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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Pessoa e humanidade nas etnografias Yanomami

Tainah Víctor Silva Leite

Rio de Janeiro

2010
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2

Universidade Federal do Rio de Janeiro


MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Pessoa e Humanidade nas etnografias Yanomami

Tainah Víctor Silva Leite

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título
de Mestre em Antropologia Social.

Orientadora:
Profª. Drª.Aparecida Vilaça

Rio de Janeiro

2010
3

Ficha Catalográfica

Leite, Tainah Víctor Silva.

Pessoa e humanidade nas etnografias Yanomami/ Tainah Víctor Silva Leite. Rio de
Janeiro, PPGAS-MN/UFRJ, 2010.

184 pp., ix pp.

Orientadora: Aparecida Vilaça

Inclui bibliografia.

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu


Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2010.

1. Antropologia. 2. Etnologia Indígena. 3. Yanomami. 4. Noção de pessoa. I. Vilaça,


Aparecida (Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III.
Título.
4

Pessoa e humanidade nas etnografias Yanomami

Tainah Víctor Silva Leite

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do


Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Mestre em Antropologia Social, aprovada por:

___________________________________________________
Profª. Drª. Aparecida Maria Neiva Vilaça – PPGAS/MN/UFRJ
(orientadora)

______________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro – PPGAS/MN/UFRJ

______________________________________________________
Prof. Dr. José Antonio Kelly Luciani – UFSC

______________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto – PPGAS/MN/UFRJ (suplente)

______________________________________________________
Dra. Lydie Oiara Bonilla – Pós-Doc PPGAS/MN/UFRJ (suplente)

Rio de Janeiro, 30 de junho de 2010


5

RESUMO

Palavras-chave: Yanomami, noção de pessoa, humanidade.

Este trabalho consiste em uma revisão da literatura etnológica sobre os Yanomami


(população do norte amazônico falante de línguas da família yanomami), tendo como foco
de leitura, as noções de pessoa e humanidade. Trata-se de um duplo exercício de (I)
exposição de tópicas centrais da socialidade yanomami, tal como surgem em suas
principais etnografias, ao mesmo tempo em que articulando-as com uma (II) problemática
acerca dos sentidos inclusivista ou exclusivista que humanidade pode vir a ter nas
elaborações nativas. Inspirado pelas elaborações de uma teoria do simbolismo de Roy
Wagner e pelas etnografias amazônicas recentes, tratou-se de demonstrar como estes dois
sentidos, no qual ora humanidade é uma condição imanente e compartilhado por muitas
espécies, ora um atributo exclusivo dos próprios Yanomami, estão articulados em uma
mesma dialética pela qual se constrói a noção de pessoa nativa.
6

Para Caio e Sophia,


meus irmãos

Para Felipe
7

Agradecimentos

A Capes pela concessão de dois anos de bolsa de estudo.

Aos funcionários do PPGAS-MN e da Bilbioteca Francisca Kelly, pelo exercício


atencioso de suas muitas atribuições.

A Aparecida Vilaça, cuja orientação atenciosa e diálogo estimulante foram fundamentais


para a realização deste trabalho.

Aos demais professores do PPGAS/MN, em especial, àqueles que pude acompanhar as


disciplinas ministradas: Carlos Fausto, Eduardo Viveiros de Castro, Fernando Rabossi,
Marcio Goldman, Renata Menezes e, em especial, Lygia Sigaud (in memoriam). Aos
professores da UFMG que iniciaram minha formação em Ciências Sociais, em especial a
Ruben Caixeta que me fez enveredar por paisagens amazônicas. A Sisse e Juliana pelos
aprendizados no penar de uma outra escritura e pelo exemplo.

A José Kelly, pela generosidade, traço que comparte com os Yanomami que me apoiou e
estimulou a estudar. A Maria Inês Smiljanic pela solicitude e abertura na interlocução
sobre os Yanomami. À equipe do ISA Boa Vista, por me acolherem durante a XII etapa do
curso de formação de professores: Lídia, Clarisse, Ana, Gisele... E sobretudo a Hanna, que
me deu casa, comida e ouvidos. Aos professores Yanomami pelo acolhimento e entusiasmo
em me ensinar as primeiras palavras em Yanomami, em especial a Eliseu Xirixana que me
convenceu a realizar minha pesquisa de campo seguinte em sua comunidade. A Davi
Kopenawa, por me ceder um pouco do seu tempo e por suas palavras sempre instigantes.

Aos colegas do PPGAS: Aline, Bruno, Caio, Gustavo, Isabel, Isis, Laura, Luana, Thiago,
pelo que experimentamos juntos. E ainda Lara, Martinho, Paula, Patrícia e outros que se
juntaram a esta turma de 2008. Àqueles que ao longo do mestrado multiplicaram alegria e
dividiram aflições cotidianas: Cèline e Sapori; Juliana e Osvaldo. Aos amigos mineiros e
outros migrantes por fazerem do Rio de Janeiro um lugar surpreendentemente acolhedor.
Às minhas adoráveis mulheres: Paula, Cinthyia, Laetitia, e aos queridos Otavio e Theo. A
Clarissa, Flávio, Fernando, Luciana, Luísa, Marcus e Thiago, por um tudo de muitos anos
de amizade.

À minha família: avós, tios, primos. A tia Tatá, pelo carinho e bondade sem limites. Ao
meu pai, pelas conversas sobre tudo e qualquer coisa. À minha mãe, pelo apoio e amor, e
por ser um exemplo na capacidade de se re-inventar. A ela e Fernando meu agradecimento
ainda por me acolherem de volta em casa, oferecendo condições efetivas e afetivas para
esta escrita. Aos meus irmãos, Caio e Sophia, por tudo que me ensinam enquanto inventam
o mundo. A César, pelo porvir.
8

Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto:


que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
terminadas - mas que elas vão sempre mudando.
[...]
Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo:
julgamento é sempre defeituoso.
[...]
No mais, mesmo, da mesmice, sempre vem a novidade.

João Guimarães Rosa


9

Sumário

Introdução 11

Os Yanomami e seus antropólogos 12

A invenção da pessoa e o problema da humanidade 19

Plano da dissertação 27

Capítulo 1.
“No tempo dos ancestrais os homens já existiam”:
desdobrando pessoa e humanidade na mitologia yanomami 29

1.1-“Apesar de serem Yanomami, eles viraram pecaris”: 30


agência e transformação

1.2. “Omama fez as pessoas virarem yanomami”: 39


moralidade e estabilizacão

Capítulo 2.
Humanos, espíritos e animais 52

2.1. Yai thëpë 53

2.2. Yaropë 58

2.3. Yanomami thëpë: ou de que é feita uma pessoa 62

Capítulo 3.
Contra inimigos: parentesco e moralidade 84

3.1. “Omama nos deu uma nova pele”: a fabricação dos corpos 88

3.2. “Ele nos recriou e nós pudemos aumentar novamente”: 103


fertilidade como marca de moralidade

3.3. “Depois ele nos criou nos dando a palavra”: 120


discursos cerimoniais e a arte do bem-falar
10

Capítulo 4. 130
Os Brancos

4.1. Extensão e convencionalização: 132


o lugar dos brancos na cosmo-sociologia yanomami

4.2. Invenção e diferenciação: 153


“virar branco” como forma de ser Yanomami

Considerações finais 169

Referências bibliográficas 176


11

Introdução

Esta dissertação é o resultado de um olhar interessado sobre a literatura etnológica

acerca dos Yanomami, tendo como fio condutor a noção de pessoa e o problema da

humanidade. A bem da verdade, ao iniciar a leitura das etnografias sobre essa população

amazônica, o objetivo era realizar uma revisão bibliográfica destacando a relação entre

Yanomami e missionários, em um diálogo tanto com a nova antropologia do cristianismo

(Robbins 2004; Cannell 2006; Vilaça & Wright 2009) quanto com problemas colocados

pela etnologia amazônica. Nesse quadro, a questão da pessoa surgia como um articulador

importante dessa relação, dada a relevância que tem para as cosmologias ameríndia e

cristã, e, sobretudo, pelas dissonâncias que essa mesma relevância esconde.

Durante o percurso de leituras, fiz uma viagem à Boa Vista (RR), com o intuito de

estabelecer um primeiro contato com os Yanomami, tendo em vista a possibilidade de

realização de uma pesquisa de campo de maior monta no futuro. O contexto desse

encontro foi uma das etapas de formação intensiva do curso de magistério dos professores

Yanomami, na própria cidade de Boa Vista. 1 Ao longo de 40 dias, aproximadamente, dividi

a rotina – acompanhando as atividades diurnas do curso e ministrando uma monitoria de

informática no início da noite – com cerca de 40 professores Yanomami, de diferentes

comunidades e regiões, a maioria jovens e todos homens, que possuíam um domínio

diferenciado do português e falavam frequentemente mais de uma língua yanomami. 2

Este primeiro contato, por sua curta duração e caráter excepcional, não servirá de

base à exploração realizada aqui, mas contribuiu para iluminar a relevância de algumas

questões concernentes a relação entre pessoa e humanidade, tal como se deixavam


1
Trata-se do Magistério Yarapiari, parte do Projeto Educacional Yanomami (PEY) do ISA pro-Yanomami
(ex-CCPY). Em sua XIII etapa de formação intensiva (realizada em outubro de 2009) os professores
tiveram módulos de biologia, química, matemática, filosofia e sociologia, além de palestras sobre direito
indígena e legislação ambiental.
2
A única exceção era uma patayoma (pata- grande/velho, -yoma, mulher) do Pararawau, companheira de
desentendimento recíproco e cordial.
12

apreender da leitura das etnografias. A esta altura, o problema da pessoa yanomami, em

sua articulação com outras questões da etnologia amazônica, foi me obsedando – e tanto

mais, quanto seus sentidos me escapavam – enquanto os missionários foram

gradativamente perdendo espaço. 3

Os Yanomami e seus antropólogos

O etnônimo “Yanomami” consagrou-se como a denominação de uma população

ameríndia habitante do norte amazônico, a oeste do maciço guianense. Originalmente uma

corruptela da expressão yanõmamɨ thëpë4 – auto-denominação de um dos primeiros grupos

desta população estudados pelos antropólogos Napoleon Chagnon e Jacques Lizot, nas

décadas de 60 e 70 – o etnônimo ganhou reconhecimento oficial e é hoje utilizado pelos

próprios nativos para referirem-se à etnia como um todo, isto é, ao conjunto de pessoas

ligadas por laços de parentesco e aliança que partilham do mesmo território e são falantes

de línguas aparentadas entre si. Trata-se de uma população de cerca de 30.000 pessoas

habitante do interflúvio Orinoco-Amazonas, distribuída em uma região que se estende da

fronteira norte do Brasil ao sul da Venezuela em um território de aproximadamente

192.000 km². No Brasil, a Terra Indígena Yanomami ocupa uma área de 96.650 km², nos

Estados do Amazonas e Roraima, entre os afluentes da margem esquerda do rio Branco e

margem direita do rio Negro, e a estimativa da população em 2010 era de 17.000 pessoas5

(Enciclopédia dos Povos Indígenas/ISA).

3
Acrescente-se ainda o fato de que a bibliografia acessível sobre os Yanomami é muito mais vasta do que
aquela sobre os missionários cristãos que atuam ou atuaram na região. Há, é verdade, uma bibliografia
dos missionários sobre os Yanomami – que não deixa de ser, evidentemente, uma bibliografia sobre a
relação entre eles – mas que nem sempre é disponibilizada para aqueles que possuem outra profissão de
fé, de modo que meu interesse nessa relação foi postergado para uma outra etapa de pesquisa que espero
realizar em breve.
4
Essa expressão tem importância capital no desenvolvimento da dissertação, posto que articula diferentes
sentidos de humanidade mais ou menso inclusiva.
5
Na TI Yanomami, além dos próprios, há ainda algumas comunidades Ye'kuana (grupo falante de uma
língua Karib) sobretudo ao norte de Roraima.
13

O termo Yanomami pode referir-se ainda à família linguística composta por ao

menos quatro línguas distintas faladas por esta população: Yanõmamɨ, Yanomam, Sanɨma

(ou Sanumá) e Ninam/Yanam (Miggliazza 1972). 6

A estas diferenças linguísticas de graus variados corresponde também uma distribuição

geográfica da população que coincide com outras diferenças sócio-culturais internas à

população Yanomami, usualmente utilizadas pela literatura etnológica para a demarcação

de diferentes sub-grupos. Entretanto, ainda que diferenças linguísticas – e mesmo sotaques,


6
Mais recentemente, Ramirez (1999), propôs a divisão da família também em quatro línguas, que
denominou Y, S, N e A. A divisão Y, englobaria a maior parte da população Yanomami, e subsumiria ao
menos sete sub-dialetos, dentre eles, os superdialetos Yanomamɨ e Yanomam, que Migliazza, entretanto,
distinguia como línguas diferentes. A língua N, por sua vez, engloba o superdialeto Ninam, ao passo que
a língua S compreenderia o Sanumá. A divisão A se referiria ao Yanomam, falado nas regiões de Ajarani,
do baixo Mucajaí e do baixo-médio Catrimani. Embora cada uma destas línguas, se divida ainda em
vários dialetos e sub-dialetos, elas apresentam uma grande homogeneidade gramatical e partilham boa
parcela de vocabulário. As maiores diferenças seriam encontradas entre as línguas S e A (Ramirez 1999:
12).
14

dialetos – tenham uma grande relevância para a demarcação de diferenças e fronteiras

pelos próprios Yanomami, isto não impede que redes sociais de aliança atravessem

facilmente as divisões linguísticas, e muitas vezes a proximidade social e geográfica

desempenha um papel mais marcante nas classificações locais do que considerações de

idioma (Ramos 1990: 289).

Na revisão da literatura etnográfica sobre os Yanomami emprendida ao longo deste

trabalho, farei recurso a diversas fontes bibliográficas sobre diferentes sub-grupos com o

objetivo de traçar um quadro geral “yanomami” a partir do tema central desta dissertação –

a noção de pessoa. Ao tomar por objeto a etnia como um todo, ao invés de algum sub-

grupo específico, não pretendo, contudo, minimizar as distinções internas à essa

população. Ao contrário, sempre que possível e oportuno, tentarei apontar as diferenças e

especificidades que emergem desse exercício. 7 Entretanto, tampouco busco realizar aqui

uma revisão exaustiva da literatura etnográfica existente sobre os Yanomami; a paisagem

final se assemelharia mais ao mosaico do que ao panorama.

Os grupos locais Yanomami – as “comunidades”, como glosam os Yanomami

falantes de português – são aglomerados plurifamiliares constituídos de 30 até 350

pessoas, pensados como entidades políticas e econômicas autônomas, ainda que imersos

em uma rede de relações intercomunitárias que associa e opõe aliados e inimigos de uma

ponta a outra do território. O padrão residencial difere de um grupo a outro: enquanto os

Yanomam e Yanomamɨ possuem grandes casas comunais circulares, em formato cônico ou

abertas no meio – nas quais podem residir duas ou mais seções, com os fogos domésticos

(que marcam normalmente uma família nuclear) distribuídos junto à parede externa, ao

7
Como ficará claro ao longo da leitura, tomarei como referência principal etnografias sobre os subgrupos
Yanomam (Albert 1985; Smiljanic 1999) e Yanomamɨ (Lizot 1984a, 1988 [1976]; Kelly 2003; Carrera
2004), sobre os quais há um maior número de trabalhos publicados e que são considerados mais
“próximos” do ponto de vista lingüístico e territorial em comparação aos outros dois sub-grupos. O
material sobre os Sanumá (Ramos 1990; Guimarães 2005a) servirá sobretudo como uma fonte de
comparação e controle.
15

redor da praça central 8–, as aldeias Sanumá e Ninam são formadas por várias pequenas

casas retangulares distribuídas de maneira irregular sobre o terreno – nas quais famílias

conjugais, extensas (um casal com suas filhas e genros) ou poligínicas, distribuem-se ao

redor de suas fogueiras.9

De um modo geral, as atividades econômicas e produtivas a que se dedicam os

Yanomami são a caça (com uso de flechas), a pesca (com veneno e com linha), a coleta, e

uma agricultura itinerante de coivara, na qual a banana e a mandioca têm destaque, mas

onde também há espaço para a taioba, o inhame, a cana, o tabaco e mesmo plantas

destinadas ao feitio de flechas ou ao uso mágico. Mas, notadamente, vivendo em regiões

diferentes, sedentarizados ou em constante movimento migratório, eles possuem recursos

naturais, acesso a estes recursos e modos de exploração bastante variados 10 (Albert 1985:

8-9).

Essas atividades econômicas foram frequentemente compreendidas pela literatura

etnográfica como referenciais para a organização do espaço Yanomami em círculos

concêntricos delimitados a partir da aldeia: as roças e coletas cotidianas ocupariam a esfera

adjacente às casas, enquanto os territórios de coleta e caça (individuais e coletivas) se

sucederiam em raios maiores, de maneira que o espaço mais exterior – destinado às

caçadas coletivas (henimu), que precedem as grandes festas inter-comunitárias e às

8
Por seção – ou facção – refiro-me a uma parentela endogâmica, encabeçada por um pata thë (homem
importante, ancião. Comumente o sogro) que comporta-se como grupo em relação a outros grupos no
interior de uma mesma comunidade, mas solidários entre si vis-à-vis o exterior. Cf. Alès 2006: 54-63;
Albert 1985: 206s; Lizot 1984b.
9
Embora não haja nas aldeias Sanumá e Ninam a delimitação de uma espaço público ritual como ocorre
nas casas comunais, é notável a observação de Ramos (1990: 43), de que o nome das festas inter-
comunitárias entre os Sanumás (sabomono) é muito próximo, morfologicamente falando da nomenclatura
das casas coletivas entre os outros sub-grupos (shapono), “ligando o cerimonial sem espaço próprio [dos
Sanumá] ao espaço próprio de cerimonial [Yanomamɨ]”.
10
Há, no território yanomami, uma diferença entre as terras altas da região da Serra Parima e Serra do
Surucucus e terras baixas, marcada pelos próprios Yanomami que se referem aos habitantes das terras
altas como horebɨtheribë e reservam yarɨtheribë para os habitantes das terras baixas, além de regiões de
floresta e de savana (Albert 1985: 8). Além disso, observa-se entre os Sanumá uma série de restrições e
tabus alimentares associadas a grupos etários, enquanto entre outros grupos estes tabus são menos
rígidos, restritos a determinadas fases da vida ou a períodos de reclusão ritual (K.Taylor 1976; Smiljanic
1999: 12).
16

expedições plurifamiliares de caça e coleta (waima huu)11 – é passível de ser

compartilhado e alvo de negociações mais ou menos tensas entre comunidades adjacentes

aliadas (Albert 1985: 16-17; Lizot 1986: 39; Good 1989: 88). Esse concentrismo definiria

também a organização socio-política Yanomami que distingue, a partir do grupo de

residência, esferas de relações entre as quais ao distanciamento espacial corresponde um

acréscimo de hostilidade como estabelecido pelo argumento já clássico de Albert (1985; cf.

Capítulo 3 supra).

À organização espacial sincrônica-concêntrica é contraposta uma representação

diacrônia do espaço. Os lugares são nomeados a partir de eventos e acontecimentos,

permitindo entrever uma série de deslocamentos – motivados sobretudo por questões

políticas-sociais como a fissão de comunidades ou a morte de algum xamã importante, o

que obriga ao abandono da casa coletiva. Desse modo, “trilhas e igarapés, nervos e veias,

compõem a trama intricada de uma topografia historicizada e topológica que contém um

universo de eventos marcantes e relações em fluxo”, como descreveu Ramos (1990: 29).

Essa topografia historicizada permite por vezes a identificação de “blocos de população” –

conjunto de comunidades ligadas por uma descendência comum (Chagnon 1974).

Contatados efetivamente a partir da metade do século XX, os Yanomami

despertaram grande interesse no mundo acadêmico por sua diversidade interna e pela

vitalidade social e cultural que apresentavam no momento destes primeiros contatos, sendo

hoje muito vasta a literatura etnográfica sobre essa população. 12 Um dos primeiros escritos

em que surgem referidos como Yanomami é o relato etnográfico de Becher (1957), embora

11
Os Yanomami podem passar de um terço à metade do ano em acampamentos provisórios plurifamiliares
na floresta (naa nahipë). Este tempo tende a diminuir no entanto quando os Yanomami estabelecem
contato regular com os brancos (Enciclopédia dos povos indígenas/ISA verbete Yanomami:Albert 1999).
12
As fontes históricas, entretanto, são quase inexistentes e/ou pouco exploradas, as principais sendo os
relatos do viajante Koch-Grünberg (Vom Roroima zum Orinoco), do início do século XX e os arquivos
missionários carmelitas (que penetraram na região do rio Branco no primeiro quarto do século XVIII)
(Albert 1985: 32). No mapa etno-histórico de Nimuendaju, os Yanomami – referidos como Siriana –
ocupavam um território restrito nas terras altas das nascentes dos rios Parima e Mucajaí – localização
originária confirmada por relatos míticos (ibid.: 39-40) –, cercados ao sul e oeste por grupos arawaks e
makus do alto rio negro e a norte e leste por alguns grupos caribes.
17

seja certamente o trabalho de Napolen A. Chagnon (1983 [1968]) o responsável pela

introdução dos Yanomami no campo de discussão da antropologia moderna propriamente

dita.13 Em sua monografia, os Yanomami surgem, desde o título (“ Yanomamo: The Fierce

People”), caracterizados como “ferozes”, e a guerra e a violência têm nela um lugar

central, justificado por argumentos provenientes da sociobiologia sobre a escassez de

recursos. Alvo de críticas e polêmicas inesgotáveis, 14 o trabalho de Chagnon possui, no

entanto, uma inegável influência sobre a produção etnográfica subseqüente: seja porque

cunhou uma série de descrições relevantes – determinando temas como a guerra, os rituais

e as alianças inter-comunitárias, o xamanismo –, seja porque diversos antropólogos

escreveram suas etnografias em larga medida contra a imagem da “ferocidade” yanomami

por ele promovida.

Este é o caso de Jacques Lizot, antropólogo francês que, durante as décadas de 60 e

70 do século passado, realizou trabalho de campo entre os Yanomamɨ da região do

Orinoco-Mavaca, a mesma região que Chagnon. Em seu trabalho mais conhecido e talvez

mais importante, “Le circle de feux” (1988 [1976]), os Yanomami surgem como um povo

fortemente marcado por afetos sensuais; a agressividade, apresentada em descrições

etnográficas do cotidiano, aparece ao lado de uma ética do cuidado. Acrescentaria ainda

entre as referências principais do campo de uma 'yanomamologia' a tese de Bruce Albert

(1985), fortemente marcada por preocupações e distinções estruturalistas e explora como

objeto a vida ritual inter-comunitária Yanomami. Embora não publicado na forma de livro,

este trabalho teve influência significativa nas elaborações etnográficas posteriores,

principalmente entre os trabalhos levados a cabo por antropólogos brasileiros – mas não só

entre eles (ver Kelly 2003) –, em grande medida devido à importância de sua contribuição

para a renovação do cenário da etnologia amazônica a partir do final dos anos 1970. 15

13
Não tomo em consideração entretanto os estudos filiados à antropologia física, por exemplo.
14
Sobre as quais, no entanto, me furto a comentar.
15
Refiro-me aqui, principalmente, aos desdobramentos do XLII Congresso de Americanistas. cf. Overing
18

Os temas da guerra, da vida ritual e das relações inter-comunitárias, do xamanismo

e da cosmologia, do parentesco e do cotidiano, já presentes nessas obras, oferecem as

principais diretrizes seguidas nos trabalhos subseqüentes sobre os Yanomami. Mais

recentemente, pode se observar um interesse etnográfico crescente pela abordagem

antropológica da relação com os brancos.16

A escolha dos trabalhos aqui utilizados como referências principais foi motivada

por sua afinidade com o tema que se pretendia colocar em revisão. Os trabalhos de Albert

sobre o sistema ritual dos Yanomae do Demini e Catrimani (Brasil) (Albert 1985) e sobre a

relação com os brancos na história do contato (1988, 1993) foram fundamentais para o

desenvolvimento desta dissertação, pela descrição minuciosa dos componentes da pessoa e

de suas implicações para as práticas sociais. Algumas das muitas publicações de Lizot

sobre os Yanomamɨ (1984, 1988, 2004, 2007), ao lado de etnografias mais recentes

dedicadas ao xamanismo – sobretudo as teses de Maria Inês Smiljanic (1999) sobre os

Yanomae do Toototopi e de Silvia Guimarães (2005a) sobre os Sanumá de Auaris –

também foram leituras privilegiadas ao longo desta dissertação. O trabalho de Guimarães e

os escritos de Alcida Ramos (1990) constituíram as referências principais sobre os

Sanumá. Destaco ainda os artigos reunidos de Catherine Alès (2006) e a monografia de

Javier Carrera (2004) como trabalhos que, por se alinharem mais abertamente à orientação

teórica associada à escola britânica de etnologia e promovida pela obra de Joanna Overing

(1991, 2003; Overing & Passes 2000), ofereceram um contraponto importante para uma

bibliografia que tende a conferir maior destaque às relações de predação. 17 A tese de José

Kaplan 1977.
16
Interessantemente, ganham destaque também temas relacionados à saúde Yanomami, penso que por uma
dupla confluência da relevância de sua teoria etiológica, mas também pelos choques epidemiológicos
enfrentados pelos Yanomami e situação sanitária em flagrante depreciação por motivos de conflitos e
invasões de terra, sobretudo nos anos 80 e 90. Ao lada de questões relativas a terra e educação, a saúde é
um dos principais pontos de reivindicação desses povos. Alguns trabalhos sobre saúde são Pellegrinni
1998; Kelly 2003; Biserra 2006, dentre outros.
17
Para a expressão “economia moral da intimidade” em sua contraposição a uma “economia simbólica da
predação” cf. Viveiros de Castro 2002: 334-336. Ver também infra, nota 30.
19

Antônio Kelly (2003) sobre as relações dos Yanomamɨ do Alto Orinoco com o sistema de

saúde também foi, pela riqueza de sua etnografia e por suas escolhas e formulações

teóricas, inspiradora para este trabalho.

Certamente a bibliografia sobre os Yanomami é muito mais vasta do que o indicado

neste breve sumário. À literatura propriamente antropológica somam-se ainda relatos de

pessoas que viveram junto aos Yanomami – sobretudo de missionários e, em destaque, a

biografia de Helena Valero (1984) –, coletâneas de mitos e todo um vasto conjunto de

artigos, reportagens, polêmicas, documentos e denúncias.18 Justifico as lacunas existentes

neste trabalho por não pretender realizar aqui uma revisão exaustiva da literatura sobre os

Yanomami, mas uma leitura interessada tendo em vista o desenvolvimento de temas

específicos associados às noções de pessoa e de humanidade.

A invenção da pessoa e o problema da humanidade

As noções de pessoa e de humanidade são hoje temas privilegiados da etnologia

amazônica. Desde as considerações sobre a inadequabilidade do repertório conceitual

proveniente da descrição de sociedades africanas para a descrição das sociedades

ameríndias na década de 1970 (ver Overing Kaplan 1977), alguns autores, com destaque

p a r a Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro (1987 [1979]), propuseram caminhos

analíticos alternativos que partiam da centralidade da “visão de pessoa e uma consideração

do lugar do corpo humano na visão que as sociedades indígenas fazem de si mesmas”

(ibid: 12). Disto decorre que o idioma preferencial para abordar as sociedades amazônicas

18
Helena Valero, de uma família ribeirinha – reconhecida posteriormente como Baré – em um dos
tributários do rio Negro, foi raptada pelos Yanomami de Cauaburi e Maruaca nos idos da década de 30
quando tinha 13 anos e viveu entre eles, casando e tendo filhos, por cerca de 20 anos (Valero 1984). Parte
do material jornalístico e polêmico a que me refiro é sumarizado e bem representado pelo livro Darkness
in Eldorado (Tierney 2001). Dentre os relatos missionários destaco Cocco (1972), missionário salesiano
que viveu por 15 anos em Mavaca e também “All the day long: missionaries reaching the tribes in the
Amazon” (Dawson 2000), sobre uma família de missionários protestantes vivendo junto aos Yanomami
de Ocamo. Ver ainda Wilbert & Simoneau (1990) que reúnem uma série de mitos apresentados por vários
antropólogos.
20

passou a girar em torno de conceitos como “corpo, alma, morte, alteridade, mais que

linhagem, regras de casamento, forma de propriedade, etc.” (Viveiros de Castro 1986:

125).

Contudo, o que se costuma chamar de “noção de pessoa” na antropologia – cujo

lastro recua até o texto clássico de Marcel Mauss sobre o problema (2003 [1938]) –

expandiu-se para além da esfera das “categorias do espírito humano” ou da

“representação” ao ser empenhado como recurso analítico privilegiado no estudo das

sociedades ameríndias. Não se trata mais, nesse contexto de pesquisas, apenas de tomar em

consideração os “conceitos” e “sentimentos” de pessoa informados por uma determinada

sociedade, mas também de perscrutar as múltiplas práticas a eles correlacionadas. Sob a

insígnia de “noção de pessoa” se insinuariam, portanto, modos de subjetivação específicos

postos em operação por estas sociedades – modos de subjetivação que fundam ao mesmo

tempo as experiências da pessoa e da socialidade, as práticas, matérias e efeitos da vida

social.19 A possibilidade de uma translação da conceitualização da pessoa fundada em uma

imagem fractal, tal como elaborada por Wagner (1991) e desenvolvida pelos trabalhos

mais recentes da nova etnografia melanésia, para o campo da etnologia sul-americana

surgiu nesse contexto como um recurso adicional privilegiado para a investigação do

problema da pessoa na Amazônia (Kelly 2001, 2005; A-C.Taylor 2000; Viveiros de Castro

2002). Como bem resume Tânia Stolze Lima:

da pessoa fractal não se poderia dizer onde ela começa e acaba sem uma
certa arbitrariedade. E se nos acontece secioná-la ora como um ser humano,
ora como um clã, o que estamos fazendo é criar (algo arbitrariamente)
19
Refletindo sobre o uso da noção de pessoa na antropologia das sociedades complexas, Goldman afirma
que para fazer equivaler o conceito antropológico de “noção de pessoa” ao de “modos de subjetivação”,
cuja inspiração são os trabalhos de Michel Foucault “seria preciso reconhecer que situar-se sobre o plano
puramente representacional é insuficiente, e que este plano constitui apenas parte do fenômeno, sendo
necessária a inclusão das múltiplas esferas relativas às práticas institucionais e individuais. Se desejarmos
permanecer fiéis à tradição antropológica, deveríamos reconhecer que após toda essa discussão, é ainda
Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo, basta reunir ao texto sobre a pessoa
suas análises a respeito da ‘expressão obrigatória dos sentimentos’ e das ‘técnicas corporais’.
Recuperaríamos, assim, o plano do ‘fato social total’, onde físico, psíquico e social não mais podem ser
distinguidos, e onde representações e processos empíricos não constituem mais que dimensões ou
expressões sempre articuladas das práticas humanas que pretendemos investigar” (1999: 27).
21

identificações ou pontos de referência em um certo campo relacional […] ela


só se evidencia por sua relação com outras e, o principal, suas relações
externas são suas próprias relações internas, as mesmas que as constituem
por dentro (Lima 2005: l21-122).

Não havendo solução de continuidade entre a esfera interpessoal e intrapessoal,

dizer pessoa é, portanto, referir-se necessariamente ao parentesco, à morte, à relação entre

corpo e alma, aos estados de alteração – a doença e o xamanismo –, às atividades

cotidianas, à socialidade, à subjetividade, etc. E ainda, à relação entre todas essas esferas.

Seguindo uma inspiração semelhante, A-C.Taylor afirma que a noção de pessoa na

Amazônia se refere a um “repertório de estados do ser”, uma série de relações ligadas

teórica e praticamente em uma cadeia de metamorfoses (1996: 210). Essa concepção dá

forma ao que será desenvolvido aqui, com o tema da pessoa nos oferecendo um fio

condutor para colocar em revista aspectos diversos da socialidade Yanomami: os

componentes corporais e imateriais da pessoa; a relação com os espíritos e os animais, o

xamanismo e as doenças; o cotidiano do parentesco, a teoria de concepção e os rituais de

fabricação do corpo; a relação com os brancos e com inimigos; a mitologia; etc. – reunindo

dessa forma uma bibliografia que, por sua heterogeneidade, encontra-se usualmente

dispersa.

Se, contudo, esta dissertação é conduzida por um interesse pelos conceitos de

pessoa e humanidade, é preciso reconhecer que, a rigor, esses conceitos não são

coincidentes.20 Na verdade, é precisamente pela percepção de que as ontologias

amazônicas comportam uma infinidade de pessoas não-humanas que o problema da

humanidade ganha maior relevância nas produções etnológicas sobre a região, sobretudo, a

partir da elaboração da noção de perspectivismo ameríndio 21 (Viveiros de Castro 1996,

1998, 2002). Certo é que a questão da humanidade já havia se colocado anteriormente, e

em primeiro plano, no contexto da literatura antropológica sobre as Américas. Penso aqui

20
E talvez apenas do primeiro possa ser dito tratar-se de um conceito antropológico.
21
Conferir maiores explanações sobre o perspectivismo capítulos 1 e 2.
22

nas Mitológicas de Lévi-Strauss, por exemplo, ou ainda na discussão mais abrangente, e de

origens mais remotas, sobre o animismo. Entretanto, uma das conseqüências da elaboração

antropológica do conceito de perspectivismo é a problematização da relação entre sujeitos

humanos e não-humanos em um mundo em que a humanidade é dada sob a forma da

imanência.

Se assumirmos que os conceitos de pessoa e de humanidade apontam para

dispositivos relacionais, e não denotam conteúdos sempre reconhecíveis e estáveis, é

plausível pensar que suas extensões se apresentam sob formas ora mais ora menos

exclusivas, podendo por vezes até mesmo coincidir. As modulações específicas das

relações entre os conceitos de pessoa e de humanidade formulados pelos Yanomami e seus

antropólogos é o problema que oferecerá os contornos desta dissertação.

No exercício de tentar traçar as nuances da noção yanomami de pessoa, as

formulações de Roy Wagner (1981) sobre os diferentes modos de criatividade e sobre a

esfera da personitude em tradições diferenciantes me foram extremamente úteis. Wagner

realiza uma radicalização do projeto antropológico ao tomar a invenção como o modo

propriamente humano de experimentar o mundo. Assim, a restrição da criatividade a

alguns contextos da vida (às artes, por exemplo) e não a outros (o casamento, digamos)

seria apenas uma variação muito particular da experiência (e, portanto, da invenção). Uma

apresentação de alguns princípios presentes em sua teoria do simbolismo é aqui oportuna. 22

O princípio básico de seu modelo é a assunção de que toda ação humana se faz em

uma dialética entre invenção/diferenciação e convenção/coletivização, criando

simultaneamente seu 'efeito' e seu 'contexto'.23 Entretanto, como a percepção dessa

dialética seria desmotivante, o caráter simultâneo do movimento de simbolização e de


22
Se assumo, logo na introdução, certos pressupostos teóricos, é apenas para facilitar a leitura, pois, de fato,
trata-se de uma assunção retroativa: as etnografias Yamomami me ofereceram uma porta de entrada e
iluminaram alguns aspectos do pensamento de Wagner tanto quanto este me ajudou a entender algo
destas etnografias. Trata-se na verdade de um duplo exercício.
23
Trata-se de dois modos de simbolização: a simbolização simbolizante e a simbolização diferenciante. Cf
Wagner 1981: 41-50.
23

criação do mundo é “obviado” pela divisão do mundo fenomênico entre um domínio do

“dado/inato” e outro do “fabricado/artificial” – o espaço da agência humana –, ainda que

ambos sejam mobilizados e criados em cada ação.

As diferenças mais fundamentais entre as sociedades estariam no modo como elas

traçariam suas distinções entre o inato e o artificial, do que decorreriam estilos de

criatividade diferentes. Assim, muitos “povos tribais” subsumiriam o “convencional” –

gramáticas, relações de parentesco, ordem social (suas “normas” e “regras”) – sob a

insígnia do dado (Wagner 1981: 76), enquanto, em contraste, os ocidentais assumiriam a

convenção como aquilo a ser deliberadamente empreendido pela agência humana (o

conhecimento, as normas, o governo, em resumo, a nossa 'cultura'). Trata-se, no primeiro

caso, de “desequilibrar o convencional” no decurso das ações diferenciantes, o que

permitiria a emergência de coisas novas e singulares; enquanto no segundo, importa

controlar e coletivizar uma ordem inata imprevisível e particularizada, nossa “natureza”.

Penso ser possível entender os Yanomami e outras sociedades amazônicas como

“tradições” diferenciantes em que o curso da ação humana é delimitado como um esforço

criativo contra um fundo de relações dadas e uma subjetividade compartilhada, ou seja,

sociedades nas quais a “cultura” ou a “sociedade” é o dado e a singularidade aquilo que

precisa ser fabricado. A formulação de Wagner é extremamente consistente com o que se

desenvolve atualmente na etnologia amazônica sob a inspiração do conceito antropológico

de perspectivismo, essa forma de multinaturalismo no qual a “cultura” é o dado comum

contra o qual “naturezas” específicas precisam ser fabricadas/extraídas.

Em linhas gerais, pode-se dizer que uma tradição coletivizante (a cultura norte-

americana é o exemplo empregado por Wagner) usa da articulação consciente de suas

próprias convenções para mascarar a invenção de uma natureza inata, mais resistente do

que motivante, reafirmando em cada ação o contraste entre o dado e a fabricação sob as
24

formas de uma natureza singular e desordenada e de uma cultura coletiva e organizada.

Nas tradições diferenciantes, por sua vez, esse contraste é obviado: a Cultura aqui – se a

entendemos justamente como a esfera da ação humana e, portanto, do próprio processo de

simbolização – abarcaria tanto a “natureza” quanto a “cultura” em um mesmo plano de

imanência. A convenção – a distinção entre o inato e o artificial – não é usada senão de

forma implícita para mascarar sua própria invenção, tomando-a como dado e motivação.

Contudo, para se manter objetivamente significativa e não se tornar uma

“tautologia moribunda” – risco sempre latente para as tradições coletivizantes que

deliberadamente reafirmam sua própria convenção –, ou, ao contrário, para não se perder

em um excesso de relativização – risco enfrentado pelas tradições diferenciantes –, a

dialética entre convenção e diferenciação deve se manter sempre aberta para incluir outros

domínios da experiência, exercitando sua criatividade plenamente. Se a orientação de uma

cultura (a distinção entre o inato e o fabricado), mesmo no caso daquelas mais

diferenciantes, é sempre uma questão de convenção, o modo como esta orientação é

efetivada é uma questão de invenção. 24 Em outras palavras, cada tradição deve ser capaz de

inverter o sentido de sua ação corrente, tomando em alguns momentos o contexto

motivante/inato como direção da ação, “fabricando” deliberadamente o que usualmente

(convencionalmente) é dado. 25

Pode-se imaginar que as implicações desse modelo para o entendimento da noção

de pessoa em cada qual dessas diferentes tradições não são poucas.26 Segundo o autor, em

uma tradição coletivizante o “eu” seria inato e não fabricado; uma vez que o dado é aqui

domínio do particular, a imagem convencional do “eu” assume a forma da


24
Wagner considera esta interdependência entre invenção e convenção a necessidade mais urgente e
poderosa de toda forma de criatividade humana: inventamos para sustentar nossa orientação convencional
e aderimos a esta convenção para realizar o poder da invenção (1981: 44).
25
Esses momentos de inversão, nos quais ocorre uma relativização da própria “máscara cultural” de cada
povo, podem ser exemplificados pelo domínio das artes nas tradições coletivizantes – quando então, a
invenção e a expressão são tomadas como direção e “efeito” e não como fundo – ou, no caso de tradições
diferenciantes, momentos nos quais deliberadamente se “faz sociedade”, tal como nos momentos rituais.
26
Conferir em especial Wagner 1981: 56-75.
25

“personalidade”: um precipitado de singularidade idiossincrático e indomável que precisa

ser controlado/educado como condição para se fazer “sociedade” (1981: 69). Já nas

tradições diferenciantes, a imagem do self seria a “alma”. Se a personalidade é o que

singulariza cada pessoa, lhe empresta poder27 – devendo ser socializada e coletivizada

através de convenções explícitas –, a alma, por sua vez, seria o depositário das convenções

implícitas do mundo e, portanto, aquilo que “coletiviza”. Ela é um precipitado de

socialidade dada na forma da pessoa, cabendo ao sujeito se tornar singular e poderoso pelo

empreendimento de ações diferenciantes. Se o homem ocidental médio urbano é

“poder/criatividade” e faz “moralidade”, a pessoa em tradições diferenciantes é moral e faz

poder, conclui Wagner (ibid.: 66).28

Um dos pontos centrais para a invenção da pessoa é a necessidade do compromisso

entre a imagem convencional que o ator tem de si mesmo – o que ele é, ou seja, aquilo

que, no campo relacional da pessoa, é considerado da ordem do dado – e o que ele pode

fazer (ou que pode ser feito com ele). Sem esse compromisso, corre-se o risco de

orientações inventivas mal-sucedidas, que levariam a um esvaecimento do eu . Quando a

invenção da pessoa passa pelo controle da personalidade, esse risco se apresenta sob a

forma da neurose – da construção de convenções que falham na coletivização por serem

excessivamente idiossincráticas – ou ainda, do solipsismo 29 – um grande potencial criativo

e expressivo que não encontra, entretanto, comunicação. Em um mundo de almas, por sua

vez, o risco é o da ambigüidade – uma conexão com outras formas motivantes que,

contudo, não levam em conta esse “compromisso” com a convenção –, o perigo sempre

premente da metamorfose, essa forma privilegiada na qual o perigo da ambigüidade se

apresenta nos universos ameríndios (Viveiros de Castro 2002: 391). E se os riscos são
27
Poder aqui relaciona-se sobretudo à criatividade.
28
Moralidade refere-se justamente a imagem convencional da própria socialidade (Wagner 1981:70-71;. cf.
infra p. 37s)
29
Wagner (1981: 64-65) usa na verdade a expressão esquizofrenia, em um sentido próximo ao de Bateson.
Tomei a liberdade de substituí-la pelo solipsismo, pelo eco que encontra na formulação de Viveiros de
Castro (2002: 391).
26

diferentes, as medidas preventivas também o são. A produção de pessoas criativas,

entretanto, ocorre justamente pela assunção desses riscos em sua radicalidade: é preciso

que (ao menos) algumas pessoas possam estar aptas a se aventurarem nesses riscos – sem,

no entanto, sucumbir de todo a eles – de modo a tornar a relativização da imagem

convencional do “eu” uma experiência positiva, mantendo a dialética em constante

operação.

Por enquanto, esses apontamentos sobre a dialética wagneriana são suficientes.

Tendo-a em vista, assumiremos que a invenção da pessoa entre os Yanomami se efetua

“contra” um fundo de subjetividade dado, revelado na forma de uma humanidade imanente

da qual participam todas os seres e acessível aos xamãs mais experientes, que podem dele

se valer para se tornarem pessoas mais poderosas e criativas. As convenções não existem,

portanto, para serem deliberadamente desempenhadas, mas tomadas como base para uma

singularização inventiva, ainda que lidando sempre com o risco de uma relativização

excessiva da imagem convencional da pessoa (e da própria socialidade). Em resumo, o que

está em jogo na invenção da pessoa yanomami seria uma dialética sob a forma do

compromisso criativo entre invenção e convenção ou, em termos amazônicos, entre a

alteração e a estabilização. Como veremos, é precisamente essa dialética que, dependendo

de qual curso da ação será considerado significativo, imprime diferentes modulações na

noção de humanidade yanomami. 30

30
O recurso à dialética wagneriana pareceu-me promissor também por permitir tratar de maneira não
excludente, duas imagens da socialidade Yanomami – bem expressas no título de uma coletânea de
artigos de Catherine Alès (2006) “Yanomami – l'ire et le désir”. Imagens essas que parecem replicar – se
tomadas com uma ampla margem de liberdade de interpretação – as diferenças entre as imagens da
sociedade na Amazônia informadas pelas abordagens definidas por Viveiros de Castro (2002: 334-336)
como a “economia moral da intimidade” e a “economia simbólica da alteridade”. Em linhas gerais,
enquanto a primeira enfatiza a produção e a “ética da consanguinidade” – construindo uma imagem moral
da socialidade nativa –, a segunda enfatizaria a predação e os processos de troca simbólica como guerra,
canibalismo, xamanismo, caça, etc. figurando a socialidade nativa por sua relação com formas de
Alteridade. Sugiro que estas duas imagens – da moralidade e da predação – não são apenas perspectivas
diferentes pelas quais a socialidade Yanomami se deixa apreender, mas o modo próprio da dialética pela
qual esta socialidade se efetua/inventa.
27

Plano da dissertação

No primeiro capítulo da dissertação, apresento alguns desdobramentos possíveis

dos sentidos nativos de pessoa e de humanidade a partir da mitologia Yanomami,

articulando-os à proposição da dialética wagneriana. Apresentarei uma contraposição entre

duas imagens de humanidade informadas por diferentes conjuntos míticos que parecem

definir a humanidade alternativamente ou como uma condição de socialidade inata e

compartilhada – submetida a um regime de alteração e predação – ou como predicado

moral, restrito a esferas mais ou menos exclusivas de sociabilidade. Sugerirei que esses

diferentes sentidos, usualmente reunidos sob a categoria auto-referencial yanomami,

seriam a própria expressão da dialética entre os usos diferenciante e coletivizante da

imagem convencional de homem entre os Yanomami.


28

Nos capítulos seguintes, passo à descrição das implicações dessa dialética nos

diferentes registros da socialidade Yanomami, compreendendo esses registros como

diferentes esferas de relações passíveis de serem destacadas de uma “taxionomia global”,

tal como apresentada acima. Não se trata, contudo, de tomar essa taxionomia de maneira

rígida e classificatória, mas como a distinção de diferentes contextos relacionais através

dos quais a noção de Yanomami thëpë é definida.

As relações entre Yanomami thëpë, yaropë e yai thëpë são tratadas no segundo

capítulo, que tem por objeto a análise do problema do metamorfismo e a explicitação dos

diferentes componentes da pessoa yanomami. Este capítulo busca ainda situar as relações

entre humanos, animais e espíritos entre os Yanomami em diálogo com desenvolvimentos

recentes da etnologia amazônica inspirados pelo conceito de perspectivismo.

O capítulo três se detém no nível inferior do organograma acima – mais

especificamente, nas relações intra-comunitárias. Procuro mostrar como em seu nível mais

exclusivo a humanidade yanomami é coincidente com o parentesco: nessa esfera de

relações, a imagem do homem é retomada de forma convencionalizante – através do

exercício moral da socialidade e das ações rituais incidentes sobre o corpo – para a

estabilização da pessoa.

No quarto e último capítulo, trato da relação com os brancos, guiando-me

fortemente pelo trabalho de Kelly (2003), no qual uma teoria do 'virar branco' surge lado a

lado da análise dos processos de domesticação dos mesmos. Nesse contexto relacional

específico, os dois aspectos da pessoa yanomami – de diferenciação e de estabilização, de

metamorfose e de moralidade – se encontram inter-relacionados e mutuamente implicados

de maneira ainda mais evidente que nos demais, como se, por se tratar de um encontro

entre duas tradições distintas, ocorresse um aceleramento da dialética.


29

1-“No tempo dos ancestrais os homens já existiam”: desdobrando pessoa e

humanidade na mitologia yanomami

Em um comentário à narrativa sobre os ancestrais animais contada pelo xamã Davi

Kopenawa Yanomami, Albert chama a atenção para dois grandes blocos de mitos

yanomami que apresentam entre si uma certa redundância:

les transformations em gibier (yaro) des ancêtres yaroripë font l'objet d'un vaste
ensemble de mythes qui mettent em scéne une sorte de 'pathologie de l'alliance
matrimoniale'. [...] La creation de l'humanité et de la société yanomami actuelle
est par contre attribuée au démiurge Omama. Ces deux “ensembles flous”
constituent l'essentiel de la mythologie yanomami, au sein de laquelle se
manifeste ainsi parfois un certain effet de redondance. On y trouve ainsi, par
example deux mythes d'origine des plantes cultivées, l'un au temps des ancêtres
animaux, l'autre au temps d'Omama (Albert & Kopenawa 2003: 76 n.35).

Na distinção desses dois conjuntos míticos, para além do “efeito de redundância”

destacado pelo antropólogo, também se revela uma aparente contradição entre uma

humanidade que sempre existiu, e que teria sido perdida pelos animais, e uma humanidade

que foi criada e moldada pela ação do demiurgo Omama. Ao trabalhar neste capítulo com

alguns mitos e narrativas yanomami, busco explorar possíveis implicações da articulação

desses dois conjuntos míticos para o entendimento nativo da pessoa. Procurarei demonstrar

como tal contradição encobre diferentes sentidos que “humanidade” pode assumir entre os

Yanomami: de um lado, uma condição humana compartilhada e distribuída entre diversas

espécies de seres; de outro, a humanidade como atributo específico e exclusivo, imagem de

sua própria socialidade.31 Esses dois sentidos são justamente expressões de diferentes

maneiras de se conceber e experimentar uma humanidade que, não importa por onde se

deixe apreender, é sempre relacional.

31
O nosso próprio conceito de humanidade recobre diferentes sentidos: humankind (espécie humana) e
humanity (condição de humanidade) (ver: Viveiros de Castro 2002: 381; Wagner 1981: 95; Ingold 1999).
Se do último sentido talvez possa ser dito coincidir com a idéia de humanidade como condição
compartilhada entre os Yanomami, porém com uma distribuição diferenciada, o primeiro eu apostaria
estranho ao pensamento yanomami, embora venha sendo alvo de inúmeras experimentações a partir do
contato com os brancos.
30

1.1-“Apesar de serem Yanomami, eles viraram pecaris”: agência e transformação

O primeiro conjunto de mitos referidos por Albert contém as narrativas que

exploram a transformação dos ancestrais animais – chamados yaroripë ou patabë – em

animais de caça – yaropë –, ou seja, narrativas que expõem como os primeiros Yanomami

perderam sua humanidade inata, dando origem a animais (e humanos) de diferentes

espécies. Essas metamorfoses são um tema privilegiado na mitologia ameríndia: como

observou Lévi-Strauss, “um mito é uma história do tempo em que os homens e os animais

ainda não eram diferentes” – e isto porque todos eram, em alguma medida, humanos

(Lévi-Strauss & Eribon 1990: 178). Desenha-se um mundo no qual todos os seres

participam de um mesmo fundo comum de subjetividade e socialidade, um universo

concebido como precipitado de humanidade imanente. 32

Esse fundo comum de socialidade que se deixa apreender no tempo mítico como

um fluxo comunicativo, transparente (Viveiros de Castro 2006: 321-324), ou, por vezes,

como uma espécie de consciência elementar e a priori (Wagner 1981: 70), pode atualizar-

se de maneiras diferenciadas e específicas. Mais exatamente, em um tal universo a própria

agência humana é concebida como diferenciação, motivada pela necessidade premente de

compelir e determinar a natureza desse fundo comum de humanidade (ibid.: 66-67). As

narrativas sobre os ancestrais animais se põem a contar, por conseguinte, como ocorreu a

distinção de diferentes espécies pela aquisição de corpos específicos – entendidos aqui

como feixes de afecções e hábitos comportamentais atualizados em uma forma corporal

visível (Viveiros de Castro 1996: 128; Vilaça 2005: 450). Ao mesmo tempo, ao partirem

da afirmação do mundo como precipitado de socialidade, essas narrativas apontam

também para o caráter 'cronicamente instável' dessas formas corporais. As diferenças não

32
Sobre a noção de humanidade imanente em sociedades tribais, v. Wagner 1981: 87-88. Para o
desenvolvimento desta noção entre as sociedades ameríndias, cf. Viveiros de Castro 1996, 1998, 2002,
2006.
31

se estabilizam, e é preciso estar sempre diferenciando-se – 'singularizando-se' – como

forma de assegurar sua própria humanidade, já que esta é uma posição a ser ocupada

alternativamente por diversos seres.

As narrativas sobre os ancestrais animais não são apenas histórias sobre como os

animais perderam a humanidade ou sobre a origem das diferentes espécies naturais. Elas

são uma mitologia sobre a metamorfose e a 'necessidade da invenção' como forma de

singularização. O fundo comum de socialidade presente no tempo mítico subsiste no

mundo atual, precipitado na idéia de “alma” – que, tal como formulada por Wagner (1981:

70), “resume as maneiras pelas quais aquele que a possui é similar a outros, acima e além

das maneiras pelas quais ele difere deles” –, ou ainda na forma de inúmeros 'espíritos' que

habitam o cosmos Yanomami, testemunhas e reservatórios de um contínuo heterogêneo

(Viveiros de Castro 2006: 324). E é 'contra' esse fundo que se desenha o espaço da agência

humana como diferenciação.

Um mito yanomae narra como os inimigos shamatari transformaram-se em quatis

ao desrespeitarem a condição ritual de homicida em que se encontravam. 33 Enquanto

comiam frutas shosho (não identificada), o movimento que faziam para consumir as frutas

ia esticando-lhes o nariz, que tomou a forma comprida que têm os focinhos dos quatis hoje

em dia. Uma versão yanomamɨ deste mesmo mito se distingue por uma inversão de

perspectivas que identifica os inimigos aos waika34 (Wilbert & Simoneau 1990: 141,143).

Um outro mito, também yanomae, descreve o incidente de um garoto que, desobedecendo

sua mãe, sobe em uma árvore alta, e ao cair, transforma-se em tartaruga (ibid: 293).

A 'disjunção alto-baixo' aparente nessa última narrativa, para utilizar a linguagem

d e O Cru e o Cozido (Lévi-Strauss 2004 [1964]), é recorrente nos mitos yanomami de

33
O guerreiro yanomami deve submeter-se a uma reclusão após matar sua vítima, mantendo jejum, para, de
certa maneira, desintoxicar-se do sangue da vítima. Cf. Albert 1985: 341-382; v. infra 99-102.
34
Shamatari é o modo com os Yanomami orientais referem-se a grupos do oeste/norte, enquanto são
referidos por estes como waika. Trata-se de um par de oposição, e possuem uma conotação pejorativa
sendo sempre utilizados para designar terceiros (Lizot 1984: 27; Ramirez 1999: 12).
32

origem dos animais. Diversas versões, apresentadas por diferentes autores, tratam o

surgimento dos pecaris como resultado da queda dos homens de um cipó preso a uma

árvore: desejosos de recolher seus frutos, os homens não se deram conta de que o cipó que

utilizavam para subir era frágil; quando este se rompeu, todos caíram transformando-se em

uma manada de queixadas. 35 Em algumas versões são os macacos cuxiús-negros que dão

origem aos pecaris; em outra, são os inimigos que se submetem a esta transformação. Esse

grupo de mitos sobre a origem dos pecaris, recolhido entre os Sanumá, Yanomae e

Yanomami, parece apontar para o aspecto fluido das posições de animais, yanomamis ou

inimigos no ciclo mítico dos ancestrais Yaroripë. Essas posições são facilmente transpostas

e intercambiáveis precisamente porque todos os seres partilham de uma mesma

humanidade de fundo.

As metamorfoses míticas são usualmente decorrentes de algum comportamento

considerado socialmente inadequado e referidas por verbos que denotam inevitabilidade e

indesejabilidade: entre os Sanumá, as transformações desse tipo são referidas como

iswanizo, que remete à perda indesejável de uma condição preferencial (K.Taylor 1976:

40).36 Mesmo quando não se trata do não cumprimento de uma prescrição social explícita –

como o jejum a que devem se submeter os matadores –, as metamorfoses são sempre

desencadeadas por comportamentos socialmente repudiados. O que vemos aqui é o tema

da avidez e do excesso, ou seja, o tema da boa distância, tal como assinalado por Lévi-

Strauss (2006 [1968]) nas narrativas ameríndias.

Com frequência, as metamorfoses são desencadeadas no contexto de aquisição dos

“bens culturais”, como, por exemplo, algumas espécies de plantas cultivadas. Quando
35
Lizot (2007: 273) acrescenta que esta queda é na verdade a origem de todos os animais: daqueles que
voam, dos que se movimentam pelas árvores e dos que vivem sobre a terra, tal como os classificam os
Yanomami. Os homens que já estavam no alto da árvore se transformaram em animais arborícolas ou em
pássaros, enquanto aqueles que estavam no solo se converteram em animais terrestres, manadas de
pecaris.
36
O verbo iswanizo também refere-se à transformação que alguém pode passar ao infringir certos tabus
alimentares: o uku dubu do animal (seu espírito) faz a vítima infratora “ficar como” o animal. Por
exemplo um adolescente pode ficar peludo se comer paca etc. (K.Taylor 1976: 40).
33

Koye-riwë37 apresentou aos Yanomamɨ as sementes de milho, sua sogra, Popomari,

maravilhada com aquele novo grão e ávida por espigas maiores, adentrou ao roçado e se

transformou no pássaro popomari (Cocco 1972: 183-184). Em outro mito, Haxo-riwë

enlouqueceu de prazer depois de haver experimentado o tabaco que Tomï-riwe lhe ensinou

a plantar, e, dando grandes saltos, foi para a selva onde se transformou em jupará (ibid.:

308). Um mito yanomamɨ sobre a aquisição da pupunha no tempo dos ancestrais também

enseja a metamorfose dos protagonistas, a partir de relações inter-específicas conflituosas.

Ayakora-riwë, o pássaro Gaio-comum, e Haya-riwë, o Veado, eram vizinhos. O filho


do primeiro era casado com a filha de Haya-riwë e vivia junto da família de sua
esposa. Certa feita, Haya-riwë escuta seus vizinhos brincando e trabalhando na roça.
Estavam recolhendo pupunha. Haya-riwë então manda sua filha ir com seu esposo
buscar pupunha. “Andem a recolher pupunha da minha roça” – diz – “porque estes
vizinhos vão fazer reahu, sem me oferecer nada.” Ele lhes indica então aonde ir para
buscar as pupunhas mais saborosas. Ao chegar no local sugerido por Haya-riwë, o
jovem genro pergunta à sua esposa qual era a árvore, ao que ela indica uma palmeira
de “tucumã”. “Não” -lhe diz então – “isto é tucumã. Não é pupunha. Melhor irmos à
roça de meu pai, onde há muita pupunha, e pupunha de verdade. Isto é tucumã., fruta
do monte. Seu pai come tucumã, pensando que é pupunha. Ele não a conhece.”
Embora um pouco ofendida, a mulher acompanha seu marido até o roçado dos
Ayakora-riwë, onde recolhem da “verdadeira pupunha”. De volta ao xapono de
Haya-riwë, o genro lhe mostra o cesto cheio de pupunha dizendo: “aqui está, a
pupunha que nos mandou buscar.” O velho olha, porém não diz nada. Logo em
seguida, arregaçando a pele de seus braços e pernas para tê-los bem finos, se pôs a
correr para a floresta. E gritando “seee, seeeee”, se transformou em veado. Sua
esposa também se transformou, correndo mata adentro. A filha, também se ia, mas o
marido a segurou a tempo. A outra gente – de Ayakora-riwë – então se transformou
em gaio-comum e puseram-se a voar e cantar: aya, aya,aya. A filha, ficando sozinha
– pois o marido também saiu voando com outros Gaios, saiu correndo e
transformou-se em veada como seus pais (resumo a partir da versão em espanhol de
Cocco 1972: 363-364).

Nessas narrativas sobre a aquisição de novos bens culturais, chama atenção o fato

de que os bens culturais “adquiridos” já eram conhecidos – o que dá origem, nesses mitos,

a uma série de equívocos. Esses episódios, nos quais os protagonistas parecem tomar “gato

por lebre”, ou, melhor dizendo, tucumã por pupunha – ou ainda, ceiba por mandioca, como

em um outro mito, no qual uma esposa, farta de ralar raiz de ceiba para a fabricação de

beijus que o marido insistia em dizer que eram feitos de mandioca, apresenta-lhe a

verdadeira mandioca – são equívocos que poderíamos dizer característicos de uma


37
A terminação -riwë, em yanomamɨ como o -ri, em yanomae, é um sufixo de intensidade e que também
marca os seres sobrenaturais (Lizot 2004; cf. tb Cocco 1972: 363 )
34

ontologia perspectivista (Lima 1996; Viveiros de Castro 1996, 1998, 2002). O

perspectivismo ameríndio refere-se às “idéias, presentes nas cosmologias amazônicas, a

respeito do modo como humanos, animais e espíritos vêem-se a si mesmos e aos outros

seres do mundo” (Viveiros de Castro 1996: 115). Segundo essas cosmologias, diferentes

espécies de pessoas ou sujeitos – humanos, animais, espíritos, mas também, em alguns

casos, plantas, minerais e até mesmo artefatos – apreendem o mundo sob pontos de vistas

diferenciados, ou, mais acertadamente, constituem mundos diferenciados, enquanto

apreendem-se a si mesmos como humanos.

Observe-se que nas narrativas yanomami sobre os ancestrais animais,

independentemente do sujeito em questão, aquilo que se come em um reahu é pupunha, e

o beiju é sempre feito de mandioca – quanto a isso, todos os protagonistas parecem de

acordo –, mas eles não estão de acordo sobre o que vem a ser pupunha ou mandioca. Essa

formulação converge com um multinaturalismo que afirma uma “unidade representativa

ou fenomenológica puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre uma

diversidade real” (Viveiros de Castro 2002: 379). Em outras palavras, é como se esses

diferentes protagonistas partilhassem da mesma “cultura” e “visão de mundo”, mas não

utilizassem da mesma “natureza” e “recursos” para a efetivação de sua cultura, nem

tampouco enxergassem um mesmo mundo. E não poderia ser de outro modo, uma vez que

esta “cultura” é aquilo que, da ordem do dado e inato, é compartilhada por todos os seres

que participam de uma humanidade imanente; “cultura” é, portanto, o predicado de uma

“alma” sempre formalmente idêntica e que só enxerga a mesma coisa (Viveiros de Castro

1996; ver também Wagner 1981).

Dado o fundo de humanidade/subjetividade comum, a diferença entre os seres é

produzida pela perspectiva, e, enquanto a personitude se relaciona ao espírito, a

perspectiva será localizada no corpo.38 O perspectivsismo supõe a “unidade do espírito e


38
Como esclarece Viveiros de Castro: “Ser capaz de ocupar o ponto de vista é sem dúvida uma potência da
35

uma diversidade dos corpos. A 'cultura' ou o sujeito seriam aqui a forma do universal, a

'natureza' ou o objeto a forma do particular” (Viveiros de Castro 1996: 116). É porque

veados, pássaros, esposos e esposas fabricam pra si corpos diferenciados – no sentido tanto

de sua aparência física quanto de seus hábitos e afetos específicos – que eles vêem mundos

diferentes.39 Como dito anteriormente, em uma tal ontologia, o espaço da ação humana é

pensado como direcionado à constituição e controle de diferenças, determinando

“naturezas específicas”. E é justamente neste esforço de diferenciação que os agentes

contra-inventam o fundo de socialidade comum e motivante, uma relacionalidade

generalizada à qual estão submetidos mesmo as não-pessoas: uma pedra, por exemplo, não

é nada se não for uma pedra para alguém. Não há uma natureza irredutível e independente

das relações.40

A relação entre diferentes perspectivas é, no entanto, sempre de disputa: é preciso

que uma se afirme sobre a outra. Na narrativa yanomami que apresentei aqui o equívoco

parece se “resolver” em favor da perspectiva do genro, desencadeando a metamorfose do

pai veado. Pode-se aqui estender o argumento de Lima (2002) acerca da cosmologia

Yudjá41, afirmando que diferentes perspectivas não são a priori nem mais ou menos

verdadeiras (ou mais ou menos humanas). A assimetria entre duas ou mais perspectivas é

sempre uma questão e uma disputa: “dado que a existência humana ali apareça

primeiramente como luta humana, a relação entre duas ou mais perspectivas é

necessariamente assimétrica. Ou seja: efetivamente uma se impõe à outra como tendo um

valor de verdade superior. Trata-se, porém, de uma hierarquia que só se define a

alma, e os não-humanos são sujeitos na medida em que têm (ou são) um espírito; mas a diferença entre os
pontos de vista (e um ponto de vista não é senão diferença) não está na alma, pois esta, formalmente
idêntica através das espécies, só enxerga a mesma coisa em toda parte — a diferença é dada pela
especificidade dos corpos” (1996: 128)
39
No caso de esposos e esposas a ação é voltada justamente para a fabricação de corpos semelhantes. Ver
infra capítulo 3.
40
Sobre este espaço da ação humana ver Wagner 1981: 76 et passim. Sobre o efeito perspectivista sobre os
não-sujeitos ver Viveiros de Castro 2002: 382-7; Lima 2002: 15-17; Vilaça 2005: 455-7; dentre outros.
41
Grupo falante de uma língua Juruna, do tronco Tupi, habitantes do Pará e Mato Grosso.
36

posteriori” (Lima 2002: 19 n.4).

Compare-se o silêncio do pai veado diante da pupunha que lhe oferece o genro com

a recomendação dos Achuar42 de se afirmar “eu também sou pessoa” quando do encontro

com seres desconhecidos (A-C. Taylor apud Viveiros de Castro 2002: 397). O silêncio do

protagonista na narrativa yanomami pode ser entendido como o englobamento de uma

perspectiva por outra, que assume então o valor de “verdadeiramente humana”. Ao

reconhecer a pupunha que lhe oferece o genro estrangeiro como sendo “a verdadeira

pupunha”43, não resta à família senão transformar-se em veados, coisa que na verdade já o

eram, como indica seu nome e a preferência por tucumãs.44 E aqui não quero dizer que, na

verdade, eles já eram veados ao invés de humanos, mas justamente que eles já eram veados

sendo humanos. Afinal, “cada ser mítico, sendo pura virtualidade, 'já era antes' o que 'iria

ser depois', e por isso não é, pois não permanece sendo, nada de atualmente determinado”

(Viveiros de Castro 2006: 324). O problema colocado pela mitologia dos ancestrais

animais não é o do Ser.45

Se “quem responde a um tu dito por um não-humano aceita a condição de ser sua

segunda pessoa, e ao assumir, por sua vez, a posição de eu já o fará como um não-humano

[…]” (Viveiros de Castro 2002: 397), no presente caso o que ocorre é uma não-resposta ao

t u dito por um humano, o que é a mesma situação vista pelo outro lado. Mas adotar a

perspectiva do outro não significa necessariamente animalizar, no sentido de dessubjetivar;

ao contrário, a captura da perspectiva do Outro muitas vezes é uma forma de se fazer mais

humano, em um mundo onde a predação ontológica é uma forma privilegiada de

42
População habitante das fronteiras do Peru e Equador, falantes de uma língua Jívaro.
43
Trata-se aparentemente de um mito contado pela perspectiva dos pássaros, com quem os Yanomami
parecem compartilhar da perspectiva do que seria a “verdadeira pupunha”.
44
Tucumã constituem uma das bases das dietas dos veados na região em que foi recolhida este mito, de
acordo com Cocco (1972: 363 n.) Além disso, a importância do nome para a determinação da pessoa
entre os Yanomami não pode ser minimizada. Cf. infra 39 n.15.
45
Mas como observou Viveiros de Castro o recurso à linguagem de uma ontologia – se não se refere a uma
metafísica do Ser – mantém ainda um valor tático, de “sublinhar que esse pensamento [ameríndio] é
inseparável de uma realidade que constitui o seu exterior” (2001a: 10).
37

subjetivacão (Viveiros de Castro 2002: 287-291). Vilaça apresenta um mito wari' 46 em que

o mesmo tipo de equívoco – um estrangeiro apresenta a caça aos Wari', que antes

alimentavam-se apenas de lagartos, que chamavam de “queixadas” – é “resolvido” de

forma diferente: ao assumir a perspectiva humana do inimigo, os Wari' se humanizam

(2008: 178-183). Mas há aqui algumas diferenças: primeiro, o mito yanomami não é

contado do ponto de vista de quem se transforma (no caso, os veados), mas de quem, ao

contrário, já possuía uma perspectiva que veio a se afirmar englobante, a saber, os

pássaros, com quem os Yanomami parecem compartilhar a perspectiva sobre a pupunha.

Além disso, a transformação aqui se dá pela recusa – mais ou menos passiva – de uma

perspectiva e não pela apropriação de uma perspectiva estrangeira: a agência fica dessa

forma restrita ao outro. Se a transformação em animais pode ser vista como a perda da

humanidade, não é pela adoção da perspectiva do outro, mas pela perda da agentividade:

“humano” aqui quer dizer sujeito, pessoa, e implica necessariamente agência e perspectiva.

Para os Yanomami, no momento da transformação dos ancestrais animais, seus

componentes imateriais – sua alma – os abandonaram, restando apenas um corpo, que,

embora animado, não participa mais desse precipitado de socialidade senão como objeto

(cf. K.Taylor 1976; p. 58-60 infra.).

Kopenawa também discorre longamente sobre as transformações dos ancestrais

animais na narrativa cuja nota abriu essa discussão. Passo à citação de um trecho desta

narrativa em sua tradução para o francês:

Au premier temps, lorsque la forêt était encore jeune, nos ancêtres, qui
étaient des êtres humains avec des noms d'animaux, se sont métamorphosés
em gibier. Yanomami pécaris, ils sont devenus pécaris; Yanomami cervidés,
ils sont devenus cervidés. Yanomami agoutis, ils sont devenus agoutis;
Yanomami aras, ils sont devenus aras. Ils ont pris la forme des pécaris, des
cervidés, des agoutis et des aras qui habitent la forêt d'aujourd'hui. Ce sont
ces ancêtres transformés que nous chassons et que nous mangeons. Au
premier temps, touts les animaux étaient des Yanomami [...] Les animaux
que nous mangeons sont différents. Ils étaient des humains et sont devenus

46
Wari' são uma população habitante do estado de Rondônia, também conhecidos como Pakaa Nova,
falantes de uma língua da família Txapacura.
38

gibier. Nous les voyons comme des animaux, mais ce sont des Yanomami.
Ce sont simplement des habitants de la forêt. Ils ne sont pas autres. Nous
sommes semblables à eux. Nous sommes aussi du gibier. Notre chair est
identique, nous ne faisons que porter le nom d'êtres humains. Au premier
temps, lorsque nos ancêtres n'étaitent pas encore devenus autres, nous étions
tous des humains; les aras, les tapirs, les pécaris étaient tous des humais.
Puis ces ancêtres animaux se sont transformés en gibier. Cependant, pour
eux, nous sommes toujours les mêmes, nous sommes aussi des animaux;
nous sommes le gibier habitant des maisons tandis qu'ils sont les habitants de
la forêt. Mais nous, qui sommes restés, nous les mangeons, et ils nous
trouvent effrayants, car nous sommes affamés de leur chair. Les tatous, les
tortues, les cérvides sont d'autres humains que nous, mais nous les dévorons.
C'est ainsi. Nous Yanomami qui ne sommes pas devenus gibier et agissons
encore comme des humains, nous mangeons nos frères les tapirs et tous les
autres (Albert & Kopenawa 2003: 73-76).

Aqui, a questão da transformação dos ancestrais animais e sua diferenciação em

relação aos Yanomami surge como uma tomada de posição na relação predador/presa. Não

se trata tanto dos animais reconhecerem os Yanomami como os verdadeiros humanos, pois

eles vêem os humanos antes como semelhantes que se tornaram habitantes de malocas

(ibid: 68 n.2). De fato, apesar das transformações e da “perda” da humanidade por parte

dos animais, a distância ontológica entre estes e os Yanomami não é fortemente marcada

nas narrativas sobre os ancestrais animais: eles não são outros. Contudo, os Yanomami

vêem os animais como presas – “nós os vemos como animais, mas eles são na verdade

yanomamis” – e os comem, ainda que os próprios Yanomami também sejam, em alguma

medida, caça: “Nós também somos caça. Nossa carne é idêntica, nós apenas portamos o

nome de seres humanos”.

Decorre daí a relevância do fato de que os Yanomami comem os outros animais: ao

comerem seus irmãos tapires, os cunhados caititus, etc., tornando-os presas, os Yanomami

assinalam uma diferença em relação a eles, assegurando a si a posição de predadores e,

consequentemente, de humanos. Pois, de fato, a predação opera como uma forma forte e

privilegiada de produzir ou explicitar a diferença entre seres ontologicamente semelhantes

na Amazônia.47 Conclui-se assim que nesse conjunto mítico sobre os ancestrais animais, a

humanidade é uma condição extensível a diferentes tipos de seres, um atributo em disputa


47
Ver Vilaça 1992; Kelly 2001, dentre outros.
39

e “uma posição [frequentemente marcada pela distinção predador-presa,] a ser

continuamente definida” (Vilaça 2005: 448). Enfim, o sentido de yanomamidade sugerido

por estas narrativas encobre o amplo espectro da personitude, tendo como traços

distintivos a agentividade e a perspectiva.

1.2- “Omama fez as pessoas virarem yanomami”

Na narrativa sobre os ancestrais animais apresentada por Kopenawa, os Yanomami

atuais são aqueles que restaram sem se transformar, diferenciando-se dos animais porque

“portam o nome de seres humanos”48, e, sobretudo, porque ainda agem como humanos

(isto é, comem os outros animais). Mas, apesar desta aparente continuidade do estatuto de

humanidade dos Yanomami que essa narrativa parece encerrar, outros mitos apontam uma

distinção entre os Yanomami atuais e essa humanidade ancestral. A afirmação da

ancestralidade dos animais míticos – yaroripë – parece estar em conflito com a afirmação

da ascendência dos Yanomami atuais – e aqui começamos a desdobrar os diferentes

sentidos de humanidade que observei ao início do capítulo. O mito da queda do céu é

fundamental na articulação desta ruptura.

Em sua primeira parte, esta narrativa conta como o céu caiu sobre a terra,

precipitando floresta, montanha e antigos ancestrais para o mundo subterrâneo, onde eles

se transformaram em monstros canibais de logos dentes, os aõbataribë. A queda do céu foi

provocada pela ira dos espíritos auxiliares de um xamã morto que, desolados por estarem

48
A importância do “portar o nome” não pode ser minimizada. Além de ser considerado entre os Yanomami
um dos componentes da pessoa, o nome ainda é fundamental para uma dinâmica perspectivista, como
observou Kelly (2001: 99): “São, parcialmente, nomes e ornamentos que permitem a sustentação de um
ontologia perspectivista em face da fixidez das peles humana e animal.” Em algum sentido, pode-se dizer
que os Yanomami eram, à semelhança dos Yanomami queixadas e dos Yanomami antas, Yanomami
yanomamis. Mas esta repetição não significa uma redundância, ou que os Yanomami atuais sejam auto-
idênticos e a forma da humanidade por excelência. Se o primeiro Yanomami refere-se à humanidade
como subjetividade e socialidade comum, o segundo refere-se a uma forma corporal específica (corpo
entendido como feixe de afecções e moralidade) e só em alguns contextos muito definidos, eles se
tornariam coincidentes.
40

órfãos, atacaram o céu com suas armas. Alguns ancestrais resistiram a essa queda,

protegidos sob um grande cacaueiro. Junto com eles, também preso sob o céu que caiu,

estava um papagaio que abre então com seu bico um orifício por onde eles conseguem sair.

Ao sair, eles vêem então a floresta, o dorso do céu. E se espalham por ali, fazendo roças.

Embora sobreviventes à a queda do céu, esses ancestrais terminam por desaparecer. São

eles que dão origem à fauna. Segue-se a isso a descrição da ação de Omama após a queda

do céu, e a criação da nova humanidade:

Os ancestrais que foram criados nos primeiros tempos, há muito tempo, eram
ignorantes. Eles não tratavam as cinzas funerárias. Eles comiam uns aos outros: a
cada vez que um entre eles se transformava, eles o comiam. Como nós comemos
caça. Eles não “colocavam suas cinzas em diálogo cerimonial”, eles não ficavam de
luto. Era assim que eles faziam em sua ignorância. Eles acabaram por desaparecer.
Nós que estamos aqui, foi Omama quem nos criou depois da morte destes
primeiros ancestrais. Omama nos criou, nós, que somos outra gente; ele nos recriou
e nós pudemos aumentar novamente. Nós que existimos hoje, nós somos os
espectros dos primeiros ancestrais que foram precipitados ao mundo subterrâneo.
Omama, depois de ter tombado conosco ao dorso do céu, ficou para nos criar.
Omama: simplesmente existe (est simplesment advenu à l'existence) Ele é um ser
sobrenatural que existe sem causa nenhuma e ele nos cria assim também,
simplesmente. Nós éramos os espectros fechados no caule de uma jovem palmeira
de onde se fazem zarabatanas, como ovos de formigas. Ele percebeu o ruído que
escapava da palmeira, aproximando-se para escutar. Depois ele corta o caule e o
abre longitudinalmente. Nós éramos espectros como ovos de formigas. Ele nos
coloca em uma grande folha de heliconia sob o sol. Ele nos transforma em
Yanomami nos devolvendo a pele. Depois ele nos cria, nos dando a palavra e ele
nos coloca de pé. E ele diz assim a cada um: “Você, você fará o diálogo cerimonial
wayamu!”; “Você, você fará o diálogo cerimonial hiimu!”, “você será xamã!”,
“Você fará das falas Hwërëamu!”
(resumo e tradução a partir da versão francesa em Albert 1985: 745-747)

A queda do céu marca o início do ciclo cosmogônico 49 da mitologia yanomami.

Esse ciclo narra a epopéia do demiurgo Omama e seu irmão Yoase, responsáveis por

conferirem ao cosmos sua forma atual. A cosmologia yanomae é apresentada por Albert

(ibid.: 250-252) e Smiljanic (1999) como um movimento contínuo de substituição cíclica

dos andares dos cosmos (mundo subterrâneo, terra, céu e céu embrionário), que distingue

as eras culturais e marca a transformação de diferentes “humanidades”: a era dos ancestrais


49
Utilizo cosmogonia aqui no sentido de narrativas que versam sobre a origem das coisas e do universo. É
preciso destacar que embora existam cosmogonias importantes no universo ameríndio – como o Jurupari
e Macunaíma – nem toda mitologia amazônica traz essa preocupação com a origem, e frequentemente, os
seres e coisas são tomados simplesmente como sempre existindo (ver por exemplo Vilaça 2007 sobre os
Wari'). A intervenção de um demiurgo é portanto fato notável na mitologia Yanomami.
41

animais, a era do ancestral canibal (que surge em alguns mitos como pai dos gêmeos

Omama e Yoase) e a era da humanidade atual. Também na mitologia yanomamɨ são

identificadas três humanidades sucessivas: a primeira, se converteu em fauna; a segunda,

descendente do sangue da lua, foi dizimada por um grande dilúvio, e, finalmente, a

humanidade atual, criada pelo demiurgo Omawë, ele mesmo um sobrevivente do dilúvio

(Lizot 1994; Cocco 1972). Entretanto, essas diferentes eras e seres parecem co-existir

simultaneamente em espaços paralelos acessíveis aos xamãs (Smiljanic 1999; Guimarães

2005a). Do mesmo modo, sugiro que ao invés de informando humanidades que se

substituíram umas as outras, esses ciclos mitológicos parecem explicitar diferentes

sentidos que “humanidade” pode ter entre os Yanomami.

Os Yanomami atuais, nessa versão yanomae, originam-se dos fantasmas que

habitavam o dorso do céu. 50 Omama é o responsável por devolver-lhes a existência,

tirando-os da casca de árvore em que se encontravam aprisionados como formigas; é ele

quem os cria de fato, como Yanomami. No mito da queda do céu, os verdadeiros humanos

são não mais aqueles Yanomami que restaram sem se transformar em animais, mas os que

foram criados e instruídos pelo demiurgo. Humanidade aqui, ou melhor, yanomamidade,

não se refere tanto a um dado comum que pode eventualmente ser perdido, mas a algo que

é criado e se conforma como atributo específico.

A epopéia de Omama pela terra coincide com a criação/instituição dos diversos

predicados e atividades que definem o modo da socialidade dos Yanomami. Mas Omama é

acompanhado por seu irmão gêmeo Yoasi, que sempre atrapalha ou deturpa sua “criação”.

Quando Omama pede ao irmão que busque madeira para a fabricação dos corpos

yanomami, por exemplo, Yoasi – por conta de seu temperamento preguiçoso, diz o

50
O dorso do céu é a morada dos mortos, justamente por isso, estes seres que aí habitavam e que caíram
junto com o céu, só podem ser considerados os fantasmas dos primeiros Yanomami que habitavam a terra
(cf. Albert 1985: 633). É notável de toda maneira que os Yanomami atuais sejam o resultado de uma
metamorfose operada entre os espectros, já que os fantasmas – porë – são usualmente a categoria de
alteridade privilegiada entre estes.
42

narrador – escolhe uma madeira mais mole do que deveria. Dessa escolha resulta a

mortalidade dos Yanomami, frustrando o plano original de Omama de fazê-los imortais a

partir de uma madeira dura (Guimarães 2005a: 29-32). Pares de irmãos cujas ações são

como antíteses umas das outras são comuns na mitologia ameríndia. Ao explorar a figura

dos gêmeos demiurgos e deceptores, Lévi-Strauss (1996) destacou como o tema da

gemelaridade impossível – a recusa da identidade perfeita entre dois seres –, característico

desses mitos, exprime um gosto pela assimetria no pensamento ameríndio, e uma dinâmica

que ele viria a caracterizar como “dualismo em desequilíbrio pérpetuo”. Retomarei este

ponto mais adiante.

Omama ensina aos Yanomami como fazer o ritual funerário e as festas reahu; a

praticar sexo de maneira apropriada, sem muito ruído; é ele também quem transmite as

principais formas de diálogo cerimonial (wayamu, yãimu) e as músicas heri; o rito de

homicida e de menstruação. Enfim, tudo aquilo que diversas etnografias apontam como

traços distintivos da socialidade yanomami é transmitido pelo demiurgo. Trata-se de um

modo de vida considerado propriamente humano, e neste sentido, os antigos ancestrais, em

sua “ignorância” – como frisam alguns comentários nativos – parecem ter a sua

humanidade, senão negada, ao menos posta em dúvida, operando como um contraponto da

humanidade criada por Omama.

Entretanto, alguns dos traços definidores da nova humanidade já tinham sua origem

narrada nos mitos sobre os ancestrais animais – a redundância entre os dois conjuntos

míticos referida por Albert (supra 29). Comentei anteriormente como por vezes era a

própria aquisição dos bens culturais que levava, algo contraditoriamente, à transformação

dos ancestrais em animais. O ponto nevrálgico de distinção desta nova humanidade com

relação àquela dos ancestrais animais não é, portanto, a aquisição de novos padrões de

comportamento – posto que estes nem são tão inéditos assim, já que são atributos de uma
43

socialidade inata e compartilhada –, mas o fato de que esses padrões são retomados como

marcas do fim do canibalismo selvagem e da transformabilidade “promíscua” que

caracterizava a primeira humanidade. Este ponto é explicitado em um comentário nativo à

narrativa da queda do céu:

Omama fez as pessoas virarem Yanomam, ele pôs um fim às transformações.


Ele fez os Yanomam falarem do jeito que falamos hoje, ele fez as pessoas
pararem de se tornarem outras. Depois de tudo, ele partiu, quando terminou
de nos criar como Yanomam. Do mesmo modo que vocês estrangeiros fazem
fotografias, ele fez as árvores na floresta e então ele partiu. Antes de partir
ele nos ensinou o diálogo wayamu, as músicas heri, os diálogos yãimu. Ele
também nos ensinou o rito funerário. Ele nos endireitou. Quando ele ainda
não estava lá, as pessoas eram ignorantes. A floresta era instável e as pessoas
estavam sempre mudando de forma. Eles costumavam virar anta, jacarés,
pica-pau; Teremë os cortou em pedaços, um homem comeu sua esposa
durante sua primeira menstruação; outro matou os espíritos da noite; outros
foram devorados pelo jaguar. Finalmente Omamo nos criou como um novo
povo depois que estas primeiros Yanomam foram jogados pra baixo. Nós
somos Yanomam diferentes (Albert apud Wilbert & Simoneau: 39. tradução
do inglês e grifo nossos.)

No conjunto de mitos referentes aos ancestrais animais, as metamorfoses realmente

não se encerram nunca. No próprio mito da pupunha, o pai, após se transformar em veado,

se transforma em pedra, que se torna então a morada dos hekura... e assim por diante. E se

sugeri que sua transformação era desencadeada pelo reconhecimento da humanidade do

Outro, isto não é garantia para a estabilização da posição deste Outro: aqueles que

conheciam a verdadeira pupunha, não tardaram a se metamorfosear em pássaros.

O que está em questão nos mitos sobre os ancestrais animais é um mundo

apreendido como precipitado de humanidade, no qual um fundo comum de subjetividade

torna a afirmação da posição de sujeito algo problemático e sempre em disputa, como

ressaltado anteriormente. Acrescente-se a isso a instabilidade inata das formas corporais –

dependentes em larga medida do olhar do outro –, e a metamorfose aparece então como

uma possibilidade e um risco permanentes. Como observa Wagner (1981: 72), em

tradições diferenciantes como aceito ser a yanomami, a urgência no que tange à invenção

da pessoa não é a de controlar e coletivizar uma “personalidade” idiossincrática e


44

indomável, como parece ser o caso entre 'nós', mas a de evitar conexões indesejáveis que

colocariam em risco a própria base convencional contra a qual (mas também sobre a qual)

se sustenta a ação humana. A alma, precipitado de socialidade na forma de pessoa e figura

da relacionalidade, revela-se assim extremamente vulnerável:

A soul is not disciplined. As the possessor's "touch" and rapport with others
and with society, the thing perceived as "soul" is constantly being
transformed in the course of inventive action, in the implicit and explicit
"representation" of it by the actor and others. Should an inappropriate
convention be realized and internalized in the course of such objectification,
an inventive orientation out of relation to convention, then the problems of
"possession" or "soul-loss" would become very real for the actor (Wagner
1981: 72).

A vulnerabilidade da alma é experimentada entre os Yanomami como temor da

metamorfose. “A metamorfose ameríndia”, como advertiu Viveiros de Castro (2002: 391),

“não é um processo tranqüilo, e muito menos uma meta.” Não é sem alívio que o

comentador nativo afirma que Omama pôs um fim às transformações. Afinal, “a

possibilidade da metamorfose exprime o temor [...] de não poder mais diferenciar o

humano do animal, e, sobretudo, o temor de se ver a alma humana que insiste sob o corpo

animal que se come” (loc.cit.). E, de fato, temor da metamorfose e recusa do canibalismo

“selvagem” seguem juntos na concepção yanomami, como faz saber a passagem abaixo:

com os animais de caça surgiu um grande impasse, pois tratava-se de um


alimento que provinha dos sanumás e estes temiam comer substâncias que
compartilhassem com eles uma mesma essência. Omawö teve que retirar a
substância letal, ou melhor, a essência que havia nesses animais e que os
aproximava dos sanumás. Assim, quando os sanumás comessem um animal,
não estariam agindo como o inimigo que fica com a barriga cheia de sua
vítima que lhe é letal, e não precisavam seguir o ritual de reclusão do
matador. Após a manipulação de Omawö, restaram apenas algumas
restrições de acordo com a faixa etária e o tipo de caça (Guimarães 2005a:
69).

A dessubjetivação xamanística da caça, solução do problema do canibalismo (e, em

certa medida, da própria metamorfose) operada por diversas sociedades ameríndias (ver

p.ex. Arhem 1993, sobre os Makuna; Vilaça 1992, sobre os Wari') é realizada na mitologia

yanomami pela ação de Omama, o xamã mítico primordial. Com a intervenção do


45

demiurgo, o corpo dos animais deixa de ser um corpo humano e potencialmente perigoso –

porque corpo investido de “almas”, corpo de inimigo – para tornar-se apenas e

definitivamente alimento do qual os Yanomami podem se servir sem correr o risco de

comer um dos seus, ou de se confundir com aquilo que é comido. Essa transformação

assinala a passagem do canibalismo selvagem – literal, realizado pelos ancestrais – para o

canibalismo culinário, ritual, instituído por Omama entre a humanidade atual, que opera

como traço distintivo dos “verdadeiros humanos”, fundador da socialidade Yanomami. 51

Na mitologia em torno de Omama, o foco é deslocado de uma subjetividade

compartilhada para a conformação de uma humanidade específica: “pôr um fim às

transformações” significa de alguma forma cercear este fundo comum de socialidade. Se

em um mundo de almas a pessoa se realiza pela escolha entre diferentes relações “dadas”

que irão permitir ativar seu potencial criativo – e não tanto por seus feitos “culturais” –, a

definição de conexões preferenciais (em detrimento de outras) torna-se necessária para a

estabilização de uma forma específica e apropriada de ser humano (Wagner 1981: 70). A

saga de Omama não se refere, portanto, à subjetividade comum que faz de todos os seres,

em alguma medida, humanos (yanomamis potenciais). Antes, ela parece indicar que há

uma maneira específica e adequada de ser humano e que esta corresponde à própria

moralidade Yanomami – o que é um outro modo de dizer que nem todos são exatamente

humanos. Trata-se de uma mitologia da estabilização.

Utilizo moralidade aqui em um sentido próximo ao que lhe confere Wagner (1981),

designando o conjunto de significados e contextos convencionais centrado em uma

imagem generalizada do homem e das relações interpessoais – a base relacional coletiva de

51
A socialidade propriamente Yanomami se funda em um canibalismo cultural, efetivado por uma
série de ritos que lhe acentuam os traços hiperculinário ou para-culinário, opondo-se do interior à
predação imediata do canibalismo selvagem dos ancestrais animais mitológicos – yaroribë – e dos
não-humanos atuais – naikiribë. Este canibalismo cultural tem sua expressão no ritual funerário –
reahu – quando as cinzas dos parentes podem ser ingeridas (endo-canibalismo), mas também no
ritual de reclusão do guerreiro, destinado a desintoxicá-lo do sangue da vítima (exo-canibalismo).
Cf. Albert 1985: 340-569.
46

uma socialidade –, ou, mais exatamente, o uso convencionalizante da imagem do homem.

O autor observa como tradições diferenciantes por vezes invertem o direcionamento de sua

ação de modo a impedir uma relativização excessiva de sua própria socialidade (ou base

convencional), risco contra o qual essas tradições estariam sempre confrontadas no curso

de sua ação diferenciante.52 A inversão da ordem da ação implica uma articulação

deliberada do convencional – os predicados culturais da humanidade imanente – como

forma de afirmar a existência da ordem convencional enquanto ordem distinta e

reconhecível, e não mais o uso criativo de seus predicados buscando a diferenciação. É

preciso, portanto, fazer “cultura” – “tornar-se” Yanomami – e não apenas tomar a

yanomamidade como uma condição inata. “Quando a imagem do eu coletivo [a

moralidade] é utilizada como um controle coletivizante, conhecemô-la como 'cortesia',

'humanidade', o 'homem verdadeiro' de que falam os Daribi” (Wagner 1981: 70-71), ou os

Yanomami yayë .

Esta imagem da humanidade retomada como moralidade “é o caminho da cortesia e

da ação ritual correta, tomado pela pessoa comum quando confundida e confrontada pela

ameaça da ambiguidade”, e, poderíamos acrescentar, da metamorfose (ibid.: 71). Entre os

Yanomami, agir moralmente implica, entre outras coisas: falar uma língua e saber

participar de diálogos cerimoniais; envolver-se em relações de cuidado e parentesco;

obedecer às reclusões rituais, dormir em rede, carregar tabaco; realizar reahu, visitar-se

reciprocamente, chorar seus mortos... e claro, fazer isso apropriadamente, ou seja, a partir

de uma perspectiva propriamente yanomami, o que só é possível pela fabricação de um

corpo específico e distinto de outros corpos. Omama não só “ensina” todas essas coisas

aos Yanomami como lhes dá uma nova pele. 53 É importante lembrar que toda ação sobre o
52
Essa relativização excessiva é uma espécie de “auto-sabotagem”, que nos faz lembrar o espanto expresso
em outros termos por Levi-Strauss diante das sociedades ameríndias que, fundando-se em uma abertura
ao outro, trariam em si a semente de sua própria danação.
53
A “pele” (pei sikë) para os yanomami designa o invólucro corporal por oposição aos componentes
internos “imateriais” que são distribuídos de maneira diferenciada entre vários seres. Este invólucro é
justamente o lugar da diferença podendo ser adjetivado yanomami pei sikë, yaro pei sikë, napë pei sikë .
47

corpo revela uma intenção de constituição e fixação de uma humanidade específica, “de

particularizar um corpo ainda demasiado genérico, diferenciando-o dos corpos de outros

coletivos humanos tanto quanto de outras espécies” (Viveiros de Castro 2002: 388). A ação

de Omama busca portanto a constituição de uma humanidade específica, não no sentido da

biologia ocidental de “espécie natural”, mas no sentido yanomami de uma humanidade

moralmente constituída, diferenciando assim os Yanomami de outros coletivos

“igualmente” humanos.

Ainda segundo Viveiros de Castro, “para nós, a espécie humana e a condição

humana coincidem necessariamente em extensão, mas a primeira tem primazia ontológica.

No caso indígena é a condição que tem primazia sobre a espécie, e a segunda é atribuída a

todo ser que se postula compartilhar da primeira” (2002: 382). Entre os Yanomami, não

parece haver uma restrição da humanidade enquanto condição – dada pela presença da

“alma” – ao homem como espécie, esta última apenas uma das muitas formas possíveis da

pessoa, ou seja, desta subjetividade distribuída e compartilhada por várias espécies. A

humanidade enquanto condição abrange, para os Yanomami, certamente espécies não-

humanas – o espectro da personitude yanomami é mais largo do que nossa Humanidade –

e é algo que está sempre em disputa nas interações entre diferentes seres, um atributo

relacional que pode inclusive ser perdido, como revelam os mitos dos ancestrais animais.

E haveria alguma coincidência entre nosso sentido específico de humanidade e a

humanidade específica dos Yanomami? Por princípio não. Se humanidade é um aspecto

relacional e em disputa, então a marcação da diferença entre um Yanomami e um Yekuana

(grupo caribe vizinho) – para não dizer da diferença entre um Yanomami e um branco

(nabë) – pode ser tão ou mais relevante que a distinção entre um “humano” e um queixada.

Em uma conversa informal, após assistir uma aula de biologia sobre a quantidade de água

no corpo humano, um jovem professor Yanomami me perguntou: “se os Yanomami são

Ver infra p. 62s.


48

seres humanos e os napë (brancos) também, por que os animais não são?” Pareceria que a

idéia de humanidade como espécie “natural” é bastante estranha aos Yanomami. A saga de

Omama revela que o sentido específico (no sentido de exclusivo) de humanidade é dado

pela retomada deliberada de uma yanomamidade, entendida aqui como moralidade, isto é,

a “imagem do próprio eu coletivo” – todo um modo de ser, que pode ser induzido e

atualizado, considerado apropriadamente humano – e da qual estão excluídos – não tanto

por definição, mas certamente por interesse e relação – diversos coletivos humanos

(aqueles que nós chamamos assim, como outros grupos indígenas e os brancos, e ainda

aqueles que consideraríamos naturalmente excluídos, como algumas espécies animais).54

Logo se vê que não há contradição entre os diferentes sentidos de humanidade que

os ciclos míticos nos oferecem, ora infinitamente abrangente e da ordem do dado, ora

extremamente exclusivista e passível de ser fabricada/induzida (inventada). Estamos aqui

diante de uma outra formulação da antinomia entre a “abertura ao Outro” e o

etnocentrismo dos ameríndios, destacada por Viveiros de Castro:

ou os ameríndios são etnocentricamente avaros na extensão do conceito de


humanidade, e opõem totemicamente natureza e cultura; ou eles são
cosmocêntricos e anímicos, e não professam tal distinção, sendo mesmo
modelos de tolerância relativista, ao admitir a multiplicidade de pontos de
vista sobre o mundo. [...] Penso que a solução para essas antinomias não está
em escolher um lado […] Trata-se mais bem de mostrar que tanto a tese
como a antítese são razoáveis, mas que elas apreendem os mesmo
fenômenos sob aspectos distintos (2002: 371).

Os Yanomami estão a replicar essa antinomia em todas as esferas da sua vida, da

mitologia às relações intersubjetivas, já que “humanidade” é tanto um conceito quanto um

fenômeno vivido. O conjunto mítico dos ancestrais animais aponta para o fundo humano e

perigoso de tudo, enquanto a saga de Omama apresenta o modelo de socialidade de uma

humanidade específica. O primeiro conjunto é uma mitologia da metamorfose e da

54
Essa percepção dos humanos como uma espécie entre muitas outras, e capaz de ter diferenças “internas”
equivalentes ou mais relevantes que as distinções inter-específicas dada pela nossa biologia se faz notar
entre outros grupos também. “Os Jívaro”, observa A-C. Taylor, “vêem a humanidade como uma coleção
de sociedades naturais; a condição biológica comum dos humanos interessa-lhes muito menos que as
diferenças entre as formas de existência social” (1993: 658).
49

diferenciação, o segundo, da estabilização e convencionalização. Mas é na articulação

desses dois conjuntos que se distingue um aspecto fundamental da pessoa entre os

Yanomami, a saber, que o compromisso com a estabilização de uma forma específica não

pode excluir definitivamente o potencial de alteração, pois este, enquanto expressão de um

potencial criativo e de uma condição humana imanente, é o seu artifício de subjetivação e

singularização. Tão importante para a atualização da pessoa yanomami quanto agir

moralmente são sua relação com diversas formas de alteridade e o risco de metamorfose

daí decorrente.

No interior mesmo da socialidade Yanomami, a metamorfose encontra seu lugar no

xamanismo e em outras experiências extraordinárias: sonhos, adoecimento, etc.

Lembremos que a própria saga de Omama – definidora dos atributos da moralidade

yanomami– é seguida de perto por seu irmão Yoase, gêmeo deceptor responsável por

desordenar a obra 'reguladora' do irmão. A estabilização de uma forma humana específica,

buscada pelos Yanomami e propiciada por Omama, não chegará nunca, pela influência de

Yoase, a ser definitiva – “a identidade constitui um estado revogável ou provisório; não

pode durar” (Lévi-Strauss 1993: 208). Como observa Guimarães (2005a: 29) acerca dos

Sanumá, a importância das ações 'desestabilizadoras' de Soawö (nome pelo qual é

chamado o gêmeo deceptor sanumá) “está exatamente em seu potencial transformador,

pois com elas se constitui a alteridade tão essencial para que os sanumás se definam como

humanos, criando contrastes e diversificando o mundo”.

Yoase é o personagem que, num procedimento característico do pensamento mítico,

vem novamente reunir o que parecia separado: a instabilidade do ciclo mítico dos

ancestrais animais e a ação reguladora do ciclo de Omama – ou seja, a diferenciação e a

convenção – atestando que, de fato, os dois sentidos de humanidade que nos revelam os

mitos não são excludentes no pensamento Yanomami.55 Situando o princípio do


55
Seria preciso talvez levar em conta também o comentário de Wagner (1981: 44) de que enquanto o nosso
50

desequilíbrio no interior do par, a mitologia de Omama e Yoase aponta para o tema da

impossível gemelaridade, destacado por Lévi-Strauss (1993) como expressão de um traço

fundamental do pensamento ameríndio: o desequilíbrio dinâmico presente em todo e

qualquer setor do cosmo e da sociedade e do qual “depende o bom funcionamento do

sistema, que, sem isso, estaria constantemente ameaçado de cair num estado de inércia”

(ibid: 65).

Sugiro que esse desequilíbrio dinâmico pode ser compreendido nos termos de

Wagner como uma dialética entre a convenção e a invenção que, excluindo a possibilidade

de síntese, refaz-se continuamente multiplicando contradições e extraindo daí seu potencial

criativo (1981: 44). Nesse sentido, uma observação de Wagner me parece elucidativa sobre

o papel de Yoase no que concerne à articulação dessa dupla mitologia para o entendimento

da pessoa yanomami. O autor fazia notar que

[a]s a collectivizing role, this "honor" or "humanity" [aqui, a moralidade


preconizada por Omama] precipitates a differentiating motivation, a
counterinvention of dynamic, inventive force [Yoase}, which may be
identified with an impulsive aspect of the personal constitution (a "body
soul," desires "of the flesh" or "of the world") or with some spiritual agenc.
(ibid: 71).

Em tradições diferenciantes, portanto, a pessoa se constitui pela dialética entre o

esforço de diferenciação a partir de uma humanidade imanente (esforço esse que contra-

inventa a própria socialidade ao desafiá-la) e tentativas de estabilização da moralidade

inata (que contra-inventam forças desestabilizadoras): “aprender humanidade” – ou, no

caso, aprender a ser yanomami – significa exatamente encontrar a dose suficiente entre

alteração e estabilização.

Essa dose de estabilidade e alteração irá diferir caso esteja em foco a relação com

alteridades ontológicas, como os espíritos canibais, ou a vida entre parentes. Do mesmo

pensamento usualmente faz uso de uma lógica linear que tenta excluir e desfazer as contradições, o
pensamento de povos tribais e outras tradições diferenciantes se vale de uma lógica dialética (no sentido
grego, mais que hegeliano), a qual, excluída a possibilidade de síntese ou de transcendência, se realiza
multiplicando as contradições. O próprio autor aproxima essa contradição das oposições de Lévi-Strauss.
51

modo, cada um dos sentidos de humanidade – seu aspecto imanente compartilhado ou de

moralidade exclusiva – pode ser tomado ora como (1) contexto motivante para uma ação

diferenciante, ora como (2) algo a ser fabricado/'induzido' por ações coletivizantes. No

primeiro caso (1), quando o sentido de humanidade tomado como contexto motivante é o

fundo comum de socialidade, o que se busca é a constituição de uma humanidade

específica, enquanto que, quando é o sentido de humanidade como moralidade exclusiva o

contexto motivante, a ação diferenciante visa à constituição de pessoas poderosas/

singulares. No segundo caso (2), por sua vez, as ações coletivizantes podem se referir tanto

ao processo do parentesco – que assume a “imagem coletiva do eu” como modelo para a

fabricação de pessoas –, quanto à domesticação de estrangeiros – no qual a humanidade

inata de todo sujeito é acionada.

Nos próximos capítulos, tentarei explorar esta dialética privilegiando a cada vez

uma esfera de relações: as interações “inter-específicas” entre humanos, animais e espíritos

(cap. 2), a esfera do parentesco e da aliança (cap. 3), e a relação com os brancos e outros

estrangeiros (cap. 4). Essa separação é evidentemente um efeito da análise, pois, a pessoa

yanomami é, como nos lembra Lizot (2007: 288), “tudo isso em si mesma e ao mesmo

tempo”.
52

2- Yanomami thëpë: ser pessoa entre espíritos e animais

Yanomami pode significar, como na expressão yãnomami thëpë, os “seres

humanos”, e, em seu nível mais inclusivo se opõe a outras categorias ontológicas: os

yaropë – animais da floresta, literalmente, a caça – e os yai thëpë – criaturas invisíveis e/ou

sem nome, comumente traduzidas por “espíritos” nas etnografias. Yãnomami thëpë se opõe

ainda a napë thëpë – inimigos, estrangeiros, e hoje também os “brancos” (Albert 1985:

190-192; Smiljanic 1999: 55-56). Entre os Sanumá, também é apontada uma distinção

entre Sanima dïbï, os seres humanos, e os não-humanos, sejam eles sai dïbï – maus

espíritos – ou galo dïbï – animais comestíveis (Ramos 1990: 295). Neste nível mais

abrangente, onde parece efetuar-se uma distinção ontológica propriamente dita, a posição

d e yanomami thëpë distingue-se, sobretudo, pela combinação de uma série de atributos

corporais, distribuídos de maneira diferenciada entre os yaropë e os yai thëpë. Esses

atributos contribuem para fazer da pessoa Yanomami não um sujeito auto-identificado,

mas um composto dinâmico: alguns deles parecem remeter à própria imagem moral do

homem, outros, contudo, estão implicados em relações de predação e metamorfose – em

um claro diálogo com a mitologia dos ancestrais animais. Seja como for, eles evidenciam

que a pessoa Yanomami se faz na e pela relação com o Outro.

A configuração atual do cosmos yanomami – e todos os seres que nele habitam – é

o resultado de transformações e metamorfoses precedentes a partir de uma humanidade

imanente dada. Sua cosmologia, com a constante substituição dos andares do mundo “é

sobretudo um processo, e não uma armadura cósmica” (Albert 1985: 651) de maneira que

a classificação dos seres que habitam este cosmos também não deve ser lida como uma

tipologia fixa, mas antes como uma série de posições a serem definidas na interação e a

posteriori. As três classes de seres às quais me refiro neste capítulo – os yai thëpë, os
53

yaropë e os yãnomamë thëpë – são flexíveis o bastante para assumir diferentes significados

de acordo com a relação em questão e cada qual pode, por vezes, vir a reunir espécies mais

diferentes entre si do que a suposta diferença entre as classes. Mais correto seria dizer que

elas não são nem mesmo classes, posto que designam seres que são apenas as formas

atuais, e sempre mais ou menos instáveis, pelas quais um mundo em constante

transformação se deixa apreender.

2.1-Yai thëpë

Yai thëpë refere-se “genericamente a vários seres incorpóreos”: desde os espíritos

maléficos da floresta (në wãripë), aos quais são imputados ataques e adoecimentos; aos

espíritos auxiliares de um xamã (xapiripë ou hekuras); passando também pelos espíritos

dos ancestrais animais e espíritos das plantas (Smiljanic 1999: 62). Albert traduz yai thëpë

como “seres não-humanos/invisíveis”, incluindo em seu campo de referência também os

espectros dos mortos (porepë), e os aõapataripë – criaturas subterrâneas, canibais,

resultantes do soterramento da primeira humanidade pela queda do céu (Albert &

Kopenawa 2003: 68 n.2). Yai thëpë denota ainda tudo o que não possui nome, o que é

desconhecido e potencialmente perigoso, assim como tudo aquilo que não é comestível

(Lizot 2004: 496; Smiljanic 1999: 55-56).

Cada espécie de “espírito” costuma ser nomeada individualmente pela referência a

alguma coisa no mundo visível fenomênico: a marca de sua qualidade não-humana e

invisibilidade é dada pelo acréscimo do sufixo -ri (em yanomae, -riwë em yanomamɨ)

indício também de intensidade (Albert & Kopenawa 2003: 73 n.30). Assim, o espírito do

trovão, por exemplo, é Yapirari; Xamari é o espírito da anta, e os espíritos ancestrais dos

animais, em geral, são Yarori pë. Cada um desses nomes, mesmo quando singular, designa
54

uma série numerosa de espíritos, e não um único espírito individual. A impressão que se

tem é que os yai thëpë são sempre um coletivo, ou no mínimo, uma duplicidade: K.Taylor

(1976: 36) comenta que os xamãs sanumá durante sua iniciação, devem necessariamente

convocar e atrair um par de irmãos de espíritos animais para se alojarem em seu peito, que

passa então a ser a casa destes espíritos, onde durante o dia eles repousam em suas redes e

fazem vigília e xamanismo à noite56 (Albert & Kopenawa 2003: 76; Smiljanic 1999: 62-

73).

Yai thëpë são muitos e diversos, podendo viver nos mais variados espaços. Os

xapiripë vêm da região onde acaba o solo da floresta e começam os pés do céu 57 e, quando

ainda não estão na casa interior no peito do xamã, também podem habitar as montanhas

(Albert & Kopenawa loc.cit.). Yapirari, o espírito do trovão, e outros espíritos da noite,

vivem no dorso do céu – a terra dos mortos. Há também uma série de seres que habitam o

subterrâneo, sem falar nos próprios espíritos animais que habitam as florestas (Smiljanic

1999: 64, 79). Todos os espaços do cosmos yanomami são habitados pelos espíritos: não

há espaço vazio, ou “terra e montanha que exista sem razão”(Albert & Kopenawa loc.cit.).

Disso decorra, talvez, o conceito de urihi, a terra-floresta, como uma “entidade viva,

inserida numa complexa dinâmica cosmológica de intercâmbios entre humanos e não-

humanos” (Albert 1999; ver também id. 2002). O xamã David Kopenawa diz que só os

brancos podem pensar que a floresta não é senão um monte de árvores, “porque eles olham

e não vêem os espíritos, quando os xamãs yanomami sabem que a floresta pertence aos

xapiripë e é feita de seus espelhos” (Albert & Kopenawa 2003: 79).

Pois ainda que geralmente invisíveis, os xapiripë e outros espíritos são vistos pelos
56
Os espíritos auxiliares de um xamã habitam em seu peito, em uma maloca construída durante a iniciação
xamânica que em tudo assemelha-se às casas coletivas yanomami. Depois de uma vez atraídos, os
espíritos entram nesta casa por um caminho luminoso e então, amarram suas redes, cantam, dançam, etc.
Para uma descrição minuciosa da construção dessa casa entre os Yanomae ver Smiljanic 1999: 111-119.
Ainda de acordo com Smiljanic o corpo do xamã pode ser pensado mesmo como uma sinédoque do
cosmos (ibid.: 122).
57
O nível celeste é uma abóbada que se aproxima do nível terrestre – concebido como um plano – nas suas
extremidades, onde ficam os pés que a sustentam (ibid: 53).
55

xamãs. As outras pessoas, entretanto só os vêem em situações extraordinárias e

frequentemente perigosas que podem desencadear metamorfoses não desejadas: encontros

súbitos na floresta, sonhos, adoecimentos etc. O controle desta visibilidade/invisibilidade

relativa compete aos próprios yai thëpë: mais do que vistos, eles se fazem visíveis. “Quem

não é olhado pelos xapiripë não sonha, só dorme como um machado no chão” afirma Davi

Kopenawa (2001a: 19), indicando que a possibilidade de ver os espíritos (“sonhar”)

vincula-se diretamente à questão de ser visto por estes. Mesmo os xamãs, só podem ver os

espíritos, porque no transe xamânico, pela inalação da yakõana58, eles “se tornam outros”,

eles também são xapiripë.: “não se vê um espírito, senão através dos olhos de um outro

espírito ao qual nos encontramos identificados” (Albert & Kopenawa 2003: 77 n.39). Ver

uma criatura yai thëpë é, por conseguinte, sempre o indício e o catalisador de uma

alteração.59

Salvo quando atuando como xapiripë, em uma relação familiarizada e colaborativa

com algum xamã, os yai thëpë possuem uma postura de franca hostilidade com os

Yanomami e são considerados seres extremamente perigosos. Entre os Yanomamɨ do

Ocamo, os yai são referidos como demonios (em espanhol), acentuando o caráter

usualmente belicoso destas criaturas (Kelly 2003: 74). Em parte, esse perigo se deve

justamente ao fato de que as pessoas comuns – não-xamãs – não possuem controle sobre

as transformações desencadeadas pelos encontros com os yai thëpë. Além disso, essas

criaturas são consideradas responsáveis por diversas doenças e ataques aos componentes

espirituais da pessoa, dedicando-se com predileção a devorar o pei mi amõ, espécie de

núcleo vital da pessoa yanomami 60 (Lizot 2004: 496). Para estes seres maléficos, os

58
Yakõana é um aditivo com efeitos alucinógenos produzido a partir da casca seca da árvore virola
enlogata, transformada em um pó fino que é soprado, com a ajuda de um tubo vegetal, na narina dos
xamãs e assim inalado por estes. É utilizado também nas pontas de flechas para caçar macacos e outros
animais arborícolas por seu efeito de relaxante muscular (Albert 1985:140; Smiljanic 1999:107).
59
Esta possibilidade de alteração, que parece fundamental para a experiência humana dos Yanomami, isto é,
para que não se tenha uma “existência à toa”, é um ponto que retomarei mais adiante (infra 70).
60
Sobre uma revisão sobre este e outros componentes da pessoa v. infra: 61-79.
56

Yanomami são sua caça (Albert & Kopenawa 2003: 68 n.2).

Todas essas características indicam a forte carga de alteridade que apresentam os

yai thëpë na cosmologia yanomami. De acordo com o dicionário de Lizot (loc.cit.), a

expressão yai thawë, significa “diferente”, “de outro tipo”, “desconhecido”. Na verdade,

parece que a percepção e definição de um ser como “espírito” passa necessariamente pela

afirmação de sua diferença e alteridade, como se esses seres (e aqui se incluem-se

especialmente os mortos) fossem a forma de alteridade privilegiada pelo pensamento

yanomami. Logo no início de uma narrativa sobre esses seres da floresta, Kopenawa diz ao

seu interlocutor: “Vocês, brancos, os chamam espíritos, mas eles são outros” (Albert &

Kopenawa 2003: 68).

Entre os Sanumás, esses diferentes espíritos são chamados sai töpo (ou sai dïbï em

Ramos 1990). Sai töpo, portanto, se refere às “criaturas da floresta”, seres que não são

animais, nem pessoas, apresentando a mesma invisibilidade relativa que os Yai thëpë. Os

Sanumá temem a imprevisibilidade desses seres – que apresentam um comportamento

hostil aleatório – sobretudo porque é difícil identificar com precisão quando se trata

realmente de um sai de61, pois estas criaturas podem assumir diversas formas corporais,

metamorfoseando-se momentaneamente para “enganar” os Sanumá. Muitas vezes, quando

a ingestão de uma caça provoca mal-estar, conclui-se que isso ocorreu porque aquele

animal era, na verdade, um sai de. Todo ser animado que não se come (algumas lagartas,

cobras, escorpiões, dentre outros) também é considerado um sai de (Guimarães 2005a: 76-

89). Os sai töpo, como yai thepë, são, portanto, aqueles que “comem”e atacam, mas que

nunca são comidos: são os predadores por excelência.62

Ainda segundo Guimarães (ibid.: 40), os sai töpo são criaturas com uma
61
Sai de é a forma singular de sai töpö. O sufixo töpö indica plural, mas com referência preferencialmente
a um grupo de seres ou povo (Guimarães 2005a: 18. n.11).
62
Guimarães (ibid. 76) comenta que quando algum animal silvestre se aproxima da aldeia e não teme a
presença das pessoas, os Sanumá, observando o comportamento estranho deste animal concluem que se
trata de um sai de transfigurado em caça, e, neste caso, procuram afugentar a criatura, temerosos, mas em
hipótese alguma matá-la ou comê-la.
57

“corporalidade exótica e bizarra: são grandes ou pequenos; altos ou baixos; com pêlos ou

sem pêlos, com pernas e braços ou sem eles; com vários olhos ou nenhum; com pele ou

sem pele; andam com uma, duas três ou quatro pernas, etc.” Eles não se definem tanto por

uma incorporeidade, como às vezes parecia ser o caso dos yai thëpë (cf. Smiljanic 1999,

supra 54), são, antes, seres multi-corpóreos. Não se trata de tentar resolver a aparente

contradição entre a afirmação da corporalidade dos sai töpo e a negação da corporalidade

dos yai thëpë, mas de tomá-la como dupla afirmativa de um “indecidível” 63: os espíritos

yanomami são seres incorpóreos e possuem múltiplos corpos. Pois, o quê essas diferentes

caracterizações acerca da corporalidade dos espíritos e dos seres da floresta entre os

Yanomami parecem revelar é o próprio estatuto diferenciado da corporalidade entre os

Yanomami.

Evidentemente, corpo aqui quer dizer alguma coisa outra que um corpo como

materialidade biológica ou constituição fisiológica. Esclarecendo o papel do corpo nas

cosmologias perspectivistas, Viveiros de Castro explicitava que o que chama de ‘corpo’

não seria “sinônimo de fisiologia distintiva ou de morfologia fixa”, mas um “conjunto de

afecções ou modos de ser que constituem um habitus. Entre a subjetividade formal das

almas e a materialidade substancial dos organismos, há um plano intermediário que é o

corpo” (Viveiros de Castro 1996: 128). O corpo é portanto aquilo que diferencia os

diferentes tipos de seres, na medida em que é o locus da perspectiva, como já havíamos

notado.

Em um artigo sobre a ontologia dos espíritos amazônicos (2006) o mesmo autor

explorarava a antinomia sobre a corporalidade dos espíritos contida na narrativa yanomami

acerca dos animais ancestrais (Albert & Kopenawa 2003). Corpos demais e metamórficos;

63
Diz-se indecidível de uma proposição matemática que pode ser nem falsa nem verdadeira. Viveiros de
Castro (1996, 2006) também utiliza a expressão para referir ao problema colocado pelas etnografias
ameríndias de saber se o jaguar mítico é um bloco de afecções humanas em uma forma jaguar ou o
contrário.
58

ou corpos de menos e evanescentes; mais belos e ornamentados do que qualquer

Yanomami poderia se apresentar, ou francamente terrificantes e assombrosos; gigantes ou

minúsculos, os yai thëpë (e outros espíritos amazônicos) – conclui o autor – seriam, menos

do que espíritos por oposição a um corpo material:

uma corporalidade dinâmica e intensiva, um objeto paradoxal que, como


Alice, não cessa de crescer e diminuir ao mesmo tempo: um espírito é menos
que um corpo — os xapiripë são partículas de poeira, miniaturas de humanos
dotados de micro-falos e a cujas mãos faltam dedos [...] — e mais que um
corpo — aparência magnífica, eventualmente terrificante, ornamentação
corporal soberba, brilho, perfume, beleza, um caráter, em geral, excessivo
em relação àquilo de que são a imagem [...]. Em suma, uma
transcorporalidade constitutiva, antes que uma negação da corporalidade: um
espírito é algo que só é escasso de corpo na medida em que possui corpos
demais, capaz como é de assumir diferentes formas somáticas (2006: 326).

A afirmação da transcorporalidade constitutiva dos espíritos vem nos lembrar na

verdade do caráter transformacional desse corpo, exposto que é às mais diversas

influências, já que corpo investido de alma. A questão do que é um corpo para o

pensamento ameríndio rendeu várias boas páginas na história da etnologia sul-americana,

e, a seguir, quando da discussão sobre os componentes da pessoa yanomami, este ponto

voltará à tona.

2.2.Yaropë

Yaropë, em yanomae, designa os animais terrestres – mais especificamente, a caça

dos atuais Yanomami. Embora não possua a mesma generalidade que o emprego do termo

em português “animais”64 pode sugerir, já que não se aplica a todas as classes de animais, é

yaropë – e não outro termo, como, por exemplo, yuripë (peixes) – a categoria utilizada
64
Esta não é uma especificidade yanomami. Como observa, Viveiros de Castro, “são, com efeito, raras, se
existentes, as línguas amazônicas que empregam um conceito co-extensivo ao nosso “animal”, embora
não seja nada incomum ouvirmos termos mais ou menos correspondentes a um dos sentidos corriqueiros
de “animal” em inglês (e menos comum em português): animais terrestres relativamente grandes,
tipicamente mamíferos, por oposição a “peixe”, “ave”, “inseto”e outras formas de vida. Suspeito que a
maioria das palavras indígenas que foram traduzidas por “animal” nas etnografias significam, na
verdade, algo desse tipo”(2006: 327).
59

para contrastar com os yanomami thëpë e yai thëpë. E se esta última é utilizada para

designar genericamente tudo aquilo que não é comestível, o fato de yaropë “significa[r]

essencialmente 'caça' [...], isto é, corpo-carne definido por sua destinação alimentar”

(Viveiros de Castro 2006: 328), é certamente da maior relevância, como ficará claro a

seguir.

As etnografias mostram como a caça ocupa um lugar proeminente no cotidiano

yanomami: não só é uma das principais atividades a que se dedicam os homens, como é

um assunto de predileção (Chagnon 1976; K.Taylor 1972; Albert 1985; entre outros). Uma

refeição sem carne não é considerada uma refeição completa. Os Yanomami possuem uma

palavra específica para distinguir a “fome de carne”, 65 que não pode ser saciada por maior

que seja a fartura de outros alimentos, traduzindo também certa ansiedade que pode levar a

brigas matrimoniais e ao aviltamento de um marido por seus familiares (Lizot 1988: 226;

Ramos 1990: 34). Dentre os principais animais caçados estão a anta, queixadas e caititus,

além de diversos tipos de macacos, de veados, de roedores, de tatus, de tamanduás, e

grandes pássaros (Albert 1985: 14). Contudo, a disponibilidade de caça e os tabus

alimentares, são extremamente variáveis de uma região a outra. 66

Esses animais adquiriram sua forma e condição atuais a partir de metamorfoses

sofridas pelos ancestrais míticos, como destacado no capítulo anterior. Eles também eram

yanomami, mas perderam alguns de seus atributos e/ou componentes “espirituais”,

restando apenas este corpo mortal e perecível, corpo-carne 67 (Smiljanic 1999: 61). Antes

65
A palavra é naiki ( nagi, em sanumá ) por oposição à ohi, uma fome mais generalizada, de estômago
vazio. Naiki também refere-se a monstros canibais.
66
Os Sanumá possuem uma série mais detalhada de restrições alimentares do que os outros grupos. Entre
estes, o tabu incide usualmente, sobre a espécie animal equivalente ao duplo animal da pessoa. (Sobre o
duplo animal conferir mais a frente. Infra 74 Sobre os tabus alimentares entre os Sanumá, conferir
K.Taylor 1972; 1976).
67
Os animais atuais surgiram e se multiplicaram a partir do sangue destes primeiros animais
metamorfoseados. Smiljanic esclarece que os animais são constituídos por um envelope corporal (bei
sikë) e um princípio vital (wixi a) (Smiljanic 1999:61). Diferentemente dos Yanomami, contudo, eles não
possuiriam ani porepe ou ani utupë, componentes responsáveis pela agência e subjetividade. Guimarães
(2005a:155) também observa que de acordo com os Sanumá os animais não possuem pili õxi, espécie de
corpo interior subjetivo sanumá, sede do sentir e pensar.
60

disso, eles se apresentavam sob a forma humana – uma forma humana genérica e mais ou

menos indiferenciada. Sua forma atual – corpo animal específico – surge apenas no

momento mesmo de sua “dessubjetivação”. Recorro à expressão dessubjetivação porque,

de acordo com Smiljanic e ainda outros autores, os yaropë, tal como conhecidos hoje em

dia, “são destituídos do poder de agência”, tanto assim que “as agressões animais que

colocam em risco a integridade física e psíquica dos humanos são interpretadas pelos

Yanomae como decorrentes da influência maléfica dos homens e dos espíritos, pois só

estes se qualificam como agentes”68 (1999: 61).

Essa dessubjetivação, completada pela ação de Omama, corresponde à fixação

irrevogável dos animais no pólo presa, em contraposição aos Yanomami. Apenas os

Yanomami podem comê-los/atacá-los, não há espaço para a ação reversa: se algum animal

porta-se como predador diante dos Yanomami, é porque já não se trata exatamente de um

animal, mas mais provavelmente de um espírito 69 (Ramos 1990: 192; Smiljanic 1999: 61).

Mas se, a exemplo de outras cosmologias ameríndias, os Yanomami parecem “negar aos

animais pós-míticos a capacidade de consciência ou algum outro predicado espiritual”,

eles mantêm os espíritos dos ancestrais animais como esse campo “intersubjetivo humano-

animal” (Viveiros de Castro 2002: 354).

Diz-se que no momento da transformação dos ancestrais em animais, seus

componentes espirituais abandonaram o envelope corporal, indo viver nas florestas e

montanhas (Smiljanic 1999: 92; K.Taylor 1976). Assim, estes componentes ainda existem

na forma de imagens utupë – “o verdadeiro coração, o verdadeiro interior” dos seres –,

convocados pelos xapori durante as sessões xamânicas, e estas imagem utupë dos espíritos

68
Um outro indicativo de que, aparentemente, os animais atuais não são usualmente pensados como
sujeitos entre os Yanomami é a própria escolha de estrutura linguístico para compor sua forma plural:
enquanto os yanomami e os yai a recebem o plural pela forma thëpë, que sinaliza na verdade um coletivo,
povo, conjuntos de pessoas, portanto, etc., os yaro a nunca recebem essa pluralização e são designados
apenas como yaro pë (plural simples).
69
Cf. pag. 44 supra
61

animais, apresentam uma forma humana.70 Estabelece-se, deste modo, uma importante

triangulação ontológica entre yaroripë (ancestrais animais), yaropë (caça) e yaroripë

(imagens animais xamânicas atuais), que articula, justamente, mito, caça e xamanismo

(Albert & Kopenawa 2003: 73 n.32).71

Destituídos de agência e dispostos como alimento, os Yaropë, não são considerados

uma ameaça aos Yanomami, marcando uma posição de subordinação, na relação

hierárquica predador-presa. A dessubjetivação – isto é, perda dos componentes espirituais/

agentivos – faz com que os animais sejam apenas carne e não mais “inimigos” em

potencial, envolvidos em uma disputa perspectiva. Mas o próprio guerreiro inimigo pode

ser designado yaro. (Lizot 2004: 500). A morte de um inimigo é vivida entre os Yanomami

como um ato de predação – um canibalismo simbólico – no qual, o guerreiro consome o

sangue e outros componentes vitais da vítima, devendo submeter-se, consecutivamente ao

homicídio, a um ritual de “desintoxicação e digestão”. Mas, certamente, não é por um

valor alimentício que o inimigo pode ser chamado de yaro (mesmo porque, trata-se de uma

canibalismo simbólico) senão pela subordinação hierárquica contida em uma tal referência.

Yaro refere-se, assim, ao inimigo morto, já “consumido” em seus aspectos vitais pelo

guerreiro: é o corpo do inimigo feito presa, a alteridade desinvestida de seu potencial de

contra-predação72 (Alès 2006: 45).

70
Cf. sobre o componente utupë pags 71-73 infra
71
Esta completa dessubjetivação dos animais também deve ser relativizada uma vez que, como já foi
observado, muitos dos animais que se vê na floresta são na verdade o duplo animal de alguém, e
enquanto tal, partilham da mesma moralidade humana que os Yanomami.
72
Observe-se também o caso dos Wari', e a oposição Wari (ser humano, pessoa) X karawa (animal, presa,
comida e que inclui inimigo: wijan) (Vilaça 1992; 2006). Nunca é demais atentar no entanto que a
“animalização” dos inimigos, “depende de uma primeira, e bem mais fundamental, humanização do
animal” e que guerra e caça só estão em continuidade por que são, ambos, “um combate entre seres
sociais” (Viveiros de Castro 2002: 286).
62

2.3.Yanomami thëpë ou de que é feita uma pessoa

Yanomami thëpë refere-se aqui ao domínio da “personitude”, implicando agência,

perspectiva e subjetividade. Refere-se ainda a um modo de se relacionar e se apresentar no

mundo: uma série de estados, ligados em uma cadeia de transformação. Por ora, vou me

deter na relação corpo e alma, mais exatamente no modo como os Yanomami concebem os

diversos componentes da pessoa. É preciso que fique claro, contudo, que a oposição entre

corpo e alma representa aqui apenas um ponto de partida, e não de chegada – ou seja, as

questões do que é um corpo e do que é a alma, e, sobretudo, de que tipo de relação há entre

eles, são precisamente o que motiva esta exploração. Do mesmo modo a abordagem

analítica de cada um dos componentes da pessoa separadamente – bem como o tratamento

à parte do parentesco e da moralidade no próximo capítulo – não pode obscurecer o fato de

que tudo isso está implicado em um mesmo fluxo de vida.

A distinção fundamental feita pelos Yanomae dos componentes da pessoa é aquela

entre bei sikë (ou bei sibosikë) e bei õshi (ou bei mëamo), que significam, respectivamente,

“a pele” (ou “pele de fora”) e o “interior” (“meio”, “centro”) 73 (Albert 1985: 139-140). O

primeiro componente está associado à epiderme e designa a forma exterior no sentido de

invólucro e recipiente, isto é, o 'envelope corporal' da pessoa; o segundo, é associado aos

ossos remetendo ao interior da pessoa, ou, mais apropriadamente, a um 'corpo

ontológico'.74 Não se trata no entanto de uma oposição entre exterior e interior: bei õshi se

decompõe em uma série de outros componentes – bei bihi, bei a në borebi, bei a në ũtũbi e

bei a në rishibi, em yanomam –, nem todos eles podendo ser definidos como internos. Por

seu turno, bei sikë pode referir-se ao invólucro de alguns órgãos internos, ou, em alguns

73
Bei é um pronome possessivo que indica posse não alienável e precede, desta forma, os nomes dos
constituintes da pessoa e das partes do corpo (Pottier 1974: 204 e Migliazza 1972: 123 apud Albert
1985:139). Smiljanic (1999: 56) grafa estes termos também em yanomae como pei ũũxi e pei sikë.
74
Õshi pode designar a medula óssea, ou o miolo dos ossos (Albert loc.cit.).
63

contextos, ao corpo orgânico como um todo, bem como aos componentes que passam pelo

processo de putrefação com a morte da pessoa (Smiljanic 1999: 56-57). De maneira

semelhante, os Yanomamɨ, estabelecem uma distinção entre um corpo biológico/material,

pei sikɨ (“pele, envelope”) e um corpo “ontológico”, pei hushomi (“interior”) ou pei mɨ

amo (“o centro, o meio”), composto por diferentes aspectos vitais imateriais (Kelly 2003:

71).

Entre os Sanumá, a idéia de um corpo ontológico interior é expressa sob a forma

pili õxi. De acordo com Guimarães, pili õxi é uma réplica do corpo exterior, localizada no

interior deste e invisível aos não-xamãs; sede do sentir e pensar, tanto quanto das dores

físicas. A autora destaca a ênfase que os Sanumá dão à materialidade deste “corpo

subjetivo”:

trata-se de uma parte específica do corpo sanumá, localizada no seu interior.


O pili õxi é formado de cabeça, tronco, braços, fígado, sangue, carne, olhos,
unhas, ossos, enfim, ele tem a mesma aparência e substância material da
forma corporal exterior. (…) quando perguntei aos sanumás se o pili õxi é
fluido, evanescente, capaz de atravessar ou ser atravessado por objetos, eles
negaram veementemente e afirmaram que ele é tão consistente quanto o
corpo que vemos e com o qual interagimos (2005a: 128-129).

Esse outro corpo, visível a todos e “com o qual interagimos”, é por seu turno

referido por um “coletivo”: pili pewö, designa o conjunto das partes ou componentes

corporais, enquanto pili pewö kokapali (todo o corpo reunido) equivale à pessoa. “Por

conseguinte, quando digo corpo – numa tradução reconhecidamente imperfeita – estou me

referindo à noção sanumá de reunião das partes que formam a pessoa e não a uma estrutura

básica, uma matéria principal, una e indivisível”, resume Guimarães (ibid.: 127).

Percebe-se assim a sugestão de uma coincidência entre as noções de corpo e de

pessoa; coincidência que não é, no entanto, exclusiva dos Sanumá, ou mesmo dos

Yanomami. Lima, etnógrafa dos Yudjá, afirma que, para estes, corpo não é outra coisa

senão a forma da pessoa e antes de opor-se à noção de alma, engloba-a: a alma é “uma

parte do corpo ou um componente da pessoa” (2002: 12). Um corpo não se opõe portanto a
64

uma alma, prossegue a autora, mas a outros corpos: corpo de onça, corpo de peixe, etc. 75

Como entre os Yanomami, a pele (se-sa) tem entre os Yudjá um lugar de destaque entre os

componentes da pessoa:

[enquanto] a alma atua como um princípio de subjetivação, conferindo a


todas as espécies de i-bida [corpo] faculdades que são ao mesmo tempo
psicológicas, sociológicas e intelectuais. (…) a pele (se-sa) é um invólucro
que unifica as partes e confere ao corpo uma identidade específica. É ela que
atua como um princípio de individuação e que fundamenta a transformação
interespecífica de que falam os mitos e os discursos xamânicos: é possível
um homem transformar-se em onça ou arara na medida em que é possível
vestir outra pele” (Lima 2002: 12-13).

Entre os Yanomami, bei sikë pode referir-se ao envelope corporal dos animais:

yaro a sikë por oposição ao envelope corporal humano, yanomame a sikë, ou ainda napë a

sikë, para referir-se ao invólucro corporal dos brancos. Se o corpo é, como referimos, a

atualização de um conjunto de modos de ser e agir, a pele – bei sikë – é o local privilegiado

onde são inscritas e explicitadas as diferenças entre estes. Não por acaso, metamorfoses

são frequentemente descritas na Amazônia como uma mudança de pele (ver, p.ex.,Vilaça

2002; Lagrou 2007; dentre outros).

Proponho entender a pessoa justamente como um repertório de estados mais ou

menos limitado por um invólucro corporal específico – o corpo como a atualização de um

“modo de ser” determinado (Viveiros de Castro 1996: 128; Vilaça 2005: 450) – , de

maneira que a alma possa ser vislumbrada então como este repertório, as várias formas-

corpos virtuais em que a pessoa pode vir a se atualizar. Em seu trabalho sobre os Wari',

Vilaça formula a relação corpo e alma exatamente nestes termos: o corpo metamorfoseado

pelas relações com a alteridade é um dos aspectos do que os Wari' concebem como alma

(jam) (loc.cit.). No caso Yanomami, esta alma, “corpo ontológico” (bei õshi), é ela mesma

formada por vários elementos: a dualidade corpo e alma desfaz-se, na multiplicidade da

pessoa.76
75
De maneira semelhante, o termo wari' -kwere, que pode ser traduzido como corpo, só existe em sua forma
possessiva, ou seja refere-se sempre a um corpo específico (Vilaça 2005: 449).
76
Justamente a oposição entre um princípio de diferenciação (corpo) e um princípio de coletivização não é
assim tão simples e coincidente com a distinção bei sikë e bei õshi, uma vez que bei õshi se fragmenta em
65

O modo como esses vários componentes se integram na conformação da pessoa, só

é passível de ser compreendido quando se consideram estas correlações (entre repertório e

atualização) e a forma como elas são mediadas por práticas como o xamanismo, o rito

funerário, a feitiçaria, etc. Cada um desses componentes, e a maneira pela qual estão

implicados nestas diversas práticas foram magistralmente descritos por Albert (1985), e

aqui vou segui-lo de perto, o que justifica a grafia dos termos em Yanomae. Como já

observei, os principais destes elementos são bei bihi, bei a në borebi, bei a në ũtũbi e bei a

në rishibe.77

Bei bihi

Bei bihi, é traduzido literalmente por Albert (1985: 141) como visage, em francês, e

Kelly (2003: 72) traduz seu correspondente em yanomamɨ, pei puhi/pufi, por face, em

inglês.78 Ambas as expressões significam também os “pensamentos”, e referem-se à toda

atividade intelectual ou emocional. Bei bihi é, ainda, a sede da vontade, das emoções, da

subjetividade, enfim, de tudo aquilo que pode ser entendido como “consciência desperta”

(Albert op.cit.:141). Bei bihi está ligado portanto aos estados e atividades ordinárias da

pessoa, e tem uma importância fundamental nas elaborações sobre as relações entre

parentes e aliados, como será visto no próximo capítulo. 79

vários elementos.
77
Fora estes quatro elementos, Albert (1985: 156-162) destaca ainda certas qualidades morais e físicas
apreciadas que integram a pessoa sob a forma de assimilação da imagem vital de um certo conjunto de
animais aos quais estas qualidades são atribuídas. No entanto, dado o caráter por vezes transitório destas
imagens e sobretudo, seu aspecto essencialmente profano, o autor considera-as secundárias para a teoria
ontológica yanomami. Além disso, penso ser possível acrescentar o nome próprio, bei waha, entre os
componentes da pessoa.
78
A idéia da face como um dos componentes da pessoa aparece também entre os Jivaro, e de acordo com
A-C.Taylor (1993: 659), eles “reconhecem que a face é a parte do corpo mais apta para manifestar
singularidade”. Ver também A-C. Taylor 2002.
79
A forma verbal bihio pode ser traduzida em alguns casos literalmente como “eu quero”. De acordo com
Albert (1985:141), bihi é utilizado ainda para conotação da instrumentalidade de um objeto, por exemplo:
xama bihi, designa uma ponta de flecha para caçar anta (xama: anta)
66

Bei a në borebi

Bei a në borebi pode ser entendido como o duplo ou espectro de uma pessoa,

relacionando-se principalmente ao comportamento não-consciente e aos movimentos e

expressões involuntários. Bei a në borebi é próximo ao conceito de princípio vital, 80 anima

grega, mas ao mesmo tempo traz consigo uma forte carga de alteridade: suas

manifestações são pensadas e apresentadas sob a forma de alterações e metamorfoses. Este

componente de uma pessoa se manifesta durante os sonhos, nos transes – xamânicos ou

não – induzidos pelo uso da yõkoana, ou ainda, durante as alucinações e crises sensoriais

provocadas por um estado de adoecimento. O bei a në borebi é de certa forma a

contrapartida do bei bihi, responsável pela atuação da pessoa em todas as situações

extraordinárias ou de “perda de consciência”. Tais situações são referidas pela expressão

boremi ou në aibi, que pode ser traduzida como ser/estar outro (être autre) (Albert 1985:

144-145).

Este alto potencial de alteridade – e alteração – evocado pelo bei a në borebi,

relaciona-se certamente com sua proximidade aos mortos. Bore, o “princípio imaterial

produzido pela liberação do pei mɨ amo [bei õshi] após a morte” (Kelly 2003: 72), indica

“o espectro de uma pessoa falecida, seu fantasma por oposição aos vivos: temirime thë”

(Albert op.cit.:142). É neste sentido que os sonhos – situação em que o bei a në borebi se

desprende do envelope corporal bei sikë e age autonomamente – podem ser pensados como

uma forma intensa de experiência da morte em vida. Albert (ibid: 142) apresenta a

seguinte explicação nativa sobre essa experiência: “Durante o sonho, minha forma

espectral se vai ao longe.... meu envelope corporal está simplesmente dormindo... ele

permanece deitado, como morto, meu espectro se parte...”.

80
A idéia de princípio vital também pode aparecer como um componente separado wixi a, espécie de
“sopro”, responsável pela animação dos seres em geral, animais inclusive (Smiljanic 1999: 61).
67

Entre os Sanumá, o duplo interior que se manifesta nos sonhos, antecipando o

fantasma do morto no corpo vivo, se realiza em dois componentes diferenciados: mani de

– pessoa do sonho – e oxi dẽ – espectro anunciado como duplo interior (Guimarães 2005a:

150; Ramos 1990: 195). Mani de é um desdobramento do corpo que se desprende da

pessoa durante os sonhos, um componente externo do conjunto corporal, tão material e

físico como o corpo visível, entretanto, imperceptível aos sentidos. Embora a realidade

onírica seja uma dimensão à parte do mundo em vigília, os acontecimentos que lá ocorrem

repercutem também na vida desperta. O equilíbrio da pessoa sanumá – ou seja, um estado

de boa saúde – depende, entre outras coisas, da integridade dessa porção e qualquer ataque

a o mani de durante um sonho pode ser fatal. Diz-se que o mani de (mesmo de um feto,

p.ex.) viu as coisas por onde passeou e por isso as conhece81: as faculdades sensoriais de

uma pessoa durante o sonho são expandidas e ela pode ver coisas que os não-xamãs não

vêem no estado de vigília, como os sai töpö e os mortos (Guimarães loc.cit.: 150-151).

Oxi dẽ refere-se por sua vez ao componente corporal humano que persiste após a

morte transfigurando-se no morto (heno polepö de). Guimarães apresenta uma descrição

nativa sobre este componente e sua transformação:

o õxi de é como um outro dentro do sanumá que vemos. Essa parte do


sanumá, o õxi de, não é capaz de atravessar pessoas e objetos. Ele tem
materialidade, é uma réplica do corpo que vemos e está inserido nesse corpo.
Trata-se de algo com carne (apertou o próprio braço), ele não é como um
desenho, chapado no papel. Quando o sanumá morre acontece uma
transformação do õxi de. Ele se torna o heno polepö de e vai caminhando
para a morada dos mortos, por uma trilha que passa no meio da floresta. Ele
caminha e deixa marcas pelo caminho. Os xamãs e os hekula töpö
conseguem ver tanto o oxi de quanto o heno polepö de. Eles conseguem ver
as marcas, as pegadas do heno polepö de (ibid..: 130-131).

Associado aos fantasmas, figuras marcantes da alteridade yanomami, o bei a në

borëbi é, contudo, um dos componentes fundamentais para que um ser possa vir a ser

identificado como Yanomami thëpë. A expressão ani porepë pode ser utilizada no discurso

81
“Ver (tai) está relacionado a viver ou experimentar, ações feitas necessariamente por corporalidades
materiais” (Guimarães 2005a: 152).
68

xamânico para referir-se ao conjunto dos constituintes espirituais que todo ser humano

possui, indicando precisamente os componentes que abandonaram os corpos dos seres

ancestrais. (Smiljanic 1999: 57). Um dos marcos distintivos entre yaropë e Yanomami

thëpë – que faz com que os primeiros não sejam considerados pessoas pelos Yanomae –

pareceria ser assim a ausência desse espectro. A bem dizer, sem esse outro dentro de si,

não se é um Yanomami.

O papel constitutivo da alteridade nas socialidades amazônicas e sua propensão à

“abertura ao Outro” (Lévi-Strauss 1993), revelaria-se assim inclusive nas relações

intrapessoais. Efetivamente, “uma pessoa viva não é um indivíduo, mas uma singularidade

dividual de corpo e alma, um divíduo internamente constituído pela polaridade eu/outro,

consangüíneo/afim” (Viveiros de Castro 2002: 445). Vilaça (2005) leva adiante a

formulação da pessoa na Amazônia como um “divíduo” (Strathern 1988), explicitando a

assimetria deste par “corpo/alma”:

in Amazonia we are faced with dividuals conceived as human and non-


human (or body and soul). But, as for Melanesia – when we consider that
‘gender difference is not trivial …the crucial difference was that between
same-sex and cross-sex relations’ [...] – the concept of dividual carries within
it a latent asymmetry. If, as we saw, the soul is another body, or a body seen
from the perspective of the Other, it is also a capacity (or an adjective) in
opposition to the body as a realization (or a substantive).Thus we have a pair
composed, on one hand, by a single term and, on the other, by an infinite
multiplicity of terms.We can also perceive this pair fractally: the soul is
always decomposable into a body aspect and a soul aspect (as same-sex
relations can contain cross-sex relations in Melanesia) (Vilaça 2005: 453).

É pela relação com Outro que um desses termos pode ser eclipsado ou atualizado,

ou seja, é na conexão com outras formas de alteridade que um determinado tipo de

composição corpo e alma – uma humanidade específica – se concretiza. Mas este

potencial de alteração e a presença da alma é por certo pertubador. 82 Afinal, se a

atualização de uma humanidade específica depende das relações entretidas com outros,
82
Entre os Wari', faz saber Vilaça (2005: 452-453), a alma (jam) refere-se justamente à essa potencialidade
de atualizar um outro tipo de humanidade, contudo, uma pessoa em seu estado ordinário, recusa-se a
admitir que tenha alma – pois que a alma é um outro corpo, visível portanto em sua atualização apenas a
outros seres – mas também porque uma tal composição, e o potencial de alteração decorrentes daí,
conferem grande vulnerabilidade à pessoa.
69

pode-se facilmente deixar de ser o que se é, atualizando um outro tipo de humanidade,

caso essas conexões não levem em consideração “o compromisso com a imagem

convencional do eu” (Wagner 1981:72. cf supra 45).O bei a në borëbi é, certamente, um

dos principais elementos da pessoa Yanomami responsável por seu potencial de alteração.

De modo geral, entre as socialidades ameríndias, a morte é o evento que decompõe

a pessoa, anulando a possibilidade de alteração decorrente da tensão entre seus

componentes: corpo de parente/ consanguíneo/ humano versus espectro inimigo/ afim/

não-humano (Viveiros de Castro 2002: 445). 83 Todavia, entre os Yanomami, o corpo assim

decomposto em duas formas estáveis – bei sikë fadado à putrefacão e ani porëpë feito

espectro imortal –, já não é tampouco uma pessoa, ao contrário. O mundo dos mortos –

concretização de um ideal de vida entre-si, do qual estão excluídos todos os problemas

decorrentes do excesso de transformabilidade que uma vida entre diferentes tipo de

'pessoas' acarreta – é a contrapartida negativa do mundo Yanomami, e deve ser a todo

tempo conjurado e mantido à distância: a disjunção mortos e vivos é central na articulação

de sua cosmologia, práticas rituais e cotidianas (Albert 1985: 382-569, 622-673). Assim, se

a presença do ani porepe, entre os componentes da pessoa yanomami, pode levar a estados

de alteração (poremu), que, no limite, implica um deixar de ser pessoa,84 a exclusão total

deste potencial de alteração também resulta em um deixar de ser pessoa – afinal, um corpo

sem seu espectro (sem 'alma') é um cadáver, não um Yanomami. 85

Posto que este potencial de alteração não pode ser excluído, uma forma de

83
Guimarães trata essa disjunção provocada pela morte, entre os Sanumá, como um atestado da imanência
do inimigo. :“No caso dos sanumás, essa imanência é evidente, pois o morto que não é imaterial ou
evanescente, está contido no interior e provém dele. Embora o heno polepö de tenha a aparência do
corpo exterior e do õxi de, sua substância física é distinta das várias partes do corpo do sanumá vivo.
A transfiguração modifica a qualidade da matéria do morto, que passa a ser “duro” (amatoxi) e,
consequentemente, imortal. A modificação substancial do morto revela que se trata de um outro ser,
que deve ser evitado pelos sanumás, pois é perigoso, pode agredir as pessoas”(2005a: 136).
84
Os Yanomami de Ocamo referem-se ao estado de morbidez provocado pelo adoecimento como um deixar
de ser pessoa (Kelly, com. Pessoal 2009).
85
Em um sentido semelhante, Lima (2002: 12) observa que, entre os Yudjá, todo corpo que já não se
transforma é, por definição, o corpo de um morto, e portanto, o avesso de uma pessoa.
70

minimizar a vulnerabilidade que ele acarreta, é justamente a maximização desse potencial,

como forma, digamos, de assumir o controle sobre sua própria alteração.86 Recordo aqui

das conclusões de A.C.Taylor (1996) sobre os Achuar, entre os quais, para ser considerado

um 'verdadeiro humano vivo' (uma pessoa Shuar), tão importante quanto apresentar um

tipo especial de aparência corporal, determinadas práticas sociais e comunicativas e certo

estado de consciência, é a possibilidade de experimentação de 'estados extremos', como os

rituais Arutam (um certo tipo de encontro especial com seres da floresta com grande poder

transformador). Estas experiências possibilitam em alguma medida uma troca de

perspectiva com outras formas de alteridade, essenciais para a construção de uma pessoa

(A.C.Taylor 1996: 204-205). Entre os Yanomami, o xamanismo é, sem dúvida, uma forma
87
privilegiada para a experimentação destes estados extremos.

O que o xamanismo oferece é a possibilidade de experimentar um outro ponto de

vista – ou melhor, o ponto de vista do outro (dos xapiripë, no caso) também sobre si

mesmo e sua própria socialidade – e fazê-lo de uma maneira razoavelmente controlada,

mas também criativa. A-C.Taylor parece sugerir que metamorfose – essa experiência da

perspectiva do outro – é também uma forma de subjetivação, posto que a experiência

subjetiva é dada no intercurso entre a auto-imagem e a imagem que os outros fazem do

self. “Subjetividade é, antes de mais nada, inter-subjetividade”, o que pode ser alinhado

com a concepção da pessoa como um par compósito. A maximização do potencial de

alteração habilita certo grau de estabilidade à pessoa na medida em que oferece outras

visadas sobre o corpo, ou seja, informa como ele é visto por outros – e um corpo não é

apenas sede das perspectivas como é ele próprio, senão outra coisa que uma perspectiva
86
Esta estabilidade, pode ser atingido também pela minimização deste potencial de alteração, pela via do
parentesco e práticas que visam a construção e fixação de um corpo específico (A-C.Taylor 1996;Vilaça
2005). A maneira como os Yanomami lidam com este tema tal como aparece em algumas etnografias é o
tema do próximo capítulo.
87
Refiro-me aqui menos ao uso terapêutico do xamanismo e mais ao seu potencial de alteração e
comunicação com os espíritos. K.Taylor (1976: 34), trata de um tipo de xamanismo praticado entre os
Sanumá “por diversão”, cujas sessões são referidas pelo termo polemo e não õkamo como os outros tipos
de xamanismo. E ele traduz polemo por “make like a jaguar” .
71

(1996: 206-209). Não se trata, porém, de obter uma percepção total do corpo, pela soma de

diferentes perspectivas, sobretudo porque diferentes perspectivas nunca são totalizáveis,

mas apenas isto: de experimentar a si mesmo, sob outras formas. 88

Albert indica um contraste entre os xamãs – xapiri thëpë – e as pessoas que existem

simplesmente – kuapora thëpë –, este existir simplesmente, sem razão, bio, opondo-se a

uma existência yai, verdadeira (Albert & Kopenawa 2003: 68 n.3). Assim, o xamã, com

sua habilidade para atualizar formas outras de humanidade mas de forma minimamente

controlada, parece ser um modelo valorizado da “personitude” yanomami, para que não se

leve uma vida à toa. Mesmo um não-xamã, deve submeter-se às sessões de xamanismo

para ser considerado realmente uma pessoa (Smiljanic com.pessoal. 2009). Mais até do

que um meio de subjetivação – já que esta, dada e compartilhada, é príncipio mesmo de

alteração – as metamorfoses xamânicas parecem oferecer à pessoa um mecanismo de

singularização: uma re-apropriação criativa e expressiva de diversos elementos de uma

subjetividade partilhada por outrem.89 O impulso para a produção de pessoas criativas não

parece caracterizar entre os Yanomami um estado de exceção – ainda que possa ser extra-

ordinário – nem restrito a um grupo seleto de pessoas. Mas se o xamã é assim, modelo

preferencial para a 'personitude' Yanomami, o xamanismo não será, por certo, o único

dispositivo para essa singularização e diferenciação que ocorre em outras esferas.

88
A caracterização da experiência de estados extremos – e da perspectiva do outro sobre si – como meio de
conferir estabilidade a uma forma corporal específica, remete-nos também ao imperativo de produção de
pessoas criativas colocado por Wagner. Ali também está implicada a necessidade de sucumbir à
influência de outras almas/poderes, invertendo o curso da ação “apropriadamente humana”, mas de modo
a extrair dessa “relativização da imagem do eu” todo seu potencial criativo capaz de precipitar uma
imagem renovada da própria convenção, ou seja, de sua própria humanidade. Um dos exemplos oferecido
pelo autor é, não por acaso, o dos xamãs (siberianos, no caso) (Wagner 1981: 64, 74. ver pag.26 supra ).
89
Partindo de uma outra problemática, mas deparando-se com questões semelhantes, Guatarri observa que a
subjetividade é necessariamente social e que, portanto, “o processo de singularização da subjetividade se
faz emprestando, associando, aglomerando dimensões de diferentes espécies”, o que me parece muito
pertinente com o que vem sendo dito (Guatarri & Rolnik 1986: 37)
72

Bei a në ũtũpi

Um terceiro componente da pessoa entre os Yanomami é a “imagem interior da

unidade corporal e da sede do princípio vital”, bei a në ũtũpi, espécie de “núcleo dinâmico

do duplo espectral” (ou seja, do próprio bei a në borebi), frequentemente associado ao

coração.90 Em um sentido mais amplo, bei a në ũtũpi designa todo tipo de reprodução

imagética (reflexo, fotos, escultura, etc.) ou sonora de alguém. Albert resume bei a në

ũtũpi como a “condensação da imagem e da energia corporal individual”, ou

simplesmente, a “imagem vital” (1985: 147). Parte considerável das doenças que afligem

os Yanomami é conceitualizada como um ataque ou roubo do bei a në ũtũpi por espíritos

ou xamãs inimigos, e nisto reside sua importância para a estabilidade da pessoa e,

consequentemente, para as relações com formas diferentes de alteridade.

Entre os Sanumá, Guimarães (2005a) descreve esta imagem vital, chamada uku

dubu, como uma espécie em miniatura da pessoa localizada no interior do corpo, mas que

toma forma apenas quando retirada desse invólucro.91 “Matéria semelhante a uma réplica

do corpo exterior, como uma foto ou um desenho, e invisível, também, para todos que não

sejam xamãs(...)”, o uku dubu “tem dimensões reduzidas, é leve e passível de ser apanhado

por qualquer criatura, está sempre parado, incapaz de qualquer tipo de movimento” (ibid:

155). Seu destaque na cosmologia Sanumá é devido principalmente ao fato de que ele pode

ser facilmente sequestrado, e é quando ele se encontra nesta situação, fora do corpo, que se

torna não apenas mais relevante como mais inteligível. 92 Uku dubu e bei a në ũtũpi

90
Viveiros de Castro (2002: 443 n.36) sugere que “a distinção básica a fazer é entre um conceito de alma
como representação do corpo e um outro conceito de alma que não designa uma mera imagem do corpo,
mas o outro do corpo.” O bei a në ũtũpi, certamente corresponde a esta primeira formulação, enquanto o
bei a në borebi refere-se à segunda.
91
Ramos (1990: 195) toma uku dubu, como o nome genérico das “almas” de uma pessoa, fazendo do mani
de e nï pole bï dïbï, tipos específicos de uku dubu. Esses uku dubu seriam passados às pessoas da mesma
forma que outras substâncias corporais como o sangue, os ossos, etc., pela concepção e conseguinte
fabricação do corpo (cf.próximo capítulo).
92
A técnica dos sai töpö para raptar o uku dubu de uma pessoa é semelhante à de fotografar (Guimarães
2005a: 154 n.40).
73

parecem portanto retirar sua significação, da interação com outros seres e pessoas.

Os animais, embora não tenham pili õxi, ou pëi a në porepi, possuem uku dubu

K.Taylor. (1976:40) define essas imagens uku dubu dos animais como “espíritos

animalóides”, por oposição aos “espíritos humanóides”, que seriam os outros componentes

imateriais da pessoas, os espíritos auxiliares dos xamãs, sai töpo etc.93 Na verdade, não só

os animais, como tudo aquilo que perece libera o seu uku dubu, e são estas “imagens” que

formam o mundo dos mortos: uku dubu das plantas, das caças, e mesmo dos objetos.

Também entre os Yanomae, “tudo aquilo que existe ou possa vir a existir possui uma

existência paralela no mundo dos espíritos sob a forma de utupë” (Smiljanic 1999: 58-59).

Componente imaterial não exclusivo, essa imagem vital de outros seres pode por vezes

manifestar-se em uma ação vindicativa contra os próprios Yanomami. Quando investida de

agência, utupë confunde-se com o conceito de noremi, um advérbio que se aplica a toda

ação invisível de um ser sobrenatural ou surreal (Albert 1985: 149). 94

Toda a extensão do conceito de utupë (ou uku dubu) revela-se no contexto

xamânico. Nos cantos xamânicos as imagens vitais dos espíritos animais são invocadas e é

com estas “imagens em ação” que os xamãs estão a interagir em sua prática (Guimarães

2005a: 155-n.41). Esses utupë são o conteúdo das visões xamânicas por excelência: pelo

uso da yokoãna, o xamã se torna apto a interagir com o bei a në utubi de outros seres. De

fato, o conceito de utupë – e mais especificamente o de noremi – serve ao pensamento

yanomami para a distinção entre uma realidade profana visível a todos e uma realidade

visível apenas aos xamãs. (loc.cit.). Bei a në utubi refere-se, por exemplo, aos ancestrais

mitológicos em sua relação com as espécies atuais e, mais do que imagens, revestem-se do

sentido de “verdadeiros animais”. Kopenawa, referindo-se a estas imagens utupë diz que

93
Embora sejam capazes de agredir ao Sanumá que desrespeita um tabu alimentar, estes uku dubu podem
ser mortos, o que, para além da aparência animalóide também os diferencia do restante dos espíritos.
94
Noremi se liga ainda a ações que poderíamos pensar como de representação: um simulacro, figuração
ritual, retórica, etc. (Albert 1985: 149).
74

elas seriam “os representantes” dos animais (Albert & Kopenawa 2003 :73).

Só os xamãs Yanomami têm acesso a este mundo das “verdadeiras imagens”,

espaços paralelos por onde viaja com o auxílio de seus espíritos, e nisto reside a

especificidade de seu conhecimento. 95 Pois ao contar sobre os espíritos ou apresentar

narrativas míticas, os xamãs não estão apenas recontando histórias que ouviram: seu “saber

falar” relaciona-se diretamente ao fato de que podem ver estas imagens ao mesmo mesmo

tempo em que são vistos por elas. Ver e ser visto, significa, neste contexto, que o xamã é

capaz de estabelecer relações subjetivas com outras espécies de seres, e esta é a base de

seu conhecimento.96 As imagens utupë nos remetem ao fundo comum de socialidade

imanente, sobretudo naquilo que há de fluxo comunicativo, pois ela é o componente que

permite de fato a comunicação, ou seja, a conexão dos mais diferentes seres.

Bei a në rishibi

Os yanomami thëpë possuem ainda um quarto componente corporal, o bei a në

rishibi dos Yanomae (também chamado de pei noreshi, entre os Yanomami, e nonoxi entre

os Sanumá), traduzido na literatura etnográfica como o alter-ego ou duplo animal. 97 Trata-

se de um indivíduo animal específico, ao qual a pessoa tem seu destino intimamente ligado

– eles nascem, se desenvolvem e morrem simultaneamente – de tal maneira que aquilo que

ocorre com um, tem conseqüências imediatas para o outro, e qualquer coisa que venha a

afetar o duplo animal repercute imediatamente na pessoa (Ramos 1990: 151).

O bei a në rishibi é transmitido genealogicamente, obedecendo a uma divisão de

gêneros clara: usualmente, o duplo animal feminino é algum animal terrestre ou aquático,

95
Sobre a conformação desses espaços paralelos cf. Smiljanic 1999; Guimarães 2005a.
96
Conferir Viveiros de Castro 1998, 2002.Sobre as bases subjetivas do conhecimento xamânico
97
Nonoxi em sanumá também designa a sombra da pessoa, e o noreshi em yanomami também é usado para
referir-se a imagens como fotografias, desenhos, etc. V. Kelly 2003: 72; Guimarães 2005: 157-161;
Ramos 1990: 191-193.
75

enquanto os masculinos são animais aéreos ou arborícolas, sujeito a pequenas variações de

pessoa a pessoa, entretanto.98 Entre os Sanumá, os homens possuem como duplo animal

grandes pássaros, como o gavião e a harpia (kokoi ou momo), enquanto as mulheres,

dependendo de seu tipo físico e temperamento, podem estar associadas ao hanakasa

(espécie de cachorro-do-mato, relacionado às mulheres baixas e amistosas) ou a töa

(criatura perigosa, com corpo de cobra e cabeça grande, relacionada às mulheres altas e

que brigam muito (Ramos 1990: 191; Guimarães 2005a: 158). Percebe-se assim, como a

relação entre uma pessoa e seu bei a në rishibi é tão estreita a ponto de compartilharem

inclusive alguns traços físicos e/ou morais. Uma mulher que tem como duplo-animal um

veado, possui as pernas longas, e os olhos claros, enquanto um homem que tenha a harpia

por alter-ego animal será de baixa estatura, a pele clara e as arcadas superiores

proeminentes (Albert 1985:152).

Entretanto, ainda que ontologicamente contíguos à pessoa – afinal, são um dos seus

componentes constitutivos –, os duplos animais estão espacialmente distantes: o bei a në

rishibi de uma pessoa sempre vive em regiões longínquas e desconhecidas, habitadas por

outros grupos yanomami, potencialmente inimigos. Esta distância é importante pois,

apesar do forte vínculo (ou talvez justamente por ele) repousa uma regra de evitação entre

a pessoa e seu rishibi: todo contato entre eles, mesmo um olhar, poderia levar à morte da

pessoa, e por isso também o consumo de caça da mesma espécie que seu duplo animal está

proibido (ibid.:157).

Esse modelo de distribuição do rishibi, evita que a própria pessoa, ou um parente,

mate seu duplo por acidente, mas traz, obviamente, uma série de implicações para as
98
Esta transmissão genealógica abriu espaço para uma discussão sobre o caráter totêmico ou não destes
duplos animais (Lizot 1984). Ramos (1990:192) no entanto parece negar mesmo o aspecto genealógico,
afirmando que o nonoxi sanumá não é herdado dos pais e nem pode ser mudado, para ela trata-se,
justamente de um dos elementos de individualização entre os Sanumá. Mas mesmo autores que afirmam
seu caráter genealógico negam contudentemente a hipótese de alguma associação totêmica: justamente
por serem marcados genericamente, não há como formarem classes matrimoniais, não se prestando a
nenhum outro tipo de arranjo sociológico, afora o das relações inter-tribais como a ser visto (Albert
1985:154-155).
76

relações inter-comunitárias: a morte do duplo-animal é acionada frequentemente no

sistema patogênico-vindicatório. 99 Todo animal com um comportamento estranho – que

caminha pela maloca sem demonstração de medo, por exemplo – é suspeito de ser o

rishibi de alguém, ou um espírito disfarçado, e deve ser evitado: ele não é morto, e muito

menos comido. Aquele que mata, ainda que por engano, o alter-ego de alguém que vive

distante, deve se submeter à mesma reclusão ritual do matador (Ramos 1990: 192).

De acordo com os Sanumá, os duplos animais não vivem como os animais yaropë,

“eles se reúnem e fazem casas como a dos Sanumás, em lugares inóspitos que não são o

habitat de animais de caça”100 (Guimarães 2005a: 159). Os duplos animais das mulheres,

por exemplo, não são propriamente animais, mas criaturas da floresta do tipo sai de (ibid.:

158). Entre os Yanomae, explica Albert, a relação que liga uma pessoa ao seu duplo animal

não é pensada tendo por referência o animal propriamente dito – seu invólucro corporal,

mas com o rishi a deste animal. O animal rishi a se apresenta com o mesmo aspecto e

afecções corporais do animal “real” – o rishi a de um jaguar é ele próprio um “comedor de

carne” –, porém ele é mais branco e brilhante, ele é o “corpo espiritual do animal”. Esse

componente (rishi a) é assim, simultaneamente, parte (exterior) de um Yanomami e parte

de um animal, o que explica o laço forte entre ambos.

Guimarães (2005a: 157) utiliza a feliz expressão “corpo à longa distância” para

referir-se ao alter-ego animal. Pois se o bei a në borebi colocava-nos diante de uma

alteridade interna à própria pessoa, o bei a në rishibi remete a uma espécie de relação de

identidade exteriorizada. Albert (1985: 151-152), comentando a força do vínculo que une

uma pessoa ao seu análogo animal, acrescenta um comentário nativo no qual é dito que o

99
A distribuição é recíproca: se os duplos animais de uma certa comunidade habitam a floresta em torno da
comunidade y, os duplos animais desta comunidade y habitam o entorno da comunidade x.
100
Um comentário nativo acrescenta que os duplos animais, no entanto, não choram a morte de seus
parentes, esta é uma prerrogativa que só os sanumás apresentam (Guimarães 2005a: 159). Uma
observação semelhante é constatada por Vilaça entre os Wari'. De acordo com estes, os animais não
choram nem comem seus mortos, porque “todos os animais dotados de espírito têm o dom de não
perceber a morte”(Vilaça 1998: 1,2)
77

envelope corporal (bei sikë) tem uma existência sem importância (bio), enquanto o

verdadeiro corpo (bei õshi) está longe, é o duplo animal (bei a në rishibi). Tendo um

destino intimamente ligado ao da pessoa e compartilhando com ela todas as experiências, o

bei a në rishibi parece constituir-se como um depositário de afetos e memória, e o que

pode ser este precipitado de memória singularizado senão o “verdadeiro corpo”? Mas não

deixa de ser notável, que este corpo seja um corpo animal. Pareceria justamente que

enquanto a alma é sempre e em toda parte humana, o corpo animal é o modelo por

excelência para a atualização de uma singularidade. 101

Bei wãha

Wãha significa o som, a voz, as palavras ou o discurso; precedido do possessivo

bei, indica o nome próprio e pode ser pensado como parte constitutiva da pessoa (Albert

1985: 395 n.25). Assim como o bei a në ũtũpi e outros componentes da pessoa, o nome

próprio pode ser roubado, levando ao desequilíbrio da pessoa. Os Sanumá descrevem

como alguns sai töpo, após ouvirem um nome próprio pronunciado em voz alta, o anotam

em um caderninho especial e, à maneira de um antropólogo, levam-no para casa causando

o adoecimento, e até mesmo a morte, daquele que teve seu nome raptado (Guimarães

2005a: 162). Não por acaso, repousa sobre os nomes próprios yanomami uma regra geral

de evitação.

As crianças yanomami são nomeadas entre um ou dois anos. Esse nome, dado

preferencialmente por seus pais ou avós, pode fazer referência a circunstâncias e lugares

101
Viveiros de Castro comentava esta dupla atração entre corpos animais e almas humanas, em um contexto
perspectivista: “se as almas dos animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana, é
bastante lógico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou
como entrando em um corpo animal, de modo a poder ser eventualmente morta e comida pelos viventes”
(2006: 330). No caso yanomami isso é mais radical, pois com o duplo animal, a possibilidade de uma
pessoa ter seu corpo animal morto e comido por um outro humano está dada desde o seu nascimento.
78

contigenciais, animais, plantas, ou traços físicos102. Há uma preocupação em não utilizar

nomes repetidos, de maneira que a nomeação pode tender a uma especificação ou

aleatoriedade extrema. O nome da criança é público e seu uso é livre, mas uma série de

restrições vão se colocando progressivamente até que com o advento da puberdade o

interdito é completo: a pronúncia do nome próprio de um adulto é interdita na presença da

pessoa ou de seus parentes próximos, que tampouco podem eles mesmos pronunciá-lo. 103

Faz-se o uso então da tecnonímia, referindo-se à pessoa a partir de seu laço com algum

parente jovem – pai de fulano, irmão de sicrano, etc. – ou ainda pelo uso dos termos de

parentesco.

Nomear um adulto publicamente e em voz alta, é ato ultrajante e realizado muitas

vezes com o propósito deliberado de ofender, uma declaração explícita de hostilidade,

principalmente quando feita por aliados. A evitação do nome próprio dos parentes

próximos e o seu próprio, por sua vez, parece encontrar justificativa em uma preocupação

com a morte: pronunciar o nome de um parente é apressar sua morte, e mais ainda quando

refere-se ao seu próprio nome. Do mesmo modo, repousa sobre o nome dos mortos uma

interdição ainda mais forte, neste caso, sob o risco de provocar o retorno de um fantasma

enfurecido (Albert 1985: 395-397; Lizot 1984: 127-130).

De acordo com Albert (op.cit.: 398), a antroponomia yanomami – na medida em

que evita a todo custo a repetição de nomes – serve mais à individuação do que à

classificação da pessoa, trazendo a marca da “singularidade mais irredutível e mais

aleatória do indivíduo”. Se há alguma dimensão classificatória no uso do nome próprio, tal

102
Ramos (1990: 240-241) descreve uma técnica de nomeação entre os Sanumá – que não encontra
correspondência nas etnografias sobre os outros sub-grupos –, chamada “fazer o cócix”: “quando cai o
cordão umbilical de um bebê, menino ou menina, o pai vai à mata procurar um animal […] para dar um
nome ao filho. No processo de receber o nome do animal, a criança também recebe um espírito desse
animal, um uku dubu que lhe entra pelo cóccix, humabï, e que fica com ela pelo resto da vida”. Esse
espírito protegerá a criança contra espíritos malévolos (meini dïbï), e serve de estímulo ao crescimento,
sobretudo, é a associação com este espírito humabï que impede que a alma da criança retorne à aldeia dos
mortos, fixando-a no corpo.
103
Os Yanomami recebem ainda uma série de apelidos ao longo da vida, usualmente jocosos ou ofensivos,
cujo uso também é restrito.
79

classificação incide sobre os nomeadores, a partir do comportamento e das respectivas

escolhas que se valem ao chamar e nomear alguém, e não no nomeado. Ramos (1990: 240)

também argumenta que o nome próprio é aquilo que há de mais próximo ao que se pode

conceber como o domínio da 'privacidade' entre os Sanumá.

Contudo, há nesta individuação uma proscrição da reflexividade de uma

identificação pessoal: uma pessoa (adulta) não pode nunca proferir seu nome próprio, este

é sempre uma marca que lhe chega por outros. Trata-se portanto de uma individuação que

deve necessariamente passar pelos outros. A conjunção da singularidade que é o bei wãha

com o próprio sujeito que o sustenta – e isso inclui seus parentes – deve ser evitada sob o

risco de morte. A singularidade objetiva do nome só pode ser empregada por outros

sujeitos, é como se uma pessoa não pudesse ser socialmente um indivíduo senão por e

para outros – justamente os parentes classificatórios e aliados, que fazem uso do nome

(Albert op.cit.: 402). O nome próprio, parece assim selar uma concepção de pessoa que,

dispersa e fragmentada em seus múltiplos componentes, situa sua identidade no olhar e

voz dos outros.

***

Penso ser possível retomar alguns fios do que foi escrito neste capítulo,

alinhavando-os com discussões mais gerais sobre espíritos, animais e humanos nas sócio-

cosmologias ameríndias – tal como formuladas em Viveiros de Castro (2006) 104 e Kelly

(2001) –, de modo a extrair ainda outras implicações da relação entre yai thëpë, yaropë e

yanomami thëpë para a definição da pessoa entre os Yanomami. O que interessa aqui é o

entendimento diferenciado das relações entre natureza e cultura – e, mesmo, sobrenatureza

104
O citado artigo traz em seu título, “A floresta de cristais”, uma imagem oferecida pelo xamanismo
Yanomami e a narrativa de Davi Kopenawa sobre os animais ancestrais e os espíritos xapiripë – a que já
me referi aqui – é componente central na argumentação do autor. Mas a referência a este artigo parece
importante sobretudo por encontrar nele um desenvolvimento ímpar do que se formula como o
perspectivismo ameríndio
80

– que tais discussões ensejam.

Como aludi anteriormente, tal como apresentados pelas etnografias, os Yanomami

thëpë parecem reunir algumas características que se encontrariam distribuídas de maneira

diferenciada entre yaropë e yai thëpë. Os diferentes componentes da pessoa e ainda

aspectos referentes ao domínio da visibilidade e comestibilidade. Pois que nos deparamos

aqui, não apenas com uma dialética entre convenção e a invenção, mas ainda outra, “entre

o ver e o comer” (Mentore 1993: 29 apud Viveiros de Castro 2006: 330). Neste quadro, os

yai thëpë são seres marcados pela invisibilidade – relativa, convém não esquecer –, ao

mesmo tempo que definindo uma posição de super-predadores, já que são, por definição,

incomestíveis.105 Talvez se pudesse pensar que a tradução mais segura de yai thëpë seja

mesmo “aquilo que não se come”, antes que espíritos. Como ocupar a posição de predador

é necessariamente estar investido de agência, os yai thëpë apresentam-se como seres super-

agentivos – donde decorre a ameaça sempre presente em um encontro indesejado com um

desses seres de ver sua perspectiva englobada, e a metamorfose daí resultante. Os yaropë,

por sua vez, constituem a forma canônica da visibilidade do mundo fenomenológico

experimentado pelos Yanomami – o invólucro corporal dos animais que se dão a conhecer

hoje – e são definidos justamente por sua posição de presa. Desprovidos de agência, os

yaropë são sempre os objetos em uma relação, seja como mediadores entre os homens e os

espíritos animais no xamanismo, como caça e alimento nas relações intra-sociais ou ainda

como instrumento para os espíritos maléficos, etc.

Tanto yai thëpë quanto yaropë definiriam posições não-reversíveis: um yai thë

nunca é presa, e nem tampouco um animal, yaro a, possui alma que o torne capaz de impor

105
Perguntei a um jovem Yanomama que me contava que yei thëpë referia-se também a bichos como
escorpião, aranha, cobras, se uma cobra que se come (algumas espécies podem ser comidas
eventualmente) ainda poderia ser considerada yei thëpë, e após alguma hesitação, ele concluiu que se ela
era comida, não podia ser yei thepe. Sobre o lugar dos espíritos na cadeia trófica entre as populações
indígenas na Amazônia, Viveiros de Castro (2006: 21) escreveu: “Podemos assim estender o escopo do
continuum amazônico de comestibilidade (no que concerne às fontes de proteína animal) proposto por
Hugh-Jones, fazendo-o ir dos peixes aos espíritos, e não apenas aos seres humanos.”
81

sua perspectiva. Uma tal 'não-reversibilidade' marcaria justamente os pólos da sobrenatura

e da natureza em uma ontologia perspectivista, como sugere Kelly:

os deuses […] nunca são devorados (nunca são presa), eles são puro sujeito.
[…] No outro extremo encontramos a natureza, ou seja, animais sem alma,
plantas e coisas que são sempre presa ou puro objeto (o que não significa
que não sejam submetidos à dinâmica do perspectivismo: o sangue humano
pode ser o cauim do jaguar) (2001: 100. grifos do autor).

Guardando as devidas especificidades, é possível associar os yai thëpë ao pólo da

sobrenatureza e os yaropë ao campo da natureza, entre os quais se insinuaria o domínio da

cultura, entendido fundamentalmente como personitude e que pode muito bem ser

associado aos próprios Yanomami thëpë. Trata-se de um entre lugar: os Yanomami são

presa (dos espíritos) e predadores (dos animais); possuem uma forma corporal visível e

estabilizada – e ainda um verdadeiro corpo animal ( o bei a në noreshi) –, mas também

podem ter “olhos de espíritos” e estão aptos a interagir com estes seres invisíveis,

transformando-se. Este entre lugar, expressão da possibilidade de ser uma coisa e outra,

parecer ser o que define o domínio da personitude, e aqui continuo a seguir Kelly:

pessoas são esses seres duais sujeito/objeto a que se credita perspectiva e


agência (participam da cultura e têm uma alma imortal), mas que ao mesmo
tempo são objeto de outra subjetividade (parte da natureza de alguém) […]
Pessoas portanto, não são nem objeto nem sujeito, mas ambos: o ponto
de encontro de um Eu reflexivo e da perspectiva do Outro. O contexto
determinará quanto a qualidade de sujeito [subjectiness] ou a qualidade de
objeto [objectiness] será prevalescente em uma relação. E, ponto
importante, tornar-se Outro (uma outra pessoa) não é des-subjetivante,
mas sim, alterante [Othering], implicando, portanto, uma mudança de
perspectiva (2001: 100. grifos do autor).

Entretanto, s e yanomami thëpë refere-se ao domínio da personitude (e da

“cultura”), a verdade é que outros seres, além dos próprios Yanomami, também podem ser

pessoas. Lembremos que estamos diante de um mundo onde a cultura é da ordem “dado”:

um fundo comum de socialidade inata e motivante. Yanomami thëpë, portanto, não se

refere a seres específicos, tampouco delimita uma classe restrita ou uma etnia. Marca de

uma posição, e a “forma auto-referencial do pronome-sujeito 'eu'” (Viveiros de Castro

1996), Yanomami thëpë é, aquilo que se é, quando se é um sujeito. Donde os yanomami


82

queixada, yanomami anta, yanomami veados que surgem nos mitos dos ancestrais animais:

yanomami é aqui a marca da participação em um humanidade imanente.

Frutos de um modo de simbolização diferenciante, 106 que pensa (e inventa) o

mundo introduzindo e multiplicando diferenças, antes que impingindo-lhe ordem e

categorizando-o, as distinções yanomami entre yai thëpë, yaro pë e yanomami thëpë não

são categorias classificatórias tais que espíritos, animais e humanos – mas as marcas de

determinados modos de experiência e relação, extremamente variáveis. Viveiros de Castro

– tomando como exemplo os próprios xapiripë yanomami –, diante da assunção de que os

conceitos usualmente traduzidos por espíritos na Amazônia designariam uma “certa

relação de vizinhança obscura entre o humano e o não-humano […] uma interferência

complexa, uma distribuição cruzada da diferença e da identidade entre as dimensões da

animalidade (yaro pë) e da humanidade (yanomae thëpë)” sugere o seguinte exercício de

imaginação:

Imagine-se então o “modo humano” como a freqüência fundamental deste


campo anímico que se poderia designar globalmente de meta-humano — já
que a forma (interna e externa) humana é a referência aperceptiva deste
domínio, toda entidade situada em posição de sujeito experimentando-se sub
specie humanitatis —; imagine-se as espécies vivas e demais natural kinds
(inclusive nossa própria espécie) como habitando o domínio de visibilidade
deste campo; e imagine-se os “espíritos”, ao contrário, como um modo ou
grau de vibração do campo anímico que se acha tanto abaixo
(minuscularidade granular, carência dimensional) como acima
(anormalidade, excesso) dos limites de percepção do olho humano nu, o olho
não investido pela droga alucinógena (Viveiros de Castro 2006: 327).

Os conceitos yanomami parecem responder bem a esse exercício de imaginação,

certamente porque foram também uma de suas inspirações: os yaropë como modelo para o

corpo e referência de visibilidade, os espíritos (yai thë pë) e almas (alguns dos

componentes da pessoa) como comunicação e transparência, e todos passíveis de ser

alternativa e relacionalmente humanos/yanomamis. A referência do autor aqui é um

106
No sentido que confere Wagner, por oposição a uma simbolização convencionalziante: “A conventional
symbolization objectifies its disparate context by bestowing order and rational integration upon it; a
differentiating symbolization specifies and concretizes the conventional world by drawing radical
distinctions and delineating its individualities”(1981: 39).
83

momento de transparência mítica, em que tudo e todos seriam cogniscíveis uns aos outros

– ou seja, um fluxo de subjetividade compartilhada, a humanidade imanente tal como pode

ser apreendida nos mitos sobre os ancestrais animais. A instauração de um regime de

opacidade – o corpo, como pele – é a instauração de uma especiação, que tem como

consequência certa interrupção no fluxo comunicativo: os yanomami queixadas,

transformados em queixadas, se distinguem dos Yanomami yanomami, tanto quanto dos

tatus e antas. Mas a opacidade não é total, e como diz o autor: “o problema do infinito nas

cosmologias ameríndias parece estar em aberto” (Viveiros de Castro 2006: 336). Os

diferentes yai thëpë, situando-se fora deste campo da visibilidade ordinária, são a

manifestação que comprova que o fluxo comunicativo não foi totalmente interrompido,

manifestação que, embora extraordinária, não deixa de ser menos constitutiva.

Para retomar o modelo de Wagner, poderia-se pensar os espíritos yanomami como a

contra-invenção – precipitados no momento mesmo em que os antigos ancestrais adquirem

sua forma animal visível, como descrito pelos Sanumá (K.Taylor 1976) – da instauração de

um regime de estabilização da diferença em formas específicas (1981: 71 ). Da mesma

forma, o bei a në borëbi, é a contra-invenção, no nível da pessoa, de um esforço de

estabilização de uma forma: precipitado de um fundo comum de socialidade tornado

motivação resistente. É ele, sem dúvida, o principal depositário do potencial de alteração

que os Yanomami devem aprender a instrumentalizar e controlar de maneira a atingir “a

dose de casualidade suficiente entre convenção e invenção,” tal como sugerido por Wagner

na concepção da pessoa em tradições diferenciantes. Se, nesta esfera de relações – entre

Yanomamis, espíritos e animais – uma tal dose, tendia mais à invenção e à diferenciação –

donde a relevância do xamanismo, por exemplo – no capítulo seguinte, a noção de

humanidade como imagem moral do homem ganha proeminência lado a lado à convenção,

ao mesmo tempo que os espíritos e animais cedem lugar aos inimigos e aliados.
84

3-Contra inimigos: parentesco e moralidade

A imagem do homem articulada como moralidade e convenção – o ideal de uma

vida moralmente produtiva e livre dos perigos e transformações indesejadas, tal como

apresentado pela mitologia de Omama – tem como contrapartida sociológica os grupos

locais Yanomami, comunidades de residência pensadas como corpo de parentes e mônadas

auto-suficientes. Se a família e o parentesco – e os predicados morais implicados aí – são

usualmente o contexto invisível da ação diferenciante (posto que as relações são dadas),

nesta esfera de interação, essas relações 'dadas' são retomadas como aquilo a ser

continuamente afirmado e produzido de modo a se evitar a ameaça premente de uma

coletivização adversa. Isto é, trata-se de evitar o ativamento de relações que colocariam em

risco a própria base convencional yanomami (Wagner 1981: 70-71). Os diferentes grupos

locais são, portanto, expressão de um ideal de vida “entre si”, continuamente buscado e

produzido contra um fundo de hostilidade generalizada: é preciso levar as pessoas a agirem

moralmente. A afirmação desse fundo de hostilidade contra o qual se desenha a

sociabilidade convencionada pela moralidade do parentesco tem por base o pressuposto da

coincidência da posição de humanidade/sujeito com a de predador, e, mais ainda, com a de

inimigo, o que torna impossível pensar as relações sociais fora de um quadro de relações

de predação.

Como demonstrou Albert (1985: 190-234), a classificação do espaço sócio-político

yanomami é sócio-centrada, isto é, ela desenha esferas de relações projetadas

geograficamente no espaço ao redor de uma comunidade. As relações vão se tornando

mais hostis na medida em que se passa às esferas mais exteriores, ou seja, em que se

afastam da própria comunidade; enquanto as trocas “reais” são, no mesmo sentido ,

substituídas por agressões simbólicas Esse espaço sócio-político diz respeito às relações
85

‘intra-étnicas’, especificação que implica, por si só, o fechamento da taxonomia aberta pela

nomenclatura ontológica entre seres humanos, espíritos e animais comestíveis. 107 Aqui,

todos são considerados pessoas – aptos, portanto, a ocupar a posição de humano/predador

–, ainda mais, todos são Yanomami thëbë yaye, “seres humanos verdadeiros”, criados por

Omama. Entretanto, isto não significa que todos sejam igualmente humanos. Embora

inimigos e parentes possuam um corpo semelhante – com os mesmos componentes

ontológicos – partilhando em larga medida dos mesmos afetos e moralidade, ocorre aqui

uma espécie de gradação: se todos são humanos, ninguém é, contudo, mais “moral” – e,

em certo sentido, mais humano – do que o grupo de parentes. De outro modo, se no limite

superior a humanidade coincide com a posição de predador/inimigo, em seu limite inferior,

exclusivista e moral, ‘humanidade‘ significa parentesco.

O corpo de parentes seria, portanto, o limite mais estável desse horizonte de

relações marcado pela predação generalizada: a “aliança reiterada e a troca simétrica são

formas de estabilização do potencial canibal em seu estado de energia mínima” (Viveiros

de Castro 2002: 175). Entretanto, ainda que o espaço político yanomami seja sócio-

centrado, seu vetor determinante operaria de fora para dentro, uma vez que o corpo de

parentes não seria senão uma estabilização particular da diferença dada – “é a predação

que é generalizada, não o parentesco; ela é a Relação” (ibid.: 165). Pode-se dizer que o

nome da ‘Relação’ entre os Yanomami é justamente “inimizade” – expressa por nabë –, e

como não há ausência de relação, mesmo os grupos desconhecidos são, por princípio,

‘relacionados’, isto é, inimigos. 108 É contra esse fundo genérico de inimizade que os

Yanomami se esforçam para estabelecer relações apropriadamente humanas, constitutivas


107
Ver p. 27 imagem 1 supra
108
Cf. ainda:“Afinidade e canibalismo são os dois esquematismos sensíveis da predação generalizada,
que é a modalidade prototípica da Relação nas cosmologias ameríndias. Há uma observação de
Levi- Strauss que nos ajuda: Os observadores revelaram-se, frequentemente, surpresos diante da
impossibilidade, para os indigenas, de conceber uma relação neutra, ou, mais exatamente, uma
ausência de relação. [...] A ausência de relação familiar não define um nada, ela define a
hostilidade. [ ... ] É tão pouco possível manter-se aquém quanto além do mundo das relações ( EEP:
552-53)” (Viveiros de Castro 2002: 164).
86

e constituídas pelo parentesco, expulsando o potencial predador/canibal para o exterior

dos grupos locais. Tal como proposto por Albert (1985: 189-221) o espaço sócio-político

Yanomami teria a seguinte configuração 109:

Na fronteira desse universo sócio-político estão os tanomamithëbë, “inimigos

desconhecidos”, dispersos em comunidades muito distantes e dos quais só se têm notícia

pelos rumores e boatos inter-comunitários. Embora desconhecidos, há entre uma

comunidade e seus tanomamithëbë, a assunção de uma relação “estrutural” de

agressividade recíproca e generalizada (Albert 1985: 220). A estes desconhecidos atribui-

se usualmente a possibilidade de agressão ao duplo animal (bei a në rishibi). Segundo

Albert, esse tipo de agressão não tem muitos efeitos cognitivos ou práticos no sistema

vindicatório yanomami– sendo o diagnóstico corrente para enfermidade de crianças –, mas

é essencial para assegurar a coerência do espaço de hostilidade, fixando o limite mais

exterior das relações entre humanos (ibid.: 331).

São tomadas como o conjunto dos inimigos antigos ou virtuais – nabëbë thëbë

109
Alès também apresenta uma caracterização semelhante para os Yanomamɨ, observando ainda que mesmo
as esferas mais interiores comportam sua própria distinção “nós x outros” (2006:52-54).
87

wathoho – as comunidades distantes provenientes de “blocos de população” não-

adjacentes, cujo fluxo migratório convergente ou divergente atestaria a existência (Albert

1985: 219-220). Entre os nabëbë thëbë wathoho são usuais as agressões simbólicas

recíprocas, tal como epitomizadas pelo xamanismo agressivo: os xamãs enviam pelo ar os

“filhos dos espíritos maléficos da natureza”, que, por sua vez, atacam com suas armas a

“imagem vital” de algum membro de uma comunidade distante (ibid.: 316-319).

O xamanismo agressivo possui também um papel suplementar às incursões

guerreiras, situação em que é utilizado com o intuito de neutralizar as forças inimigas.

Nesse caso, ele é direcionado contra o grupo dos ‘inimigos atuais’, os nabë thëbë. Entre as

comunidades relacionadas como ‘inimigos atuais’ prevalecem diversas práticas de

reciprocidade negativa (sensu Sahlins 1972), seja no plano matrimonial (o rapto de

mulheres), seja no econômico (os roubos e as pilhagens ocasionais), seja ainda no das

incursões guerreiras esporádicas, cujo aspecto recíproco é marcado pelo próprio verbo

utilizado para denominá-las – niyayu, traduzível por “flechar-se mutuamente” (Albert

1985: 217-218; Duarte do Pateo 2005: 3). Nas relações entre os nabë thëbë é também

recorrente o recurso à feitiçaria guerreira, casos em que se empreendem as okara huu,

incursões secretas, individuais ou coletivas, nas quais substâncias letais são insufladas

sobre a vítima (Albert op.cit.: 283, 287). Há ainda um segundo tipo de feitiçaria – dita por

“captura do rastro” – dirigida contra os nabëbë thëbë, e cuja realização envolve um

intermediário, alguém que, possuindo acesso facilitado à vítima, deve recolher os traços

por ela deixados sobre a terra, que serão então oferecidos à manipulação mágica da parte

inimiga.110 Trata-se de uma feitiçaria que ocorre na “franja cinza” entre a inimizade e a

aliança, uma vez que o intermediário da agressão deve ser encontrado na esfera dos

nohimotimë thëbë, os aliados-amigos que compõem o “conjunto multicomunitário”(ibid.:

110
Esta feitiçaria consiste na manipulação, junto com substâncias de feitiçaria, da terra da pegada da vítima
ou de sua “trouxinha” de tabaco, recolhidos por um aliado por ocasião de visitas. Ver Albert 1985: 268-
271.
88

275, 309).

O núcleo duro do grupo de aliados que compõe o conjunto multicomunitário é

formado por aquelas comunidades relacionadas por trocas matrimoniais efetivas –

realizadas à revelia do ideal endogâmico observado entre os Yanomami. Esses aliados

serão classificados como yayë. E, por um efeito de transitoriedade da aliança, o aliado de

um aliado também será tomado como aliado, porém do tipo bio.111 A relação com esses

aliados de segundo grau, entretanto, é marcada pela ambigüidade e pela incerteza – são

eles normalmente os considerados responsáveis pela feitiçaria “por captura de rastro” –,

enquanto os aliados yayë praticam apenas formas não letais de agressão (Albert 1985: 208-

211). Entre aliados nohimotimë thëbë se estabelece uma intensa interação ritual e festiva

em diversos ciclos de visitação, além de uma série de trocas matrimoniais, econômicas e

discursivas.

A imagem da moralidade que nos foi indicada pela mitologia de Omama se destaca a

partir dessa esfera de relações entre aliados e co-residentes. Passo à apresentação de alguns

dos predicados fundamentais da moralidade yanomami, retomando a narrativa sobre a

criação dos homens por Omama como fio condutor. Destacarei sobretudo os traços

característicos do ideal de vida produtiva “entre si” dos co-residentes kamyieaka thëbë.

3.1. “Omama nos deu uma nova pele”: a fabricação dos corpos

O tema da corporalidade112 – para além dos componentes ontológicos da pessoas –

surge nas etnografias Yanomami principalmente a partir da consideração das teorias sobre

111
A mesma distinção é utilizada no nível do parentesco, marcando os parentes “verdadeiros” yayë em
relação àqueles bio, “sem razão”, “à toa”, os parentes classificatórios.
112
Em um texto seminal, Seeger, da Matta e Viveiros de Castro (1987 [1979]) destacaram a importância da
corporalidade nas sociedades ameríndias: a socio-lógica ameríndia apoiaria-se sobretudo em uma fisio-
lógica, e as diferenciações e laços entre grupos e pessoas dariam-se por um compartilhamento de
substâncias. Desde então, diversos trabalhos focaram a fabricação do corpo nas sociedades ameríndias:
um corpo que é construído ao longo da vida pelas relações sociais (cf. Vilaça 1998, 2002; Gow 1991;
Conklin 1996; McCallum 1996, 2001; entre outros).
89

a reprodução e da análise dos ritos de puberdade que, dando continuidade à fabricação do

corpo iniciada pela concepção, buscam o controle e a estabilização de uma forma corporal

específica. Segundo Albert (1985: 592), a teoria fisiológica yanomami postularia uma

“comunicação de substâncias” mais do que uma “comunidade de substâncias”, o que

parece condizente com uma sociologia e um pensamento que concedem primazia às

relações. Nesse sentido, os corpos, tanto quanto os grupos ou as classes, não seriam

unidades auto-contidas, mas pontos de estabilização mais ou menos limitados de um fluxo

comunicativo.113 Dessa perspectiva, os rituais de controle e de estabilização dos corpos –

parte fundamental e fundadora da socialidade Yanomami, tal como prefigurada por

Omama – devem ser realmente compreendidos como a contrapartida de uma potência de

transformação sempre eminente. Ainda, trata-se de uma fabricação sempre baseada na

negação de outros corpos possíveis.(Viveiros de Castro 1987 [1977]: 32).

Tanto nos rituais de puberdade como na teoria yanomami sobre a reprodução o

sangue é um dos principais elementos manipulados, além de ser a substância em circulação

por excelência. Ele é o referente simbólico privilegiado do tempo individual, fundamental

para o entendimento dos processos corporais: “a concepção Yanomami do

desenvolvimento biológico dos seres humanos repousa de fato sobre uma teoria implícita

da evolução quantitativa e qualitativa do sangue contido no corpo” (Albert 1985: 605). O

sangue está ainda relacionado à animação do corpo e à imagem vital bei a në utupë de cada

pessoa, podendo ser pensado como o “elemento de ligação entre corpo ontológico e corpo

biológico” (Kelly 2003: 73).

Ao mesmo tempo índice de fertilidade e princípio de morte – já que responsável

também pela putrefação do corpo –, o sangue é contraposto aos ossos, outra substância de

intensa manipulação ritual, associada à perenidade. Os ossos seriam o “vestígio durável de

113
O autor está se opondo aqui à idéia de “grupos corporados” tal como trabalhado por Chagnon (1976)
entre os Yanomami.
90

um substrato ontogênico e índice metonímico da continuidade patrifiliativa” e são

associados à forma espectral da pessoa por conta de seu aspecto imputrefável (Albert

1985: 348-350, 433). Seguiremos agora as articulações a que são submetidas essas duas

substâncias – e suas correspondentes características de umidade/maleabilidade e de secura/

dureza – em três momentos particularmente decisivos da fabricação dos corpos Yanomami:

na concepção e no nascimento, no ritual de puberdade feminino e no ritual de matador. 114

Concepção e nascimento

Na teoria yanomami sobre a reprodução, duas substâncias ganham destaque: o

líquido seminal masculino – princípio de fecundação – e o sangue feminino – condição de

fecundidade –, associado à placenta e à menstruação. Os fluidos femininos e masculinos

são distintos por sua densidade: o esperma denso e coagulado é contraposto ao sangue e ao

leite materno, considerados diluídos e ralos (Alès 2006: 97). Essa distinção tem

implicações importantes para a constituição de um corpo que é constantemente avaliado

em termos de 'dureza': um corpo demasiadamente duro, seco, é associado aos mortos,

enquanto um corpo demasiadamente úmido e mole remeteria à origem dos estrangeiros e

inimigos. O corpo yanomami é fabricado por meio da composição equilibrada dessas

substâncias e características.

Para a constituição do feto, são necessárias muitas relações sexuais, das quais

podem vir a participar diversos progenitores, dando assim origem à paternidade

compartilhada e às chamadas “crianças misturadas”. 115 A mãe é pensada como um


114
Ao abordar a questão da fabricação dos corpos a partir de momentos rituais, não pretendo obliterar a
importância das relações e ações cotidianas para esta mesma fabricação, tema que será tratado, logo
adiante, sob a insígnia do parentesco (p. 103-119 infra).
115
Todos os homens que entretiveram relação com uma mulher durante sua gestação e contribuíram para
este acúmulo de sêmem são considerados pais, embora haja uma hierarquização ente eles, havendo
sempre um – usualmente o marido – que exercerá mais eminentemente o papel social do pai. Alès destaca
que tal paternidade compartilhada pode dar lugar a uma espécie de poliandria oficiosa, na qual a mulher e
a criança recebem alimentos e outras prestações de diversos homens (2006: 224-226). Como nota Vilaça
91

recipiente a ser preenchido pelo esperma masculino, que forma progressivamente, por sua

condensação e acúmulo, o corpo da criança. Como em outras sociedades ameríndias, entre

os Yanomami a concepção é literalmente um processo de fabricação 116 (Alès 2006: 196; cf.

também Albert 1985: 431; ver ainda, Lagrou 2007, para os Kaxinawa; Van Velthen 2003,

para os Wayana, dentre outros). A mãe, ela própria tomada por uma espécie de invólucro, é

responsável pela formação do invólucro corporal, bei sikë, da criança, enquanto ao

esperma e, por conseguinte, ao pai são associados os ossos e as estruturas internas. A

condensação do esperma ocorrida na gestação subsiste na maturidade na forma de uma

substância mole intra-óssea chamada de bei õshi, de onde deriva a idéia do ‘corpo

ontológico’ interior.

Os alimentos consumidos pela mãe, sobretudo as carnes que lhe são oferecidas pelo

pai da criança, também possuem um papel importante nesse processo, sendo responsáveis

pela transformação do líquido seminal em carne (Alès 2006: 196). Na circulação dos

alimentos, temos uma cadeia de relações de compartilhamento de substâncias ainda mais

vasta e duradoura do que aquela subsumida pelo sangue e esperma. Entretanto, não é

qualquer alimento que poderá servir à constituição do novo corpo: durante a gravidez,

tanto a mulher quanto seu marido devem evitar alguns alimentos cuja ingestão traria

conseqüências funestas para o feto. Entre os Yanomamɨ Centrais, por exemplo, o consumo

de peixes considerados grandes é proibido uma vez que o princípio vital destes poderia

apoderar-se do feto, levando-o à morte. O marido compartilha não apenas das restrições

como também das preferências alimentares da mulher enquanto esta se encontra grávida

(Lizot 1988: 86).

A reprodução Yanomami é pensada como uma “reprodução homossexuada” (Alès


(2002: 353), sobre uma concepção semelhante entre os Wari', “t he importance of this fact derives not so
much from the implied mixture of different substances, but from the expansion in possibilities for social
action”.
116
Alès (2006: 198) indica, sem, no entanto, desenvolver mais profundamente o assunto, a atuação de
diversos espíritos nesta fabricação, essenciais para que a criança possa ter vida, espíritos que transitam
sobretudo pelo líquido seminal.
92

2006: 185), no sentido preciso de que o gênero, os traços físicos e outras qualidades da

criança – como, por exemplo, o duplo animal – são transmitidas aos homens pela linha

paterna e às mulheres pela linha materna, isto é, sem a interferência do outro gênero. O

fator determinante para o sexo da criança é a capacidade do pei pufi (bei bihi, entre os

Yanomae) do pai ou da mãe de se sobrepor e exercer maior influência no processo de

concepção. Entretanto, como há uma hierarquização de força do pufi masculino sobre o

feminino – considerado menos expressivo pelos yanomami – não há exatamente uma

equidade entre as possibilidades de influência. O nascimento de uma filha é explicado pela

maior pujança ocasional do pufi feminino no período de concepção: quando a mulher está

em cólera e agressiva, seu pufi se enche de calor e o sangue em seu coração entra em

ebulição e penetra no feto, transmitindo desse modo seu próprio sexo à criança em vias de

formação. No entanto, esse temperamento descreve o oposto do comportamento

idealmente esperado das mulheres, que devem se manter calmas (okewë) e reservadas

(kirii) (Alès 2006: 201-202).

Paralelamente ao papel preponderante dos componentes masculinos na concepção

– a dominância do bei bihi do homem e o papel proeminente do próprio esperma na

fabricação do corpo intra-uterino –, o sangue feminino, por sua vez, exerce papel

fundamental quando do momento do nascimento propriamente dito. Ao sentir as

contrações, uma mulher deve dirigir-se à floresta na companhia de outras mulheres (mãe,

irmã ou cunhada), que irão auxiliá-la neste momento. O sangue é condição imprescindível

ao nascimento; é o seu escoamento que permite que o bebê saia do corpo da mãe (Lizot

1988: 86). O “receptáculo feminino” tem ainda um forte significado para a articulação do

parentesco: uma vez que participam da constituição do feto diferentes homens, o vínculo

materno é condição para a germanidade. Grupos de irmãos filhos de uma mesma mãe

constituem uma unidade solidária – masi –, informada pela referência a uma “mesma
93

vagina”117 (Alés 2006: 199).

Nos primeiros anos de vida, a contigüidade física entre a mãe e o filho mantém-se

em um nível próximo ao que existia ainda no útero: a criança está sempre dependurada

junto ao corpo da mãe e só depois dos quatro anos deixa de dormir junto com ela

ganhando sua própria rede (Lizot 1988: 87-88). Como observa Alès (2006: 274), “as

crianças nos seus primeiros anos, como em muitas outras sociedades, têm uma existência

ainda incerta, elas não são ainda totalmente indivíduos (eles ainda não possuem nome

pessoal), […] continuam ligados à sua mãe e sua participação social futura está em

latência”. Um recém-nascido ainda não tem seu corpo estabilizado, este é demasiado mole

e se encontra, por conseqüência, mais sujeito aos ataques de seres sobrenaturais. Uma série

de cuidados deve, portanto, ser tomada. Tais cuidados incidem principalmente sobre os

hábitos alimentares dos pais da criança: a mãe deixa temporariamente de comer peixe

caribe para que a língua do bebê não apodreça; o pai fica formalmente proibido de comer

carne de tamanduá – o que provocaria a morte do filho – e também de anta, que causaria

ulcerações na pele da criança, etc. (Lizot op.cit.: 87).

Lizot observa que quando da morte de alguma criança pequena, há uma completa

ausência de caça em seu funeral, contrastando com o ritual funerário destinado aos adultos

falecidos, nos quais a oferta de carne aos convidados e oficiantes é parte obrigatória e

essencial (ibid.: 96). Na verdade, tudo se passa como se no funeral infantil fosse

imprescindível dissociar a caça dessa morte prematura, como se – e aqui tomo liberdade de

desenvolver a observação de Lizot – fosse necessário produzir uma diferença onde ela não

é tão clara: distinguindo entre o corpo da criança e o corpo do animal. Lembremos que já

foi dito que na Amazônia “a fabricação de um corpo humano é baseada em uma

negatividade: na negação da possibilidade de corpos não-humanos” (Viveiros de Castro

117
Os filhos de mulheres irmãs entre si, também são considerados de uma mesma vagina . Daí a preferência
pela poliginia sororal, que permite aos Yanomami a construção de um grupo de germanos unidos, uma
fratria forte (Alès 2006: 199).
94

1987 [1977]: 32; ver também Descola 2001: 108; Vilaça 2005: 450). De fato, entre os

Yanomami, um recém-nascido não pertence definitivamente à categoria humana: ele é algo

ainda em “transição” e não um ser completo, podendo ser morto se tiver alguma

deformação congênita evidente ou se os pais não estiverem em condições favoráveis de

criar uma criança ou mesmo se não o desejarem. Depois de o bebê ser amamentado, no

entanto, o infanticídio deixa de ser uma possibilidade (Lizot 1988: 16). O alimento

recebido da mão humana é o operador fundamental na fabricação e na determinação desse

corpo potencialmente polimorfo como propriamente humano, isto é, como corpo de

parente. A estabilização dessa forma, ou seja, a negação dos outros corpos possíveis, não é

algo que ocorre em um repente ou através de uma única mediação. São necessárias uma

série de relações e cuidados, em um processo vital que talvez resumisse o que se poderia

chamar, entre os Yanomami, de “parentesco”.

O desenvolvimento de uma pessoa é avaliado em termos da quantidade e densidade

de seu sangue, bem como do endurecimento de seus ossos. As crianças (oshe thë) possuem

a carne branca (iyẽhikë au) porque seu sangue é pouco abundante e ainda em formação –

ele é iyẽ ehereshi, “diluído”. Pouco a pouco pode se observar um aumento do calor

corporal – associado, como notáramos, à pujança do bei bihi – e o desenvolvimento da

massa muscular. Esse período na vida de uma pessoa chama-se witarayu, literalmente

“engorda-se”. É nessa fase que as crianças começam a desejar a carne de caça, um claro

indício de humanização. Essa mudança alimentar ocorre apenas quando a criança começa a

andar, o que atesta um maior endurecimento e enrijecimento dos seus ossos e de seu corpo.

Essa estabilização mínima do corpo é necessária para que se possa comer de outros corpos

sem o risco eminente da transformação (Albert 1985: 606, 607 n.58). Ademais, o desejo de

carne também significa a entrada da criança no ciclo mais amplo das reciprocidades

sociais, onde, como já notamos, a carne é um dos principais elementos de circulação.


95

Com o advento da puberdade, a qualidade e a quantidade de sangue no corpo da

pessoa atingem seu ponto máximo: na “adolescência” (hɨia thë e moko thë), a corpulência

torna-se ideal e a alimentação passa a ter por base a carne. Seu sangue agora está vermelho

(iyẽ wakë) e em quantidade abundante; os ritos de puberdade visam controlar esta

abundância de modo que o volume de sangue não passe da medida limite, arriscando

ameaçar o equilíbrio buscado entre a umidade e a secura (Albert 1985: 606).

Yɨbɨmu: rito de puberdade feminino

Entre os Yanomami, a menstruação é concebida como resultante de um processo

periódico de acúmulo de sangue no coração das mulheres: o excesso de sangue provoca a

ruptura do coração e é então escoado pela vagina. A primeira menstruação é o indício de

que o sangue da menina, ralo na infância, adquiriu maturidade e densidade (Albert 1985:

572-573; Alès 2006: 195). Tão logo surjam os primeiros sinais de menstruação, a menina

deve avisar à sua mãe, que então irá construir um abrigo ao fundo do fogo doméstico –

utilizando galhos de uma planta chamada por sua floração púrpura “folhas da

menstruação” (Lizot 1988: 90) –, no qual a jovem deverá permanecer por alguns dias,

isolada do resto da comunidade e, sobretudo, dos olhares masculinos (Albert loc.cit.).

Durante a reclusão, a menina púbere deve permanecer nua, despojando-se de todos

seus ornamentos: cordões de algodão que mantém ao redor da cintura e dos membros

inferiores e superiores, e também os bastonetes que utiliza nas orelhas e no rosto. Nas

palavras de Lizot (1988: 91), ela deve “renunciar a todos os elementos culturais ou

relacionados às plantas cultivadas”: usa inclusive uma rede de cipó, e não de algodão, e só

pode usar o tabaco se ele for nosi, ou seja, insosso e seco de tanto já ter sido chupado. A

jovem obedece a restrições alimentares severas, comendo uma única refeição frugal de

banana e raízes. Além disso, deve seguir uma estreita etiqueta que regula seus “modos à
96

mesa”, valendo-se de pauzinhos como talheres para se alimentar – já que não pode tocar

com as mãos os alimentos. Ela também deve usar uma varetinha para se coçar, evitando

tocar sua própria pele. E, sobretudo, não deve deixar seu isolamento de maneira alguma,

nem mesmo para realizar suas necessidades fisiológicas, defecando sobre folhas com as

quais faz um embrulho que sua mãe jogará fora depois. De modo geral, a jovem reclusa

deve procurar se movimentar o mínimo possível, mantendo-se sempre com o corpo rijo e

os braços cruzados ao redor do corpo, abraçados aos seios (Albert 1985: 576-579; Lizot

1988: 91).

Todas essas medidas visam evitar transformações indesejáveis (wahati bɨrɨotëhë

shiiwanimsi) no corpo da jovem, que encontra-se demasiado úmido pelo excesso de

sangue e, portanto, “amolecido”, suscetível a alterações. Por isso também sua mãe

encarrega-se de manter o fogo sempre aceso perto dela, para acelerar o “secamento” do

sangue de sua vagina. Os Yanomae dizem que se a jovem fizesse algum movimento

brusco, por exemplo, metamorfosearia-se em um veado. Mas ainda há o risco de outras

transformações menos drásticas: o contato direto com o solo lhe deixaria as nádegas

“murchas” e lhe alongaria os lábios da vulva; se não mantiver os braços cruzados, seus

seios cairiam, e assim por diante. A utilização de ornamentos ou o uso das mãos para

coçar-se sem mediações, podem lhe causar lesões cutâneas profundas e incuráveis

(washia), e, caso a água toque seus dentes, estes cairiam abruptamente. A jovem deve

ainda submeter-se a um mutismo quase total, expressando apenas desejos elementares, ou

sua boca se deformaria (Albert 1985: 577-578).

Albert (ibid.: 583) observa como boa parte das consequências derivadas da

inobservância do ritual de puberdade feminino se relaciona genericamente a um

envelhecimento precoce da jovem: perda dos dentes, flacidez da pele, deformação

corporal. O autor apresenta um comentário nativo segundo o qual o cumprimento


97

inapropriado da reclusão resulta em uma aceleração da morte. Lembremos do que foi dito

sobre o sangue ser o principal regulador do tempo linear individual entre os Yanomami: se

na adolescência o sangue é abundante, a velhice caracteriza-se por uma escassez de

sangue; os anciões possuem o interior seco, seu sangue está em decomposição (Albert

1985: 606). A reclusão da jovem púbere, portanto, busca não apenas conter a

maleabilidade do corpo provocado pelo excesso de sangue, como também impedir seu

escoamento desmesurado, pois isto tornaria a jovem demasiada seca e poderia provocar

sua morte prematura. O ponto ótimo do corpo Yanomami é, como já dissemos, em algum

lugar entre a dureza e a maleabilidade, a secura e a umidade.

Todavia, o sangue, além de regulador do tempo linear individual, é também um

regulador do tempo meteorológico e cosmológico, e, quando fora do corpo, é o fator e o

sinal de um desarranjo da ordem do mundo, daí derivando a importância do rito Yɨbɨmu

não apenas para a jovem, mas para toda a comunidade (Albert 1985: 607). O fluxo

menstrual é capaz de subverter a periodicidade cotidiana: seu livre escoamento levaria à

interrupção da alternância dia e noite. Além disso, o odor do sangue menstrual é

considerado poluente; se não for contido e mediado pela reclusão, afirma-se que

despertaria a ira da árvore da chuva Maahi, ser mitológico que se encontra na junção do

céu com a terra, responsável por todas as águas. Ao redor de Maahi, há um mundo de

escuridão e umidade que se espalharia sobre a terra caso o rito de puberdade não fosse

cumprido: furiosa e ofendida com o cheiro do sangue, essa árvore mitológica inundaria a

terra e levaria a todos com a força da água (ibid.: 575 n.11). De acordo com os Yanomamɨ,

a comunidade seria coberta por uma água que brotaria incessante e violentamente do chão

e a terra mole faria afundar a todos, que seriam em seguida petrificados no mundo

subterrâneo (Lizot 1988: 90-91). A inobservância do rito de puberdade traz ainda

consequências para a periodicidade sazonal e cotidiana: chuvas permanentes e ausência do


98

sol.

O isolamento ritual da jovem púbere, enquanto contenção do livre escoamento do

sangue, é, por conseguinte, medida necessária não apenas para a sua proteção, mas de toda

a comunidade e mesmo do cosmos, como se “o sangue escorrendo livremente, pudesse

jogar homens, sociedade e universo em um processo de entropia irreversível” (Albert

1985: 603). De fato, o sangue em geral – e não apenas o menstrual –, quando fora do

corpo, é dotado de um poder deletério. O sangue da caça, porque associado à imagem vital

e vindicatória do animal morto, é especialmente nefasto, bem como o sangue de um

inimigo morto (ibid.: 574). Na verdade, sangue menstrual, sangue da caça e sangue

inimigo encontram-se inter-relacionados em diversos mitos e rituais.

O excesso de sangue no corpo da jovem faz com que ela seja considerada “crua”, o

quê, em uma sociedade que valoriza ao extremo o cozimento como forma de socialização e

“culturalização” e cujo horror diante de uma carne mal-passada está diretamente associado

à recusa do canibalismo selvagem, tem certamente sérias implicações. No entanto, como

afirma Albert, mais do que por sua crueza, é por seu excesso de mutabilidade que a jovem

púbere ameaça a si e ao resto do universo (1985: 585). O sangue traz consigo um grande

potencial transformador, como já indicavam os riscos que corre a jovem que não cumpre

sua reclusão. Quando, durante um acampamento temporário, constata-se a menstruação de

uma jovem, o pai comenta com seus companheiros para alertá-los da situação : iba tuushia

a në aibirayoma, “minha filha tornou-se outra” (ibid.: 580). Não ao acaso, a fúria de

Maahi e a instauração do mundo úmido e podre é seguida no mito pela criação dos

estrangeiros, e em vários outros mitos, a transgressão do rito de reclusão implica uma

transformação da humanidade em animais, inimigos, ou ainda na figura de um fantasma

canibal – todos eles figuras de alteridade (Lizot 1988; Albert 1985: 592, 750-772).

Voltemos ao rito. Depois de quatro dias, é considerado que a jovem começou a


99

secar: ela emagreceu e seu corpo está “vazio”. Usualmente, após um semana a reclusão

chega realmente ao fim. A jovem é pintada com urucum por sua mãe, que privilegia os

motivos chamados sehrirano, linhas verticais paralelas associadas ao bom crescimento.

Embora já tenha saído da reclusão, ela ainda não é considerada completamente seca: a

pintura vertical – em contraste com os motivos circulares e curvilíneos mais usuais entre

os Yanomami –, opõe-se à maleabilidade que ainda é imputada ao seu corpo e visa ajudar

no processo de fixação,118 que se completará em poucos dias (Albert op.cit.: 581). Entre os

Yanomamɨ uma cerimônia envolvendo toda a comunidade marca o fim do ritual. A jovem

é levada à floresta por algumas mulheres, onde tem seu cabelo cortado e sua pele decorada

com urucum, além de receber diversos ornamentos de palmeiras novas e flores. No seu

retorno ao shapono a s outras pessoas também estão enfeitadas e o clima é de festa: ela

passou da categoria de menina verde, ruwë, para madura, tathe (Lizot 1988: 93).

Durante as menstruações seguintes, a mulher deve manter-se próxima ao seu fogo

doméstico, obedecendo a um tipo atenuado de reclusão que visa evitar também o

envelhecimento precoce. Ao seguir as recomendações corretamente, a mulher não

adoeceria, ou seja, não se arriscaria a estes estados de alteração indesejável assimilados à

doença. Tanto o rito de puberdade quanto as restrições seguintes asseguram a longevidade

feminina pela estabilização de uma forma corporal apropriada e reconhecidamente

Yanomami – à revelia do poder transformador do sangue.

118
A tintura com urucum é pensada em correlação com um processo de “reculturação” e por vezes inclusive
de um cozimento. Ver p.ex. Albert 1985:414 n.5.
100

Unokaimu:ritual de matador119

É observado, entre os Yanomami, um rito de puberdade masculina no qual os

meninos devem submeter-se a restrições muito semelhantes às da jovem púbere a partir do

momento em que principiam a mudar de voz. A analogia da puberdade masculina com a

menstruação feminina é flagrante: ela é marcada por uma defecação de sangue que

provoca o ressecamento da garganta e a subseqüente alteração na voz. Esse “escoamento”

é originário de um excesso de sangue nas vísceras, assim como o fluxo menstrual é

resultado de um derramamento do sangue do coração. Lembremos que durante a

adolescência o nível de sangue no corpo dos jovens e sua densidade encontram-se no

ponto máximo (Albert 1985: 600-601). Tal rito, entretanto, é pouco comentado na

literatura etnográfica, e é o rito de matador, ao qual se submete a grande maioria dos

homens yanomami, o indicado por diferentes autores como o equivalente preferencial do

rito de puberdade feminina na regulação dos corpos.

O rito de matador – unokaimu – justifica-se entre os Yanomami devido à concepção

do homicídio como um ato de predação ontológica dos constituintes da pessoa da vítima

que assume a forma de um canibalismo figurado – mais especificamente, a da

hematofagia. Após executar seu inimigo, seja em um ataque físico ou pelo recurso à

feitiçaria ou ao xamanismo, o guerreiro fica cheio do sangue de sua vítima: é esse “estado

de matador”, unokai, que justifica e impõe a observação da reclusão ritual. Unokai

significa, literalmente, “trazer a marca do morto”, e determinaria uma aceleração do

processo de corrupção corporal e de envelhecimento prematuro do matador se este não se

119
O unokaimu é na verdade a etapa de fechamento de um rito mais elaborado que é o rito de guerra. Sua
abertura, watubamu, é realizada antes de uma incursão guerreira e visa preparar os guerreiros,
assimilando-os à imagem vital dos grande pássaros (Albert 1985: 352-381). Mas interessa-nos aqui,
apenas esse fechamento, que é o rito realizado após a morte de um inimigo, mesmo quando trata-se da
morte por xamanismo, feitiçaria, ou agressão do duplo animal. Mas é importante ter em mente que essa
associação à imagem vital dos pássaros necrófagos, explica também o estado de homicida, e possibilita a
“consumação” dos traços do morto.
101

submetesse aos rituais de reclusão. A qualidade poluente desse sangue é reforçada ainda

pelo fato de ser uma substância originária de um inimigo (Albert 1985: 342-347, 351).

Ainda segundo Albert, “o rito de homicida propriamente dito consiste

essencialmente em uma semi-reclusão individual acrescida de uma série rigorosa de

interditos sobre as atividades, os contatos corporais e a alimentação” – interditos em tudo

semelhantes aqueles que encontramos nos ritos de puberdade (ibid.: 365). O homicida

deve ficar isolado em sua seção da casa coletiva, mantendo-se o máximo possível imóvel e

em postura ereta, com um fogo constantemente aceso ao seu redor. Além disso, deve

abster-se de se tocar diretamente e deve falar o mínimo possível. As carnes de caça são

rigorosamente proibidas, assim como os peixes maiores. 120 A suspensão desses interditos

afetaria sobretudo a pele do matador, indicando seu envelhecimento precoce, decorrente do

fato de que, ao incorporar o sangue da vítima, o guerreiro é contagiado pelo processo de

corrupção provocado pela morte e putrefação da vítima (ibid.: 366).

A reclusão ritual do matador e todos os interditos que a cercam buscam uma dupla

demarcação das suas fronteiras corporais individuais,121 evitando tanto o contato com o

exterior quanto o consumo de substâncias alimentares exógenas . O isolamento tornaria

possível, portanto, que os traços do morto alojados no interior do corpo do matador entrem

em decomposição e sejam devorados pelas imagens vitais dos hekuras necrófagos que

habitam em seu peito, mantendo sua integridade ontológica e biológica. Terminada essa

decomposição, o matador, fazendo uso de eméticos, deve vomitar as partes restantes do

morto: cabelos, unhas, coágulos de sangue, etc. Após banhar-se, o matador pode voltar a se

pintar com urucum, mas fazendo uso de um motivo particular: três formas circulares sobre

120
Albert (1985: 370) observa que encontra-se neste rito a oposição simbólica culturalmente fundadora entre
canibalismo e alimentação, que impõe a disjunção simbólica/material entre caça animal e inimigo
humano.
121
Albert (ibid.: 371 n.45) destaca a diferença deste rito para as outras reclusões e para a couvade, pois aqui,
o único afetado pela imagem vital deste sangue é o matador, enquanto nos outros casos há uma
comunicação de substâncias entre marido e mulher, ou pais e filhos, e ainda, um risco maior de
contaminação de toda a comunidade.
102

a testa e maçãs do rosto, áreas por onde a sudorese da gordura podre da vítima é

considerada acentuada. Considera-se que a tintura auxilia na “secagem” e no “cozimento”

da gordura. O rito se encerra quando o matador amarra a rede que utilizou durante a

reclusão no alto de alguma árvore – diz-se que para evitar que as crianças a toquem, mas

também para que o envelhecimento do matador siga o mesmo ritmo do envelhecimento da

árvore (Albert 1985: 371-377). Ele é agora um homem “seco”.

Para Albert, os ritos de menstruação feminina (yɨbɨmu) e de puberdade masculina

(ȗuremi baaribu) são homólogos no plano etno-fisiológico, correspondendo ambos a um

mesmo processo de maturação na escala do tempo linear individual. No entanto, no plano

da filosofia da periodicidade, o rito da menstruação tem seu correlato no rito de homicida

(unokaimu) por uma relação de simetria invertida: o primeiro corresponde à condição de

reprodução do grupo local – fecundidade –, enquanto o segundo à mortalidade dos grupos

inimigos (1985: 611). O rito de puberdade feminino marca o início da produção do

parentesco pela expulsão de um sangue endógeno, enquanto o rito de homicida masculino,

pela absorção de um sangue exógeno, celebra o início da predação entre os homens. 122

A correlação entre essas duas esferas da socialidade – a da produção e a da

predação – é ainda mais evidente na articulação mitológica entre o sangue menstrual e o

sangue do inimigo que é incorporado pelo matador. Os Yanomamɨ da Serra Parima

consideram o sangue feminino uma atualização da imagem vital do sangue de Mososori, a

Tartaruga. O mito de Mososori é um mito sobre o ritual unokaimu, ou melhor, sobre as

conseqüências nefastas de sua inobservância: após matar o Jaguar, devorando suas vísceras

e cérebro, Tartaruga explode ao atravessar uma ponte sobre um riacho, espalhando pelas

águas todo o excesso de sangue que havia no interior de seu corpo. A imagem vital desse

sangue de origem exógena e inimiga se perpetuou incorporada ao sangue menstrual de

122
Digo “início” por referência ao jovem que se submete pela primeira vez a um tal rito. Quase todos os
jovens devem se submeter a este rito, bastando, por exemplo, flechar um inimigo já morto por um
guerreiro mais experiente.
103

todos os seres. É este o sangue parimi (“perpétuo”), fonte do princípio de fecundidade de

todo o cosmos, reativado pelos homicídios atuais cometidos pelos homens Yanomami

(Alés 2006: 186-187, 216-217). Essa articulação entre reprodução e predação é explicitada

por Alès:

Certes, dans le discours explicite, les homicides viennent compenser par la


negative le déficit affectif occasionné par les morts du groupe, et cette
compensation peut être interpretée comme un principe d'équilibre des
qualités ou de l' “efficacité de production” perdue des défunts. Implicitement
toutefois, les hommes assurent également par leur activité guerrière une
continuité qui est loin d'être négligeable puisqu'ils garantissent la
pérpetuation du principe de reproduction des êtres humains, tout comme de
celle des animaux et, nous allons le voir, de celle des plantes. Il y a nécessité
de tuer pour reproduire: la mort permettrait dès lors la vie (2006: 189).

O rito unokaimu yanomami coloca-nos diretamente diante de uma situação em que

a estabilização de um corpo ocorre não apenas pela negação de um outro corpo possível,

mas pela destruição de outros corpos efetivo, mais especificamente, do corpo do inimigo.

Mais do que isso, o rito do matador parece lembrar aos Yanomami que a produção de

corpos aparentados e a predação da alteridade encontram-se mutuamente implicadas. 123

3.2. “Ele nos recriou e nós pudemos aumentar novamente”: fertilidade como marca de

moralidade

Depois de terem sido criados por Omama, os Yanomami puderam “aumentar”

novamente. Contida no mito da queda do céu, essa afirmação nos remete ao tema da

fertilidade do grupo, fertilidade esta que não é outra coisa senão a produção de pessoas, e

de um tipo muito específico de pessoa: os parentes. Há uma grande discussão sobre a

estruturação e a morfologia do parentesco yanomami, ao lado de uma polêmica persistente

sobre a presença ou não de grupos de descendência patrilinear. Embora essa discussão

tenha gerado frutíferas páginas que demonstram a grande variabilidade das estruturas e

123
Para outras explorações sobre a articulação entre produção e predação cf. Fausto 2001, 2007.
104

organizações sociais das comunidades yanomami, ela não será focalizada na apresentação

que se segue.124 Meu interesse se voltará para o entendimento do parentesco yanomami não

apenas a partir do ponto de vista de sua estrutura, mas sobretudo do de sua fabricação e

processo, se referindo especialmente aos empreendimentos deliberados de

consubstancialização.

O entendimento do parentesco como uma fabricação continuada de

consubstancialidade – na qual o sangue é apenas uma das substâncias compartilhadas – é

ponto já estabelecido na etnologia amazônica, resumidos por Vilaça nos seguintes termos:

proximity and living together are so decisive in determining kinship that


genealogical kin who live far away may be excluded from this kin circle [...]
It should be noted that this is not a purely formal or terminological
assimilation, but a true process of consubstantialization, generated by
proximity, intimate living, commensality, mutual care […] This implies that
reckoning oneself to be consubstantial and acting as such effectively
constructs this consubstantiality – not in a fictious way, as our logic would
suppose, but in a way that is as true and real as that provided by way of
living together (2002: 352).

O parentesco, enquanto fabricação de pessoas similares, só pode ser um movimento

que vai da alteridade em direção à identidade 125 (Kelly 2003: 96). No idioma amazônico de

uma teoria geral da relacionalidade trata-se na verdade de ir da afinidade à

consanguinidade:

uma vez que a afinidade é o estado fundamental do campo relacional, algo


deve ser feito, uma certa quantidade de energia deve ser dispendida para se
poderem criar zonas de valência consangüínea nesse campo. A
consangüinidade deve ser deliberadamente fabricada; é preciso extraí-la do
fundo virtual de afinidade, mediante uma diferenciação intencional e
construída da diferença universalmente dada. (Viveiros de Castro 2002: 423)

O processo do parentesco requer a progressiva particularização da diferença


geral mediante a constituição de corpos de parentes – o corpo singular
construído pelo coletivo de parentesco e o coletivo construído como corpo
de parentesco –, que formam as concreções de identidade consangüínea
dentro do campo universal de afinidade potencial (ibid: 445).

Mas quais as condições e meios para este processo de constituição de corpos de

124
Sobre esta discussão ver: Shapiro 1975; Ramos & Taylor 1979, Ramos & Albert 1977; Lizot 1975, 1984;
Alès 2006. Para uma síntese e comparação do estado atual do tema ver: Duarte do Pateo, 2005: 156-179.
125
Identidade que nunca é de fato alcançada, posto que, como notamos acerca dos constituintes da pessoa,
nem mesmo os indivíduos são exatamente indivíduos “auto identificados”.
105

parentes, nos dois sentidos apontados acima? Em sua tese sobre linguagem e socialidade

entre os Yanomami, Carrera sugere, inspirando-se em Overing (2003), que a “fertilidade”

de uma comunidade é um indício de sua alta valorização moral e de condições apropriadas

para uma vida sociável entre “iguais” (Carrera 2004: 83). Vilaça também sugere a mesma

associação entre parentesco e moralidade: ao comentar os trabalhos etnológicos orientados

pelas teorias que enfatizam a produção cotidiana e continuada do parentesco, a autora

afirma que o ponto relevante desta ênfase não é a falta de uma teoria genética sobre o

parentesco ou a concepção na Amazônia, mas que justamente este “processo de fabricação

social da consubstancialidade é fortemente valorizado como um atributo constitutivo da

humanidade” (2002: 354). Isto significa que “saber fazer parentesco” é fundamental para

que se possa ser considerado humano, e os Yanomami são mestres neste tipo de feitio. É

seguindo essas duas indicações que proponho entender o parentesco yanomami como um

atributo constituído por (e, não menos importante, constitutivo de) uma imagem moral da

pessoa.126

Entre os Yanomami, de maneira semelhante ao que ocorre entre outros grupos do

maciço guianense (ver p.ex., Overing 1975, para os Piaroa; Riviére 1969, para os Trio;

id.1984, para um panorama da região) cognação e co-residência tendem a se superpor: a

parentela e o grupo de co-residente possuem contornos semelhantes. 127 O grupo local,

kamiyatheribë – ou iba yahitheribë, em yanomae: “meus co-residentes” –, estrutura crucial

na sociedade Yanomami, tanto no plano sociológico, quanto no plano econômico, político

e simbólico, é sustentado por uma “densa rede de inter-casamentos e por um sistema de

126
Cabe aqui um esclarecimento: usarei os termos parente/parentesco, pra referir-me sobretudo à cognação,
às relações de consanguinidade e ou afinidade real, no interior do grupo de co-residentes. A expressão
corpo de parente refere-se tanto a es conjunto de pessoas, como ao corpo “bloco de afecções” de uma
pessoa específica. Do mesmo modo, sigo uma diferenciação entre os termos sociabilidade para referir-me
às relações de parentesco e aliança no seio da comunidade, e socialidade para as relações sociais em
geral– inclusive de predação.
127
Valendo-se de uma terminologia de parentesco do tipo dravidiano, no qual as marcações de sexo e de
consanguinidade/afinidade são de extrema relevância, os Yanomami são ainda um caso exemplar do tipo
de configuração comum no parentesco na Amazônia na qual essas categorias dravidianas sofrem uma
inflexão a partir de um gradiente de proximidade espacial. V. Albert 1985: 221-235.
106

reciprocidade econômica generalizada, de trocas cotidianas de alimentos e serviços, [...]

concebido idealmente, em contraste com o exterior, como uma mônada política zelosa de

sua autonomia e soberania” (Albert 1985: 201-202). Viver em comunidade é requisito

fundamental para se tornar parente e significa o reconhecimento de uma condição humana

apropriada. Carrera (2004: 117) descreve o desconforto de um Yanomami ao penetrar em

uma casa vazia: o silêncio e a ausência de pessoas, não são apenas angustiantes, mas um

índice de doença e morte. Essas habitações vazias ou pouco povoadas remetem a contextos

de epidemias ou guerra e a figura de alguém que vive sozinho é mitologicamente associada

a um fantasma. Na verdade, os espectros dos mortos são epítome de diversos

comportamentos que vão na contramão desta moralidade do parentesco, como espero fazer

notar nas páginas seguintes.

A importância do 'viver junto' para o parentesco impõe-se a ponto de um co-

residente ser considerado um parente mais verdadeiro do que um “parente” que reside em

outra localidade. Esse movimento é correlato a um esforço de manutenção da afinidade no

domínio exterior ao parentesco, 128 "desafinizando" os co-residentes: o afim real, aquele que

estabelece a aliança mediante trocas de substâncias – ou seja, pelo matrimônio – é

efetivamente consubstancializado e consanguinizado na esfera dos comportamentos e

ações (Viveiros de Castro 2002: 123). Albert (1985: 197 n.8) esclarece que os Yanomami

distinguem os parentes cognáticos dos parentes classificatórios, atribuindo aos primeiros o

qualificativo yayë, “verdadeiro”, enquanto os outros são designados por bio, que possui o

sentido de “à toa”, “sem razão”, e complementa:

On notera ici que les affins reales à l'origine des affins classificatoires se
voient également attribuer le qualificatif yayë appliqué aux cognats tandis que
les affins cognats avec lesquels aucune alliance matrimoniale concrête n'est
contractée, auront tendance, à la longue, à se voir reclassifiés comme des
affins bio (ibid.: 223).

Essa distinção confirma o entendimento de que tornar-se parente é, sobretudo, agir

128
A afinidade é o exterior do e é exterior ao parentesco. Cf. Viveiros de Castro 2002: 401-456.
107

moralmente como parente, o que inclui relações de cuidado, uso de termos de parentesco e

também a fabricação de um corpo específico. Na seção precedente, ao expor a teoria

Yanomami sobre a concepção, sugeri que o nascimento era apenas o início desse processo

de fabricação de parentesco que incide principalmente sobre o corpo. Como observa Kelly

(2003: 97), “a fabricação do parentesco é justamente esta produção intencional de corpos e

perspectivas via a moralidade de ser humano”, não apenas nos momentos rituais que já

destacamos, mas em todo o cotidiano. Os alimentos têm um papel de destaque nesse

processo: seja pela sua produção, circulação, consumo ou interdição, eles são elemento

fundamental e sempre presente na fabricação do parentesco. 129

Entre os Sanumá, os alimentos preparados pelas mulheres recebem sua marca, o

que significa dizer que estão impregnados da subjetividade daquela pessoa: “todos os

pertences ou criações significativas de uma pessoa parecem sofrer uma 'corporificação',

adquirir sua substância” (Guimarães 2005a: 68). A comensalidade se torna assim um ato de

consubstancialização extremamente eficaz, na medida em que o alimento já leva consigo a

marca do corpo de quem o produziu. Guimarães observa como a nutrição tem um papel

explícito na fabricação do laço de parentesco entre mãe e filho: enquanto a descendência

patrilinear é explicada principalmente em termos de transfusão de substância de pai para

filho durante a concepção, a consubstancialização do filho com sua mãe se realiza pela

alimentação. É pela mediação do leite materno e do chibé 130 preparado pela mãe que a

criança – a princípio um afim da própria mãe 131 – pode se tornar efetivamente parente

(ibid.: 169). Também entre esposos a alimentação tem um papel fundamental na criação de

129
Ramos (1990: 51.) sugere inclusive que o termo iba nimïpö töpö – um equivalente em Sanumá para o iba
yahitheribë Yanomae – seja traduzido por “os meus comensais”.
130
Chibé é uma mistura de água e farinha de mandioca, muito consumida pelos Yanomami e outros grupos
da região, e uma das principais fontes de hidratação, já que o consumo de água pura é raro entre estes
povos. O chibé possui o mesmo “poder” de produção de parentesco que o leite materno, essa observação
impede uma interpretação que essencializasse as substâncias na fabricação do parentesco: elas são
sobretudo, veículo de relações.
131
Entre os Sanumá, a questão da descendência paterna é mais marcada, chegando a ser tratado como uma
configuração linhageiras, o que torna ainda mais relevante o papel da alimentação pela mãe. V. Ramos
1990; Ramos & Albert 1977.
108

laços de parentesco: o serviço pré-marital inicia o processo de consubstancialização

continuado pelo casamento; nele o esposo fornece caça e outros ingredientes coletados à

esposa e à sua família (afins por definição), que lhe retribuem com alimentos preparados.

Entre as populações ameríndias, a comensalidade não apenas é um instrumento

para a criação de corpos semelhantes, como é um atestado do compartilhamento de

perspectiva. Como afirma Vilaça:

commensality plays a central role [na fabricação do parentesco], not simply


because the same food makes similar bodies but because being able to share
food is an important sign of perspectival identity. Those who eat together are
above all confirming that they share like points of view, which is the
opposite to what happens with those who eat each other (2005: 455).

Comer entre parentes assinala a distância dos Yanomami em relação ao canibalismo

selvagem praticado por aqueles que têm assim sua humanidade posta em xeque: inimigos,

estrangeiros, fantasmas, etc. Há ainda uma marcação importante do que é um alimento

apropriadamente humano. Os Sanumá, por exemplo, fazem uma distinção entre alimentos

sanumás e alimentos dos brancos – que corresponde à oposição entre alimentos cultivados

(ainda que tenham sido importados dos Ye'kuana ou dos brancos) e alimentos

industrializados. Uma pessoa em estados liminares – um doente ou recém-nascido, por

exemplo – só pode nutrir-se dos alimentos sanumás, sob pena de sofrer metamorfoses

indesejadas. E não apenas o que se come, mas também o modo de comer tem um papel

fundamental na diferenciação dos seres; é necessário obedecer a uma série de regras de

etiqueta, para se comer entre parentes (Guimarães 2005a: 168).

As próprias atividades de produção de alimento – coleta, roçado, caça, pesca e

cozinha – também contribuem para a fabricação do parentesco, na medida em que são

realizadas conjuntamente e assim favorecem o estabelecimento de vínculos entre as

pessoas pela convivência e tempo despendido juntos. Alès (2006: 170) observa como o

simples ato de acompanhar os pais ou o esposo durante a jornada de trabalho é considerado

essencial para a fabricação dos vínculos entre um casal, ou entre pais e filhos. É certo que
109

o hábito de partilhar alimentos possui um sentido de generosidade e cuidado, que

retomarei adiante, contudo, para além da nutrição e mutualidade, o ato de distribuição de

alimentos em si é um meio eficaz de criação de relações. Cada grupo doméstico (família

nuclear ou extensa) é uma unidade econômica auto-suficiente, as trocas cotidianas e

cerimoniais de alimentos constituem um importante aspecto social, não estritamente

econômico. Quanto mais pessoas puderem ser envolvidas nessa rede de trocas, tanto

melhor: essa partilha não é fundamentada pela idéia de divisão de alimentos, mas pela de

multiplicação de relações e circulação de pessoas como uma forma de potencializar, até

mesmo politicamente, a rede de parentesco (Lizot 1988: 52).

Os alimentos também possuem um papel fundamental nas relações inter-

comunitárias: tanto as visitas recíprocas quanto os principais rituais inter-comunitários

envolvem necessariamente a partilha de alimentos. A comensalidade é um instrumento de

diplomacia entre grupos vizinhos. O chibé sanumá, por exemplo, tem um papel

fundamental para selar relações de paz com os estrangeiros: servido a todo mensageiro ou

visitante que chega à aldeia, ele ameniza, ao menos momentaneamente, a hostilidade

latente sempre presente entre estranhos. Guimarães afirma que a bebida permite aos

Sanumá uma “aproximação daqueles que lhe são outros” 132 (2005a: 171). A relevância

deste “nutrir-se mutuamente” desponta inclusive em algumas expressões que, relacionadas

ao deixar alguém passar fome – ou, ao contrário, da troca de alimentos – são utilizadas

para indicar relações de guerra ou de aliança. De acordo com Carrera (2004: 233) o verbo

ohëmayou, que significa literalmente “deixar alguém faminto/provocar fome em alguém

mutuamente”, é entendido e utilizado com o sentido de “estar em guerra com alguém”.133

Percebe-se que alimentação e cuidado, por vezes, têm uma extensão semelhante: o
132
Em contraposição a algumas socialidades amazônicas na qual a bebida tem um papel fundamental de
alteração. cf. Lima 2005, sobre a cauinagem entre os Yudjá. No entanto, há um consumo crescente entre
os Yanomami – e Sanumá, principalmente – do caxiri, bebida fermentada importada de seus vizinhos
carib e pemon, sobre o qual não há ainda muitos estudos.
133
A comensalidade também tem um papel fundamental na “domesticação de estrangeiros” como faz saber
Kelly (2003: 130 e passim) ver infra capítulo 4.
110

cuidado com as crianças, por exemplo, é referido sobretudo em referência à nutrição.

Carrera (2004: 68) comenta que, ao ouvir uma criança chorando noite adentro, os

Yanomami explicam que ela não comeu o suficiente: seu sofrimento é porque ela ainda

tem fome, pë ohi shoawë yaro . Mas se a alimentação pode ser pensada como uma forma

de cuidado, parece haver entre os Yanomami uma “ética do cuidado” que possui

certamente um sentido mais amplo do que apenas a nutrição. Essa “ética do cuidado”

implica, ao mesmo tempo, um forte senso de generosidade e o esforço para se evitar o

sofrimento dos outros (Alès 2006: 161-175; ver também Kelly 2003).

Tais prerrogativas transparecem em uma série de responsabilidades recíprocas e

gestos de afeição. Entre os cônjuges, espera-se que o marido cuide não apenas da esposa,

mas de toda sua família, fornecendo-lhes alimentos e apresentando-se como aliado nos

momentos de conflito. A esposa por sua vez deve oferecer companhia ao marido em suas

atividades – de acordo com Alès, não é raro ver uma mulher sentada junto à roça sem

outras ocupações do que acompanhar (rurupou) seu marido –, preparar-lhe o tabaco134, e

tomar pequenos cuidados com sua pele e cabelo, catando-lhe os piolhos ou apertando com

a unha os pequenos pontos vermelhos que as picadas de insetos deixam na pele: esses

pequenos gestos, em aparência íntimos e pessoais, são, na verdade, um modelo valorizado

da relação entre marido e mulher (Alès 2006: 171; Lizot 1988: 48).

Alès destaca ainda como estes cuidados entre os cônjuges, e também outras

atividades aparentemente informais são de fato parte de um processo muito formalizado de

sociabilidade (op.cit.: 172). Entre co-residentes, a rede de solidariedade é formada pelas

trocas matrimoniais e de serviços, pelas conversas e partilha de bons ou maus momentos,

em uma série de atividades conceitualizadas em torno da expressão nofimou, “se

comportar como amigo”.

134
O preparo de alimentos não é uma atividade exclusivamente feminina entre os Yanomami, o preparo do
tabaco sim.
111

As visitas são um momento essencial da criação da sociabilidade – e não se trata aqui

apenas de visitas formais em épocas de festas. 135 Entre os Yanomami, o verbo roo (que

significa literalmente “se assentar”) é utilizado para indicar pequenas visitas entre co-

residentes, ou vizinhos próximos. Carrera, lembrando as observações de Gow (2000) sobre

os Piro, assinala a qualidade extremamente positiva e produtiva dos momentos de ausência

de trabalho, nos quais o “não fazer nada é o equivalente a um convite para a interação

social […] um comportamento que encorpora uma estética de vida que considera que a

companhia é, por si só, desejável” (2004: 214).

Essa 'ética do cuidado' encontra-se relacionada também a uma concepção acerca dos

sentimentos e ao caráter transitivo dos estados emocionais. No cotidiano de uma aldeia, as

ações de uma pessoa são realizadas de modo a propiciar, àqueles que a cercam, bem-estar

e felicidade: pufi toprao (onde pufi, como notamos, é o princípio vital centro das emoções,

também chamado bei bihi. cf. pag. 65 supra). O estado contrário, pufi hushuo, que

significa tanto triste quanto colérico, deve ser evitado a todo custo (Alès 2006: 163).

Sentimentos e emoções são compartilhados cotidianamente, sobretudo, através da

expressão verbal. De acordo com Carrera, as conversas cotidianas Yanomami revelam a

saliência e a importância quase microscópica conferida aos aspectos emocionais nas

avaliação de suas relações:

when talking about their own social relations, Yanomami people place strong
stress, not only upon their good, but also their negative qualities. In these
conversations on the social the expression of the mutuality of feelings and
emotions constitutes a fundamental aspect of their judgments and
evaluations of their interpersonal relations (2004: 27).

Dizer que os sentimentos de alegria, raiva, tristeza, etc. são comunicáveis, não é nada

banal. Implica, na verdade, que eles podem passar de uma pessoa a outra e afetam a todos

aqueles que convivem em uma mesma comunidade: longe de constituir uma marca de

individualidade, os sentimentos são uma das marcas mais fundamentais da solidariedade

135
Para modalidades de visitas entre shaponos e comunidades aliadas cf., por exemplo, Alès 2006: 173-176.
112

Yanomami. Alès destaca a grande importância que os Yanomami conferem aos estados

psicológicos e sentimentos de cada pessoa, de tal maneira que “quando alguém se sente

triste ou em cólera, a comunidade inteira é afetada e se mobiliza a favor da pessoa 'infeliz'”

(2006: 163-166).

A 'legitimidade' de uma ação é assim frequentemente avaliada em termos do

sofrimento que ela causa ou evita ao sujeito da ação e àqueles que lhe são próximos. Tal

avaliação respalda a idéia de que algumas virtudes são valorizadas e necessárias na estética

sociabilidade (Overing & Passes 2000; ver tb Overing 1999) ameríndia: a capacidade para

uma comunicação apropriada, a confiança, o amor, o cuidado (Carrera 2004: 147). Não

podemos esquecer que a tristeza e a raiva são estados que indicam uma alteração no

equilíbrio dos componentes da pessoa e podem vir a conformar um estado de adoecimento,

o que confere um sentido complementar ao bem-viver, na qual pufi tropao nos remete à

idéia de boa saúde.136

O imperativo da generosidade – um dos traços mais marcantes da sociabilidade

Yanomami – reveste-se de significado adicional quando analisado sob a perspectiva da

ética do cuidado: dar e trocar bens é também uma forma de causar alegria, do mesmo

modo que recusar qualquer coisa a um parente ou amigo é fazê-lo sofrer ao ver seu desejo

negado (ibid.: 165). A expressão wahereki hõripraamatihe, “não nos deixe sofrer”, é

utilizada inclusive como forma de demandar presentes (Kelly 2003: 276). A mesquinharia

é um dos poucos vícios reconhecidos pelos Yanomami e passível de punição póstuma,

como salientou Lizot:

os Yanomami que não foram generosos com seus bens durante a sua
existência não vão para a casa grande das almas. Agachado na beira de um
caminho está um ser medonho, é Watawatawë. Ele indica às suas almas
perdidas o caminho que devem tomar; então elas percorrem uma picada

136
“A idéia principal é que um indivíduo não deve sofrer ou sentir dor – ni preai – e que não se deve deixar
um dos seus em um tal estado”, resume Alès (2006: 163). Em seu trabalho sobre a relação dos Yanomami
com o sistema de saúde, Kelly (2003: 85) constata que uma das principais reclamações dos indígenas
com relação aos médicos é que estes não se importavam com o sofrimento dos outros, e não faziam nada
para impedir este estado, o que parece confirmar a centralidade destas questões.
113

estreita que contorna uma colina. Atrás dela encontra-se um braseiro


gigantesco, o shobai kë wakë, dentro de uma grande folha nova e tenra: as
almas são atraídas, caem nele e se consomem (1988: 29).

Generosidade deve aqui ser entendida em um sentido amplo: não significa apenas a

troca de comida e bens, mas a necessidade séria e premente de partilhar responsabilidades

e emoções, fundadora das relações de sociabilidade. Recusar-se a compartilhar é

considerado uma atitude imoral sobretudo porque equivale a uma recusa em entreter

relações (Kelly 2003: 85, ver também Overing & Passes 2000). Alès resume nos seguintes

termos a articulação entre a ética do cuidado, a necessidade de evitação do sofrimento e a

generosidade:

Nombre d'actions sont conçues em termes de “ne pas soufrir” […] Dans le
cadre de la plus banale à la plus sérieuse des situations, les proches parents
et amis cherchent donc mutuellement à éviter de se faire souffrir ou de se
laisser les uns les autres dans la peine. Afin qu'ils ne souffrent pas, chacun
doit prêter attention à rendre les siens heureux et donc à être généreux: c'est
aussi la raison porquoi l'avarice est perçue si négativement chez les
Yanomami. Par conséquent, il est difficile de refuser de contenter quelqu'un
qui manque de tabac, de nourriture, d'un bien ou encore de compagnie ou
d'un conjoint. Tout sera mis em oeuvre afin de satisfaire les besoins et les
désirs d'un parent, d'un affin ou d'un ami. L'ensemble de ces actions sont des
marques d'attention, d'affection et d'amitié qui construisent la sociabilité et la
convivialité dans la vie de tout le jour (2006: 164-165).

A afirmação da 'ética do cuidado' e da generosidade como alicerces da sociabilidade

yanomami e insígnias de humanidade/moralidade, não deve, entretanto, obliterar o fato de

que se trata de uma população na qual a guerra e a violência – ainda que “melhores a

pensar do que a matar” (Albert 1985: 98) – ocupam um lugar proeminente. Desse modo,

são repassados às crianças não apenas os valores ligados ao cuidado e ao afeto, como

também as qualidades exigidas a um povo guerreiro: “resistência física, acostumar-se à

dor, imbuir-se da idéia de que a vingança sempre deve ser levada a cabo e que toda

violência sofrida tem de ter uma resposta” (Lizot 1988: 88). Lizot argumenta que o código

moral yanomami, tal como pode ser apreendido pela educação das crianças, constrói-se

em torno de duas virtudes complementares: “de um lado, deve-se trocar bens e alimentos

com os amigos, do outro, é dever vingar-se das agressões” (loc.cit.).


114

O ideal de hombridade presente entre os Yanomami é particularmente esclarecedor

de como a ética do cuidado e o ethos guerreiro são aspectos complementares de uma

mesma imagem moral da coletividade. Diferente de outras sociedades ameríndias, esse

ideal de masculinidade não se constrói por referência direta à figura do matador (unokai)137

– a valorização do guerreiro não parece passar pelo número suas vítimas, e nenhum tipo de

hierarquia decorre disso –, mas encontra a sua atualização no homem considerado

waitheri. Embora waitheri remeta indubitavelmente ao ethos guerreiro – waithirimëthëbë

refere-se, por exemplo, aos grandes guerreiros da comunidade – recobre um campo

semântico mais amplo, relacionando qualidades como coragem, valentia, generosidade,

humor e estoicismo (Lizot 1994b; Albert 1985: 97-98; Alès 2006: 43). Lizot observa que

os animais que, aos olhos dos Yanomami, melhor incorporam o comportamento waitheri

não são aqueles especialmente ferozes ou predadores reconhecidamente perigosos. 138 Os

Yanomami associam o comportamento waitheri ao coati e à preguiça, o primeiro

caracterizado por sua “bravura” e o segundo, por sua capacidade de sobrevivência em

situações adversas (Lizot 1994b: 857 apud Carrera 2004: 180). Humor cotidiano, bravura

ocasional e generosidade constante, permeados por doses de estoicismo, são os principais

traços que definem este ideal de hombridade:

L'homme waithiri doit être ainsi capable de se montrer farouche au combat


et prompt à manifester publiquement la puissance de sa détermination
lorsque la situation l'exige mais également de se montrer en toute autre
occasion peu regardant de ses biens et virtuose en matière d'ironie et mieux
encore, d'auto-dérision. Et cela sans l'ambiguité d'états intermédiaires: qui ne
cesse de maugréer sans agir ou de se montrer avare ne peut être qu'un lâche
et un homme de peu d'envergure (Albert 1985: 97).

Segundo Alès, a valorização do homem waitheri se relaciona sobretudo à sua

capacidade de proteger aqueles que lhe são próximos (seus parentes e aliados), seja no

137
Esta expressão como vimos na seção precedente, refere-se na verdade à um estado de “poluição” pela
marca do morto, e tira sua relevância justamente desta poluição e dos rituais de purificação a que deve se
submeter.
138
Estas correções e comentários se fazem sobretudo contra Chagnon (1976), que traduziu o que chamou de
“complexo waitheri” apenas como “ferocidade”.
115

registro da generosidade seja no da coragem para enfrentamentos violentos. Para a autora,

até mesmo os conflitos seriam uma consequência do cuidado e da solidariedade extrema

com os parentes, na medida em que a vingança é um recurso para diminuir o sofrimento

que uma morte ou a agressão causaram no seio da comunidade. De fato, a solidariedade

dos laços de parentesco e a agressão aos não-parentes se implicam mutuamente no sistema

vindicatório yanomami; a violência apareceria em um registro no qual “compartilhar a

cólera é marca do amor”. E, tal como esse amor e cuidado não se referem a sentimentos

íntimos e informais, mas a atos públicos e formalizados pelos quais se estabelecem as

relações em uma comunidade de parentesco, a cólera e a violência também se referem a

atos públicos, políticos (Alès 2006: 181).

Ao concederem um lugar central e positivo à violência na socialidade Yanomami,

diferentes autores demonstram como tal violência, culturalmente valorizada em sua

simulação e em sua atualização, é “estritamente codificada e enquadrada, restringindo suas

vítimas efetivas a uma taxa relativamente baixa enquanto a violência anômica se encontra

reduzida ao mínimo” (Albert 1985: 101). No próprio registro do “waitherismo”, diversos

subterfúgios são utilizados para evitar a violência 'pura e simples': combates ritualizados

para aplacar a cólera, oferecimento de presentes ou simplesmente o recurso ao humor para

tornar derrisória a situação conflituosa (ibid.: 97-98; Alès 2006: 22-30, 39-41, 176-181). É

importante destacar que cada esfera de relações impõe um tipo de comportamento

considerado adequado: um homem que se mostra excessivamente agressivo ou pouco

generoso entre os seus parentes é tão desprestigiado quanto aquele que se mostra covarde

entre inimigos.139
139
A guerra yanomami foi certamente um dos aspectos da socialidade mais estudado entre esta população e
foi alvo de inúmeras e divergentes interpretações – desde trabalhos baseados na sociobiologia (Chagnon
1976), passando por abordagens histórico-materialistas (Fergurson 1995), até análises estruturais que
inserem a guerra em um sistema mais amplo de predação ontológica da pessoa que envolve agressões
xamânicas e a reciprocidade ritual (Albert 1985): explorá-las certamente nos levaria para longe do tema
proposto aqui e escapa ao escopo deste trabalho (para uma revisão recente desse problema ver Duarte do
Pateo 2005). Cabe ressaltar entretanto uma importante distinção entre interpretações que tomam a
violência e a guerra como um sintoma de anomia, e uma falha a ser superada na socialidade Yanomami
116

Se lembrarmos quão amplo pode ser o socius Yanomami em um mundo de

subjetitivdade imanente, a visão do parentesco como fabricação de pessoas similares ganha

em profundidade e extensão quando articulada com outras formas de transformação e

metamorfose passíveis de ocorrerem em uma ontologia perspectivista. 140 Afinal, as forças

rivais em presença são bem mais diversas do que apenas aliados e inimigos – abrangendo

também espíritos, animais, fantasmas e mesmo figuras tão estranhas quantos os brancos –

de tal maneira que a própria fabricação do parentesco yanomami pode ser entendida a

partir de uma dinâmica com a alteridade que envolve uma disputa por pessoas, e cujo

fracasso é experimentado pelo corpo de parentes como doença e/ou traição. Note-se ainda

que tornar-se parente ou espírito, virar aliado ou inimigo, é uma questão de perspectiva, e

isto em dois sentidos: a metamorfose é disparada por (e implica) um compartilhamento de

perspectivas, mas o sentido da transformação, se ocorre em direção ao parentesco ou à

inimizade, também depende da posição do sujeito que “observa” tal transformação.

As doenças são concebidas entre os Yanomae como “o ponto de convergência de um

conjunto de forças agressivas, sociais ou sobrenaturais que vêem subverter este edifício

(equilibrado) ontológico” que é a pessoa yanomami (Albert 1985: 175). Os Yanomami

reconhecem dois tipos de doença: aquelas referidas por neni, que afetam exclusivamente o

envelope corporal da pessoa, acarretando apenas sintomas físicos de caráter passageiro

(ibid.: 166-168), e as expressas pelo verbo bëi, que indica uma alteração das sensações

(Chagnon) ou ainda resultado perverso do contato com a sociedade nacional (Fergurson), daquelas
interpretações que, mesmo que divergentes entre si, consideram a guerra yanomami como uma instituição
social (Albert 1985), ou um traço cultural (Lizot 1984), imbricado na constituição de uma moralidade
específica yanomami (Alès 2006; Carrera 2004).
140
Sigo aqui as sugestões de Vilaça (2002; 2005) e Kelly (2003). Kelly sugere que as transformações do tipo
“mudança de roupa/pele” presentes nos mitos ou em narrativas de encontros com seres sobrenaturais, são
uma versão temporalmente comprimida [time-compressed] das transformações decorrentes pelo
“comportar-se como parente”. Assim, “responder a um interlocutor Yanomami em yanomami; preocupar-
se com o sofrimento de outrem; conceber e educar uma criança estão em um continuum performativo
com […] confundir um espírito na floresta com um Yanomami”(2003: 97). Inversamente, comportar-se
de maneira não-moral (ou não sociável) pode ser o disparador de uma transformação não desejada,
assimilada como adoecimento. Guimarães observa como entre os Sanumá dada a transformabilidade do
mundo, não agir de maneira socialmente aceitável/prescrita é um passo para se transformar em outra
criatura, e este processo é frequentemente irreversível. (2005a: 47-48)
117

corporais e a perda progressiva da consciência, estas últimas sendo doenças mais graves

que colocam em risco a integridade da pessoa, afetando principalmente a imagem vital e

duplo animal. Como já observamos anteriormente, essas doenças podem levar a uma

inversão da relação entre forma espectral (bei a në borebi) e “consciência” (bei bihi) (p. 65

supra). Em um tal estado, a pessoa se coloca à margem da vida social, instalando-se em

sua rede longe do convívio com as pessoas e permanecendo em silêncio. 141 Seu

comportamento gregário tende a se afastar em tudo aquilo considerado o comportamento

apropriado de um parente. São justamente esses estados de alteração provocados pelo

adoecimento e a negação do comportamento moralmente apropriado os indícios de que a

pessoa está a “fazer parentesco com outro”, ativando outros laços – com espíritos, talvez –

que não com seus parentes.

Na escatologia yanomami a percepção da doença como o estabelecimento de laços

de parentesco com pessoas 'outras' (isto é, não-yanomami) fica ainda mais evidente. Nela,

a morte é narrada como um itinerário espacial – o espectro do morto sobe pela corda que

amarra sua antiga rede em direção à morada dos mortos. As narrativas dessa passagem

falam de mudanças de lugar e de estados descritos alternativamente do ponto de vista dos

vivos e dos mortos, na franja da fronteira espacial e metafísica que separa esses dois

universos. Entre os Yanomae, morrer para o mundo dos vivos significa nascer para o

mundo dos mortos: quando a forma espectral deixa definitivamente um corpo,

independentemente de sua idade, ela se torna o recém-nascido que já foi um dia (Albert

1985: 624). A descrição desse itinerário pode ser vista, portanto, como a narrativa de uma

disputa entre os vivos e os mortos pela captura ou retenção de parentes, na qual o

'vencedor' é aquele que se mostra mais apto a cuidar e estabelecer relações morais com

141
A rede do doente é amarrada no limite exterior da casa comunitária, sendo transferida para o centro desta
apenas nos momentos de realização das sessões xamânicas em seu benefício. Além disso o silêncio é uma
marca da gravidade e do risco eminente de metamorfose, pois nos outros estágios de adoecimento, e em
situações ordinárias, as pessoas estão a comentar entre si incessante e detalhadamente suas sensações e
sintomas (Albert 1985: 169).
118

uma pessoa.

Ainda no caminho para a casa das almas, os (ex-)parentes mais próximos do doente

que morreram antes dele se põem a acenar para recebê-lo em sua nova casa, incentivando-

o a deixar os vivos. Eles acusam os vivos de não lhe tratar bem – lembremos que os

estados de enfermidade podem ser considerados como resultantes do sofrimento causado

pela falta de cuidado dos parentes –, enquanto em sua nova casa (dos mortos) o espectro é

recebido com euforia e festas. A essa fase corresponde, no mundo dos vivos, o afastamento

do doente do convívio social, embora neste momento a recuperação ainda seja uma

possibilidade (Albert 1985: 629) Os Sanumá, que descrevem a morte de maneira

semelhante, dizem que um morto pode voltar atrás em seu caminho até a aldeia dos

mortos, e que, se fizer isso antes de ingerir a comida que lhe oferecem os mortos, ele

realmente volta a ser Sanumá (isto é, ressuscita): afinal, a transformação dos Sanumá em

parentes dos mortos só é completa – e tornada irreversível – no momento em que ambos

passam a compartilhar substâncias (comidas) (Guimarães 2005: 39).142 Passada esta festa

de recepção, a pessoa retoma no mundo dos mortos uma existência e atividades

semelhantes àquelas que exercia no mundo dos vivos (Albert 1985: 627-629). Ramos

apresenta a seguinte descrição:

A gente morre, dizia Zeca, porque a alma de um parente próximo, o pai, por
exemplo, aparece em sonhos oferecendo comida. A pessoa pára de comer
comida normal, vai ficando magra, acaba morrendo e então vai para a casa
d o s nï pole bï dïbï onde há fartura. Se, ao contrário, a pessoa continua
comendo, mesmo magra, os nï pole bï dïbï não aparecem, dizem que ela
ainda quer ficar com sua gente, com seus sanïma dïbï. Quando deixa de se
alimentar é porque os nï pole bï dïbï estão lhe dando comida e, aí sim, ela
morre (1990: 195).

A falta de apetite é um indício claro dessa transformação em curso – a pessoa recusa

o alimento que lhe é oferecido, porque já está sendo alimentada por outros seres –,

transformação que é experimentada pela perspectiva de seu corpo de parentes como um

142
De acordo com os Yanomae, em alguns casos, os mortos podem se mostrar sensibilizados a uma
depopulação muito alta no mundo dos vivos e superpopulação dos mortos, tentando convencer o retorno
do espectro dizendo: “você abandonou sua gente que já é pouco numerosa...”.
119

agravamento da doença. A morte é causada, muitas vezes, pelo simples fato de que a

pessoa (seu espectro) resolve entreter relações e “fazer parentesco” com seres Outros. 143

O morto yanomami é o não-parente, mas ele não é o inimigo predador exterior como

entre os Krahô e os Guayaki, mas sim inimigos interiores e íntimos, análogos

simbolicamente aos afins classificatórios (Albert 1985: 665), esses “aliados sem

substância” entre os quais a sociabilidade é construída por meio das trocas e das visitas

recíprocas onde se estabelecem relações de amizade e confiança. Essas trocas e as relações

de solidariedade entre vizinhos próximos possuem o significado implícito de um acordo de

não-agressão. Entretanto, como a solidariedade é “matéria instável por excelência”, ela

deve ser constantemente gerada, entretida e reconduzida de forma a manter as práticas

letais e a feitiçaria excluídas dessa esfera de proximidade. Essa expulsão nunca é completa

ou definitiva e a traição é uma constante como suspeita e como fato: “seria pouco dizer

que a 'confiança' constitui um ponto permanente de dúvida para o Yanomami” (Alès 2006:

177).

Os conflitos entre grupos e pessoas aliadas são freqüentes e as suspeitas de ataques

de feitiçaria mesmo entre co-residentes torna a convivência bastante tensa: não há melhor

momento para se atacar alguém do que quando ele se encontra despreocupado entre

amigos. Há até mesmo um termo específico para se designar a traição de aliados e amigos,

nomohorimou, além da já mencionada prática tradicional da feitiçaria de rastro, que

envolve necessariamente a participação de alguém próximo à vítima (Alès 2006: 178;

ainda sobre essa prática ver também Albert 1985 e também p. 87 supra). Mas a labilidade

é um dos traços centrais da aliança yanomami justamente porque há sempre mais pessoas

em jogo do que aquelas com as quais se entretém relações pacíficas na esfera da

sociabilidade. Nesse sentido, a traição nada mais é do que o estabelecimento de laços de

143
Para uma elaboração desse tema na Amazônia ver Vilaça 2005.
120

solidariedade com outros aliados.144 O próprio processo de fissão de uma comunidade pode

ocorrer “pelo destino matrimonial divergente dos irmãos, que se vêem então submetidos a

redes de lealdade afinais distintas e inconciliáveis” (Albert 1985: 203).

As traições e as doenças seriam, portanto, uma espécie de recusa mais ou menos

intencional de estabelecer relações moralmente apropriadas – recusa que não é outra coisa

senão o estabelecimento de outras relações. Assim, de modo análogo à forma como a

fabricação de um corpo humano se dá pela negação de outros corpo s (Viveiros de Castro

1987 [1977]: 32), podemos compreender a doença e a feitiçaria como uma espécie de

contra-efetuação desses corpos virtuais não realizados. O parentesco e a solidariedade

entre co-residentes, assim como a domesticação do estrangeiro, constroem-se, por

conseguinte, contra outros parentes e aliados possíveis, mas a doença e a traição –

efetivação destes laços negados – são as portas por onde a alteridade “destacada” e

“excluída” no movimento de fabricação dos corpos de parentes retorna à cena da

socialidade yanomami.

3.3. “Depois ele nos criou nos dando a palavra”: discursos cerimoniais e a arte do bem-

falar

Ter o dom da fala e do canto é um atributo distintivamente humano para os

Yanomami. Obviamente não se trata aqui de qualquer fala, mas do domínio da língua

yanomami, linguagem humana por definição (Smiljanic 1999: 141). De acordo com Lizot

(1984a: 22), “para um Yanomami, aquele que não fala sua língua é como mudo e encontra-

se em um estado comparável ao do recém-nascido; essas duas realidades são referidas pela

mesma expressão estar mudo (aka borebi), ou melhor, não falar” duas condições que

144
A esta instabilidade, opões-se um conceito que é o de “amizade verdadeira”, referente aquela amizade
que se constitui em tempos de guerra (Alès 2006: 179-180)
121

denotam uma posição francamente anti-social. Carrera explora uma série de correlações

espaciais, ontológicas e linguísticas traçadas pelos Yanomami em diferentes domínios e

interações que vão “dos sons da floresta às vozes da comunidade”, opondo o interior, a

humanidade e a expressão verbal, ao exterior, à animalidade e à expressão não-verbal

(dentro:fora :: humano:animal :: verbal:não-verbal), correlações que permitem dimensionar

a importância desse saber falar para a estabilização de uma humanidade específica (2004:

54).

A valorização da fala como um atestado de humanidade vincula-se à importância

aferida aos discursos e diálogos cerimoniais entre os Yanomami. Após dar a palavra aos

Yanomami, Omama diz a cada um deles: “Você fará o diálogo cerimonial wayamu!”;

“Você fará o diálogos cerimonial hiimu!”; “Você será xamã!”; “Você fará das arengas

hwërëatiu!”145 (Albert 1985: 747. Cf. p. 40 supra). Essas formas ritualizadas de discurso

são opostas à fala cotidiana, chamada apenas kahinë hwa, “falar com a boca”. Altamente

codificadas (e frequentemente mais complexas gramaticalmente), aprendidas

posteriormente por um tipo de educação formal ou informal essas falas cerimoniais são

utilizadas apenas em situações definidas e igualmente codificadas. 146 Aprender esses

discursos é não apenas uma fonte de prestígio, mas também condição necessária para que

145
A inclusão do xamanismo entre “rituais de fala” é certamente digna de nota e remete à importância dos
cantos xamânicos. Em seu trabalho sobre o xamanismo Yanomae, Smiljanic(1999:138-160) dedica-se
também à análise e origem destes cantos. Eles foram dados aos xamãs pela árvore Amoahi, que guarda,
como um agravador, todos os cantos com os quais os xamãs e seus espíritos auxiliares podem seduzir,
ludibriar, ou mesmo usar como moeda de troca na relação com os espíritos maléficos. Na verdade, estes
cantos são repassados aos xamãs pela inserção dos galhos de Amoahi no interior de seu corpo. A autora
prossegue, observando que os Yanomae realizam uma extensão desta simbologia xamânica associada às
árvores do canto, para a capacidade de fala em geral: o aprendizado da língua pelas crianças é comparado
ao ato de inserção de um galho de Amoahi na traquéia do neófito, e mesmo o bom desempenho em outros
diálogos e rituais é atribuído ao fato de que a pessoa tem dentro de si um galho de Amoahi (ibid:157)
146
Miglliazia (1972: 54-62) caracteriza esse quadro como uma situação de diglossia, no qual duas variantes
linguísticas convivem em uma mesma população, porém com contextos marcadamente diferenciados. Ele
considera esta linguagem ritual uma forma arcaica da língua que serviria à comunicação inter-
comunitária, um tipo de linguagem “trade and news”, que, supostamente, já teria sido a linguagem
primária, antes dos grupos Yanomami começarem a se separar. Por ser altamente codificada e utilizada
em situações rituais, esta linguagem sofre transformações mais lentas e por isso é francamente
compreendida, enquanto algumas das variantes são praticamente incompreensíveis. Lizot (1994) por sua
vez argumenta justamente o contrário, que entre grupos muito distantes a linguagem do wayamou é ainda
mais difícil de se entender por seu caráter aberto à improvisação.
122

um jovem seja considerado realmente um adulto: tomar lugar nos diálogos cerimoniais

significa tornar-se um Yanomami (Miggliazza 1972: 54).

Wayamou147

Wayamou pode ser traduzido como “efetuar um diálogo cerimonial de troca de

novidades” (Albert 1985: 96). Trata-se de um diálogo realizado principalmente entre

anfitriões e visitantes, durante as noites das festas reahu. Considerado um diálogo no qual

efetuam-se ou programam-se trocas – de notícias, de bens, etc. – o wayamou é em si

mesmo também uma instituição de troca, na qual os principais bens reciprocados são as

palavras (Lizot 1994). De acordo com Lizot, trata-se de:

uma estonteante competição de trocas verbais, um vaivém incessante de


frases curtas e compassadas, ditas por um e repetidas pelo outro. Eles vão se
alternando na iniciativa das palavras. Nessa justa oratória, eles têm de manter
o sentido da réplica, nunca podem se enganar ou cometer um lapso. As frases
estereotipadas são cortadas em sequências curtas, a perífrase e a metáfora são
de regra. É um discurso especialmente formalizado (1994: 214).

Seguindo a apresentação dessa “estonteante competição” feita pelo próprio autor,

teríamos, o início da noite normalmente dedicado à participação dos jovens e adolescentes,

que, ainda com pouca prática nesse discurso, evitam improvisações e apenas repetem

fórmulas mais ou menos esteriotipadas. Tomar lugar pela primeira vez em um destes

duelos verbais é um acontecimento importante, marcando a transformação do jovem em

adulto. À medida que a noite avança entram em cena os homens mais experientes, que

conseguem não apenas improvisar e criar fórmulas novas, como transmitir mensagens,

fazer pedidos, e mesmo expressar seu descontentamento nas situações em que a relação

entre os aliados não se encontra tão pacífica (Lizot 1994: 415; Albert 1985: 460).

Idealmente, cada homem realiza o diálogo com dois parceiros sucessivos,


147
As palavras utilizadas como “nomes” destas práticas discursivas são na verdade verbos em yanomami
substantivados por seu uso nas etnografias.
123

desempenhando alternativamente o papel daquele que “entrega sua palavra” ( thë a weyeɨ),

e passivo, respondendo à palavra (thë a huaɨ), repetindo o fim das frases de seu parceiro ou

pontuando-as com marcas de assentimento (Albert 1985: 459). Ainda de acordo com

Albert, durante o fechamento do diálogo wayamou, tem lugar uma forma discursiva

chamada yaimou – que pode também ocorrer como modalidade autônoma de interação,

após a inalação de alucinógenos durante o dia. Nesse fechamento, o nível de excitação

provocado pela repetição concatenada das falas pode chegar ao paroxismo: enquanto

trocam recriminações – que os parceiros são obrigados a repetir – os participantes tentam

se desequilibrar mutuamente. Se os ânimos estiverem de fato muito exaltados – sobretudo

se houver entre anfitriões e aliados algum tipo de desentendimento ou rumor prévio – estas

provocações podem desencadear um tipo de duelo a mãos ou com bastão 148 (ibid.: 509-

511). Preferencialmente, após um embate desse tipo, as relações pacíficas são re-

estabelecidas: anfitriões e visitantes podem encerrar com um discurso relativamente curto

de reconciliação, no qual se prometem bens ou alianças. 149

Hiimu

Hiimu/himou é uma modalidade de discurso também dialógica, porém realizada

preferencialmente durante o dia e contando com uma motivação ou assunto específico e

pontual (Albert 1985: 490; Alès 2006: 40; Migliazza 1972: 49). Quando uma comunidade

decide realizar uma festa – seja um reahu funerário, ou apenas pela abundância de alguma

fruta –, envia um mensageiro encarregado do convite formal às comunidades aliadas. Esse

convite é feito sob a forma de um diálogo hiimu, cujo uso nestes contextos é tão

proeminente que alguns autores traduzem o termo hiimu por “diálogo de convite”.150 O

148
Sobre os duelos formalizados Yanomami conferir Alès 2006: 22-31.
149
Entre os Yanomamɨ, de acordo com Alès, são estes os discursos chamados yaɨmou (2006:41).
150
É o caso de Albert (1985) Migliazza (1972) Carrera (2004). Lizot por sua vez, refere-se aos convites
124

mensageiro deve dirigir-se ao centro da aldeia mantendo-se de pé à espera que alguém vá

lhe receber. O convite propriamente dito é feito aos homens de prestígio e “líderes locais”:

mensageiro e convidado agacham-se próximos um ao outro, usualmente de costas um para

o outro. De acordo com Migliazza, a linguagem utilizada é semelhante à do próprio

wayamou (1972: 49).

A chegada de uma comunidade para a festa também é marcada por um diálogo

semelhante. Desta vez, são os hóspedes que, acampados próximo à comunidade anfitriã,

enviam um mensageiro que irá discursar sobre a viagem, re-afirmar a amizade e a intenção

pacífica de sua vinda, lamentar a morte de alguém (no caso de festas funerárias) e receberá

em troca alimentos para levar até o acampamento de seu grupo (Guimarães 2005a: 201;

Lizot 2000: 166). O hiimu é utilizado ainda, durante a cerimônia funerária, para convidar

os aliados a realizarem o tratamento final das cinzas funerárias. Se as perífrases e uma

retórica alusiva estão presentes em todos os discursos cerimoniais yanomami, neste

contexto se acrescentam a essa marca de estilo ainda os interditos específicos de referência

às coisas do morto, tornando necessária uma retórica super complexificada (Albert 1985:

490-491).

Hëwerëamou/ Hwereamou

Hwërëamou são os discursos proferidos com o sentido de admoestação ou

aconselhamento sobre os assuntos referentes à comunidade. Diferentemente das outras

formas de discurso cerimonial, o hëwërëamou é um monólogo e voltado exclusivamente

para o grupo de co-residentes. Em seus aspectos formais possui um gestual e ritmos

formais, sobretudo àquele que ocorre quando os hóspedes chegam próximos à comunidade anfitriã e
enviam-lhe o mensageiro, pela expressão teshomou, traduzida como “alocucão de boas-vindas”. Ele
designa himou sobretudo os diálogos que expressam uma demanda (ajuda alimentar, aliança militar,
restituição de uma mulher, etc.), realizados por diversos pares simultaneamente, durante as visitas
intercomunitárias (Lizot 2000:166).
125

próprios, diferenciado da fala cotidiana. Encadeadas por respirações profundas – donde o

nome deste tipo de arenga hwerehweremu: ofegar –, cada frase é apoiada por uma violenta

expiração e é encerrada por sílabas características: yë !, shë !, kë ! (Albert 1985: 441 n.10).

O hwereamou é proferido usualmente pelas manhãs, enquanto as pessoas ainda estão se

levantando de sua rede, ou à noite, quando elas se preparam para dormir.

Executados pelos homens mais velhos, considerados líderes (pata thëbë) de uma

facção, esses discursos são utilizados para regulamentar as atividades econômicas de

cunho coletivo – uma grande caçada, a abertura de uma nova roça, a reforma do telhado da

casa coletiva. É também através do hëwerëamöu que são reclamados os diagnósticos sobre

a morte de algum familiar e o planejamento de sua vingança. Além disso, ele é utilizado

para acalmar os ânimos em caso de conflitos entre co-residentes,especialmente através de

recomendações pedagógicas e moralizantes incitando o bom comportamento aos jovens.

Segundo Alès, o número de ouvintes e a atenção desta audiência depende do estatuto

do falante: embora usualmente sejam os líderes de facção recorrem recurso a este tipo de

fala, não raro outros homens importantes e mesmo mulheres mais velhas também

executam essas arengas (2006: 40). O próprio ato de discursar em público pode ser

referido como patamou, que significa, literalmente, “agir como um velho/grande”. Ao falar

assim em público, as pessoas podem expressar suas preocupações e sentimentos, alertar

sobre algum perigo específico ou mesmo comentar um problema (Lizot 1988: 557). No

transcorrer do discurso os co-residentes explicitam sua aprovação e incentivam o

prosseguimento da fala por meio de afirmações como Awei kë ! Awei kë ! Peheti rë kë! wa

peheti totihiwë kë! “Sim! Sim! Você está certo! Isso que vc diz é realmente certo!”;

algumas vezes, as pessoas podem demonstrar desacordo, passando então a uma conversa

mais ou menos aberta entre várias pessoas, cada qual deitada na sua rede (Carrera 2004:

60); ou podem simplesmente cair no sono embalados pela fala ritmada (Chagnon 1983
126

[1968]: 92).

É importante ter claro o tipo de liderança que performa esse gênero de discurso:

aquele que dá voz ao grupo e que assume assim a posição de líder cumpre um papel de

“conselheiro”, muito mais do que de chefia. 151 Seja falando da necessidade de se executar

um trabalho, recomendando aos jovens que controlem seus desejos e não se deitem com as

mulheres casadas, ou outras recomendações pedagógicas e moralizantes que visam manter

os conflitos apartados do grupo doméstico, os oradores sempre tomam muito cuidado com

o que falam para não ferir o senso de autonomia individual de seus co-residentes (Carrera

2004: 58). Seu discurso é composto de conselhos (wasii) e delegações (shimai), e nunca

exatamente censuras ou ordens: “eles recomendam, não comandam” (Alès 2006: 169).

Contrastando com as demais formas discursivas cerimoniais yanomami, todas elas

dialógicas e voltadas usualmente para as relações exteriores, os monólogos do tipo

patamou são definidos por Carrera como “inside language” (op.cit.: 17 et passim). Tendo

por referência a 'ética do cuidado', Alès comenta que as falas matinais dos pata152, “são

como anti-depressivos”: fazem com que as pessoas se sintam de bom-humor e acolhidas,

afugentando o sentimento de solidão, além de terem um papel importante para se evitar ou

encerrar discussões (2006: 168). O hereamou é portanto uma fala que visa regulamentar as

atividades e apaziguar as relações no seio do grupo doméstico, contribuindo para a

determinação do conjunto de co-residentes como um grupo: é pela palavra do pata thë que

a parentela endogâmica ganha corpo se apresentando como uma coletividade solidária e

unificada (Albert 1985: 207).

***

151
Para discussões sobre “chefia” ameríndia v. Clastres 2003.
152
Alès chama estes arengues de konoamou, “discurso em forma de monólogo para informar, educar,
influenciar, se lamentar ou arengar” (2006: 39)
127

A importância do bem falar para a trama da sociabilidade yanomami só pode ser bem

dimensionada se consideramos que não se trata apenas de uma habilidade linguística, mas

de saber como se comportar moralmente. Uma pessoa que não fala bem ou que não sabe

fazer pedidos de uma maneira apropriada, ou ainda, aqueles que não estão aptos a

participar dos diálogos cerimoniais, ou que não se expressam claramente, todos essas

pessoas são referidas pela expressão aka porepi, que significa literalmente, “falar como um

fantasma” (Lizot 1994; Carrera 2004). Os fantasmas são, a bem da verdade, contraponto

da imagem de humanidade moral tal como surge no mito de Omama. 153

Embora os fantasmas levem uma vida semelhante à dos vivos (com suas roças,

casas, parentes, etc.) eles se caracterizam por falar de forma ininteligível e confusa.

Poremu é, como já destacado, um verbo que, tanto em yanomae quanto em sanumá, indica

alguns estados alterados da consciência (Albert 1985: 144-145; cf. 69 supra). Mas aka

porepi e outras expressões relacionadas à pore são utilizadas também para indicar

comportamentos mesquinhos e anti-sociais. Pelas expressões referenciadas a pore, os

Yanomami associam fantasmas, estrangeiros, crianças, doentes, e todos aqueles que

possuem uma inabilidade para falar e/ou apresentam comportamento mesquinho. O mito

sobre a origem das plantas cultivadas é esclarecedor acerca dessas correlações que traçam

o limite da humanidade propriamente yanomami, associando o mal falar à mesquinharia. 154

O mito tem como personagem principal Poreawë, o Fantasma, um ser desconhecido

que vive isolado em seu shapono, apenas com sua esposa e filhos. Um dia os Yanomami se

aproximam de sua casa e tentam interagir amistosamente com o desconhecido. Embora

eles descubram em sua casa espécies de plantas desconhecidas e seu filho sugira que se

ofereça mingau de banana aos visitantes, Poreawë se recusa a fazê-lo falando com sua voz

153
E não deixa de ser digno de nota, que neste mesmo mito é dito que os Yanomami foram criados por
Omama a partir dos espectros, em forma de ovos de formiga, dos antigos ancestrais.
154
Este mito foi tratado a partir destas correlações por Carrera (2004) e Kelly (2003), o segundo, referindo-
se ainda ao caráter quase metafórico deste mito para explicitar as relações entre Yanomami e Brancos.
128

feia. Do mesmo modo, ele se recusa a dar essas plantas aos visitantes ou a ensinar-lhes

como produzi-las. Em uma visita posterior, Poreawë aceita ceder apenas algumas espécies

de plantas aos Yanomami, que acabam por roubar as mudas restantes de seu jardim.

Quando um dia vai à comunidade dos Yanomami como visitante, o Fantasma fica furioso

ao se descobrir roubado. Em uma outra versão do mito (Lizot apud Wilbert & Simoneau

1990: 153-155), Hõrõnãmɨ se encontra com Poreawë no meio de uma trilha. Este

carregava consigo um cacho de bananas, planta que Hõrõnãmɨ jamais havia visto. Ao

tentar conversar com o desconhecido, o Yanomami observa que embora ele lhe responda

sobre a planta desconhecida, tem um problema de fala que torna sua resposta de difícil

compreensão. Mais tarde, quando Hõrõnãmɨ pergunta se poderia ir visitá-lo com seus

familiares para que eles também pudessem provar da banana, Poreawë lhe diz que não

faça isso, afirmando que encontraria sua casa vazia quando lá chegasse caso se arriscasse a

fazê-lo

À voz feia de Poreawë, e sua dificuldade para falar, associam-se ainda sua

inabilidade como anfitrião, sua mesquinharia e a dificuldade em engajar-se adequadamente

nas relações de troca, fazendo dele um personagem francamente anti-social. A imagem de

Poreawë – vivendo sozinho e isolado, com sua voz feia e comportamento mesquinho é a

antítese da imagem de moralidade Yanomami retomada na mitologia de Omama – que

preconizava a necessidade de se viver junto, o cuidado e o compartilhamento de alimentos,

a generosidade e a valorização da boa fala como forma de se estabilizar uma humanidade

específica.

O comportamento de Poreawë é justamente aquele de um não-humano, um

fantasma, e é utilizado como referência principal para qualificar o comportamento, por

definição inadequado, de um não-Yanomami. Não por acaso, Porë, é frequentemente

associado aos brancos, que encarnam todo este espectro de comportamento não-humano
129

aqui assinalado e cuja importância na configuração da cosmologia e ontologia yanomami

atuais não podem ser minimizadas. No capítulo seguinte, passo em revista justamente

como a relação com os brancos articula questões sobre alteridade e moralidade, convenção

e invenção, que repercutem sobre o modo de atualização da pessoa Yanomami.


130

4.Os brancos

Vindos dos confins da terra e dotados de uma aparência assustadora, os brancos

foram, nos primeiros contatos com os Yanomami, associados aos fantasmas e/ou espíritos

maléficos. Assim como estes, eram a epítome do comportamento não-moral: não

conheciam as regras de conviviabilidade e nem sequer as da inimizade e da guerra; não

pareciam possuir um corpo como o dos Yanomami e nem ao menos falavam alguma língua

inteligível. Situados na zona limítrofe da alteridade concebível – em um espaço dominado

pelo canibalismo selvagem155 –, os brancos eram inquestionavelmente não-humanos. As

consecutivas mudanças nas relações entre invasores e nativos, tornaram imperativa, no

entanto, uma revisão de sua classificação ontológica. As análises realizadas por Albert do

histórico do contato (1992, mas também 1985, 2002 [1995]), bem como o trabalho de

Kelly (2000, 2003) sobre as transformações decorrentes deste encontro, são não apenas as

principais fontes para a exposição que se segue, como oferecerem a grade estruturante

deste capítulo.

Constituindo-se como objetos de estudo preferencial de alguns Yanomami, dada a

relevância que acabam por assumir em novos contextos de interações sociais, os brancos –

suas intenções, comportamentos, origem, etc. – têm passado por uma constante re-

avaliação, sendo alocados entre diferentes classes de seres da socio-cosmologia yanomami.

Acompanhar os deslocamentos e extensões de conceitos e práticas realizados pelos

Yanomami, a partir do contato com os brancos, permite-nos apreender algumas das

categorias ontológicas e os predicados morais que vim apresentando aqui por seu aspecto

acentuadamente dinâmico. A dialética entre invenção e convenção que informa a pessoa

Yanomami, parece se revelar com mais clareza no contexto de contato, uma vez que a

155
A sociedade Yanomami, como já notado, se funda em um canibalismo cultural, por oposição ao
canibalismo selvagem dos ancestrais animais mitológicos – yaroribë – e dos não-humanos atuais –
naikiribë (Albert 1985: 503. ver cap1 n. 20 supra).
131

presença dos Brancos é catalizadora de diversos experimentos de articulações possíveis

entre os sentidos de humanidade. Como escreveu Albert :

as representações do contato abrem um campo privilegiado para a


antropologia, por constituírem uma dimensão crucial da reprodução cultural
das sociedades que as elaboram. […] esse processo ilustra in statu nascendi o
trabalho cognitivo de lógicas simbólicas no cruzamento de conjunturas e
perspectivas sociais críticas. […] assim, o 'pensamento selvagem',
geralmente reconstituído enquanto arquitetura formal, recupera, nesse
contexto – e provavelmente em nenhum outro com tal intensidade – toda a
sua dimensão dinâmica e pragmática” (1992: 151-152).

Na experiência do contato, os objetos manufaturados e as doenças trazidas pelos

brancos têm uma grande saliência cognitiva e prática. Frequentemente, inclusive, as

epidemias e os objetos manufaturados chegaram antes dos brancos.156 Os Yanomami

integraram esses elementos em sua teoria etiológica, fazendo dela um dispositivo

privilegiado de interpretação dos fatos e efeitos do contato: as doenças foram consideradas

uma forma de predação ontológica, enquanto os brancos e seus bens foram incluídos,

respectivamente, nas classes de agentes etiológicos e objetos patogênicos. As epidemias

(shawara) diferiam dos males causados pela agressão de outras formas de alteridade social

e ontológica principalmente na sua intensidade, pois atingiam várias pessoas, e receberam

explicações diversas à medida que aos brancos eram atribuídas diferentes formas de

comportamento predatório ao longo do histórico de contato (Albert 1992: 161).

Os Yanomami realizaram assim uma extensão de seu repertório simbólico tradicional

para a compreensão destes novos fatos e agentes em seu universo. Ao fazê-lo, no entanto,

inevitavelmente eles estavam também introduzindo inovações no seu campo de relações

convencionais157 (cf. Kelly 2003, 2005). Esse trabalho de extensão e inovação sobre o

lugar reservado aos brancos em seu universo, em continuidade com o modo como se

relacionam também com outras alteridades socio-cosmológicas, está intimamente ligado à

156
A importância desses dois elementos nas elaborações sobre encontros inter-étnicos é observada não
apenas entre os Yanomami, mas também em outras regiões da Amazônia (ver p.ex. Gow 1993, sobre os
Piro; Hugh-Jones 1988, para os Barasana; Vilaça 2002, sobre os Wari'; dentre outros).
157
A dialética extensão e inovação não deixa de ser um outro modo da dialética invenção convenção. cf.
Wagner 1981.
132

própria questão da personitude entre os Yanomami. Não convém esquecer que estamos

lidando com uma noção de pessoa constituída relacionalmente e na qual figuras de

alteridade têm um papel de destaque, e os brancos passam a ser figuras arquetípicas do

exterior – o que justifica a inclusão e relevância do tema nesta revisão.

4.1.Extensão e convencionalização: o lugar dos brancos na cosmo-sociologia yanomami

Albert (1985, 1992) sugere distinguir a história do contato entre os Yanomami e a

sociedade nacional (brasileira, no caso) em três períodos. Em um primeiro momento, do

início do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, o contato com os brancos –

entenda-se, com alguns produtos manufaturados e com as doenças – ocorreu de maneira

indireta, mediado pelas etnias Carib e Arawak que circundavam o território ocupado pelos

Yanomami. Albert refere-se a estas populações como “etnias-tampão”, pois barraram, por

mais de um século, o contato direto entre Yanomami e brancos. Além da introdução de

algumas novidades tecnológicas – como o uso de lâminas de metal acopladas ao cabo das

machadinhas de pedra –, o principal efeito desse contato indireto foi a expansão

demográfica e territorial yanomami possibilitada pelo vazio aberto à medida que as etnias

vizinhas iam sendo dizimadas por epidemias e confrontos diretos com os brancos (1985:

64-66).

Quando, a partir da década de 1920, os Yanomami estabeleceram os primeiros

contatos diretos com os brancos – iniciando uma segunda fase marcada pelo contato

intermitente –, tratou-se, portanto, do encontro (competitivo ou não) de “duas frentes de

expansão sob este território semi-vazio” (Albert 1985: 64). Entretanto, foram precisamente

esses encontros com diferentes representantes da sociedade nacional, e o choque

microbiótico do qual os Yanomami foram vítimas, que marcaram o fim da expansão


133

territorial yanomami e o declínio de seu crescimento populacional. Diante de um quadro

de epidemias e conflitos recorrentes deu-se início um processo de relativa sedentarização,

com algumas comunidades instalando-se próximo às missões e postos de atendimento ao

índio recentemente estabelecidas na região, a partir da década de 50. Esse contato direto e

permanente possibilitou aos Yanomami o acesso à assistência médica e sanitária capaz de

amenizar, ao menos em alguns casos, os efeitos destruidores das doenças levadas pelos

próprios brancos (Albert 1985: 62-75).

É importante salientar que a distinção e, principalmente, datação, entre essas fases de

contato são válidas para as comunidades e grupos situados nas regiões de fronteira do

território yanomami e, mesmo assim, para algumas regiões. O quadro no interior do

território é diferenciado, e algumas comunidades encontram-se hoje em situação de

contato intermitente, ou mesmo de contato indireto: a extensão territorial e a densidade

demográfica dos Yanomami, constituem um cenário peculiar em que este histórico de

contato – e as experimentações conceituais daí decorrentes – podem ser avaliados tanto

sincronica quanto diacronicamente, temporal ou espacialmente (ibid.; Kelly 2003). Do

mesmo modo, a avaliação e elaboração conceitual com relação aos brancos serão

diversificadas, de tal maneira que algumas divergências entre as etnografias parecem ser,

em grande medida, consequência deste processo peculiar.

Nos relatos sobre os períodos de contato indireto, quando os Yanomami tinham

acesso aos bens manufaturados apenas a partir da troca ou saque com as etnias vizinhas, as

lembranças dos homens mais velhos registram poucos casos de epidemias. Estas, quando

ocorriam, eram atribuídas à feitiçaria guerreira yanomami. Duas práticas tradicionais, o

uso de fumaças deletérias e o emprego de substâncias maléficas em incursões secretas,

costumavam ser associadas na explicação para dar conta do traço diferencial que era o

impacto coletivo das epidemias. A interpretação podia variar contextualmente: os Sanumá,


134

por exemplo, que tinham um contato muito mais próximo com etnias vizinhas como os

Ye'kuana, atribuíram as primeiras epidemias a entidades maléficas, espíritos predadores

que tinham a aparência de seus vizinhos (Albert 1992: 163 n.26; ver também Guimarães

2005b). De todo modo, consideradas a partir das práticas tradicionais, as epidemias eram

rapidamente assimiladas em um contexto local de revanches guerreiras e não sofriam

maiores elaborações. Os brancos, por sua vez, eram conhecidos apenas a partir de rumores

de encontros nas florestas entre Yanomami e seres esbranquiçados e estranhos que vinham

subindo os rios, seres que eram pensados como os fantasmas que voltam das costas dos

céus para buscar seus parentes vivos. Albert resume esse período:

[d]urante essa época, os Yanomam não concebem a existência de outros


grupos humanos além das etnias ameríndias que os circundam. Eles se auto-
designam yanomamë, os seres humanos, e chama esses grupos de yanomamë
thëbë nabë, os seres humanos estrangeiros. A origem desses estrangeiros,
que atesta sua humanidade de segunda classe, é contada num mito que
descreve sua criação por Remori, demiurgo de linguagem inarticulada que
mora nas planícies arenosas dos confins do mundo. Essa criação é realizada
a partir da espuma do sangue dos Yanomam devorados por vários predadores
aquáticos, após um dilúvio provocado pela desobediência a um rito de
reclusão da puberdade (1992: 163-164).

Os primeiros encontros efetivos com os brancos não se deram exatamente da mesma

forma em toda a região, dentre outras coisas, porque esses “brancos” – tanto quanto os

próprios Yanomami – não formam um bloco homogêneo e reagiam de maneira diferente

fossem eles coletores de produtos da floresta, exploradores estrangeiros, missionários ou

membros da comissão brasileira de demarcação de limites (CBDL) e do serviço de

proteção aos índios (SPI). Em linhas gerais, Albert sinaliza que durante o período de

contato intermitente, episódios violentos foram mais frequentes ao sul (na região dos rios

Cauaburis a Catrimani), onde havia uma disputa territorial em curso entre indígenas e a

frente extrativista, enquanto ao nordeste, onde trocas comerciais entre os Yanomami e

comunidades brancas residentes na região ocorreu por iniciativa dos primeiros, os

encontros foram mais pacíficos158 (ibid.: 64-65).

158
Para uma revisão destes primeiros encontros em diversas regiões cf. Albert 1985: 51-54.
135

Ainda que precedidos por um período de observação à distância – no qual os

Yanomami tentavam manter os invasores longe, ou, quando eles próprios invasores,

observavam escondidos os colonos e ribeirinhos –, os primeiros encontros foram

invariavelmente marcados por uma série de equívocos (Viveiros de Castro 2004) e não

ocorreram sem uma dose de pavor. Albert, a partir de uma série de depoimentos da região

do Catrimani oferece uma narrativa dessa “desajeitada dança entre eu e e outro”:

o primeiro encontro finalmente acontece: os Yanomam invadem


repentinamente o acampamento dos brancos, exibindo enfeites cerimonias
próprios dos visitantes. Há insegurança de ambos os lados. Os
expedicionários, aplicando seu manual de pacificação, afogam os índios em
presentes, com um zelo febril. Os Yanomam, logo que os recebem –
guardando apenas ferramentas de metal e rolos de pano vermelho –, correm
nervosamente para entregá-los às crianças escondidas na floresta. Sem
demora, essa primeira troca se transforma no primeiro mal-entendido. Os
brancos, pacificadores apressados, tentam desajeitadamente retirar as armas
dos índios, abraçando-os numa grotesca dança de confraternização.
Sentindo-se ameaçados, os Yanomam resistem. Alguns imobilizam seus
parceiros, para permitir aos outros fugir levando do acampamento tudo o que
puderem, outros reagem com socos e pedradas” (1992: 165).

Diante dos rumores que pareciam indicar que estes seres, por seu exotismo corporal

e hábitos estranhos, seriam na verdade fantasmas, a decisão dos Yanomam de realizar uma

visita tentando estabelecer algum tipo de relação, pode ser comparada à coragem

demonstrada por Hõrõnãmɨ ao visitar o estranho Porëawë (p. 126 supra). A inabilidade

desses estrangeiros em comportarem-se de uma maneira moralmente apropriada, reforça os

rumores e o medo. O terror é ainda maior quando são os Yanomami os anfitriões

desavisados que recebem a visita inesperada destes brancos em suas malocas. “A maior

parte deles foge imediatamente para as roças ou para a floresta, e apenas alguns homens

ousam encarar os invasores, discursando agitadamente, super-excitados pelo medo, antes

de se deixar agarrar, tremendo, por seus pacificadores” (Albert op.cit.: 165). Davi

Kopenawa, recorda-se das primeiras visitas desses seres estranhos – membros da

Comissão Brasileira Demarcadora dos Limites – à sua aldeia, em meados da década de 50:

eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que eles
existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam
136

encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais
e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos.
Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia
nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua
de fantasmas. […] Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa
habitação, minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no
fundo de nossa casa. Ela me me dizia então: 'Não tenha medo! Não diga uma
palavra!', e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me
lembro, no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria
cabido debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia
que os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas
crianças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava
aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens
dos brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas
lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos, de seus relógios. Tinha
medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de gasolina. Tudo me assustava,
porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando
seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os adultos
também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em soluços, e todo
mundo fugia para a mata vizinha!(Kopenawa 2001b: 20).

O fato de terem subido os rios, a pele clara e a língua inarticulada, resultaram na

associação dos brancos aos fantasmas, como já destacado. Sua invasão ao território

yanomami é assim vista com um temor adicional, pois evoca o episódio do retorno dos

fantasmas que culminou com a queda do céu e a morte da primeira humanidade (Smiljanic

1999: 179). Por sua vez, seus estranhos corpos – “sua horrível pilosidade, suas andanças

pela mata fechada, sua ausência de dedos nos pés (sapatos), sua capacidade de sair

facilmente das próprias peles (roupas)” (Albert 1992: 166) – e todas as suas posses

superlativas – “uma vasta parafernália para escrever os nomes, captar imagens das

pessoas, gravar sua voz, e […] muitos outros objetos para cozinhar, fazer roça, caçar,

pescar” (Guimarães 2005b: 64) – fazia com que fossem associados a espíritos maléficos.

Entre fantasmas e espíritos, os brancos eram de qualquer forma, reconhecidamente não-

humanos, e nenhum tipo de reciprocidade, nem mesma agressiva, é possível de ser

estabelecida entre eles e os Yanomami.

À medida que as epidemias se espalhavam, repetida e coincidentemente após os

encontros e trocas com os brancos, os Yanomami desenvolveram uma teoria que associava

explicitamente os bens estrangeiros às doenças: a poeira e o cheiro exalados pelas caixas


137

de mercadorias eram o indício do seu princípio patogênico (wayu) e comprovavam o

caráter deletério destes objetos. As posses dos brancos – sobretudo os instrumentos de

metal e os tecidos vermelhos – eram vistas como superlativos dos instrumentos yanomami

– ferramentas de madeira/pedra e adornos de algodão – o que as tornavam associáveis aos

objetos extraordinários dos espíritos maléficos da floresta, enquanto os brancos seriam os

próprios espíritos (Albert 1992: 166-168). Ainda hoje os Sanumá observam como a

estranha obsessão dos brancos por sequestrar componentes das pessoas e seus inúmeros

instrumentos para isso – gravando as vozes, escrevendo os nomes, tirando fotos – coloca-

os sob suspeita de serem sai de (Guimarães 2005b: 65).

As epidemias, atreladas às ferramentas de metal e não mais à feitiçaria guerreira

tradicional, passaram a ser designadas de boobë wakëshi (“fumaça das ferramentas”,

“fumaça do metal”), enquanto os bens manufaturados receberam a designação de

matihibë, expressão polissêmica que designa tanto “bem precioso” quanto “objeto

patogênico” (Albert loc.cit.). Matihibë, utilizada hoje em dia para referir-se

predominantemente às mercadorias, designava inicialmente bens cerimoniais, para ser

mais exata, os ornamentos de plumas e ossos dos mortos ou as cabaças contendo cinzas

mortuárias. Trata-se de bens que, fora do circuito de trocas, devem ser destruídos, para que

não evoquem constantemente a ausência do parente morto, mas também porque sua

manutenção traria efeitos nefastos, provocando a ação deletéria dos fantasmas dos mortos

(id. 2002: 253).

Em sanumá, os objetos dos brancos são chamados de wani de, que designa os

pertences de uma pessoa, de maneira genérica, mas é também a raiz de um verbo que

significa “destruir”, “inutilizar”, e pode ser usado como um advérbio ou adjetivo,

significando nestes casos, “mal”, “ruim”. Ambiguamente, wani de marca o aspecto de

coisa indesejada/maléfica, mas ao mesmo tempo indispensável, bem expresso pelo


138

comentário de um ancião que, referindo-se aos objetos dos brancos, lamentava-se dizendo

que antigamente os antigos não possuíam nada – e por isso às vezes passavam necessidade

– mas os Sanumá hoje em dia têm muitas coisas que não querem perder – o que contraria o

imperativo da circulação, e, principalmente, a necessidade de se destruir os bens dos

mortos (Guimarães 2005b: 70).

Apesar das incertezas acerca do estatuto ontológico dos brancos e da ambiguidade

que marcava estes primeiros contatos, os Yanomami estreitaram ainda mais suas relações

com diversos representantes da fronteira nacional, motivados sobretudo pela facilidade em

se obter ferramentas de metal. Uma vez realizado o contato, é como se tivesse início um

processo irreversível de aproximação (cf. p. 160 infra; Kelly 2003). Em alguns lugares e

para algumas comunidades, a impossibilidade de recuar, mesmo quando diante de

epidemias, deve-se, em parte, também ao avanço migratório de inimigos em seu percalço.

Essa aproximação quase compulsória dava início a uma situação em que brancos e

yanomami se “visitavam” reciprocamente e efetuavam trocas (Albert 1992: 168-169).

Entretanto, pontua Albert:

os motivos de conflito, contudo, logo se multiplicaram. Os Yanomami


suportavam mal a avareza, o autoritarismo arrogante e os modos detestáveis
dos intrusos. Os brancos se irritavam com as dificuldades de arregimentar os
índios para seus empreendimentos econômicos, com sua constante demanda
de produtos manufaturados, e com o fato de se recusarem a colocar mulheres
à sua disposição (ibid: 169).

A sequência de acontecimentos desenrolada nesse clima de mútua hostilidade e

desconfiança – as visitas rápidas e tensas dos brancos, as epidemias que tinham lugar logo

após sua partida – era interpretada de acordo com as práticas de uma interação política

tradicional, na qual grupos inimigos ou desconhecidos tentam se reconciliar ou estabelecer

alianças, em uma série de encontros conturbados e recheados de agressões e vinganças,

chamados remimu. As epidemias voltaram a ser registradas como um tipo de feitiçaria

guerreira, mas desta vez eram atribuídas aos próprios brancos e não mais a outros grupos
139

inimigos Yanomami. Tratava-se de uma nova técnica de feitiçaria, já que causava a morte

de inúmeras pessoas, enquanto a técnica tradicional de projeção de substâncias venenosas

só causava mortes individuais. Essa nova técnica consistia na produção intencional de uma

fumaça deletéria pela queima de pedaços de objetos industriais, fusão de materiais

explosivos, etc., nas imediações da aldeia (Albert 1992: 170).

O recurso ao remimu e à feitiçaria guerreira não explicava no entanto as epidemias

que ocorriam em comunidades que não estavam em contato direto com os brancos. Já

cientes da existência de muitos outros brancos em cidades, os Yanomami explicavam estas

epidemias pelo xamanismo de agressão: os xamãs brancos, à distância, enviavam seus

espíritos auxiliares maléficos chamados tokoribë, “espíritos da tosse”. “Esses espíritos

tokoribë, sedentos de carne humana, viriam pelos ares, das cidades para as comunidades

yanomam, em vôos materializados pela propagação de fumaças translúcidas” (ibid.: 171).

A incorporação dos brancos nesse universo de reciprocidade negativa impunha a

necessidade de re-avaliação de seu estatuto ontológico. De acordo com o tipo de agressão

que praticavam – se agiam como guerreiros-feiticeiros (okabë) ou xamãs longínquos – os

brancos foram assimilados ao espaço socio-político yanomami como inimigos próximos

(atuais) ou afastados (potenciais): ao empreender estas ações, participando de um ciclo de

reciprocidade predatória, a inumanidade dos brancos não mais se sustentava (loc.cit.).

Os Yanomami iniciaram então um série de adaptações em seus mitos e

narrativas, assim como uma re-ordenação de suas principais categorias ontológicas, para

comportar estes seres recém-humanizados. Os brancos passaram a ser chamados de nabë

kraiwabë, onde nabë designa “estrangeiros”, “inimigos” e kraiwabë é uma corruptela do

termo kraiwa usado pelas etnias vizinhas para se referir aos brancos, enquanto estas outras

etnias continuavam a ser chamadas de yãnomamë thëbë nabë159 (ibid.: 172). Nabë, como

159
Estas classificações, justamente por seu caráter “experimental” e “experiencial”, variavam muito entre as
regiões e os sub-grupos. Os Sanumá por exemplo, chamam de kobakaitili töpö os primeiros brancos que
conheceram, considerados ancestrais dos “americanos ”, missionários da MEVA (Missão Evangélica da
140

vimos é uma palavra relacional que forma um par contrastivo com yanomami do tipo “nós

X eles”, e é usada em seu sentido mais restrito para designar os inimig os (cap. 3 supra.). O

fato dos brancos e outros estrangeiros serem designados por expressões derivadas

semanticamente de nabë/napë é um indício da função englobante da inimizade na relação

com o exterior e a alteridade:

No sistema social yanomam, os não-Yanomam são sempre inimigos, antes de


serem estrangeiros ,e só são estrangeiros (e não espíritos) porque são
inimigos. O que explica porque os brancos só puderam atingir a humanidade
após lhe terem sido atribuídos poderes patogênicos dos inimigos. Uma vez
inimigos, era possível colocar sua alteridade do lado da humanidade dos
estrangeiros – Yanomam 'degradados' de acordo com a mitologia – e
dissociá-los do campo da sobrenatureza dos espíritos maléficos à qual tinham
sido inicialmente ligada (Albert 1992: 173).

A humanidade não é atribuída aos brancos senão secundariamente, como uma

consequência derivada da posição de inimigo/predador, tal como ocorre com outros

estrangeiros. É significativo, no entanto, o fato de que os outros indígenas recebem a

marcação de sua humanidade na própria forma como são designados, eles são yãnomamë

thëbë nabë, “humanos estrangeiros/inimigos”, enquanto os brancos são designados apenas

como inimigos. Se a humanidade pode ser pensada também como um gradiente de

compartilhamento de predicados morais e habitus corporais, cujo referencial são os

próprios Yanomami, parece claro que os brancos entram neste gradiente por seu limite

inferior.

Nas adaptações realizadas no mito de Remori sobre a criação dos estrangeiros

(ibid.: 163-164, cf. p. 133 supra), a diferença e gradação entre nabë kraiwabë e yanomae

thëbë nabë foi evidenciada de variadas formas, que podiam inclusive ser re-combinadas

entre si: podia-se postular uma distância temporal ou espacial (rio acima/rio abaixo) entre

suas gêneses, ou atribuir procedimentos diversos para sua transformação a partir da

Amazônia). Eles eram diferentes, não tinham cabelo ou tinham o cabelo vermelho e falavam estranho
(Guimarães 2005b: 62) Os Ninam, por sua vez, dizem que as pessoas mais velhas até hoje se referem aos
brancos como ôlamis polamotima (algo como “aquele cuja voz de traquéia faz como a cachoeira”) em
uma referência ao barulho dos aviões que sobrevoavam suas aldeias antes mesmo da chegada dos
próprios brancos (Ivan Xirixana, com.pessoal 2009).
141

espuma do sangue dos Yanomami (recipiente aberto/fechado) ou ainda, colocar a diferença

em termos de “matéria-prima” (espuma escura/clara). De acordo com Albert (1992: 172),

essas variações não são “uma transformação mítica, senão hipóteses em experiência,

variantes exploratórias que tratam de reconciliar o reconhecimento de uma humanidade

comum e a constatação de diferenças culturais e físicas radicais.”

Questão que está longe de ser passada ou resolvida.160 Smiljanic (1999: 179-180)

apresenta um conjunto discursivo articulado pelos xamãs yanomae, no qual citações

bíblicas e interpretações diversas sobre a mitologia yanomami tentam dar conta da origem

dos brancos, seu espaço na cosmologia, seus atributos morais, etc. Além do mito de

surgimento dos brancos através do isolamento de alguns Yanomae nas bordas do mundo,

ocasionado pelas enchentes, – semelhante à narrativa de Remori – há ainda aqueles que

fazem dos brancos frutos da ação de Omama. Este teria criado o primeiro branco a partir

do barro, retirando-lhe uma costela para fazer as mulheres e também outros homens,

enquanto os Yanomae nasceram da fecundação do joelho de Yoase pelo demiurgo. Uma

outra narrativa parece fazer crer que os brancos são Yanomami metamorfoseados devido

aos erros de Adão e Eva:

no princípio, Omama fez tudo certo: ele amassou o barro e fez um homem,
Adão. Ele fez também uma mulher para o homem que criou do barro.
Entretanto, Adão e sua mulher pensaram que os brancos eram melhores que
os Yanomae e quiseram transformar-se em brancos. Pensando assim, Adão
matou seu irmão mais novo por causa de uma mulher. Omama então os
expulsou para longe de sua casa, os dois taparam o sexo com folhas. Com as
folhas eles fizeram uma veste como as roupas de pano e se vestiram com ela.
Assim foi, porque os dois cometeram um erro, os dois pensaram que os
brancos eram outros, melhores que os Yanomae (ibid: 182 ).

Em um artigo no qual analisa diversas narrativas indígenas sobre a origem dos

160
Ainda de acordo com Albert (1992: 173), “esses esforços de diferenciação mitológica e classificatória no
seio da categoria dos inimigos-estrangeiros se mantiveram, entretanto, no estado embrionário,
simplesmente porque, pelo menos na região estudada, o período de contato intermitente foi também o do
desaparecimento dos últimos sobreviventes das etnias vizinhas. […] entre o contato indireto e o contato
intermitente, o mito de origem dos índios não-yanomam foi progressivamente se transformando no mito
de origem dos brancos, enquanto a categoria de estrangeiros (nabë) acabou por designá-los
exclusivamente.” Mas mesmo que os brancos tenham subsumido por completo a categoria de
estrangeiros hoje em dia, sua posição ainda não é definida e está aberta a constantes experimentações.
142

brancos, Viveiros de Castro (2001b) observa como estas articulam-se frequentemente aos

mitos de origem da vida breve pelo mote da “má escolha”. 161 Nos mitos ameríndios que

contam como os humanos perderam sua imortalidade originária, a “vida breve” é resultado

de algum erro ou descaso relacionado aos cinco sentidos: ouvir, falar, tocar, ver ou provar

o que não deveria – ou, ao contrário, ignorar o que deveria ser ouvido, dito, tocado, visto e

provado – é o que faz com que os humanos tenham uma vida perecível, enquanto outras

espécies que fizeram a “escolha certa” continuam imortais pois trocam de pele

constantemente (ibid.: 51; sobre este tema ver também Levi-Strauss 2004 [1964]). O autor

faz notar ainda como nas narrativas sobre a origem dos brancos, a escolha fatídica ganha

(para além dos cinco sentidos) uma dimensão de cálculo e entendimento. Um dos

episódios mais significativos é encontrado em um mito barasana apresentado por Hugh-

Jones (1988), no qual o demiurgo oferece aos ancestrais humanos a opção entre o arco e a

espingarda: os que seriam os brancos escolheram a segunda, enquanto os índios

escolheram o arco. Os brancos aparecem aqui como aquilo que as populações ameríndias

“poderiam ter sido” se tivessem feito a escolha pela tecnologia mais “eficiente”.

Interessantemente, como já observava Viveiros de Castro (2001b: 52 n.8), na

narrativa de Remori, os brancos não são os descendentes destes que fizeram a melhor

escolha, mas justamente o resultado de uma “má escolha” – o não cumprimento do rito de

puberdade, ou seja, uma infração dos sentidos por excesso – feita pelos Yanomami,

indicando uma avaliação talvez diferente dos brancos e sua tecnologia daquela presente no

mito barasana. E mesmo na narrativa yanomae que traz o casal Adão e Eva, a

transformação destes em brancos é fruto de um erro de avaliação: eles pensaram que os

brancos fossem melhores que os Yanomami. Essas articulações míticas – em constante re-

elaboração como já foi salientado – revelam como a estimativa da diferença entre brancos

e Yanomami parece ser feita em termos pouco simpáticos aos primeiros. Nessas narrativas,
161
Sobre estes temas na mitologia ameríndia cf. Levi-Strauss 2004 [1964]; Da Matta 1970; e outros.
143

os brancos não são apenas Yanomami metamorfoseados, eles são, literalmente, Yanomami

“degenerados” (shiiwarirayuwi) (Albert 1992: 172). Mas nem sempre a diferenciação

ocorre nestes termos.

Em um mito Sanumá, os brancos (setenapi)162 aparecem como aquilo que os

ancestrais Sanumá não quiseram ser. Entretanto, a recusa das posses tecnológicas

empreendida pelos ancestrais é motivo de ressentimento entre os Sanumá atuais.

Semelhante à narrativa barasana, os demiurgos oferecem aos Sanumá a possibilidade de

escolherem entre diferentes posses, e estes acabam por optar por seus artefatos

tradicionais. No momento de criação de todos os seres – dos Sanumá, dos Shamatali

(forma como os Sanumá se referem a certas comunidades Yanomami) e mesmo dos

brancos –, Omao decidiu introduzir entre os primeiros diversos bens e atributos culturais

para que “eles pudessem viver como os setenabi.” No entanto, cada objeto oferecido por

Omao – livros, canetas, aviões, etc. – é recusado veementemente pelos ancestrais, e não

sem alguma zombaria. Diante da oferta de uma espingarda eles comentam: “Isto? É

estúpido e pesado! Como alguém pode trabalhar com isso? Esta coisa ridícula e preta, é

realmente complicado”. Omao então considera que talvez deva esperar mais um tempo,

antes de finalizar a fabricação dos Sanumá, oferecendo-lhes novamente estes bens mais

tarde. Contudo, neste interstício, Soawö – o gêmeo deceptor – lhes oferece os arcos e

outros objetos tradicionais que eles aceitam de bom grado 163; e assim foi que apenas os

brancos tiveram acesso à escrita, ao avião e aos objetos manufaturados. Ao fim do mito, o
162
Os Sanumá, por apresentarem uma relação muito próxima com outros estrangeiros não-yanomami, além
dos brancos, apresentam uma classificação que distingue entre nabis e setenabis, reservando o primeiro
termo para os outros índios, em especial os Yekuana, seus vizinhos próximos. Esta distinção entre dois
conjuntos de estrangeiros está referenciada na observação de seus habitus específico: “enquanto os nabï
dibï são arrogantes, embriagam-se com caxiri, cometem incestos como animais, têm uma tecnologia mais
elaborada, são mais desenvoltos com os brancos porque lhes falam a língua e, naturalmente, não são
falantes de Sanumá, os setenabi dïbï distinguem-se pela cor da pele, pelas roupas, pelo hábito de escrever
constantemente, pela adoração religiosa (deusïmo, fazer deus) e por serem imprevisíveis e, em última
instância, a fonte desejada de bens ocidentais; além disso, ou não falam nada de Sanumá, ou falam como
crianças” (Ramos 1990: 295).
163
Há nesta narrativa uma inversão em que Omama aparece vinculado ao exterior (os bens estrangeiros) e
Yoase ao interior (artefatos tradicionais). Esta inversão parece apoiar-se e justificar-se na valoração
atribuída a estes bens, Omama continua assim a ser associado ao que é bom/próprio.
144

narrador se revela bastante indignado com seus ancestrais: “oh! Meus ancestrais, eles

realmente me deixam nervoso! Andar devagar sobre a terra – cruzando montanhas, rios,

sobre as trilhas – isto tudo é realmente cansativo. E enquanto isso os outros vão

tranquilamente voando... e tudo graças aos nossos ancestrais” (Colchester 1981 apud

Wilbert & Simoneau 1990: 226-268).

Yanomami degenerados, mas aos mesmo tempo detentores de bens francamente

invejáveis, a avaliação dos brancos na mitologia yanomami não é inequívoca. Essa

ambiguidade dos brancos é recorrente nas narrativas míticas espraiadas pelas Américas.

Viveiros de Castro observava como os mitos acerca da origem dos brancos – articulando-

se com os mitos sobre origem do fogo, da aliança matrimonial e da vida breve –

sublinhavam o tripé que sustenta a vida humana, a saber: a cultura, a sociedade e a

mortalidade. E acrescentava:

a esse triplo título, os brancos vêm desenhar os limites do humano por


excesso ou por carência. No que concerne ao 'fogo', isto é, à tecnologia da
objetividade, somos superculturais. No que concerne à mortalidade natural
da espécie, somos sobrenaturalmente 'imortais' (inumeráveis e
indestrutíveis). Mas no que concerne à vida de relação, às formas
socialmente instituídas de subjetividade, somos indiscutivelmente sub-
humanos (2001b: 53).

Essa pequena digressão à mitologia foi feita aqui porque o entendimento das

relações atuais entre brancos e Yanomami não pode ocorrer sem levarmos em consideração

a posição ambígua e limítrofe da humanidade dos primeiros. Mas voltemos ao histórico do

contato.

Algumas comunidades passam a manter um contato permanente com os brancos,

quando, entre as décadas de 50 e 60, são instalados diferentes postos de atendimento e

missões na região. Esses brancos que se estabeleceram junto aos Yanomami eram, em um

número expressivo, missionários cristãos: embora postos governamentais de atendimento e

assistência aos índios (SPI e posteriormente FUNAI) tenham sido instalados na região

neste mesmo período, é inegável o papel preponderante das missões. As comunidades de


145

referência para os estudos que servem de base à esta revisão – Yanomam do Catrimani e

Yanomamɨ do Ocamo, além dos Sanumá de Auaris –, sem exceção, vieram a se constituir,

pela proximidade com os missionários – católicos da Ordem da Consolata, e evangélicos

da NTM e MEVA, respectivamente –, como “comunidades de missão”. A relevância das

missões permanece pelas décadas seguintes – um relatório de 1982 (CCPY apud Albert

1985:72) apontava a presença de 10 missões religiosas instaladas no território yanomami

brasileiro, enquanto no mesmo ano haviam 7 postos de atendimento da FUNAI, sem

contar que ainda hoje, frequentemente os próprios funcionários da FUNAI e outras

organizações professam a fé cristã – de maneira que, significativamente, a avaliação dos

brancos sofre uma inflexão pelos hábitos e predicados característicos dos Theusitheri (o

povo de deus, de acordo com os Yanomam do Toototopi), como já pareciam sinalizar as

próprias elaborações sobre a origem dos brancos.

A instalação dos postos permanentes de contato traz mudanças importantes para as

comunidades contíguas a eles: facilidade de acesso a bens manufaturados, sedentarização

ao longo dos rios (lembremos que os Yanomami decidem se instalar próximos aos rios

justamente pela facilidade de acesso aos brancos), além do crescimento demográfico

resultado da assistência médico-sanitária. Há uma tendência das comunidades yanomami a

estabelecerem uma relação de monopólio do contato com as missões e postos da FUNAI,

sobretudo no que diz respeito ao fluxo de bens e serviços, tratando os brancos aí instalados

como kami yamakë nabëbë (nossos estrangeiros). Se a associação espacial e econômica

exclusivista diminui o impacto direto sobre os grupos circunvizinhos, por outro lado, ela

tem repercussões políticas sobre vastas regiões. O monopólio dos bens manufaturados leva

estas comunidades a adquirirem proeminência política considerável, atuando como re-

distribuidores de bens. A rede de relações inter-comunitárias vai sendo desta forma atraída

e polarizada para a área de influência branca.164 Além disso, em suas contendas internas, as
164
Importante notar que, entretanto, esta estratégia de orientação das alianças políticas em direção ao afluxo
146

“comunidades de missão” frequentemente acionam o poder de seus brancos, temidos pelas

comunidades mais distantes: como estas são usualmente atingidas mais severamente por

epidemias do que as que contam com a assistência médica da missão, a ameaça ganha

valor de verdade (Albert 1985: 85-86; 1992: 173-174. ver também Duarte do Pateo 2005).

Na região de Auaris, a dinâmica entre Sanumá e Ye'kuana também se vê afetada pela

presença dos missionários evangélicos, de uma maneira peculiar. Embora esses

missionários só tenham podido se estabelecer na região graças à iniciativa dos Ye'kuana de

abrir uma pista de pouso nos anos 60 (Guimarães 2005b: 53), eles dedicaram e dedicam

atenção quase exclusiva às comunidades Sanumá da região. Neste contexto, os Ye'kuana,

que antes tinham o papel auto-atribuído de “civilizadores” de seus vizinhos, acusam os

missionários de “estragarem os Sanumá”, ao oferecer-lhes bons pagamentos pelos serviços

prestados, e se ressentem pelo fato de que lhes conferem o privilégio na distribuição de

bens que não lhes fariam falta, enquanto para os próprios Ye'kuana estes bens são

“indispensáveis” (Ramos 1990: 280).

Seja como for, os primeiros anos de convívio com os padres e missionários não

trazem grandes novidades em relação ao contato estabelecido com outras frentes pioneiras,

já que as epidemias continuam a se alastrar e são atribuídas a ações agressivas dos brancos.

No entanto, com o passar do tempo, dois aspectos da lógica missionária – assistência e co-

residência – encontraram eco na lógica diagnóstica yanomami, permitindo uma revisão do

estatuto desses novos brancos e o reconhecimento de sua neutralidade etiológica. Da

mesma forma que

[u]m xamã que beneficia com suas curas os doentes de uma aldeia à qual não
pertence (visita, rito intercomunitário) prova com isso sua inocência, e a do
seu grupo na etiologia dos casos de que trata. […] os missionários co-
residentes, que não fugiam nem antes nem durante as epidemias e que

de bens manufaturados – o que leva, consequentemente a um recrudescimento das relações de inimizade,


na outra direção, ou seja, no interior do território – é anterior a própria presença efetiva dos brancos, e
ocorria anteriormente com a mediação das etnias tampão, como os Ye'kuana. (o que ocorre é que, se na
região do Catrimani, antes esta relação se dava ao norte, agora ela se concentra ao sul) (Albert 1985: 86).
Ver também. A-C. Taylor (1981) para o mesmo tipo de efeito entre os Achuar.
147

providenciavam auxílio para-médico para suas vítimas, já não podiam ser,


contrariamente aos brancos que os precederam, considerados como
feiticeiros inimigos (Albert 1992: 176).

Por sua assistência contínua e co-residência permanente, os missionários foram

objeto de uma nova adaptação na teoria indígena sendo re-classificados não mais como

inimigos, mas como “quase-parentes” (Kelly 2003: 90). Esses brancos passaram por um

processo de “domesticação de estrangeiros” que envolve o “mesmo chamado à moralidade

humana que a fabricação do parentesco” 165 (ibid.: 131). Viver junto, ser generoso,

expressar-se em Yanomami, utilizar termos de parentesco, são comportamentos

socialmente adequados, que contribuíram para a re-avaliação dos missionários. Mais do

que isso, esses comportamentos foram tomados como expressão do “desejo destes de se

tornarem parentes” em um claro indício de humanidade/moralidade (cf. Vilaça 2002: 354;

p. 104 supra). E eles serão de fato adotados pelos Yanomami: um líder de uma “aldeia de

missão” da região do Catrimani, por exemplo, se referirá aos missionários como “meus

brancos” (iba nabëbë), “que tenho aos meus cuidados” (ya ka thabuwi), sendo que o verbo

thabu geralmente se aplica justamente aos órfãos e refugiados (Albert 1992: 174-176).

Os missionários se tornam portanto (quasi) parentes, ainda que parentes de um tipo

estranho. Afinal, eles não são da região, não se casam com nenhum Yanomami e,

principalmente, são parentes de todos os Yanomami, o que – como constata Kelly (2003:

98) –, é de fato muito pouco Yanomami; uma vez que o parentesco com alguns implica

necessariamente a inimizade com outros, como notado (cap 3 supra). Simultaneamente a

essa familiarização, os Yanomami continuam a manter contato com outras espécies de

napë, resultando em complexificação da classificações dos brancos, que passa a cobrir

quase todo o espectro de relações concebíveis dentro do espaço socio-político

convencional yanomami. Em contraposição aos missionários e outros brancos co-

165
Trata-se de um processo de obviação (sensu Wagner 1981), no qual as relações morais e coletivizantes
são enfatizadas em detrimento da diferença inata e potencialmente perigosa dos brancos (Kelly 2003:
136).
148

residentes – tornados parentes/aliados –, estão, por exemplo, os grupos de extrativistas. Os

conflitos recorrentes tornam-nos assimiláveis aos inimigos e, certamente, menos

“humanos” do que os brancos “domesticados”: entre estes exploradores e os Yanomami

quase não há comunicação verbal, e, além disso eles se mostram especialmente

mesquinhos (Kelly 2003: 85).

Há ainda a figura do branco citadino, espécie de inimigo desconhecido, “malandro”

que sempre pode agredir ou trapacear os Yanomami (ibid: 121). Entre os Sanumá, o branco

citadino surge frequentemente como alguém capaz de praticar atos de violência

inesperados: a cidade na verdade é um espaço limítrofe e ambíguo, repleto de perigos e

seres anônimos cuja imprevisibilidade do comportamento é acentuada pela atribuição

recorrente de um estado de embriaguez. Ao identificar os citadinos com a bebida alcoólica,

os Sanumá estão afastando-os ainda mais daqueles brancos que são seus co-residentes,

missionários cristãos fundamentalistas que condenam veementemente o uso de qualquer

bebida alcóolica, inclusive o caxiri de seus vizinhos Ye'kuana (Ramos 1990: 279).

Há portanto uma assimilação quase completa das relações com os brancos no

contexto das diversas esferas do espaço socio-político yanomami. Entretanto, Albert

observa que, ao menos na região do Catrimani, a partir dos anos 70, a relação entre

brancos e Yanomami é novamente alterada, desta vez pela explosão de pontos de contato

intermitente com os agentes da frente de expansão econômica que, seja pela construção da

perimetral norte, seja pela mineração, começam a invadir o território yanomami. 166

Aumenta-se assim a circulação de bens e pessoas no território, mas também degradam-se

notavelmente as condições sanitárias e de saúde. Em meio a uma situação caótica os

166
A abertura da estrada perimetral norte, que cortava à sudeste o território Yanomami, era parte do “Plano
de Integração Nacional” lançado pelo governo militar brasileiro à época que incluía ainda programas de
colonização agrícola. Nesta mesma época o projeto de levantamento dos recursos amazônicos RADAM
detectou a existência de importantes jazidas minerais na região, o que acabou motivando uma verdadeira
“corrida do ouro” na década seguinte quando o número de garimpeiros na região (no estado de Roraima)
foi estimado entre 30 a 40.000 (Enciclopédia dos povos indígenas/ISA. Verbete Yanomami por Albert
1999.)
149

brancos são, mais uma vez, genericamente associados a uma figura predatória, como narra

Albert:

Esses contatos simultâneos e caóticos com brancos de todas as origens,


circulando por seu território, e uma contaminação generalizada, desligada de
qualquer situação de conflito, provocaram uma nova transformação do
modelo etiológico yanomam […] nessa versão, a atribuição de formas de
feitiçaria guerreira ou de xamanismo agressivo específico aos brancos
desapareceu, e foi igualmente abolida a sua distinção em co-residentes
adotivos benevolentes e visitantes ou citadinos malevolentes. A diferenciação
político-espacial e etiológica dos brancos em padres/ visitantes ribeirinhos/
citadinos de longe, elaborada durante o período de contato intermitente e de
contato missionário, entrou em crise com a irrupção da estrada e a
contaminação generalizada. Novamente indiferenciados e
desterritorializados, os brancos podiam apenas ser remetidos à radicalidade
inumana de sua alteridade predadora. O modelo epidemiológico yanomam
teve de voltar, assim, a trabalhar a partir de sua equação inicial entre brancos
e espíritos maléficos. Assim, todos os brancos (nabëbë), independentemente
de sua benevolência ou malevolência, e de sua situação geográfica, são,
nessa versão, associados a duplos sobrenaturais maléficos, os nabëribë. […]
como se o surgimento traumático da frente de expansão do desenvolvimento
amazônico no final dos anos 70 tivesse tido um efeito de ruptura que
reproduzisse o dos primeiros contatos (1992: 179-180).

Embora, no caso apresentado, uma situação histórica específica tenha motivado esta

re-avaliação, fato é que, os brancos, mesmo quando domesticados, nunca deixaram de ser

referenciados a uma forma de alteridade ambígua, sumamente poderosa e predatória. Kelly

(2003: 90) observa como os Yanomami de Ocamo, embora acentuem em seus comentários

sobre a relação com os missionários a permanência, a partilha e o cuidado, deixam

transparecer também que esta relação é pensada em termos de um trade-off, com seus

benefícios e desvantagens: eles aceitam os bens, educação, assistência de saúde e a

“palavra de Deus”, mas têm que aceitar também os efeitos colaterais da presença dos

brancos, a shawara. A fumaça do metal, imagem oriunda de um processo de resistência

simbólica que a sociedade yanomam opõe à irrupção da historicidade exógena, segundo

Albert, parece tentar “exorcizar, numa metáfora sempre recomeçada, o trágico double

mind que o aparecimento dos brancos propõe à reflexão e ao destino yanomam: “a

inserção num sistema de troca em que o poder de fascinação dos bens adquiridos só pode

ser retribuído através de uma predação impiedosa”, reflexo da “obssessão por uma figura
150

extrema da alteridade em que o excesso do poder material remete ao excesso dos poderes

canibais” (1992: 184).

Essa ambígua relação com uma figura extrema de alteridade pode ser (e foi)

sumarizada pela noção de 'afinidade potencial' (Viveiros de Castro 2002), tal como

utilizada por Kelly (2003, 2005) para dar um novo alcance à análise das relações entre

brancos e Yanomami. A afinidade potencial seria o modelo Amazônico para uma relação

com o exterior e esses “outros indesejáveis, mas necessários”, na qual não se tem a

efetivação da afinidade. No contexto convencional, ela “qualifica relações entre categorias

genéricas: compatriotas e inimigos, vivos e mortos, humanos e animais, humanos e

espíritos […] [e] é um fenômeno político-ritual, exterior e superior ao plano englobado do

parentesco” (Viveiros de Castro 2002: 159).

De maneira semelhante ao que ocorre entre outros povos amazônicos (em especial os

Piro, em Gow 2001), os brancos, ao adentrarem no universo yanomami, são apreendidos

por esta categoria de afinidade potencial, que, justamente, é utilizada para “pensar, isto é,

socializar, o que está fora do Mesmo” (Viveiros de Castro op.cit.: 161). Como afins

potenciais os brancos são, em sua generalidade, colocados na esfera do espaço socio-

político reservada às mais variadas figuras de alteridade, especialmente àquelas que,

dotadas de grande potência predatória são, no entanto, indispensáveis para a reprodução

desta socialidade; eles estão ao lado dos fantasmas dos mortos, dos espíritos canibais, dos

inimigos desconhecidos, etc. (Kelly 2003: 16).

Definindo-os a partir de sua potencialidade como napë yai167, os Yanomami

reconhecem aos brancos poder para influenciar significativa e positivamente suas vidas –

com suas provisões, conhecimentos e tecnologias superlativos – ao mesmo tempo que lhes

atribuem forças predatórias de potência igualmente superlativa, a shawara. Como escreveu

Kelly:
167
Onde yai como já destacado possui o sentido de verdadeiro, próprio. Kelly 2003: 117.
151

Os brancos tornaram-se forasteiros arquetípicos, uma síntese de significados


referentes a uma mistura de poderes criativos e destrutivos. Do mesmo modo
que, na Amazônia, um inimigo é freqüentemente um parceiro de troca, um
nominador, um fertilizador; o napë yai epitomiza a natureza ambígua dos
brancos: possuidores e criadores de bens manufaturados, criadores e
disseminadores de doenças, algumas vezes, malandros periogosamente
violentos; outras vezes portadores de ajuda aos Yanomami (missionários,
médicos). Deste conjunto de napë yai saem todos os brancos
locais/residentes (missionários, médicos, militares), que são vistos como
menos poderosos e 'virulentos', logo que com eles se estabelece alguma
familiaridade. Brancos residentes são versões 'domesticadas' do produto
original (2005: 216).

Os “verdadeiros napë”, aqueles propriamente poderosos – e perigosos –, vivem em

locais remotos, nas grandes cidades que os Yanomami visitam esporadicamente ou sobre

as quais apenas ouvem falar: Puerto Acayucho, Manaus, Boa Vista. Não poderia ser

diferente, já que a co-residência acaba por 'subtrair-lhes' essa napëidade inata:

missionários, médicos, funcionários de ONGs e FUNAI são os napë “domesticados”, dos

quais a alteridade é (artificialmente) reduzida pela adoção de um comportamento

apropriadamente moral/ yanomami. É importante ter em conta que esta afinidade potencial

– aqui napëidade – é considerada como um traço inato, e isto em dois sentidos: porque

“afinidade potencial” refere-se a categorias convencionais do espaço yanomami, e,

portanto, é da ordem do “dado”, e também porque refere-se à moralidade inata dos

brancos.

A domesticação dos estrangeiros é em certa medida uma yanomamização artificial –

porque fabricada pela agência humana – sob este fundo de napëidade dada (Kelly 2005).

Entretanto, o solapamento total da porção napë dos brancos, mesmo co-residentes, é

impossível: apenas em um contexto mítico os brancos podem ser considerados yanomami,

na medida em que também eles são o resultado de transformações dos antigos; afora este,

em relação a um Yanomami, os brancos serão sempre napë yai. Como notou Kelly, “a

domesticação envolve um movimento da alteridade para a identidade: pessoas individuais

podem percorrer esse caminho, como os primeiros missionários e os médicos de hoje, mas

a natureza do exterior permanece não afetada por essa passagem individual” (2003: 218,
152

ver também 214-216).

A manutenção dessa “natureza exterior” é importante inclusive para a reprodução da

sociedade yanomami. A domesticação do estrangeiro não busca fazer do Outro (genérico)

um mesmo, mas capturar sujeitos específicos em sua potência de alteridade. Estes napëpë

domesticados, atuam assim como mediadores, espécies de “terceiros incluídos” (Kelly

2003: 140). Na definição de Viveiros de Castro (2002: 162), terceiros incluídos são aqueles

membros da categoria genérica de afins potenciais com os quais estabelecem-se relações

ritualizadas, de modo que eles exerçam o papel de mediadores entre o “local” e o

“exterior”.168 O missionário Cocco – referência para o comportamento ideal de um napë

em Ocamo, dada sua grande generosidade e o grande fluxo de recursos que ele direcionava

às comunidades que lhe eram próximas – é uma imagem perfeita de como os brancos

residentes são manejados pelos Yanomami para seus próprios fins políticos, servindo-lhes

de mediadores entre estes e a fonte de recursos e bens manufaturados napë (Kelly op.cit.:

93). Estas figuras dos terceiros incluídos – com os quais, pela obliteração ritual de sua

própria alteridade, são estabelecidas relações sociáveis, ainda que ambíguas – são portanto

fundamentais para a reprodução social justamente por sua ligação com o exterior

inatamente perigoso e poderoso: é através deles que os Yanomami se apropriam deste

potencial produtivo (id. 2005: 216).

Napë domesticados exercem no espaço socio-político yanomami papel semelhante

ao de aliados, estes também espécies de “terceiros incluídos”. Mas enquanto a relação de

aliança no contexto convencional, e outras relações do tipo “terceiro incluídos” em geral,

ocorrem entre indivíduos específicos, os brancos (médicos, missionários, assessores, etc.)

estão em posição de mediadores com “todos” os Yanomami: como não se casam com
168
Convém relembrar que, na explanação de Wagner (1981) que também serve de referência para a análise
de Kelly, os rituais são justamente os momentos coletivizantes das sociedades cujo modelo de
criatividade é diferenciante, são portanto os momentos em que a convenção é fabricada. Alguns exemplos
de relação do tipo terceiro incluído destacados por Viveiros de Castro (2002: 153) são: amizade formal
entre os Achuar, matador e vítima entre os Areweté, e os próprios afins classificatórios Yanomam por seu
papel nos rituais funerários.
153

nenhum Yanomami, o que equivaleria à atualização (e anulação) de sua afinidade

potencial, não têm obrigações reais ou privilegiadas com nenhum grupo específico de

pessoas. Se esta generalidade é uma das marcas do poder e potencialidade dos brancos co-

residentes, por outro lado, a falta de laços reais e específicos também contribui para sua

vulnerabilidade, já que nenhum Yanomami se sente obrigado a defendê-los ou tomar seu

partido em qualquer contenda interna (Kelly 2003:142).

A vulnerabilidade brancos domesticados é ainda acentuada pelo fato de que não têm

acesso a nenhum instrumento yanomami usual de resolução de conflitos – arengas do tipo

patamou ou o wayumi (expedições coletivas nas quais as facções passam um tempo

isoladas o que permite re-estabelecer relações amigáveis) –, nem tampouco podem (ou

desejam) recorrer aos duelos ritualizados. Sem contar com meios adequados para a

retaliação quando injuriados, ou aliados que os defenda, estes napë co-residentes

costumam ser alvo preferencial das ações e brincadeiras dos jovens Yanomami: pequenas

trapaças e furtos, “gozações”, etc. contra médicos e/ou missionários são recorrentes nas

aldeias yanomami, para desespero destes que logo percebem que não há qualquer

autoridade a quem recorrer (ibid.: 152, 161-162). Mas esta vulnerabilidade não é um acaso,

como faz notar Kelly, a “generalidade [das relações] e a impotência do criollo residente

são a solução para o problema ameríndio de equilibrar autonomia e dependência na relação

com os brancos” (2005:146).

4.2. Invenção e diferenciação: “virar branco” como forma de ser Yanomami

A “domesticação” dos brancos, tanto quanto a própria fabricação do parentesco,

revelam o poder transformador de trocas sociais contínuas. Mas como essas relações

possuem muitas vezes um sentido de mutualidade, a domesticação dos brancos – sua

yanomamização – é necessariamente acompanhada de uma simultânea “transformação em


154

branco” por parte dos Yanomami (Kelly 2003, 2005).169

De acordo com Kelly, os relatos sobre o contato na região de Ocamo apresentam a

passagem de um período em que os Yanomami temiam os napë – sobretudo porque não

sabiam que espécie de ser era aquela – a uma fase em que passam a conhecê-los bem (e a

mesma mudança pode ser observada também em algumas narrativas sanumá ou no relato

de Davi Kopenawa. p. 133-134 supra). “Conhecê-los bem” implica, em alguma medida,

tornar-se como eles, afinal, o modo de conhecer yanomami, é uma forma de subjetivação

que envolve este, ver como outro, 'tornar-se outro'.170 A transformação em branco envolve

tanto uma mudança de habitus corporal, quanto a aquisição de seu conhecimento

especializado: dois aspectos que não são mesmo facilmente separáveis (2003: 103-104).

Na região de Ocamo, um importante marco histórico dessa transformação foi a

instalação das comunidades ao longo do rio, próximas, ou mais facilmente acessíveis, à

missão, e não mais isoladas nas matas das cabeceiras dos rios. À mudança do local de

aldeamento logo se acrescem outras: “agora as pessoas comem a comida dos brancos e

vestem suas roupas; às vezes, também, a adoção de tetos de zinco e de motores, […] e

mesmo a disseminação de doenças epidêmicas” são apontadas como indícios deste “virar

branco” (Kelly 2003: 104, ver também 2005: 210). Expressões como “antes os antigos não

sabiam/não tinham” utilizadas com frequência para referir-se às transformações

decorrentes da relação com os brancos, encontram eco nos próprios discursos míticos,

sobretudo aqueles que trazem a ação civilizacional de Omama. 171 Se nos relatos míticos os

ancestrais passam por transformações e adquirem os itens culturais tornando-se


169
Como demonstra o próprio autor, trata-se do mesmo tipo de dialética implicada na convencionalização e
diferenciação de Wagner. Expressões relacionadas a um “virar branco” são comuns em diversas situações
de contato na Amazônia e tornaram-se alvo de importantes elaborações antropológicas (ver, por ex.
Vilaça 2002; Carneiro da Cunha 1998; entre outros), o mérito do trabalho de Kelly está não apenas em
investigar o que os Yanomami querem dizer quando dizem que estão “virando napë” ou que são
“Yanomami civilizados”– mas em destacar como este processo é inseparável da domesticação dos
brancos. A investigação das mudanças ocorridas neste processo é feita tendo em vista a ligação entre
convenção e diferenciação e ainda, o modo como os Yanomami atribuem valores diferenciados a uma ou
outra forma de ação em contextos diferentes.
170
Refiro-me aqui ao xamanismo yanomami.
171
Cf. p.ex. as narrativas em pag. 39, 42 supra.
155

Yanomami, agora, pela aquisição de itens culturais brancos, eles estão se tornando

“civilizados”. De fato, a transformação em branco é pensada em continuidade com as

metamorfoses míticas ou ainda aquelas que podem ocorrer sob o efeito de encontros com

outras formas de alteridade, exercendo o mesmo poder de atração e perigo (Kelly 2003:

105-106 ).

As ações empreendidas sob a insígnia do “virar branco” são, ao mesmo tempo, parte

de “um projeto político de gerenciamento dos brancos e seus recursos”, em estreita

correlação com a domesticação dos estrangeiros, e, também, um dispositivo de

diferenciação e singularização contra o fundo inato de yanomamidade, ponto que nos

interessa particularmente (ibid.: 9-10). O domínio dos conhecimentos dos brancos,

sobretudo a aprendizagem da língua (espanhol ou português) e outros saberes

epitomizados pelo ler e escrever, possui assim uma dupla relevância. Por um lado, eles são

considerados essenciais para a implementação de cuidados de saúde – como a formação de

enfermeiros e microscopistas –, para o manejo de recursos e bens, e para se defender dos

próprios brancos – como expresso por Kopenawa (2001b: 21): “[os antigos] não

compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram penetrar em suas

terras dessa maneira amistosa. Se tivessem compreendido suas palavras, acho que os

teriam expulsado.” Por outro lado, esses conhecimentos, e as mudanças que os

acompanham, são um traço diferencial importante entre os próprios Yanomami: a

transformação em branco não possui apenas um sentido histórico e diacrônico, ela

manifesta-se também na sincronia em uma diferenciação espacial, entre as comunidades

situadas próximas dos brancos e aquelas no interior do território (Kelly 2003, 2005).

O s Yanomami menos familiarizados com o mundo dos brancos em termos de

educação, saúde, política e acesso a bens, ganham o estatuto de “menos civilizados”, e são

tomados como uma imagem do passado recente, aquilo que os “Yanomami civilizados
156

eram antes de iniciada esta transformação” (id. 2005: 210). Essa diferenciação sincrônica

dá origem à conformação do que Kelly chama “eixo transformacional napë”, um gradiente

relacional no qual diferentes níveis de napëidade ou yanomamidade são atribuídos a cada

agente:

nesse “eixo de transformação em napë”, os moradores de Ocamo


consideram-se yanomami e a categoria napë refere-se aos missionários, aos
médicos, aos antropólogos e a todos os não-indígenas que vivem além do
Alto Orinoco. É apenas em referência a si mesmos – Yanomami – que
consideram os Yekuana, seus vizinhos, também napë. Historicamente,
todavia, antes do encontro com os brancos e de sua transformação, os
Yekuana eram também, com base no habitus, yanomami. Quando os não-
indígenas são tomados como referência, todos os índios são yanomami. Os
brancos são napëyai, nunca yanomami […] Ser yanomami é algo que o povo
de Ocamo compartilha com os que vivem rio acima, mas há também o
reconhecimento de que estes últimos são “yanomami de verdade”, do mesmo
modo que, em comparação com os Yekuana, os brancos são napëyai,
“brancos de verdade”. Waikasi é um termo que expressa esse sentido de
“yanomami de verdade”, conotando a condição de “não-civilizado”, de “ser
como os antigos”, associada aos Yanomami da montante do rio. Waikasi
deriva do termo que os brancos empregavam para designar os Yanomami, com
conotações de “selvagem assustador” (2005: 214).

A yanomamidade é, portanto, um traço inato e compartilhado por todos os

Yanomami (a repetição não é redundância – como não é redundância os Yanomami

yanomami dos mitos) que tem por referência justamente os traços ontológicos e predicados

morais que discutimos nas seções precedentes: viver junto, falar a mesma língua, possuir

um mesmo corpo,172 empenhar-se em ações generosas e de cuidado, e que pode

eventualmente ser estendida a outros seres (todos os indígenas, por exemplo) por oposição

a napë. Por seu turno, a napëidade refere-se à alteridade inata dos brancos e tem como

traços definidores a potência tecnológica e a falência moral. Contudo, yanomamidade

como napëidade são atributos relacionais distribuídos de maneira diferenciada ao longo

deste gradiente e mutuamente implicados na “domesticação dos estrangeiros” e no “virar

branco”.

Um traço fundamental para a atribuição do grau de napëidade é a posse ou provisão


172
A questão se os brancos possuem o mesmo corpo que os Yanomami é exatamente isso: uma questão.
Kelly (2003) aponta que os Yanomami de Ocamo lhe atribuíam os mesmos componentes corporais.
Smiljanic (1999: 183) por sua vez observa como os Yanomae atribuíam seu constante adoecimento ao
fato de que, como branca, ela não possuía todos os componentes corporais, não possuía “interior”.
157

de bens manufaturados, e ainda mais, sua produção. No contexto de troca, por conseguinte,

todo aquele que possui mercadorias para dar ocupa uma “posição napë” frente àqueles que

recebem ou necessitam desses itens – e que estão, consequentemente, em uma “posição

yanomami”. Os pólos desse gradiente são os napë yai – fonte e produtores de bens –, e os

waikasi – que sempre ocupam a posição de receptores –; entre eles estão tanto os brancos

co-residentes quanto os Yanomami civilizados. “Yanomami civilizados” ou “criollos

domesticados” operam como mediadores entre o universo yanomami e a esfera exterior

napë: os Yanomami de Ocamo inclusive, expressam seu interesse em controlar a

distribuição de bens na dinâmica entre as sociedade nacional e as aldeias mais isoladas em

termos de “ocupar o lugar dos primeiros missionários nestas redes de relação” (Kelly

2003: 108-109; 2005: 213).

Os Yanomami de Ocamo movem-se rio acima e rio abaixo e, dessa maneira, trocam

bens, experiências e idéias com outros índios e brancos: vistos da perspectiva de rio

abaixo, são receptores (yanomami); da de rio acima, são provedores (napë) (Kelly 2005:

215).“Yanomami civilizados” são, portanto, pessoas duais yanomami/napë: “mais uma

expressão da constituição Eu/Outro da pessoa – como fusão reflexiva de diferentes

perspectivas […] localizáveis numa rede de relações ao longo do rio” (ibid.: 211).“Virar

branco” é portanto uma ação deliberada de diferenciação, pelo realce de uma napëidade

“artificial” contra um fundo de yanomamidade inata compartilhada, do mesmo modo que,

simetricamente a “domesticação dos brancos” envolvia a fabricação de uma

yanomamidade, ou, melhor dizendo, a extração de um fundo inato de napëidade (ibid.:

220). Mais ainda, “virar branco” parece ser uma forma de singularização, pela

experimentação de perspectivas outras e captação desse potencial criativo do exterior,

semelhante à propiciada pelo xamanismo (cf. p.. 65-66 supra.).

Os brancos domesticados também podem ser considerados “divíduos” (Strathern


158

1988) do tipo yanomami/napë, afinal, ainda que nunca sejam considerados realmente

Yanomami, quando em relação aos napëyai, eles são, evidentemente, mais yanomami e

menos napë que estes. Mas brancos co-residentes e “Yanomami civilizados” são pessoas

duais napë/yanomami de maneira diferenciada: a distribuição dos traços “fabricado” ou

“inato” de cada um deles é simétrica e inversa. Além disso, o problema que a posição de

mediadores e a co-existência de relações genéricas e específicas coloca para ambos

também é distinto. Quando destaquei o tipo de problema que os napëpë, enquanto

“terceiros incluídos”, têm que enfrentar, sublinhei a ausência de laços reais como o que

lhes conferia a generalidade e potencialidade necessárias, mas ao mesmo tempo também

sua fragilidade. No caso dos “Yanomami civilizados” a dificuldade é, ao contrário, de

como buscar um equilíbrio entre obrigações institucionais com todos (no caso de um

enfermeiro, por exemplo) e a obrigação de parentesco com alguns (Kelly 2003: 142).

Destacar o lado napë ou yanomami nas interações é tratado por Kelly como um ato

performativo de obviação (tal como aparece em Wagner):

Meu uso do termo [obviação] é inspirado pela explicação de Wagner (1978: 31-
32) sobre os dois sentidos da palavra "obviar": tornar proeminente certas
associações de um símbolo — torná-las imediatamente aparentes — às custas de
outras que, por implicação, passam assim "despercebidas". Em referência à
"domesticação dos brancos", obviar é enfatizar — artificial/intencionalmente —
a semelhança, por meio da co-residência cotidiana, do uso da língua, do emprego
de termos de parentesco etc.; em certos contextos ritualizados, é "ignorar" o
perigo e a Alteridade inata dos brancos. Em referência ao "virar napë", a
obviação ocorre quando os Yanomami enfatizam sua napë-idade às expensas da
condição inata de yanomami— no contexto da interação com seus congêneres
rio acima, ou quando eles enfatizam sua yanomami-dade às expensas de seu
"lado napë", nas relações com os brancos. Claro está que os Yanomami
"civilizados" também podem enfatizar a semelhança yanomami quando estão
entre seus congêneres rio acima, ou a semelhança mestiça quando estão entre os
brancos (2005: 220).

O autor observa como em visitas à comunidades de rio acima como acompanhantes

da equipe médica, os Yanomami esforçam-se por atuar seu lado napë, tornando-o mais

saliente.173 Em sua performance napë, os Yanomami de Ocamo apresentam-se


173
“Atuar”, tal como utilizado pelo autor, tem menos o sentido de uma teatralidade estratégica e mais o de
uma ação intencional que visa que as pessoas respondam em um sentido determinado – próximo do
sentido de performance stratherniano, esta ação visa “produzir uma resposta que constitua tanto evidência
da efetividade daquele que age, quanto uma forma de auto-conhecimento” (Kelly 2005: 221).
159

competamente vestidos e com um equipamento suplementar composto por espingardas,

lanternas e bateria, trocando ou distribuindo objetos manufaturados. Além disso eles

fumam cigarros – modo propriamente napë de consumir o tabaco, por oposição ao hábito

yanomami de “mascá-lo – e costumam fazer suas refeições junto com os médicos “um ato

que não apenas significa que eles 'sabem como comer a comida dos brancos', mas que

também expressa, por meio da partilha alimentar, mutualidade entre eles e os brancos e sua

assimilação a estes últimos” (ibid.: 221). Acrescente-se a essa atuação a habilidade de falar

espanhol e o domínio de algumas tecnologias, como os barcos e equipamentos médicos, e

ainda uma cadeia de comando – tipicamente napë, já que os Yanomami não “ordenam-se”

– na qual os médicos dão instruções aos motoristas, que repassam as tarefas aos outros

Yanomami da equipe.

Todos estes são traços reconhecidamente napë utilizados com o intuito claro de

diferenciação. Entretanto, nestas visitas a jusante os Yanomami de Ocamo são compelidos

a agir moralmente: eles devem ser generosos, evitar que as pessoas sofram, falar

Yanomami, etc. De certa maneira, é como se, em seu esforço de diferenciação, os

Yanomamis civilizados, sempre “falhassem”, revelando uma moralidade inata

compartilhada, uma yanomamidade que não pode ser nunca eclipsada. Pois, de fato, é o

próprio esforço de diferenciação que contra-inventa essa moralidade inata, que vem à tona

sobretudo quando “desafiada” e “testada” (Wagner 1981: 72 et passim). Na verdade, toda

ação combina necessariamente esses dois lados diferenciante/napë e convencionalizante/

yanomami: por exemplo, dar um presente, diminui o sofrimento e é portanto uma ação

moral/yanomami, ao mesmo tempo que coloca a pessoa provedora na posição napë (Kelly

2005: 222).174
174
A situação é diferente com relação aos brancos que, nestes contextos são pensados como indubitável e
inatamente napës, independente de como reajam diante das demandas: “brancos, como médicos ou
missionários residentes, são inatamente napë, a despeito de sua reação aos pedidos de bens
manufaturados. Se resistem a essas solicitações, são acusados de avareza, o que aponta para o significado
convencional de napë (inimizade). Se as solicitações são satisfeitas, os brancos são confirmados como
napë, no sentido do contexto da "transformação em branco" (provedor de objetos)” (Kelly 2005: 222).
160

Quando querem extrair objetos e recursos dos brancos, os Yanomami de Ocamo

realizam uma performance inversa, destacando sua yanomamidade e obviando a

napëidade. Kelly (2005: 224) narra um incidente ocorrido em La Esmeralda, durante a

visita de autoridades para o lançamento de um projeto de saúde, no qual os Yanomami,

deliberadamente, buscaram se diferenciar tanto dos brancos quanto das outras etnias ali

presentes. Paramentados como guerreiros e vestindo sua indumentária tradicional,

mantiveram-se isolados, formando um grupo espacialmente destacado e proferindo um

discurso indignado no qual foram muito utilizadas expressões que remetem diretamente à

sua ética do cuidado tais como “nós que estamos aqui sofrendo”, “estamos em

necessidade”, etc. 175

A indumentária guerreira e o discurso assertivo ('falar sem medo') tinham o


objetivo de causar medo (em Yanomami, 'kirimai). Todas essas características
enfatizavam a yanomami-dade em detrimento da napë-idade (uma obviação),
pressionando — por meio de uma combinação de medo (provocado pela
aparência guerreira e pela forma assertiva do discurso) e de compaixão/piedade
(provocadas pelo conteúdo do discurso) — os brancos a responder (ibid.: 224-
225).

Nesse contexto, diferenças internas entre os Yanomami (civilizados ou waikasi)

foram obviadas para produzir uma diferença máxima com relação aos napë, estes sim,

napë yai. Mas assim como nas comunidades de rio acima, os Yanomami mantinham o

comportamento moralmente apropriado yanomami, ao mesmo tempo em que afirmavam

um corpo napë – com suas roupas e hábitos –, aqui, para que a mediação fosse possível,

eles também devem fazer uso de alguns atributos brancos, como demonstra Kelly:

Os interlocutores enfatizavam, no discurso, sua yanomamidade, ao mesmo


tempo em que precisavam reter atributos dos brancos (uso do espanhol,
documentos escritos, vestimentas) para desempenhar o papel de mediadores —
tanto ao traduzir a perspectiva yanomami para os militares e funcionários,
quanto ao mostrar aos demais Yanomami sua capacidade de negociar com os
brancos. Os interlocutores estabelecem uma continuidade moral com os
Yanomami presentes por meio de sua 'performance yanomami', no plano do
discurso, mas se diferenciam deles exibindo conhecimentos e corpos napë
(2005: 225).

É justamente a esta dupla relação de continuidade e diferenciação que se refere


175
Expressões que também ressoam com a imagem que os brancos nesta cidade têm dos índios como
“pobres”, necessitados” (Kelly 2003: 224)
161

afinal “virar branco”, expresso pela palavra yanomami napëprou. A forma napë-prou

indica a fase final de um processo ainda em curso: virando napë, mais que virar napë.176

No “eixo transformacional napë” a posição napë é, na verdade, um limite e uma direção:

tanto sincronica quanto diacronicamente trata-se de um “vir a ser” nunca de fato

concluído, como é próprio dos devires. Napë é, portanto, uma posição da qual os

Yanomami se aproximam sem nunca completar a transformação (do mesmo modo que um

branco nunca será simplesmente um Yanomami), e que só interessa enquanto possibilidade

de diferenciação pelo agenciamento de sujeitos duais yanomami/napë. Torna-se claro que

yanomami ou napë não são denominações étnicas ou identitárias, mas sim atributos

relacionais engajados nas relações cotidianas, na fabricação de corpos, e em conformidade


177
com a própria “tradição” yanomami e, também, claro, com sua própria noção de pessoa

(ibid.: 211).

Esse “eixo transformacional napë” pode ser apreendido por uma extensão da

organização do espaço sócio-político convencional yanomami, como já sinalizava a

diversificação da classificação dos brancos apontada por Albert. Em resumo, em uma tal

composição os napë yai ocupam a esfera do poder exterior, com toda a ambiguidade

característica dos 'afins potenciais', enquanto os napëpë domesticados – versão

enfraquecida destes últimos e que operam como pontes para a captura destes benefícios do

exterior – podem ser pensados como terceiros incluídos: aliados/amigos. O espaço dos

parentes é por fim reservado aos próprios Yanomami como um todo, já que eles são, por

oposição aos napë constituídos como “grupo de pessoas semelhantes e compartilhando

uma mesma moralidade humana” (Kelly 2005: 217-218).

Contudo, como toda extensão traz consigo também a inovação, esse eixo
176
O perfectivo -prariyo (e não -prou) é usado quando o processo se completa, embora as duas formas sejam
também utilizadas para referir-se a metamorfoses míticas (Kelly 2003: 106).
177
Sendo assim, “virar branco” não significa “deixar de ser índio” como oposições do tipo índio/branco
operacionalizadas no discurso político dos agentes da sociedade nacional parecem indicar (Kelly
2005:211). Como observava Ramos (1990: 296), o “índio” dito por um branco definitivamente não é a
contrapartida simétrica do napë dito por um Yanomami.
162

transformacional, na medida em que tem como direção e limite a posição de napë, introduz

uma hierarquia que rompe com o caráter isomórfico do espaço tradicional yanomami.

Aliança e inimizade são relações de reciprocidade entre iguais, mas nas relações de troca

no contexto do eixo napë, os Yanomami de Ocamo têm uma posição privilegiada em

relação aos seus parceiros rio acima. Se o espaço convencional yanomami é formado por

esferas concêntricas, as relações neste novo contexto se organizam justamente em um eixo:

embora o modelo permaneça sociocêntrico, os Yanomami de Ocamo não são mais o centro

de um espaço concêntrico, mas antes, um ponto médio de uma rede linear que vai dos

waikasi aos napë yai, e esta mudança certamente não pode ser minimizada (ibid.: 219-

220).

Embora focado no contexto particular de Ocamo, as sugestões encontradas no

trabalho de Kelly sobre a transformação napëprou, têm certamente um alcance mais

amplo, já que em muitas aldeias yanomami, os brancos são uma forma privilegiada de

alteridade e o “virar branco” um processo em curso. Os Yanomami de Ocamo têm claro

que essa transformação – tal e qual uma metamorfose mítica – é um processo irreversível:

não é mais possível voltar a ser (apenas) Yanomami, vivendo no meio da floresta, sem

instrumentos de metal ou outras tecnologias brancas. Se no início do contato, a

impossibilidade do recuo na aproximação com os brancos era devida em parte, à presença

de inimigos no interior, a irreversibilidade do processo agora apóia-se na própria

impossibilidade de se livrar da shawara: ela está em todo lugar e não irá desaparecer, não

importa o que os Yanomami façam (Kelly 2003: 105-106). Dado este quadro, os

Yanomami assumem que a única forma de tornar proveitosa esta transformação, entendida

como um trade-off, é fazendo-se cada vez mais napë, ou seja, tendo acesso e controle

sobre mais e mais bens e recursos estrangeiros, aproximando-se dos napëyai. Trata-se de

seguir no “caminho dos napë”, traduzido como “progresso”, que é a forma como esta
163

transformação é expressa no discurso político articulado por estes novos líderes 178 (Kelly

2003: 108). Mas essa solução encontrada em Ocamo para a relação com os brancos não é

necessariamente a mesma em outras regiões Yanomami.

“Virar branco”, como toda metamorfose, é revestida de um caráter ambíguo – as

próprias metamorfoses míticas possuem muitas vezes um aspecto negativo, de

transformação não-desejada –, pois, entre outras coisas, sempre traz o risco de, neste “virar

outro”, não mais reconhecer os seus. Mas, para além desse risco, a ambígua avaliação

sobre os brancos – seres moralmente degenerados, mas dotados de uma grande potência

tecnológica – que se revelava nos mitos, é na verdade uma questão política que se coloca

também historicamente, e determinante para a valoração deste “virar branco”. Como

considerou Viveiros de Castro:

se o problema da origem dos brancos está, por assim dizer, resolvido desde
antes do começo do mundo [eles encontram seu lugar junto à alteridade
inata], o problema simétrico e inverso do destino dos índios permanece-lhes,
parece-me crucialmente em aberto. Pois o desafio ou enigma que se põe aos
índios consiste em saber se é realmente possível utilizar a potência
tecnológica dos brancos, isto é, seu modo de objetivação – sua cultura – sem
se deixar envenenar por sua absurda violência, sua grotesca fetichização da
mercadoria, sua insuportável arrogância, isto é, por seu modo de subjetivação
– sua sociedade (2001b: 51).

Esse “enigma” não foi ainda desvendado pelos Yanomami, que continuam a realizar

as mais variadas e perigosas experimentações. Se no Ocamo parece haver uma valorização

positiva do “virar branco” e dos Yanomami civilizados, os Yanomae do Toototobi, referem-

se à possibilidade de transformação em branco como um acontecimento indesejado e

temerário. Atribuída principalmente à influência dos espíritos ancestrais que penetram no

território yanomami acompanhando o avanço dos brancos atuais – os utupë destes

ancestrais passariam a influenciar moral e fisicamente os Yanomae, levando à

metamorfose179–, a transformação em branco é mal-vista e refutada mesmo quando tratada


178
Há nesta solução dos Yanomami de Ocamo uma percepção aguçada de quão desvantajosa é a posição de
napës enfraquecidos, dotados de menos recursos como por exemplo as populações ribeirinhas ou outras
etnias.
179
Smiljanic (1999: 91-92) esclarece que os Yanomae atribuem uma influência dos utupë dos antigos
ancestrais míticos aos traços morais e físicos das pessoas nas regiões sob seu domínio, da mesma forma
164

em termos menos extra-ordinários. Smiljanic (1999: 185) esclarece que “os rapazes,

muitas vezes, dizem que, embora usem roupa e tomem os remédios dos brancos, eles não

se transformam em brancos”.

A violência predatória que estes estrangeiros dirigem contra a própria floresta – os

garimpeiros com sua fome de ouro – levou à elaboração de uma crítica xamânica acerca do

fetichismo do ouro e do “povo da mercadoria” que parece implicar uma rejeição inclusive

dos conhecimentos dos brancos (Albert 2002; Kopenawa 2001b). “Os brancos são

engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria”,

afirma Kopenawa (ibid.: 21) e explica o motivo desta ignorância: “seu espírito está

obscurecido por causa de todos os bens em que fixaram o pensamento.” O conhecimento

dos brancos, calcado na escrita, seria antes um “esquecimento” das palavras dos antigos e,

comparado ao conhecimento possibilitado pelo xamanismo, não é mais que um “simulacro

de visão que só remete ao domínio dos manufaturados e das máquinas” (Albert 2002:

249). A hierarquização dos modos e formas de conhecer yanomami sobre o conhecimento

branco é explícita na fala de Kopenawa:

eles [os brancos] dizem que nós somos ignorantes, mas estão errados. É o
contrário. Somos nós que sabemos das coisas e que protegemos a floresta.
Somos amigos da floresta porque nossos espíritos xamânicos são os seus
guardiães […] São eles que nos fazem pensar direito e ficar lúcidos. Quando
estão perto de nós fazem crescer nossas mentes, fazem-na ir longe. Nosso
pensamento não é fixado em outras palavras. É fixado na floresta, nos
espíritos xamânicos... (Kopenawa apud loc.cit.).

Os bens e recursos dos napë não são separáveis de sua moralidade inapropriada, são

antes, uma das causas de seu pensamento turvo. Na versão de Davi Kopenawa, Omama

expulsou os brancos da terra-floresta, porque estes não ouviram suas advertências sobre o

poder deletério dos minérios e petróleos, puseram-se a revolver a terra e quando

finalmente os descobriram “eles se tornaram eufóricos e se disseram: 'nós somos os únicos

a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!'

que mantém certas regiões da floresta dotadas de maior potencial metamórfico.


165

Foi neste momento que eles perderam realmente toda sabedoria” (Kopenawa 2001b: 22). A

falta de discernimento dos brancos e a imagem das grandes cidades, parecem sugerir quão

pouco promissor pode ser o “caminho do progresso”:

Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas


cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas com
carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e
gente por toda parte. O espírito se torna obscuro e emaranhado, não se pode
mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de
vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que
dizer: 'Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos!
Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!' O
pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a
terra, desbravando-a por toda a parte, e a cavam até debaixo de suas casas.
Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no
mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os 'brancos-espíritos-tatus-gigantes'
(mineradoras) entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios, eles
vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais (ibid.:
23).

A atividade dos brancos traz o risco de uma nova alteração na configuração dos

andares do cosmos, em uma atualização do mito de origem da humanidade atual. A

shawara, cujo campo semântico, em um encontro com os discursos ecológicos, passa a

englobar as noções de “poluição” e mesmo “efeito estufa”, se torna cada vez mais forte

apesar de todos os esforços dos xamãs para combatê-la. No dia em que o último xamã

morrer, o céu realmente caírá e nem sempre os Yanomami se mostram muito confiantes

ante a possibilidade da criação de uma nova humanidade (Smiljanic 1999: 205). Como

atenta Albert, a gênese da humanidade atual pela queda do céu se reproduz como ameaça

de apocalipse, numa reviravolta escatológica: “inserido numa releitura política em registro

de futuro anterior, o mito da queda do céu vê, assim, a autoridade de seu simbolismo

fundador transferida para um projeto de resistência étnica que toma a foram de um

milenarismo de baixa intensidade” (2002: 256).

Os Yanomami parecem, portanto, vislumbrar hoje em dia (ao menos) duas soluções

para o que os brancos representam de problema nas suas vidas: “virar branco” –

experimentando de maneira esta perspectiva outra, e capturando-a para si mesmo com os


166

riscos que isso implica – ou, ao contrário, uma negação radical do valor dessa alteridade

empenhando-se em seu desmonte para a continuação estável da vida yanomami. Essas

alternativas parecem ecoar em uma escala coletiva, os caminhos possíveis para amainar a

vulnerabilidade da pessoa em sua relação com a alteridade: diminuição de seu potencial de

transformação pela via do parentesco e outras técnicas de estabilização do corpo, ou, ao

contrário, experimentação de estados extremos, amplificando este potencial (A-C. Taylor

1996; cf. p.69-70 supra). Lá, como aqui, não se trata de alternativas excludentes, mas de

mecanismos complementares para a fabricação de corpos apropriadamente yanomami,

sejam estes corpos uma pessoa ou uma coletividade: a ação diferenciante como mecanismo

de singularização ou a retomada da moralidade como convenção, são, como visto, parte de

uma mesma dialética. E o xamanismo tem um papel fundamental neste processo, seja qual

for a escala.

Na própria região do Toototobi, onde a transformação em branco é vista como algo a

ser evitado, a conversão ao cristianismo foi considerada frequentemente uma

aprendizagem desejável, e buscada sobretudo pelos xamãs, que, desta forma, passavam a

conhecer os caminhos que levam aos espíritos associados aos brancos (Smiljanic 1999:

185). Em Ocamo também a imagem vital dos brancos e seus instrumentos são

incorporadas como hekuras no xamanismo. Dessa forma, os espíritos hekura yanomami

podem aprender “novas técnicas” com estes espíritos auxiliares napë, mais eficientes no

combate às epidemias, em um processo semelhante à alfabetização realizada pelos

missionários (Kelly 2003: 228). Mas o manejo dos espíritos dos brancos pelo xamanismo

yanomami não visa apenas potencializar a cura de novas doenças, ele é também uma forma

de assumir certo controle sobre este potencial “alterante” da relação com os brancos.

De fato, o xamanismo foi percebido por diversos autores como uma dimensão

fundamental para se pensar as relações inter-étnicas na Amazônia, seja porque ele é a


167

forma privilegiada de saber estratégico para se lidar com alteridade (Albert 2002), seja

porque as mudanças causadas por este processo – o próprio virar branco – são pensadas em

continuidade com as metamorfoses xamânicas (Vilaça 2000). Ao abordar os componentes

da pessoa destaquei que o xamanismo podia ser pensado como um mecanismo de

subjetivação, na medida em que oferece a possibilidade de experimentar outros pontos de

vista sobre seu próprio corpo, porém de uma maneira razoavelmente controlada (cf. p. 70-

7 1 supra). A questão do controle aqui é fundamental, pois uma transformação “des-

controlada” e à revelia caracteriza estados de adoecimento ou não-sociáveis, como o

excesso de mutabilidade antes da intervenção de Omama. Assim, também nas relações

com o branco, tão importante quanto o fato de que elas sejam pensadas como

metamorfoses, é que elas sejam pensadas como metamorfoses minimamente controladas,

que permitam uma re-apropriação criativa dos atributos desta perspectiva outra. 180

Pensemos na própria crítica xamânica da sociedade branca e suas formas de

produção empreendida por Davi Kopenawa. Criado sob a influência dos missionários,

Davi deixou sua região e foi ser intérprete da FUNAI, aprendendo e convivendo com os

brancos, passando por transformações que o faziam um “autêntico” Yanomami civilizado.

Ao fixar-se no Demini e casar-se com a filha de um homem influente da região, um pata

thë, foi iniciado por seu sogro no xamanismo, o que o permitiu empreender um processo

de singularização pela re-apropriação criativa e expressiva de elementos do mundo dos

brancos. A estratégia empreendida por seu sogro é digna de nota: “conquistando o domínio

dos termos da relação interétnica por meio do jogo político tradicional [fazendo de Davi

seu subordinado ao dra-lhe a filha em casamento], garantira ao seu grupo as vantagens de

uma associação com o posto da Funai […] neutralizando ao mesmo tempo a estrutura de

180
Evidentemente este mínimo de controle a que me refiro está em correlação com a dose de casualidade
exatamente suficiente a que referia-se Wagner (1981:72): “Learning to dare, to take the moral constraints
on invention just casually enough to permit the kind of free-wheeling improvisatory action that allows a
firm but flexible creation of convention”
168

dependência paternalista que essa associação geralmente implica”(Albert 2002: 245). A

elaboração da crítica xamânica à sociedade branca, e sua recusa vinda de dentro, é

justamente o resultado do próprio “virar branco” empreendido por Davi e a potência

criativa advinda daí, cooptados pelo xamanismo de seu sogro, “tradicionalista convicto”,

para o fortalecimento dos Yanomami em uma existência autárquica, pois que, a ação

diferenciante não busca outra coisa senão que a constituição de pessoas “poderosas”, poder

aqui remetendo diretamente ao potencial de criatividade que informa a experiência

humana, como já fizemos notar (Wagner 1981; cf. p. 70-71 supra).

***

A análise da relação com os brancos nas etnografias Yanomami permitiu explorar,

em sua faceta acentuadamente dinâmica, como diversas categorias de alteridade e

diferentes predicados morais estão implicados na fabricação de corpos yanomami, sejam

estes corpos “individuais” ou “coletivos”. Em um jogo complexo de diferenciação (pela

captura de perspectivas outras ) e convencionalização (pelo chamado à moralidade), a

composição yanomami/napë se torna uma forma possível de expressão da pessoa dual

yanomami, tanto quanto no contexto convencional isto era dado pela relação bei bihi/bei a

në porepi. Não ao acaso, ambos (napë e bei a në porepi) associados aos fantasmas dos

mortos, figura de alteridade privilegiada entre os Yanomami.


169

Considerações finais

Ao longo desta revisão bibliográfica, percorri diversos tópicos da socialidade

yanomami – relação com os animais e espíritos, componentes corporais da pessoa,

relações com os inimigos, parentesco e cuidado, rituais de fabricação do corpo e de fala,

doenças, relações com os brancos, etc. – tendo como referência o problema da pessoa e

seus múltiplos sentidos e possibilidades de atualização de acordo com o contexto e as

esferas de relações que fossem tomados como referência privilegiada. Nestas

considerações finais, busco apenas retraçar este percurso.181

A observação de que a mitologia yanomami era composta por dois blocos de

narrativas, em certa medida redundantes entre si, foi o ponto de partida para o

desdobramento do problema dos diferentes sentidos que as noções de pessoa, e, sobretudo,

humanidade podem ter entre os Yanomami – tal como entrevistas em suas etnografias. A

redundância entre o conjunto de mitos acerca dos ancestrais animais e aquele referente à

epopéia de Omama, trazia à tona também as contradições entre diferentes sentidos de

humanidade. Nesses mitos, humanidade – que, convém lembrar, confunde-se com a

yanomamidade – surge, ora como uma condição dada da qual participam (potencialmente)

todos os seres do mundo, ora, uma invenção empreendida pelo demiurgo e atributo

exclusivo dos próprios Yanomami.

Essas contradições levaram-me à teoria do simbolismo e à dialética entre convenção

e invenção, tal como proposta por Wagner (1981). No entrecruzamento desta, com as

elaborações sobre o perspectivismo ameríndio (em especial, Viveiros de Castro 2006), se

plasma um repertório de conceitos e disposições que torna possível a afirmação de que

entre os Yanomami – como entre outros “povos tribais”e “ontologias amazônicas” –, o

181
Devo alertar que refaço este percurso com uma grande economia de citações e referências – sobretudo
para tornar a leitura mais fluida – e só tomo a liberdade de fazê-lo, porque acredito que o nome de meus
credores estão inscritos neste texto para além da própria citação.
170

mundo dado seria um fundo comum de humanidade imanente, epitomizado no domínio da

'personitude' pela idéia de 'alma'. Alma refere-se às convenções, de modo que todo ser

dotado de alma compartilharia de uma mesma “cultura” no sentido daquilo que coletiviza:

suas normas, regras, gramáticas. E se a convenção e a “cultura” são da ordem do dado, o

espaço da agência é o de constituição e controle de diferenças específicas pela fabricação

de corpos diferenciados, corpos que são instrumentos, afetos e afecções.

A 'alma' é portanto aquilo que conecta e comunica diferentes seres – espíritos,

animais, Yanomami, inimigos –, fazendo de todos eles potencialmente humanos/

yanomamis: donde resultam nos mitos dos ancestrais animais, os yanomami coati,

yanomami anta, yanomami queixada, etc. É a alma também que faz da metamorfose

sempre uma possibilidade e um risco, pois, na medida em que ativada e precipitada pela

sua relação com outros, a alma se revela extremamente instável, podendo assumir

diferentes formas dependendo das relações que entretenha; isto sem dizer de sua

vulnerabilidade que faz com que ela possa ser roubada, perdida, e mesmo, devorada. A

mitologia dos ancestrais animais, articulando uma condição humana dada e compartilhada,

constituiria-se como uma mitologia da metamorfose.

Entretanto, pela mitologia de Omama, a necessidade da estabilização parece se

afirmar como modo de evitar uma relativização excessiva – isto é, conexões que

desafiariam a um tal ponto a convenção, que acabariam por impedir até mesmo a invenção

–, um colapso, tal como uma queda do céu. Omama assegura distinções ontológicas

importantes, na medida em que opera a dessubjetivação dos animais, desinvestindo-os de

suas almas. Sobretudo, ele cria os Yanomami, retomando o sentido de yanomamidade não

mais como subjetividade compartilhada por todos os seres (yanomami = sujeito), mas

fazendo dela epítome de uma moralidade que não é outra coisa senão a imagem da

socialidade yanomami, retomada como modelo exclusivo (Yanomami = verdadeiros


171

humanos). Na mitologia de Omama, os predicados culturais – dados e compartilhados –

são articulados de maneira deliberada, na forma da moralidade, como meio de afirmar a

socialidade yanomami, enquanto uma ordem distinta neste universo de socialidade

potencialmente ilimitada, e, neste movimento, garantir a estabilização da pessoa.

A 'invenção da pessoa' ocorreria assim em um movimento duplo: de fabricação de

diferenças a partir de um fundo de humanidade dado, e de estabilização e coletivização

diante de um risco de diferenciação descontrolada. Mas, precisamente, é um único

movimento: toda diferenciação é coletivização, e toda coletivização precipita diferença.

Nisto consiste a formulação da dialética de Wagner e a necessidade mutuamente implicada

da convenção e da invenção. E, tanto trata-se de um único movimento, que um princípio

de diferenciação é introduzido (contra-inventado) na própria mitologia de Omama: Yoase,

gêmeo deceptor, responsável por desestabilizar a obra “convencionalizante”. Ou,

justamente, por inventá- la, pois a “convenção”, em uma tradição diferenciante, só pode

surgir se 'provocada' e 'desafiada'.182

Estabilização e metamorfose, convencionalização e diferenciação. Sugeri que pela

articulação desses dois conjuntos míticos e seus predicados, ilumina-se um aspecto

fundamental do entendimento sobre a pessoa entre os Yanomami: o compromisso com a

estabilização de uma forma específica de humanidade não pode excluir definitivamente o

potencial de alteração, uma vez que este, enquanto expressão de um potencial criativo e de

uma condição humana imanente, é o seu artifício de subjetivação e singularização. Os

Yanomami empenhariam-se portanto em minimizar os efeitos reversos deste potencial de

alteração, assumindo o controle das transformações daí decorrentes – donde a importância


182
Os diferentes tricksters da mitologia ameríndia (Lévi-Strauss 1993), seriam assim os precipitadores de
convenção por excelência. Seria possível, assim, retomar um mito Sanumá em que Yoase surge como o
responsável pela criação do modo de vida Yanomami, mais especificamente com suas técnicas (p.138
supra), e vê-lo como um momento de “desmascaramento da convenção”, espécie de piscadela que
revelaria que a máscara convencional, a ilusão motivante a que se submete o ator de modo a distinguir
entre o inato e o artificial – por mais efetiva que seja - não mascara por completo o “poder da invenção”:
Omama pode ser o demiurgo, responsável por tornar o mundo o que ele é, mas o ser verdadeiramente
poderoso, inventor de tudo ( de si e até mesmo de Omama) seria, na verdade, Yoase.
172

do xamanismo –, buscando a dose ótima entre convenção e diferenciação.

Uma vez que o curso da ação pode ser dirigido de mais de uma maneira – isto é,

pode-se empreender ações diferenciantes ou coletivizantes, invertendo para isso, os

contextos do inato e do fabricado –, a dose ótima de convenção e diferenciação não será

sempre a mesma em todas as esferas de interação. Explico-me: na relação com os espíritos

e animais, o fundo de humanidade imanente é considerado como dado motivante, a partir

do qual os Yanomami empenham-se em ações diferenciantes. Observo que diferenciar

significa ao, mesmo tempo, experimentar diferentes perspectivas, fazendo-se

criativos/poderosos, e, também, constituir uma humanidade específica; trata-se de tirar o

máximo de proveitos da diferença. Na esfera das relações inter-pessoais, por exemplo, a

ação é no sentido de extrair a diferença, alteridade, criando corpos semelhantes: dado o

alto potencial de diferenciação e alteridade, é preciso agir no sentido de coletivizar, de

restringir o número de conexões possíveis, sob pena de não mais se reconhecer. Entretanto,

é preciso lembrar que esta coletivização advém como uma ação 'defensiva', e, mesmo na

esfera das relações domésticas, a diferenciação tem um papel fundamental, ainda mais

quando, 'falhando', ela revela (precipita) uma moralidade inata e compartilhada.

Ao me deter na divisão ontológica entre yaropë, yai thëpë e yanomami thëpë,

explorei como os últimos definem-se pela combinação de certos componentes corporais,

que se encontram distribuídos de maneira diferenciada entre as outras espécies de seres. O

domínio da personitude yanomami definiria-se pela articulação entre agência (alma) e

corporalidade: é yanomami aquele que possui uma perspectiva realizada e conforme um

corpo específico. Em outras palavras, o que define a posição de yanomami é ser dotado de

corpo e alma.

Essa afirmação genérica da relação entre corpo e alma adquire sua forma específica

pela relação de uma multiplicidade de componentes, que passa, necessariamente pelo olhar
173

e voz do outro. Enquanto princípio de comunicação e transparência, a alma pode ser

figurada como bei a në utupë, “as verdadeiras imagens”, acessíveis aos xamãs Yanomami;

se tomada como potência de alteração, ela se deixa apreender também como o bëi a në

borëbi, espectro e duplo da pessoa associado aos fantasmas. O corpo como precipitado de

memória e registro da história individual é um corpo animal – bëi a në noreshi –; enquanto

a principal marca de individuação de uma pessoa – bei wãha – é um nome cuja

propriedade se submete por completo ao seu uso pelos outros. A pele, bei sikë, é

responsável por reunir estes componentes conferindo-lhe uma forma corporal visível

específica, enquanto o bei bihi, espécie de consciência e sede da volição e sentimentos,

seria o depositário da própria moralidade, desempenhando um papel preponderante nas

relações inter-pessoais (na esfera das relações intra-comunitárias, para ser mais exata). 183

Ainda na esfera das relações entre animais e espíritos, apontei como o xamanismo é

um importante instrumento de singularização, na medida em que permite a re-apropriação

criativa dessa comunicação e potência de alteração: sugeri que o xamã se torna assim um

modelo para a personitude yanomami, revelando a valorização da criatividade como

realização humana. Mas o próprio xamanismo possui também um uso terapêutico que

busca o re-estabelecimento de um estado de normalidade, re-enviando-nos à uma “estética

da sociabilidade”, na qual o imperativo do bem-viver – impedindo o sofrimento de alguém

– ganha primazia sobre os impulsos criativos (embora, claro, eles estejam sempre

mutuamente implicados). Pois, dentre os caminhos que a 'alma' tem diante de si para

realizar-se, encontra-se também este que retoma a convenção (dada) como algo a ser

deliberadamente instituído.

Os predicados culturais (a socialidade dada) retomados como imagem moral

coincide com a sociabilidade, tanto quanto a retomada convencionalizante da imagem do

183
A idéia de que a alma é o que coletiviza e o corpo aquilo que especifica, recebe assim as devidas nuanças,
necessárias para que a afirmação da conceitualização nativa da pessoa como multiplicidade, não possa ser
retomada como expressão do Um e do Múltiplo (cf. Lima 2005)
174

homem coincide com a figura do parente. Assim, no terceiro capítulo desta dissertação,

tratei dos predicados morais indicados no mito de criação da humanidade por Omama, tal

como eles surgem nas etnografias articulados nas relações entre aliados e intra-

comunitárias: a fecundidade do grupo – referindo-me à produção de 'pessoas similares'

pela comensalidade e pelo estabelecimento de relações de cuidado –, os rituais de

fabricação e estabilização do corpo, e a importância do bem falar como atestado de

compartilhamento de uma mesma condição de humanidade/moralidade. Trata-se de

momentos nos quais a 'invenção da pessoa' ocorre pelo estabelecimento de conexões

consideradas corretas – ou seja, aquelas que reafirmam a convenção –, para que seja

assegurado ao menos um mínimo de estabilidade.

A co-residência e a comensalidade, a ética do cuidado, os rituais de regulação do

fluxo de sangue, os diálogos cerimoniais, seriam, portanto, alguns dos principais artifícios

pelos quais os Yanomami se (re)produzem como um ordem distinta, ainda que englobada e

motivada pelo exterior. Contudo, tal qual na própria mitologia de Omama, a diferença

retorna como contra-efetuação da convenção, revelando-se em estados de adoecimento e

traições, mas é essa contra-invenção que garante a vitalidade desta moralidade, como

notamos. Pois se aqui a diferença é o dado, contra o qual busca-se o estabelecimento de

uma identidade – a constituição de um corpo de parente (um mesmo) a partir de um Outro,

inimigo – tal identidade possui um caráter de impermanência, “não pode durar”.

No quarto e último capítulo, a dialética entre convenção e diferenciação referente à

pessoa yanomami é retomada na esfera das relações inter-étnicas, mais especificamente,

pela relação com os brancos. Fiando-me no trabalho de Kelly (2003, 2005), considerei o

modo como os brancos penetram no universo yanomami tendo um lugar já assegurado

como uma alteridade inata poderosa e perigosa, que os Yanomami esforçam-se por

domesticar por meio de ações coletivizantes. Paralelamente, o conhecimento e o habitus


175

corporal dos brancos são utilizados pelos Yanomami em uma dinâmica própria de

diferenciação – napëprou – na qual, virando brancos, “eles se fazem cada vez mais

yanomami” já que está em jogo aqui uma noção de pessoa calcada no “diferir”. Na relação

com os brancos, a articulação entre uma condição humana compartilhada e uma

moralidade exclusiva, entre a necessidade de aderir à convenção e o impulso à

diferenciação e criatividade, encontra-se em franco processo de experimentação – por

vezes perigosa, como fazem ressoar algumas interpretações catastróficas da relação com os

brancos.

Mas, de fato, essa articulação não estaria sempre em um franco processo de

experimentação? E não seria sempre perigosa, em um mundo onde tudo é humano? Mas,

talvez, seja justamente desse perigo que advenha o brilho da floresta yanomami. 184 A

'pessoa', entre os Yanomami, é sobretudo 'uma relação pessoal com o mundo' 185, de modo

que, ao torná-la o problema dessa dissertação, deparei-me, um pouco inadvertidamente,

com todo um mundo.

Caberia destacar, por fim, que o problema “disparador” deste exercício de revisão, a

constatação de uma contradição entre uma humanidade imanente e compartilhada e a

determinação de uma humanidade como atributo diferenciado e resultado da ação criativa

de um demiurgo, tal como aparecia prefigurada pela correlação dos mitos dos ancestrais

animais e da mitologia de Omama, encontra formulações semelhantes entre outras

populações ameríndias. E o seu tratamento por meio do recurso à dialética wagneriana

adivinharia-se ainda muito mais fecundo do que o explorado nesta dissertação.

184
Refiro-me aqui à imagem da floresta de cristais sugerida pelo xamanismo yanomami (Albert &
Kopenawa 2003), em correlação com uma certa qualidade de brilho que Wagner (1981: 67) sugere ser
perceptível em tradições diferenciantes “Life as inventive sequence has a particular character, a certain
quality of brilliance that beggars comparison with our busy busy world of responsibility and
performance.”
185
Wagner, sobre a forma da pessoa em uma tradição diferenciante, escreveu: “For the soul is at once the
culture's great mystery, the thing it enhances, searches, nourishes, and compels, and also the very
convention that anchors the actor to his world of dialectical invention. It is not only self, but also
morality, not only "person," but also a personal relation to the world.” (1981:72)
176

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