perimetral norte, que cortava à sudeste o território Yanomami, era parte do “Plano
de Integração Nacional” lançado pelo governo militar brasileiro à época que incluía ainda programas de
colonização agrícola. Nesta mesma época o projeto de levantamento dos recursos amazônicos RADAM
detectou a existência de importantes jazidas minerais na região, o que acabou motivando uma verdadeira
“corrida do ouro” na década seguinte quando o número de garimpeiros na região (no estado de Roraima)
foi estimado entre 30 a 40.000 (Enciclopédia dos povos indígenas/ISA. Verbete Yanomami por Albert
1999.)
149
brancos são, mais uma vez, genericamente associados a uma figura predatória, como narra
Albert:
Embora, no caso apresentado, uma situação histórica específica tenha motivado esta
re-avaliação, fato é que, os brancos, mesmo quando domesticados, nunca deixaram de ser
(2003: 90) observa como os Yanomami de Ocamo, embora acentuem em seus comentários
transparecer também que esta relação é pensada em termos de um trade-off, com seus
“palavra de Deus”, mas têm que aceitar também os efeitos colaterais da presença dos
Albert, parece tentar “exorcizar, numa metáfora sempre recomeçada, o trágico double
inserção num sistema de troca em que o poder de fascinação dos bens adquiridos só pode
ser retribuído através de uma predação impiedosa”, reflexo da “obssessão por uma figura
150
extrema da alteridade em que o excesso do poder material remete ao excesso dos poderes
Essa ambígua relação com uma figura extrema de alteridade pode ser (e foi)
sumarizada pela noção de 'afinidade potencial' (Viveiros de Castro 2002), tal como
utilizada por Kelly (2003, 2005) para dar um novo alcance à análise das relações entre
brancos e Yanomami. A afinidade potencial seria o modelo Amazônico para uma relação
com o exterior e esses “outros indesejáveis, mas necessários”, na qual não se tem a
De maneira semelhante ao que ocorre entre outros povos amazônicos (em especial os
por esta categoria de afinidade potencial, que, justamente, é utilizada para “pensar, isto é,
socializar, o que está fora do Mesmo” (Viveiros de Castro op.cit.: 161). Como afins
desta socialidade; eles estão ao lado dos fantasmas dos mortos, dos espíritos canibais, dos
reconhecem aos brancos poder para influenciar significativa e positivamente suas vidas –
com suas provisões, conhecimentos e tecnologias superlativos – ao mesmo tempo que lhes
Kelly:
167
Onde yai como já destacado possui o sentido de verdadeiro, próprio. Kelly 2003: 117.
151
locais remotos, nas grandes cidades que os Yanomami visitam esporadicamente ou sobre
as quais apenas ouvem falar: Puerto Acayucho, Manaus, Boa Vista. Não poderia ser
apropriadamente moral/ yanomami. É importante ter em conta que esta afinidade potencial
– aqui napëidade – é considerada como um traço inato, e isto em dois sentidos: porque
brancos.
porque fabricada pela agência humana – sob este fundo de napëidade dada (Kelly 2005).
na medida em que também eles são o resultado de transformações dos antigos; afora este,
em relação a um Yanomami, os brancos serão sempre napë yai. Como notou Kelly, “a
podem percorrer esse caminho, como os primeiros missionários e os médicos de hoje, mas
a natureza do exterior permanece não afetada por essa passagem individual” (2003: 218,
152
um mesmo, mas capturar sujeitos específicos em sua potência de alteridade. Estes napëpë
2003: 140). Na definição de Viveiros de Castro (2002: 162), terceiros incluídos são aqueles
em Ocamo, dada sua grande generosidade e o grande fluxo de recursos que ele direcionava
às comunidades que lhe eram próximas – é uma imagem perfeita de como os brancos
residentes são manejados pelos Yanomami para seus próprios fins políticos, servindo-lhes
de mediadores entre estes e a fonte de recursos e bens manufaturados napë (Kelly op.cit.:
93). Estas figuras dos terceiros incluídos – com os quais, pela obliteração ritual de sua
própria alteridade, são estabelecidas relações sociáveis, ainda que ambíguas – são portanto
fundamentais para a reprodução social justamente por sua ligação com o exterior
estão em posição de mediadores com “todos” os Yanomami: como não se casam com
168
Convém relembrar que, na explanação de Wagner (1981) que também serve de referência para a análise
de Kelly, os rituais são justamente os momentos coletivizantes das sociedades cujo modelo de
criatividade é diferenciante, são portanto os momentos em que a convenção é fabricada. Alguns exemplos
de relação do tipo terceiro incluído destacados por Viveiros de Castro (2002: 153) são: amizade formal
entre os Achuar, matador e vítima entre os Areweté, e os próprios afins classificatórios Yanomam por seu
papel nos rituais funerários.
153
potencial, não têm obrigações reais ou privilegiadas com nenhum grupo específico de
pessoas. Se esta generalidade é uma das marcas do poder e potencialidade dos brancos co-
residentes, por outro lado, a falta de laços reais e específicos também contribui para sua
A vulnerabilidade brancos domesticados é ainda acentuada pelo fato de que não têm
isoladas o que permite re-estabelecer relações amigáveis) –, nem tampouco podem (ou
desejam) recorrer aos duelos ritualizados. Sem contar com meios adequados para a
costumam ser alvo preferencial das ações e brincadeiras dos jovens Yanomami: pequenas
trapaças e furtos, “gozações”, etc. contra médicos e/ou missionários são recorrentes nas
aldeias yanomami, para desespero destes que logo percebem que não há qualquer
autoridade a quem recorrer (ibid.: 152, 161-162). Mas esta vulnerabilidade não é um acaso,
como faz notar Kelly, a “generalidade [das relações] e a impotência do criollo residente
revelam o poder transformador de trocas sociais contínuas. Mas como essas relações
sabiam que espécie de ser era aquela – a uma fase em que passam a conhecê-los bem (e a
mesma mudança pode ser observada também em algumas narrativas sanumá ou no relato
tornar-se como eles, afinal, o modo de conhecer yanomami, é uma forma de subjetivação
que envolve este, ver como outro, 'tornar-se outro'.170 A transformação em branco envolve
especializado: dois aspectos que não são mesmo facilmente separáveis (2003: 103-104).
missão, e não mais isoladas nas matas das cabeceiras dos rios. À mudança do local de
aldeamento logo se acrescem outras: “agora as pessoas comem a comida dos brancos e
vestem suas roupas; às vezes, também, a adoção de tetos de zinco e de motores, […] e
mesmo a disseminação de doenças epidêmicas” são apontadas como indícios deste “virar
branco” (Kelly 2003: 104, ver também 2005: 210). Expressões como “antes os antigos não
decorrentes da relação com os brancos, encontram eco nos próprios discursos míticos,
sobretudo aqueles que trazem a ação civilizacional de Omama. 171 Se nos relatos míticos os
Yanomami, agora, pela aquisição de itens culturais brancos, eles estão se tornando
metamorfoses míticas ou ainda aquelas que podem ocorrer sob o efeito de encontros com
outras formas de alteridade, exercendo o mesmo poder de atração e perigo (Kelly 2003:
105-106 ).
As ações empreendidas sob a insígnia do “virar branco” são, ao mesmo tempo, parte
epitomizados pelo ler e escrever, possui assim uma dupla relevância. Por um lado, eles são
próprios brancos – como expresso por Kopenawa (2001b: 21): “[os antigos] não
compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram penetrar em suas
terras dessa maneira amistosa. Se tivessem compreendido suas palavras, acho que os
situadas próximas dos brancos e aquelas no interior do território (Kelly 2003, 2005).
educação, saúde, política e acesso a bens, ganham o estatuto de “menos civilizados”, e são
tomados como uma imagem do passado recente, aquilo que os “Yanomami civilizados
156
eram antes de iniciada esta transformação” (id. 2005: 210). Essa diferenciação sincrônica
agente:
yanomami dos mitos) que tem por referência justamente os traços ontológicos e predicados
morais que discutimos nas seções precedentes: viver junto, falar a mesma língua, possuir
eventualmente ser estendida a outros seres (todos os indígenas, por exemplo) por oposição
a napë. Por seu turno, a napëidade refere-se à alteridade inata dos brancos e tem como
branco”.
de bens manufaturados, e ainda mais, sua produção. No contexto de troca, por conseguinte,
todo aquele que possui mercadorias para dar ocupa uma “posição napë” frente àqueles que
yanomami”. Os pólos desse gradiente são os napë yai – fonte e produtores de bens –, e os
waikasi – que sempre ocupam a posição de receptores –; entre eles estão tanto os brancos
termos de “ocupar o lugar dos primeiros missionários nestas redes de relação” (Kelly
Os Yanomami de Ocamo movem-se rio acima e rio abaixo e, dessa maneira, trocam
bens, experiências e idéias com outros índios e brancos: vistos da perspectiva de rio
abaixo, são receptores (yanomami); da de rio acima, são provedores (napë) (Kelly 2005:
perspectivas […] localizáveis numa rede de relações ao longo do rio” (ibid.: 211).“Virar
branco” é portanto uma ação deliberada de diferenciação, pelo realce de uma napëidade
220). Mais ainda, “virar branco” parece ser uma forma de singularização, pela
1988) do tipo yanomami/napë, afinal, ainda que nunca sejam considerados realmente
Yanomami, quando em relação aos napëyai, eles são, evidentemente, mais yanomami e
menos napë que estes. Mas brancos co-residentes e “Yanomami civilizados” são pessoas
“inato” de cada um deles é simétrica e inversa. Além disso, o problema que a posição de
“terceiros incluídos”, têm que enfrentar, sublinhei a ausência de laços reais como o que
como buscar um equilíbrio entre obrigações institucionais com todos (no caso de um
enfermeiro, por exemplo) e a obrigação de parentesco com alguns (Kelly 2003: 142).
Destacar o lado napë ou yanomami nas interações é tratado por Kelly como um ato
Meu uso do termo [obviação] é inspirado pela explicação de Wagner (1978: 31-
32) sobre os dois sentidos da palavra "obviar": tornar proeminente certas
associações de um símbolo — torná-las imediatamente aparentes — às custas de
outras que, por implicação, passam assim "despercebidas". Em referência à
"domesticação dos brancos", obviar é enfatizar — artificial/intencionalmente —
a semelhança, por meio da co-residência cotidiana, do uso da língua, do emprego
de termos de parentesco etc.; em certos contextos ritualizados, é "ignorar" o
perigo e a Alteridade inata dos brancos. Em referência ao "virar napë", a
obviação ocorre quando os Yanomami enfatizam sua napë-idade às expensas da
condição inata de yanomami— no contexto da interação com seus congêneres
rio acima, ou quando eles enfatizam sua yanomami-dade às expensas de seu
"lado napë", nas relações com os brancos. Claro está que os Yanomami
"civilizados" também podem enfatizar a semelhança yanomami quando estão
entre seus congêneres rio acima, ou a semelhança mestiça quando estão entre os
brancos (2005: 220).
da equipe médica, os Yanomami esforçam-se por atuar seu lado napë, tornando-o mais
fumam cigarros – modo propriamente napë de consumir o tabaco, por oposição ao hábito
yanomami de “mascá-lo – e costumam fazer suas refeições junto com os médicos “um ato
que não apenas significa que eles 'sabem como comer a comida dos brancos', mas que
também expressa, por meio da partilha alimentar, mutualidade entre eles e os brancos e sua
assimilação a estes últimos” (ibid.: 221). Acrescente-se a essa atuação a habilidade de falar
ainda uma cadeia de comando – tipicamente napë, já que os Yanomami não “ordenam-se”
– na qual os médicos dão instruções aos motoristas, que repassam as tarefas aos outros
Yanomami da equipe.
Todos estes são traços reconhecidamente napë utilizados com o intuito claro de
a agir moralmente: eles devem ser generosos, evitar que as pessoas sofram, falar
compartilhada, uma yanomamidade que não pode ser nunca eclipsada. Pois, de fato, é o
próprio esforço de diferenciação que contra-inventa essa moralidade inata, que vem à tona
yanomami: por exemplo, dar um presente, diminui o sofrimento e é portanto uma ação
moral/yanomami, ao mesmo tempo que coloca a pessoa provedora na posição napë (Kelly
2005: 222).174
174
A situação é diferente com relação aos brancos que, nestes contextos são pensados como indubitável e
inatamente napës, independente de como reajam diante das demandas: “brancos, como médicos ou
missionários residentes, são inatamente napë, a despeito de sua reação aos pedidos de bens
manufaturados. Se resistem a essas solicitações, são acusados de avareza, o que aponta para o significado
convencional de napë (inimizade). Se as solicitações são satisfeitas, os brancos são confirmados como
napë, no sentido do contexto da "transformação em branco" (provedor de objetos)” (Kelly 2005: 222).
160
deliberadamente, buscaram se diferenciar tanto dos brancos quanto das outras etnias ali
discurso indignado no qual foram muito utilizadas expressões que remetem diretamente à
sua ética do cuidado tais como “nós que estamos aqui sofrendo”, “estamos em
foram obviadas para produzir uma diferença máxima com relação aos napë, estes sim,
napë yai. Mas assim como nas comunidades de rio acima, os Yanomami mantinham o
um corpo napë – com suas roupas e hábitos –, aqui, para que a mediação fosse possível,
eles também devem fazer uso de alguns atributos brancos, como demonstra Kelly:
afinal “virar branco”, expresso pela palavra yanomami napëprou. A forma napë-prou
indica a fase final de um processo ainda em curso: virando napë, mais que virar napë.176
concluído, como é próprio dos devires. Napë é, portanto, uma posição da qual os
Yanomami se aproximam sem nunca completar a transformação (do mesmo modo que um
yanomami ou napë não são denominações étnicas ou identitárias, mas sim atributos
(ibid.: 211).
Esse “eixo transformacional napë” pode ser apreendido por uma extensão da
diversificação da classificação dos brancos apontada por Albert. Em resumo, em uma tal
composição os napë yai ocupam a esfera do poder exterior, com toda a ambiguidade
enfraquecida destes últimos e que operam como pontes para a captura destes benefícios do
exterior – podem ser pensados como terceiros incluídos: aliados/amigos. O espaço dos
parentes é por fim reservado aos próprios Yanomami como um todo, já que eles são, por
Contudo, como toda extensão traz consigo também a inovação, esse eixo
176
O perfectivo -prariyo (e não -prou) é usado quando o processo se completa, embora as duas formas sejam
também utilizadas para referir-se a metamorfoses míticas (Kelly 2003: 106).
177
Sendo assim, “virar branco” não significa “deixar de ser índio” como oposições do tipo índio/branco
operacionalizadas no discurso político dos agentes da sociedade nacional parecem indicar (Kelly
2005:211). Como observava Ramos (1990: 296), o “índio” dito por um branco definitivamente não é a
contrapartida simétrica do napë dito por um Yanomami.
162
transformacional, na medida em que tem como direção e limite a posição de napë, introduz
uma hierarquia que rompe com o caráter isomórfico do espaço tradicional yanomami.
Aliança e inimizade são relações de reciprocidade entre iguais, mas nas relações de troca
relação aos seus parceiros rio acima. Se o espaço convencional yanomami é formado por
embora o modelo permaneça sociocêntrico, os Yanomami de Ocamo não são mais o centro
de um espaço concêntrico, mas antes, um ponto médio de uma rede linear que vai dos
waikasi aos napë yai, e esta mudança certamente não pode ser minimizada (ibid.: 219-
220).
amplo, já que em muitas aldeias yanomami, os brancos são uma forma privilegiada de
que essa transformação – tal e qual uma metamorfose mítica – é um processo irreversível:
não é mais possível voltar a ser (apenas) Yanomami, vivendo no meio da floresta, sem
impossibilidade de se livrar da shawara: ela está em todo lugar e não irá desaparecer, não
importa o que os Yanomami façam (Kelly 2003: 105-106). Dado este quadro, os
Yanomami assumem que a única forma de tornar proveitosa esta transformação, entendida
como um trade-off, é fazendo-se cada vez mais napë, ou seja, tendo acesso e controle
sobre mais e mais bens e recursos estrangeiros, aproximando-se dos napëyai. Trata-se de
seguir no “caminho dos napë”, traduzido como “progresso”, que é a forma como esta
163
transformação é expressa no discurso político articulado por estes novos líderes 178 (Kelly
2003: 108). Mas essa solução encontrada em Ocamo para a relação com os brancos não é
transformação não-desejada –, pois, entre outras coisas, sempre traz o risco de, neste “virar
outro”, não mais reconhecer os seus. Mas, para além desse risco, a ambígua avaliação
sobre os brancos – seres moralmente degenerados, mas dotados de uma grande potência
tecnológica – que se revelava nos mitos, é na verdade uma questão política que se coloca
se o problema da origem dos brancos está, por assim dizer, resolvido desde
antes do começo do mundo [eles encontram seu lugar junto à alteridade
inata], o problema simétrico e inverso do destino dos índios permanece-lhes,
parece-me crucialmente em aberto. Pois o desafio ou enigma que se põe aos
índios consiste em saber se é realmente possível utilizar a potência
tecnológica dos brancos, isto é, seu modo de objetivação – sua cultura – sem
se deixar envenenar por sua absurda violência, sua grotesca fetichização da
mercadoria, sua insuportável arrogância, isto é, por seu modo de subjetivação
– sua sociedade (2001b: 51).
Esse “enigma” não foi ainda desvendado pelos Yanomami, que continuam a realizar
em termos menos extra-ordinários. Smiljanic (1999: 185) esclarece que “os rapazes,
muitas vezes, dizem que, embora usem roupa e tomem os remédios dos brancos, eles não
se transformam em brancos”.
garimpeiros com sua fome de ouro – levou à elaboração de uma crítica xamânica acerca do
fetichismo do ouro e do “povo da mercadoria” que parece implicar uma rejeição inclusive
dos conhecimentos dos brancos (Albert 2002; Kopenawa 2001b). “Os brancos são
engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria”,
afirma Kopenawa (ibid.: 21) e explica o motivo desta ignorância: “seu espírito está
dos brancos, calcado na escrita, seria antes um “esquecimento” das palavras dos antigos e,
de visão que só remete ao domínio dos manufaturados e das máquinas” (Albert 2002:
eles [os brancos] dizem que nós somos ignorantes, mas estão errados. É o
contrário. Somos nós que sabemos das coisas e que protegemos a floresta.
Somos amigos da floresta porque nossos espíritos xamânicos são os seus
guardiães […] São eles que nos fazem pensar direito e ficar lúcidos. Quando
estão perto de nós fazem crescer nossas mentes, fazem-na ir longe. Nosso
pensamento não é fixado em outras palavras. É fixado na floresta, nos
espíritos xamânicos... (Kopenawa apud loc.cit.).
Os bens e recursos dos napë não são separáveis de sua moralidade inapropriada, são
antes, uma das causas de seu pensamento turvo. Na versão de Davi Kopenawa, Omama
expulsou os brancos da terra-floresta, porque estes não ouviram suas advertências sobre o
Foi neste momento que eles perderam realmente toda sabedoria” (Kopenawa 2001b: 22). A
falta de discernimento dos brancos e a imagem das grandes cidades, parecem sugerir quão
A atividade dos brancos traz o risco de uma nova alteração na configuração dos
englobar as noções de “poluição” e mesmo “efeito estufa”, se torna cada vez mais forte
apesar de todos os esforços dos xamãs para combatê-la. No dia em que o último xamã
morrer, o céu realmente caírá e nem sempre os Yanomami se mostram muito confiantes
ante a possibilidade da criação de uma nova humanidade (Smiljanic 1999: 205). Como
atenta Albert, a gênese da humanidade atual pela queda do céu se reproduz como ameaça
de futuro anterior, o mito da queda do céu vê, assim, a autoridade de seu simbolismo
Os Yanomami parecem, portanto, vislumbrar hoje em dia (ao menos) duas soluções
para o que os brancos representam de problema nas suas vidas: “virar branco” –
riscos que isso implica – ou, ao contrário, uma negação radical do valor dessa alteridade
alternativas parecem ecoar em uma escala coletiva, os caminhos possíveis para amainar a
1996; cf. p.69-70 supra). Lá, como aqui, não se trata de alternativas excludentes, mas de
sejam estes corpos uma pessoa ou uma coletividade: a ação diferenciante como mecanismo
uma mesma dialética. E o xamanismo tem um papel fundamental neste processo, seja qual
for a escala.
aprendizagem desejável, e buscada sobretudo pelos xamãs, que, desta forma, passavam a
conhecer os caminhos que levam aos espíritos associados aos brancos (Smiljanic 1999:
185). Em Ocamo também a imagem vital dos brancos e seus instrumentos são
podem aprender “novas técnicas” com estes espíritos auxiliares napë, mais eficientes no
missionários (Kelly 2003: 228). Mas o manejo dos espíritos dos brancos pelo xamanismo
yanomami não visa apenas potencializar a cura de novas doenças, ele é também uma forma
de assumir certo controle sobre este potencial “alterante” da relação com os brancos.
De fato, o xamanismo foi percebido por diversos autores como uma dimensão
forma privilegiada de saber estratégico para se lidar com alteridade (Albert 2002), seja
porque as mudanças causadas por este processo – o próprio virar branco – são pensadas em
vista sobre seu próprio corpo, porém de uma maneira razoavelmente controlada (cf. p. 70-
com o branco, tão importante quanto o fato de que elas sejam pensadas como
que permitam uma re-apropriação criativa dos atributos desta perspectiva outra. 180
produção empreendida por Davi Kopenawa. Criado sob a influência dos missionários,
Davi deixou sua região e foi ser intérprete da FUNAI, aprendendo e convivendo com os
thë, foi iniciado por seu sogro no xamanismo, o que o permitiu empreender um processo
brancos. A estratégia empreendida por seu sogro é digna de nota: “conquistando o domínio
dos termos da relação interétnica por meio do jogo político tradicional [fazendo de Davi
uma associação com o posto da Funai […] neutralizando ao mesmo tempo a estrutura de
180
Evidentemente este mínimo de controle a que me refiro está em correlação com a dose de casualidade
exatamente suficiente a que referia-se Wagner (1981:72): “Learning to dare, to take the moral constraints
on invention just casually enough to permit the kind of free-wheeling improvisatory action that allows a
firm but flexible creation of convention”
168
criativa advinda daí, cooptados pelo xamanismo de seu sogro, “tradicionalista convicto”,
para o fortalecimento dos Yanomami em uma existência autárquica, pois que, a ação
diferenciante não busca outra coisa senão que a constituição de pessoas “poderosas”, poder
***
yanomami, tanto quanto no contexto convencional isto era dado pela relação bei bihi/bei a
në porepi. Não ao acaso, ambos (napë e bei a në porepi) associados aos fantasmas dos
Considerações finais
doenças, relações com os brancos, etc. – tendo como referência o problema da pessoa e
narrativas, em certa medida redundantes entre si, foi o ponto de partida para o
humanidade podem ter entre os Yanomami – tal como entrevistas em suas etnografias. A
redundância entre o conjunto de mitos acerca dos ancestrais animais e aquele referente à
yanomamidade – surge, ora como uma condição dada da qual participam (potencialmente)
todos os seres do mundo, ora, uma invenção empreendida pelo demiurgo e atributo
e invenção, tal como proposta por Wagner (1981). No entrecruzamento desta, com as
181
Devo alertar que refaço este percurso com uma grande economia de citações e referências – sobretudo
para tornar a leitura mais fluida – e só tomo a liberdade de fazê-lo, porque acredito que o nome de meus
credores estão inscritos neste texto para além da própria citação.
170
'personitude' pela idéia de 'alma'. Alma refere-se às convenções, de modo que todo ser
dotado de alma compartilharia de uma mesma “cultura” no sentido daquilo que coletiviza:
yanomamis: donde resultam nos mitos dos ancestrais animais, os yanomami coati,
yanomami anta, yanomami queixada, etc. É a alma também que faz da metamorfose
sempre uma possibilidade e um risco, pois, na medida em que ativada e precipitada pela
sua relação com outros, a alma se revela extremamente instável, podendo assumir
diferentes formas dependendo das relações que entretenha; isto sem dizer de sua
vulnerabilidade que faz com que ela possa ser roubada, perdida, e mesmo, devorada. A
mitologia dos ancestrais animais, articulando uma condição humana dada e compartilhada,
afirmar como modo de evitar uma relativização excessiva – isto é, conexões que
desafiariam a um tal ponto a convenção, que acabariam por impedir até mesmo a invenção
–, um colapso, tal como uma queda do céu. Omama assegura distinções ontológicas
suas almas. Sobretudo, ele cria os Yanomami, retomando o sentido de yanomamidade não
mais como subjetividade compartilhada por todos os seres (yanomami = sujeito), mas
fazendo dela epítome de uma moralidade que não é outra coisa senão a imagem da
justamente, por inventá- la, pois a “convenção”, em uma tradição diferenciante, só pode
potencial de alteração, uma vez que este, enquanto expressão de um potencial criativo e de
Uma vez que o curso da ação pode ser dirigido de mais de uma maneira – isto é,
restringir o número de conexões possíveis, sob pena de não mais se reconhecer. Entretanto,
é preciso lembrar que esta coletivização advém como uma ação 'defensiva', e, mesmo na
esfera das relações domésticas, a diferenciação tem um papel fundamental, ainda mais
corpo específico. Em outras palavras, o que define a posição de yanomami é ser dotado de
corpo e alma.
Essa afirmação genérica da relação entre corpo e alma adquire sua forma específica
pela relação de uma multiplicidade de componentes, que passa, necessariamente pelo olhar
173
figurada como bei a në utupë, “as verdadeiras imagens”, acessíveis aos xamãs Yanomami;
se tomada como potência de alteração, ela se deixa apreender também como o bëi a në
borëbi, espectro e duplo da pessoa associado aos fantasmas. O corpo como precipitado de
propriedade se submete por completo ao seu uso pelos outros. A pele, bei sikë, é
responsável por reunir estes componentes conferindo-lhe uma forma corporal visível
relações inter-pessoais (na esfera das relações intra-comunitárias, para ser mais exata). 183
Ainda na esfera das relações entre animais e espíritos, apontei como o xamanismo é
criativa dessa comunicação e potência de alteração: sugeri que o xamã se torna assim um
realização humana. Mas o próprio xamanismo possui também um uso terapêutico que
– ganha primazia sobre os impulsos criativos (embora, claro, eles estejam sempre
mutuamente implicados). Pois, dentre os caminhos que a 'alma' tem diante de si para
realizar-se, encontra-se também este que retoma a convenção (dada) como algo a ser
deliberadamente instituído.
183
A idéia de que a alma é o que coletiviza e o corpo aquilo que especifica, recebe assim as devidas nuanças,
necessárias para que a afirmação da conceitualização nativa da pessoa como multiplicidade, não possa ser
retomada como expressão do Um e do Múltiplo (cf. Lima 2005)
174
homem coincide com a figura do parente. Assim, no terceiro capítulo desta dissertação,
tratei dos predicados morais indicados no mito de criação da humanidade por Omama, tal
como eles surgem nas etnografias articulados nas relações entre aliados e intra-
consideradas corretas – ou seja, aquelas que reafirmam a convenção –, para que seja
fluxo de sangue, os diálogos cerimoniais, seriam, portanto, alguns dos principais artifícios
pelos quais os Yanomami se (re)produzem como um ordem distinta, ainda que englobada e
motivada pelo exterior. Contudo, tal qual na própria mitologia de Omama, a diferença
traições, mas é essa contra-invenção que garante a vitalidade desta moralidade, como
pela relação com os brancos. Fiando-me no trabalho de Kelly (2003, 2005), considerei o
como uma alteridade inata poderosa e perigosa, que os Yanomami esforçam-se por
corporal dos brancos são utilizados pelos Yanomami em uma dinâmica própria de
diferenciação – napëprou – na qual, virando brancos, “eles se fazem cada vez mais
yanomami” já que está em jogo aqui uma noção de pessoa calcada no “diferir”. Na relação
vezes perigosa, como fazem ressoar algumas interpretações catastróficas da relação com os
brancos.
experimentação? E não seria sempre perigosa, em um mundo onde tudo é humano? Mas,
talvez, seja justamente desse perigo que advenha o brilho da floresta yanomami. 184 A
'pessoa', entre os Yanomami, é sobretudo 'uma relação pessoal com o mundo' 185, de modo
Caberia destacar, por fim, que o problema “disparador” deste exercício de revisão, a
de um demiurgo, tal como aparecia prefigurada pela correlação dos mitos dos ancestrais
184
Refiro-me aqui à imagem da floresta de cristais sugerida pelo xamanismo yanomami (Albert &
Kopenawa 2003), em correlação com uma certa qualidade de brilho que Wagner (1981: 67) sugere ser
perceptível em tradições diferenciantes “Life as inventive sequence has a particular character, a certain
quality of brilliance that beggars comparison with our busy busy world of responsibility and
performance.”
185
Wagner, sobre a forma da pessoa em uma tradição diferenciante, escreveu: “For the soul is at once the
culture's great mystery, the thing it enhances, searches, nourishes, and compels, and also the very
convention that anchors the actor to his world of dialectical invention. It is not only self, but also
morality, not only "person," but also a personal relation to the world.” (1981:72)
176
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