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APARTAMENTO 110

Teo Victor

– Eu não suporto mais. Cuidar de uma casa é uma canseira sem fim!
Quem sentenciava desta forma era um jovem em uma mesa de lanchonete, tendo à sua
volta outros quatro rapazes que contavam há alguns minutos experiências domésticas. Um outro
concordou com o que o primeiro dizia.
– É verdade. Não importa o que você faça, sempre tem que fazer tudo de novo depois de
um tempo. É um trabalho absolutamente necessário, mas cansativo, repetitivo e burro.
– A roupa leva mais tempo sendo lavada, secada, em espera e passada que sendo usada. É
um horror – reclamava um terceiro.
– O chão parece criar poeira por si – reclamou outro.
À distância, um outro rapaz cujo nome era Alfredo acompanhava a discussão enquanto
esperava um pedido para viagem. Ria a cada frase dita pelo grupo, e esperava uma oportunidade
para fazer um aparte. Enfim, num momento em que todos falavam ao mesmo tempo, ele
interrompeu a conversa.
– Vocês estão reclamando à toa. Não é tão ruim assim.
Os cinco rapazes silenciaram imediatamente e se voltaram impressionados para Alfredo.
Ele não tinha calculado mal o instante de fazer sua intervenção. Na verdade, atingiu o efeito
esperado, que era fazer calar o maior número possível de debatentes com um contraponto
surpreendente. Esta era uma de suas manias.
Satisfeito com o silêncio e as caras confusas dos há pouco tão falantes moços, continuou.
– Não entendo por que tanta murmuração. Vocês exageram tudo mesmo?
De fato, Alfredo não era nada tímido, e não sabia usar muito bem seu humor. Alguns
rapazes ficaram próximos de considerar o comentário ofensivo, mas um deles foi tolerante, e
procurou responder de forma igualmente bem humorada.
– Relaxem vocês, ele deve ser empregado doméstico, só está defendendo sua classe
profissional.
Todos riram, inclusive Alfredo, que neste momento recebia seu pedido, que consistia em
um sanduíche e uma Coca-Cola. Antes de sair, contudo, não deixou de fazer um comentário final.
– Sabe, você falou nelas, mas digo que não sei por que empregadas domésticas existem
quando tudo que se tem que fazer é fechar os olhos pra que tudo se arrume. Tchau, gente!
Atravessou a rua então com o lanche na sacola. Esperava ouvir algumas risadas, mas não
as teve. De fato, se olhasse para trás veria cinco rostos mais surpresos do que aqueles que o fitavam
na ocasião de sua interrupção do debate anterior. A diversão daqueles rapazes pelo resto da noite foi
tentar entender o que significava afinal “fechar os olhos para que tudo se arrume”.
Alfredo caminhava para casa tentando entender porque seu gracejo não foi divertido para o
grupo. Não chegou a uma solução, e resolveu não mais usar aquela piada. Também não entendia
por que reclamavam tanto do serviço doméstico.
Chegou em seu apartamento e abriu a porta. Acendeu a luz revelando uma casa
impecavelmente limpa e arrumada. Não se via poeira, restos do que quer que fosse, lixo ou coisas
fora do lugar. A mais crítica e exigente das donas de casa daria parabéns ao responsável pela
limpeza daquele lar. Tudo brilhava como novo.
Saindo da sala de estar, Alfredo jogou sua carteira e as coisas de seu bolso em cima de um
sofá. Ácaros morreriam de fome naquele móvel. Entrou na cozinha, que tinha azulejos tão brancos
quanto possível, e um cheiro tão agradável quanto o de eucalipto, e jogou a sacola sobre a mesa.
Pegou um prato, talheres e um copo no armário, catchup e maionese na geladeira, e começou a sua
refeição.
Descuidado como sempre, derramou refrigerante, molhando a toalha de mesa. Não
bastasse, pintou de vermelho um pano que estava ali perto ao limpar molho derramado sobre a
mesa. Deixou os restos daquele jantar onde estavam. Consistiam em um prato, um copo, um garfo,
uma faca, potes de maionese e catchup, um pano de cozinha que era branco até antes de sua
chegada em casa, uma garrafa vazia de refrigerante, uma sacola, uma embalagem de papel com a
terça parte do sanduíche abandonado e uns quinze guardanapos.
Saindo da cozinha, passou pela sala, e viu sua carteira e suas coisas cuidadosamente
deixadas em cima de uma área livre da estante onde ficava a televisão. Entrou no banheiro, que
estava absurdamente higienizado. Se germes e bactérias em geral produzissem filmes de terror,
aquele banheiro seria uma típica cena de seus pesadelos cinematográficos. Alfredo escovou os
dentes, deixando após terminar a escova sobre a pia e o tubo de creme dental aberto próximo à
torneira. A tampa do tubo, como de costume, caiu no ralo da pia. Achou que o esforço para tirá-lo
de lá não valia a pena, e saiu em direção ao quarto.
Antes, resolveu passar na cozinha para tomar água. Pegou um copo no escorredor, ainda
molhado por ter acabado de ser lavado. No escorredor ainda havia um prato e dois talheres recém
limpos. Abriu a geladeira, e pegou a garrafa de água, que estava ao lado do pote de maionese.
Bebeu e deixou o copo em cima da mesa, que estava com uma toalha que ele ainda não tinha visto.
Parecia ser nova.
Enfim foi para o quarto. Abriu a porta do cômodo e viu, bem na junção duas paredes, uma
figura negra e sinistra, saltando à vista em meio a paredes tão perfeitamente brancas. Alfredo levou
um susto, apagou a luz, fechou a porta e convenceu a si próprio que estava com vontade de ir ao
banheiro. Depois de usar o sanitário, lavou as mãos na limpíssima e organizada pia, e pegou um
pedaço de fio dental.
Dirigiu-se à cozinha, com o fio pendurado nos dentes, olhando para um lado e para outro
como se esperasse por algo. Após uns poucos minutos, pegou o fio na mão e abriu a lixeira da
cozinha para jogá-lo. O fio caiu na lixeira, sobre guardanapos usados, uma embalagem de sanduíche
e uma barata morta.
Voltou ao seu quarto, que era o único da casa. Era um pequeno apartamento, diga-se, mas
suficiente, como ele sempre apontava. Alfredo tinha passado por todos os seus cômodos naquele
pequeno pedaço de noite, à exceção da área de serviço, para se ter uma idéia. Agora ele estava
determinado a dormir.
Abriu o guarda-roupa, que estava mais organizado que uma biblioteca, e pendurou seu
boné, que era novo e merecia, segundo ele, cuidados especiais. O restante da indumentária foi tirado
e jogado pelo chão, incluindo camiseta, calças, cueca, tênis e meia. Vestiu um calção qualquer e foi
deitar-se em uma cama tão bem arrumada que daria pena encostar. Sem cerimônias, puxou o
travesseiro e o lençol e caiu em sono pesado mais rapidamente que o tempo que se costuma levar
pra dizer boa noite.

Batidas pesadas na porta acordaram Alfredo. Ele simplesmente fechou os olhos novamente
e virou para o outro lado da cama, esperando que as batidas acabassem por desistir de incomodá-lo.
Vendo que eram insistentes, resolveu levantar e atender a porta. Já sabia quem era, por isso nem se
preocupou em vestir uma roupa mais adequada para receber uma visita. Abriu a porta com o rosto
amassado, ainda com as marcas de travesseiro.
– Ah, é você – disse secamente Alfredo, como se aquela fosse uma surpresa ingrata, ao
homem parado em frente à porta. De fato era ingrata, mas não era uma surpresa.
– Pode acreditar. Eu tentei ligar. Você desligou o telefone?
– Desliguei. Imaginei que você pudesse ligar.
– Que consideração. Eu vim pra avisar que seu contrato de aluguel vai vencer, já que você
não lê as cartas que mandamos. Você vai querer renovar?
– Acho que sim. Apesar de tudo, é interessante pra mim ficar aqui – o homem imaginou
que ao dizer “apesar de tudo” Alfredo se referia a ele. Imaginou bem.
– OK, mas vai subir para 450 reais.
– O quê? Por quê?
– Inflação, rapá. Tudo subiu, o aluguel tem que subir também.
– Vou pensar no caso, talvez eu ligue depois.
– Tente fazer isso até amanhã, pois eu tenho que…
Antes que o homem terminasse, Alfredo fechou a porta. Detestava aquela figura, tanto que
sequer memorizava seu nome, tratando-o apenas como “o cara da imobiliária”. Estava irritado por
ser acordado por alguém tão indesejável, e logo às nove e meia da manhã, tão cedo para seus
padrões. Foi direto ao telefone e fez uma chamada interurbana.
– Mãe? É o Alfredo. O cara da imobiliária esteve aqui, e o aluguel vai subir muito. Vou
procurar outro apartamento. Sim, eu tenho certeza mãe, não vale a pena pagar mais por um lugar tão
longe da faculdade. Vou procurar um lugar qualquer mais próximo do campus, pode até ser menor,
mas assim se gasta menos.
Vendo que sua mãe não parecia estar muito de acordo, provavelmente devido ao
inconveniente de organizar uma mudança, Alfredo lançou um argumento letal.
– Um colega da faculdade falou de uns apartamentos mais baratos lá perto. Com o dinheiro
que vamos economizar vou poder viajar duas vezes por mês pra poder ir aí ver a família.
Sem mais o que discutir e com a mãe plenamente convencida por tão forte razão, desligou
o telefone. Tomou um banho, e após sair do banheiro jogou a toalha em cima da cama, que estava
até então em perfeita arrumação. Vestiu a mesma camiseta da noite anterior, que estava dobrada em
um cabide dentro do guarda-roupa. Procurou as mesmas calças que usou com aquela camiseta e não
as encontrou, nem no roupeiro, nem no chão.
Foi até a área de serviço e encontrou-as lavadas e penduradas no varal, ainda molhadas.
– Porcaria! Uso a calça uma vez e ela já está lavada! Saco, dava pra usar de novo –
reclamou ou apalpar o tecido e ver que era impossível secá-lo a tempo.
O rapaz contentou-se então em usar outras calças. Escovou os dentes, enxugou o rosto na
toalha que estava pendurada na porta e a jogou novamente sobre a cama. Sentou-se à mesa na
cozinha, preparada com um respeitável café da manhã e comeu o suficiente para um dia inteiro.
Deixou a mesa desolada, escovou novamente os dentes, enxugou novamente o rosto na toalha
pendurada na porta e a jogou novamente sobre a cama. Saiu com pressa para pegar o ônibus para o
campus. Tanta pressa que sequer trancou a porta.
Passou o pouco tempo que restava da manhã na biblioteca, revendo algumas matérias do
curso. Almoçou, apesar do café da manhã, e foi para a aula. Encontrou Jairo no intervalo, que era o
amigo que mencionou os apartamentos próximos à universidade.
– São bons – disse Jairo. Inclusive um dos que estão vagos é ao lado do meu. Podemos
passar lá depois da aula, se quiser. A chave está na portaria e podemos visitar.
Animado pelo amigo, Alfredo foi ao apartamento. O banheiro era menor e menos
confortável. Também perderia espaço na cozinha e na área de serviço, mas achou que o preço valia
a pena, ainda mais por economizar com transporte, já que dali era possível chegar caminhando ao
campus em poucos minutos. Jairo se ofereceu para conversar com o dono do apartamento, e tudo
parecia estar encaminhado.
Alfredo foi para aquela que seria sua casa apenas por mais alguns poucos dias. Chegou ao
mesmo tempo que recolhiam o lixo do prédio. Reconheceu parte de seu lixo sendo jogado dentro do
caminhão, já que uma das sacolas tinha estampado o nome da lanchonete em que tinha comprado
seu jantar da noite anterior. Procurou a chave no fundo de sua mochila, abriu a porta e fez pouca
coisa além de escovar os dentes, enxugar o rosto na toalha que estava pendurada na porta, jogá-la
em cima da cama e dormir no sofá enquanto assistia televisão.

As coisas ficaram prontas em pouco tempo. A primeira visita ao apartamento novo tinha
sido em uma quarta-feira. Na segunda-feira seguinte a mudança já estava sendo descarregada.
Alfredo sentiu um leve prazer ao dizer para o cara da imobiliária que não teria mais que vê-lo. Sua
mãe, por telefone, ficou preocupada quanto à localização do condomínio, mas ele a tranquilizou
falando da segurança do prédio e da calma da vizinhança. Jairo o ajudou a organizar a casa,
obviamente do jeito que solteiros que moram sozinhos vêem a organização de uma casa. Faltaram à
aula, e entraram pela tarde fazendo uma coisa ou outra na nova morada de Alfredo. À noite, para
comemorar o final do trabalho, tomaram litros de refrigerante e comeram hambúrgueres feitos no
microondas, tão macios e suaves quanto pneus de caminhão.
Era de se esperar que a comemoração de dois estudantes fosse com cerveja, e não com
refrigerante. Mas Alfredo e Jairo não eram de beber, o que era visto com estranheza por seus
colegas, mesmo sendo os dois bem aceitos no seu grupo. Enquanto comiam suas iguarias de carne,
assistiram a um filme longo e enfadonho, o que os fez dormir nos sofás.
De manhã, Alfredo acordou primeiro. Sentia-se torto e amassado, como se sente quem fica
deitado em um sofá pouco confortável por muito tempo. Olhou para o chão e viu copos, garrafas de
refrigerante, pratos sujos de gordura, restos de carne e catchup. A TV estava ligada, com a tela azul
do canal de vídeo, e o DVD player tinha desligado automaticamente há muito tempo. Levantou-se,
tentando não fazer barulho para não acordar Jairo. Um esforço desnecessário, já que Jairo não
costumava acordar devido a nenhum tipo de atividade humana possível.
Alfredo tomou banho, enxugou-se com a mesma toalha pendurada na porta, jogou-a na
cama, vestiu-se com as mesmas roupas que tinha jogado no chão antes de banhar-se e voltou para a
sala. Tudo estava como tinha deixado há pouco. As coisas continuavam espalhadas pelo chão.
Nesse momento Jairo acordava. Como tinha dormido no sofá menor, sentia-se um origami.
Despediu-se e foi para seu apartamento, provavelmente para se desdobrar e dormir em uma cama.
Alfredo ficou olhando confuso para as coisas espalhadas no chão. Foi pensativo para seu quarto,
fechou a porta e sentou na cama, em cima da toalha molhada. Jogou-a no chão e se deitou. Só então
percebeu que ainda era muito cedo. Enquanto refletia sem muita preocupação, acabou caindo de
novo no sono.
Acordou horas depois, quase às onze. Pôs-se de pé, e logo pisou na toalha no chão.
Chutou-a para um canto do quarto. Ficou surpreso ao ver a sala com todas as coisas ainda
espalhadas pelo chão. As formigas já dominavam sobre os pratos. Quase explodiu em raiva quando
viu que na mesa da cozinha não havia café, e que a travessa em que tinham torrado os
hambúrgueres na noite anterior ainda estava lá, bem como as manchas de refrigerante e gordura
sobre a toalha de mesa. Abriu uma caixa de leite, uma embalagem de pães e fez uma refeição
simples. Deixou tudo sobre a mesa e saiu.
Almoçou na faculdade, e teve uma boa aula, que o livrou de qualquer preocupação. Sentiu
uma certa ansiedade, entretanto, ao voltar para casa. Pensou se as coisas já estariam organizadas ou
se ainda haveria bagunça. Pôs a chave na fechadura e ela não girou. A porta estava aberta. Alfredo
não imaginou nenhum tipo de problema, já que o prédio era razoavelmente seguro. O que ele fez foi
penitenciar a si próprio por ter esquecido de fechar, algo que não se lembrava de ter acontecido
antes.
Quase chorou ao ver que, à exceção do que as formigas tinham levado, estava tudo no
mesmo lugar. Até mesmo a caixa de leite e a sacola de pães sobre a mesa da cozinha estavam
intocados. Achou que talvez tinha que dar uma solução provisória, e colocou pratos e copos sujos
sobre a pia. “Para facilitar”, pensou ele. Assistiu um pouco de TV para distrair, o que novamente o
acabou levando ao sono. Desta vez acordou pouco tempo depois e foi para seu quarto. A cama
ainda estava desarrumada e a toalha ainda estava no canto para o qual tinha sido chutada. Alfredo
deitou-se, cobriu-se e dormiu falando consigo mesmo.
– Amanhã tudo estará normal. Tudo normal – dizia, enquanto entrava em uma madrugada
de pesadelos com temas domésticos.

––––

Alfredo nunca tinha presenciado uma desordem tão assustadora quanto a que se
estabeleceu na sua casa nova após uma semana. A pia não tinha mais espaço sequer para uma colher
de chá suja. Restos de hambúrguer davam ao lixeiro da cozinha um cheiro especial, e existia a
desagradável companhia constante de moscas de várias gerações nascidas ali mesmo. Copos usados
se acumulavam por toda a casa, e o chão do quarto era forrado por roupas sujas e sapatos jogados.
O colchão estava úmido devido à presença ininterrupta de uma toalha molhada sobre ele.
O pior de tudo eram as refeições, que não ficavam prontas. Era necessário fazer ou
comprar pronto sempre. Por não ter dinheiro suficiente para comer fora todo dia o rapaz começou a
fazer seu próprio lanche. Com isto sua qualidade de alimentação caiu, já que ele era péssimo na
cozinha.
Com a limpeza ele se virava como podia. Lavava um prato toda vez que ia usá-lo e o
devolvia à pia. Resolveu o problema dos copos com copos descartáveis, mas ganhou mais problema
com o lixo, além de ferir sua consciência ecologicamente correta.
Noite após noite Alfredo dormia esperando encontrar tudo arrumado na manhã seguinte.
Achou que fosse um problema temporário, sabe-se lá em que especificamente. Fechava os olhos e
abria de novo para ver se resolvia. Escondia o rosto no travesseiro e depois verificava o resultado.
Nada funcionava.
Conviveu com a sujeira e a bagunça por oito dias, até que considerou a situação
insuportável. Na manhã do nono dia de desespero resolveu tentar fazer algo. Pegou a primeira
camiseta que achou no chão, vestiu-a e foi para o apartamento ao lado. Bateu insistentemente até
que Jairo, com cara de sono, atendesse a porta.
– Jairo, socorro – disse ele enquanto entrava apressado na casa do amigo. As coisas não
estão se arrumando na minha casa.
– Como é, Alfredo?
– A pia tem louça suja há uma semana, o lixo está transbordando no cesto, as roupas estão
espalhadas pelo chão, até as peças que usei segunda passada… o caos mora ao seu lado, e se chama
minha casa.
Jairo julgou ter entendido o que o amigo queria:
– Cara, amanhã eu dou uma força, mas hoje eu não posso ajudar, tem aquele trabalho pra
entregar. Falando nisso, você fez?
Enquanto Jairo falava, Alfredo percebeu que o apartamento do amigo estava bastante
bagunçado também. Incompreensivelmente, havia uma meia sobre a antena da TV, e uma cueca
embaixo do pequeno rack da sala. Surreal até para quem tinha acabado sair do recinto que julgava
ser até então a própria definição de desordem. Sem dar atenção à pergunta que Jairo tinha feito,
disse:
– Seu apartamento também está com problemas?
– Do que você está falando?
– Dessa bagunça.
– É, como você deve entender, não tenho tempo pra arrumar, e nem dinheiro sobrando pra
pagar uma faxineira… então me viro como posso. Inclusive, se eu te ajudar amanhã você me ajuda
a dar uma arrumada aqui no sábado?
– É isso que está errado, Jairo! Por que precisamos arrumar nós mesmos ou contratar uma
faxineira? Por que as coisas não se arrumam sozinhas por aqui?
– Pois é, eu também gostaria que se arrumassem, mas isso não acontece.
– Se eu soubesse disso tinha ficado no outro apartamento.
– Por quê? Lá as coisas se arrumavam sozinhas? – Jairo perguntou sorrindo, em um tom
jocoso, obviamente zombando de Alfredo.
– Sim.
A resposta de Alfredo foi tão natural e espontânea que Jairo parou surpreso. Ele sabia que
Alfredo não era sarcástico, nem tinha um bom humor, nem sabia disfarçar muito bem emoções para
fazer uma brincadeira parecer verdade.
– As coisas se arrumavam sozinhas? - Repetiu a pergunta, cético.
– Sim. Por que você está surpreso?
– Você não lavava louças, roupas, limpava o chão ou tirava o lixo?
– Não.
– E como funcionava isso? Você morava sozinho?
– Sim, eu morava sozinho.
– Nenhuma faxineira secreta que arrumava tudo quando você saía?
– Claro que não. As coisas ficavam no lugar mesmo quando eu estava em casa, sem
ninguém. Saía de um cômodo para outro, e quando voltava tudo que estivesse desarrumado já
estava no lugar, seja roupa, vasilha, comida, lixo, escova de dentes, ou o que quer que seja.
Jairo chegou a se preocupar com a saúde mental do amigo, mas algo na forma de Alfredo
dizer as coisas fazia tudo parecer verdade. Passou então alguns minutos ouvindo Alfredo contar
como tudo se arrumava aparentemente sozinho. Jairo se impressionou, o que Alfredo não
compreendia, já que achava que a arrumação espontânea era algo presente em todos os lugares.
– Quando eu morava na casa dos meus pais era assim. Embora eu visse minha mãe fazendo
uma ou outra coisa, na última casa nunca via ninguém, mas as coisas se arrumavam. Pra mim ficou
sendo a mesma coisa, o mesmo resultado, e achei tudo normal.
– Não é normal. Precisamos ir lá verificar como isso funciona. Quero o telefone da
imobiliária. Onde você morava? – Pediu e perguntou Jairo, entregando o telefone celular para
Alfredo.
– Residencial Ipê Amarelo, apartamento 110 – respondeu Alfredo enquanto digitava o
número da imobiliária no telefone de Jairo. Mas pra que você quer isso?
– Vou ligar lá e perguntar sobre a disponibilidade do apartamento. Vou me apresentar
como alguém interessado, e agendar uma visita. Sei que você não gosta do cara da imobiliária, e
também ele conhece você, e ia desconfiar de algo.
– Excelente idéia. Você é bom, cara. Mas não vai dar pra observar muito durante o tempo
de uma visita, sem contar que o cara da imobiliária vai estar junto. Se isso for uma característica
real do apartamento, e ele descobrir, vai querer aumentar o aluguel para um preço muito alto.
– É, faz sentido. E como fazemos então?
– Façamos os seguinte. O terreno atrás do prédio está vazio. É apenas um matagal. É
possível chegar ao muro através dele. O meu antigo apartamento é no térreo. O muro protege
exatamente a área de serviço. Não há cerca elétrica naquele trecho de muro, talvez porque ninguém
tenha percebido que uma pessoa magra pode passar pelo espaço entre o teto e o muro. Você vai
deixar a porta de trás aberta durante a visita, sem que o cara perceba. Eu entro pela área de serviço,
depois de pular o muro, e fico na casa observando. Se você quiser pode vir depois. Perfeito, não é?
– Temos uma pequena chance de sucesso, e uma grande chance de dormir na cadeia.
Perfeito. Vou ligar pro cara – concordou prontamente Jairo, que gostava de aventuras sem sentido.

Jairo marcou com o corretor para a sexta-feira seguinte, estrategicamente ao final da tarde,
para que nenhuma visita posterior estragasse os planos. Na hora marcada a visita aconteceu, e Jairo
conseguiu deixar a porta aberta como o combinado. Saiu do apartamento no início da noite, já
escuro. Ligou para Alfredo então.
– Cara, eu realmente sou bom. Foi tudo um sucesso. Pode ir pra lá, eu vou comer antes de
ir. É bom não chegarmos juntos também, pois pode chamar muita atenção, além de pegar mal dois
caras entrarem juntos no mato.
Alfredo, em uma lanchonete próxima dali, apenas confirmou tudo e foi para o local. Ficou
parado em um ponto de ônibus próximo ao terreno baldio, e aguardou até um momento em que a
rua estivesse vazia, o que não demorou muito. Logo entrou no matagal, e foi passando por um
caminho estreito e tortuoso que levava ao fundo da área, que era justamente o muro do prédio em
que antes morava, que tinha frente voltada para outra rua.
Sem dificuldade, pulou o muro e entrou na casa. Não deixou de sorrir ao confirmar que
Jairo tinha conseguido deixar a porta aberta. “Não é que o malandro conseguiu?”, pensou ele.
Foi para seu antigo quarto e fechou a porta, já que lá, dessa forma, podia acender uma
lamparina portátil que tinha levado sem que ninguém de fora ou de outro apartamento percebesse.
Acendeu sua pequena luz e viu que a casa estava sem mobília, mas se encontrava limpíssima.
Nenhum fragmento de pó no chão, nenhuma teia de aranha e nenhum inseto morto. Sentou no chão,
tirou uma revista da pequena mochila que trazia e começou a ler para esperar Jairo.
Por sua vez, Jairo já tinha acabado de comer, e se dirigia para o antigo apartamento de
Alfredo. Seguiu os mesmos métodos do amigo, mas teve pouca sorte ao entrar no matagal. No
segundo andar do prédio uma mulher estava na área de serviço e viu a incursão de Jairo.
Imediatamente ela ligou para a polícia. Por menos sorte ainda, uma viatura da PM passava muito
perto dali, e foi acionada pelo rádio.
Antes que Jairo pulasse o muro, já que teve dificuldade no caminho difícil pelo meio do
mato e do entulho, o carro da polícia já tinha parado na calçada em frente ao terreno, e dois policiais
desceram rápido e entraram no mato com armas em punho, surpreendendo o rapaz com as mãos no
alto do muro. Jairo, estupefato, apenas soltou-se do muro e levantou as mãos.
– Eu posso explicar tudo!
– Que bom. O delegado vai gostar de saber – disse um PM mais engraçadinho. Você está
preso.

––––

Alfredo já tinha terminado de ler a revista inteira, ou pelo menos o que valia a pena ser
lido. Cansado, encostou na parede. Estava inquieto, pois já fazia uma hora e Jairo não chegava.
Impaciente, imaginava que o amigo tivesse desistido da aventura arriscada por medo. Pegou o
celular e enviou uma mensagem de texto para Jairo. Apagou então a lamparina, para economizar
baterias, pois não sabia quanto tempo teria que ficar ali. Encostado como estava, acabou dormindo.
Seu sono não durou muito. Alguns minutos depois, algo roçava em sua mão, que estava
pousada no chão. Involuntariamente, mexeu o braço, e acordou. Abriu um pouco os olhos e, já
acostumado à escuridão, viu uma barata andando pelo meio do quarto. Estava com tanto sono que
nem associou a barata ao seu despertamento precoce. Continuou sentado, olhando a barata, que já
subia a parede. Alfredo já tinha os olhos semi-cerrados e pesados, que já se fechavam para voltar ao
sono.
Mas, repentinamente, um vulto rápido como que atravessou à frente da barata, bem
próximo dela. Aquele vulto só seria perceptível por quem estivesse há muito tempo em um quarto
escuro e vazio, onde não há movimentos bruscos nem nada que chame atenção. Alfredo percebeu, e
acordou por completo, um pouco assustado. Prestou bastante atenção ao inseto para ver se aquilo se
repetiria.
Não se repetiu, mas desde o vulto a barata ficou imóvel por alguns segundos. Depois caiu
no chão, de pernas para cima, sem fazer qualquer movimento. Alfredo não acreditava no que via.
Tentava entender o que tinha matado aquele animal. Sentia medo também, porque não conseguia
não pensar em forças espirituais. Inseticidas espirituais, é verdade. Entendeu que ficar parado não
resolveria seu medo. Levantou-se, jogou para o lado a revista, que caiu aberta, com as páginas
voltadas para o chão. Enquanto se levantava, esbarrou na lamparina, que tombou no chão, fazendo
um pequeno barulho, que naquele quarto vazio parecia ensurdecedor.
Amaldiçoou sua falta de coordenação, e foi em direção ao inseto. Nada parecia anormal.
Era apenas uma barata morta como qualquer outra. Nada na parede ou em volta. Nenhum sinal do
que poderia ter sido aquele vulto. Pensou que poderia ter sido uma ilusão, mas seria muita
coincidência ter uma ilusão justamente no momento em que uma barata sofre uma morte
fulminante. Alfredo pensou nas mais bizarras possibilidades, desde que ele era dotado de poderes
mentais no seu inconsciente, que eliminou por si uma barata antes que ela se tornasse uma ameaça
até cogitar a existência de um deus das baratas que tinha julgado aquele ser como um inseto pecador
e digno de morte.
Saiu do quarto e ficou rodeando a sala, no escuro. Sentiu vontade de ir ao banheiro. Usou o
sanitário, e, mecanicamente, apertou a descarga. No meio do barulho que a água gerava ao descer a
privada, amaldiçoou-se novamente por ser tão descuidado. O som da descarga parecia encher todo o
universo. Os vizinhos já deviam achar que havia algo estranho. Resolveu então que era hora de sair
dali. Seria melhor deixar a solução para outra oportunidade do que ser pego em flagrante dentro de
uma casa alheia.
Correu para o quarto para pegar suas coisas e sua surpresa foi maior que a pressa em ir
embora. A barata não estava mais lá, e a revista estava devidamente fechada, ao lado da lamparina
em pé, colocados em um canto da parede. Via-se sozinho, mas sentia-se cercado. Pensava estar
rodeado de forças e entidades. Sentiu assombro, e seus ouvidos já pareciam ouvir um rumor de
vozes comentando sua presença.
Demonstrando uma coragem atípica, gritou alto:
– Espíritos que arrumam esta casa, venham falar comigo!
Alfredo sentiu-se gelado. Percebeu uma presença ao seu lado esquerdo. Vinda de baixo,
uma voz quase inaudível disse:
– Espíritos? Do que você está falando?
O rapaz olhou para baixo e viu um pequeno rosto que o encarava. Fez uma expressão de
medo intenso, e antes que reunisse forças suficientes para gritar, ouviu novamente a mesma voz
dizer bem baixo algo, em tom de comando.
– Não deixem ele fazer barulho! Façam alguma coisa!
Antes de abrir a boca e deixar escapar um grito, Alfredo sentiu algo, ou mesmo várias
coisas subindo por suas costas. Em uma fração de segundos sentiu sua boca ser tapada por várias
coisas pequenas que pressionavam seus lábios. Sentiu um impacto próximo ao pé, como se fosse
uma rasteira. Caiu ao chão, e sentiu seus braços, pernas e pescoço imobilizados. Estava em grande
terror, e tentava se debater inutilmente. Ouviu novamente a voz dizer algo.
– Reúnam todos os outros. Vamos conversar com esse rapaz que nos chamou de espíritos.

Jairo esperava o delegado chegar para o interrogatório. Enquanto isso, explicava para os
policiais a história inteira. Contava como ele iria tentar descobrir como uma casa se arrumava
sozinha. Estava desesperado, e por isso dizia tudo como se fossem coisas absolutamente normais.
Mas mesmo nessa situação não entregaria Alfredo. Era tolo, mas era bom amigo. Os policiais, tanto
os militares que o conduziram preso, quanto os que estavam em plantão na delegacia, apenas davam
risada.
No meio de mais uma tentativa inútil de convencer a todos, seu telefone, esquecido ligado
sobre uma mesa, lá depositado como objeto apreendido, tocou. Jairo temeu que fosse Alfredo, e
lamentou não ter tido tempo de avisar o amigo. Um policial caminhou em direção ao aparelho e o
apanhou, enquanto Jairo não escondia a inquietação. O policial leu em voz alta a mensagem.
– “Já tô dentro da casa. Você não vem?”
Jairo abaixou a cabeça.
– Então tem outro malandro? – perguntou asperamente um outro policial. Tem que voltar
lá e procurar o outro - disse o mesmo policial aos PMs que estavam lá ainda.
Rapidamente, saíram em direção ao prédio em que capturaram Jairo. Os policiais civis
ficaram discutindo o que poderiam estar tratando naquela casa. Talvez fosse um esconderijo de
drogas ou de objetos roubados, segundo eles. Discutiram até o delegado chegar, quando então foi
informado da situação, e passou a rir da história de Jairo.

Apesar do indizível terror, Alfredo se acostumou em instantes ao medo. Ao ver-se em


situação inescapável, percebendo que nada poderia fazer, tratou de engolir os gritos que ainda
tentavam sair pela boca bem fechada por forças ainda desconhecidas e tentar encarar o rosto que o
assustara há pouco. Resolutamente, virou o rosto com os olhos fechados para a direção onde sabia
estar aquele que falava com a voz baixa. Soltou o ar dos pulmões e abriu os olhos.
Tentou soltar gritos ao contemplar aquela imagem, mas foram abafados pela força que
continha sua boca. Alfredo se via diante de algo que parecia um homem, mas um homem muito
pequeno. Julgava que a cabeça daquela criatura não devia passar do seu joelho quando estivessem
ambos em pé. Assustou-se mais ainda ao ver que haviam mais dessas criaturas próximas a seu pé,
provavelmente os responsáveis por derrubá-lo, e ainda outros à volta do pescoço, da cabeça, e dos
braços, os prováveis executores da sua suavização da queda e imobilização. Uns quatro dos que
estavam à volta da cabeça tapavam sua boca com suas pequeninas mãos. O que falara antes dirigiu a
a palavra a Alfredo.
– Soltaremos você se prometer não gritar ou fazer barulho, ou tentar nos atacar.
Aquela pequena criatura era muito baixa, mas só agora ele via que era de porte avantajado,
roliça e aparentemente bem forte. Já quase se acostumando à situação, Alfredo fez um aceno de
cabeça, que foi entendido com a promessa pedida pelo pequeno. Um a um, os outros seres soltaram
o rapaz.
Alfredo afastou-se deles rápido, sentado, movimentando-se com as mãos, até encostar-se
na parede. Fitou a todos aqueles pequenos rostos que o encaravam. Fez então a mais óbvia pergunta
possível.
– Quem são vocês?
Um deles, sem nenhuma característica especial, já que pareciam todos iguais, deu um passo
à frente, e começou a cantar, com a voz bem baixa, uma música alegre, enquanto alguns começaram
a acompanhar batendo os pés, estalando os dedos ou fazendo efeitos vocais.
Limpamos e sempre organizamos
Deixamos tudo limpo pra você
Servimos e nunca reclamamos
Sabemos muito bem o que fazer
Aquele que primeiro havia dirigido a palavra a Alfredo interrompeu a canção. Parecia
gritar, mas a voz não saía muito mais alto que a voz de alguém falando baixo.
– Calem essas malditas bocas cantarolantes! Odeio essa mania infeliz de responder
cantando quando nos perguntam. Não fazemos chocolate aqui.
Como se tivessem ensaiado, todos abaixaram suas pequenas cabeças ao mesmo tempo, em
uma aparente demonstração de vergonha.
– Desculpe a inconveniência, grande Alfredo – continuou o pequeno, em um tom bem mais
gentil do que já tinha demonstrado até agora.
– Que isso, sem problemas – respondeu Alfredo, tentando retribuir a mudança de tom, e
procurando digerir o fato de aquela criatura saber seu nome.
– É que vivemos muito entre nós mesmo – prosseguiu o pequeno. Quando temos a
oportunidade de nos fazer notáveis perante alguém diferente alguns extrapolam. Nós gostamos
muito de assistir musicais também, e os mais novos acabam se empolgando. Mas não ligue pra isso.
E já que nos viu, convém uma apresentação. Pode me chamar de Micron.
– Então esse é seu nome?
– Não, meu nome é Osvaldo. Mas sempre quis me apresentar com um nome grego, pra
poder explicar o significado. Você é o primeiro pra quem eu tenho que me apresentar assim
formalmente. Obrigado por realizar meu sonho.
– Disponha. Então são vocês que limpam tudo?
– Sim, somos nós. Eu e meu pessoal deixávamos tudo no seu devido lugar, limpo e
arrumado, sem que você percebesse.
– E como eu não percebi esse tempo todo?
– Você não é lá tão esperto, admita – respondeu, com um sorriso sarcástico nos lábios, um
dos outros pequenos no meio da pequena multidão.
– Shhht! Eu estou conversando com ele. Não seja áspero com o rapaz – repreendeu com
um olhar maligno Micron, ou Osvaldo, por assim dizer, o pequeno zombeteiro.
– Temos a habilidade de ficar invisíveis, Alfredo.
Dito isso, ficou invisível, diante do que Alfredo teve um sobressalto. Foi seguido por
vários dos pequenos, o que demonstrava que eles ansiavam por uma oportunidade de se mostrarem,
já que aquilo era desnecessário para apresentar o poder de que falava Osvaldo. Alguns segundos
depois, Osvaldo reaparece, seguido pelos outros.
– Além disso, Alfredo, somos muito rápidos.
Mal terminou de falar, apareceu ao lado de Alfredo, que novamente se assustou. Antes de
completar seu susto, Osvaldo já estava de volta à sua posição original, à frente do rapaz, que tentava
organizar os pensamentos, e responder à ofensa do pequeno que o zombou. Mesmo sendo
verdadeira a afirmação do pequeno, Alfredo entendeu a piada. Em um tom sarcástico, perguntou
olhando para seu ofensor:
– Se vocês são tão rápidos e podem ser invisíveis, porque vi um vulto quando a barata foi
morta?
Micron suspirou, e respondeu.
– Foi a única falha que cometemos em tanto tempo aqui. Usamos pequenos porretes para
matar as baratas. Você pode ver alguns pendurado na cintura de uns poucos entre nós. Esses
porretes não se tornam invisíveis, por isso temos que usá-los com cuidado. Um de nossos jovens,
novato na divisão de elite anti-barata, se empolgou e acabou julgando apressadamente que você
dormia, matando o inseto na sua frente. Percebemos que você tinha visto, e resolvemos nos
apresentar, já que você aparentemente tinha suposto nossa presença.
– Então vocês podem saber quando eu estou dormindo?
– Sim, os mais experientes sabem dizer com certeza. Nessa hora fazemos nossos trabalhos
silenciosa e rapidamente. Esperávamos sempre seu sono pra poder carregar as coisas, já que,
mesmo invisíveis, as coisas que carregamos não são, e seria estranho pra você uma meia suja
passeando pelo quarto.
– Se as coisas que vocês carregam não ficam invisíveis, porque suas roupas ficam?
– Não sabemos responder, já surgimos com elas.
– Vocês atravessam paredes?
– Sim, principalmente através das portas, mas também usamos as janelas.
Alfredo levou a mão à testa. Não era exatamente isso que esperava como resposta, mas se
conformou com a ironia inocente da afirmação de Micron.
– E como eu nunca vi uma porta se abrindo sozinha aqui?
– Sabemos o momento exato de abri-la, e mantemos as dobradiças em perfeito estado para
que não façam barulho. Nunca percebeu que as portas aqui não rangem?
– Agora que você disse, realmente, percebo. Outra coisa, Micron Osvaldo…
– Por favor, me chame apenas por um nome ou outro. Tratando-me com os dois soa algo
como “Micronosvaldo”. Isso me desagrada.
– Como quiser. Então, Osvaldo…
– Eu prefiro o Micron…
– Como quiser, Micron. Como dizia, mesmo que tivesse visto a barata morrer, jamais
suporia a existência de vocês se não tivesse visto a revista e a lamparina arrumados quando voltei
ao quarto. Por que vocês não deixaram de arrumar para ocultar a presença de vocês?
– Sabíamos disso, mas não podemos não agir quando podemos agir. É mais forte do que
nós mesmos. Se algo existe para ser limpo, e pode ser limpo sem sua percepção imediata, devemos
fazê-lo, mesmo que leve você a conclusões posteriores que indiquem nossa ação.
Alfredo abaixou a cabeça e começou a pensar. Percebeu que era hora de levar a conversa
para outra direção.
– E por que vocês faziam isso por mim?
– Não era por você, exatamente, embora o servíssemos na prática, e a qualquer um que
entrasse aqui. Estamos ligados a essa casa.
– Por quê? Como?
Micron abriu a boca para falar, mas foi interrompido por um movimento na porta que dava
para o corredor do prédio. De fato, apenas os pequenos perceberam aquele rumor sutil. Em um
instante, todos ficaram invisíveis. Poucos instantes depois, a porta se abriu violentamente, e luzes
cegaram temporariamente Alfredo. Vozes soaram pelo quarto.
– Quieto, malandro, quieto!
Alfredo não entendia, mas via armas apontadas pra ele. Levantou as mãos mecanicamente,
e foi puxado por um dos braços, e algemado. Eram quatro homens à sua volta, e todos diziam coisas
para as quais não dava atenção. Antes de ser arrastado para fora, voltou-se para dentro do
apartamento e disse alto:
– Micron Osvaldo! Procure-me por favor, se você puder sair daqui! Moro na Rua 5 de
Julho, 3591, apartamento 205. Por favor!
– Mas o Micronosvaldo pode te procurar na delegacia agora e na prisão depois, porque
você tá em cana, rapá – disse o mesmo PM engraçadinho de antes.
Dois policiais revistaram o apartamento em vão procurando o tal Micronosvaldo. Pensaram
que ele poderia ter pulado o muro, mas não viram ninguém no terreno baldio, e ninguém viu uma
pessoa fugindo do local. Começaram a crer que Alfredo delirava enquanto levavam o rapaz para a
delegacia

––––

Constrangido, Jairo encarou Alfredo entrando na delegacia. Moveu os lábios sem emitir
sons, pedindo desculpas. O amigo respondeu com uma cara de desânimo, tentando inutilmente
reconfortar Jairo expressando que a situação era inevitável. Não permitiram que eles conversassem.
Alfredo foi se identificar e prestar depoimento assim que chegou. Não passou pela cabeça do jovem
ligar para o pai, que era advogado. A vergonha que ele sentiria não compensaria o apoio, pensava.
Com um rosto forçadamente sério, o delegado ouviu Alfredo contar exatamente a mesma
história que Jairo tinha relatado a respeito da razão de estarem no apartamento. Julgando agir
prudentemente, Alfredo não mencionou que tinha visto as pequenas criaturas, já que imaginou que
o considerariam louco, ou pensariam que tinha usado drogas.
Depois das formalidades e do fim do depoimento o delegado afundou-se na sua cadeira,
sorriu estranho para o escrivão, que também mostrava uma cara alegre, e disse para Alfredo:
– Pronto. Pode ir com seu… é… amigo.
Alfredo não entendeu. Estudante de Direito, imaginava que tinha infringido o Art. 150 do
Código Penal, e com um agravante. Além disso, tinha sido surpreendido no próprio ato. Contudo,
não estava preso em flagrante e não havia termo circunstanciado. Demorou para levantar-se da
cadeira. De fato, só o fez quando o próprio delegado levantou-se para ir embora.
Ao sair da sala viu que Jairo já estava em pé no corredor, bastante impaciente. Ali próximo
outro policial do plantão conversava descontraidamente com dois PMs. Todos olhavam para os dois
amigos. Alfredo os encarou tentando entender o porquê, mas Jairo o puxou pelo braço e o levou
para fora.
– Vamos embora logo.
– Cara, o que aconteceu aqui? Por que liberaram a gente assim?
– Não importa – sentenciou Jairo. Liberaram a gente, não vão instaurar inquérito, o
promotor não vai ficar sabendo e nem nossos pais. Vamos pra casa logo.
– Isso é bastante estranho.
– Não reclame! Você quer ser delegado, não é? É bom não ter nenhum registro ruim no
passado pra seguir essa carreira.
O argumento de Jairo e o cansaço foram maiores que a razão, e Alfredo concordou em
seguir caminhando para casa, que não era tão longe assim. Era certo, entretanto, que eles não
tinham outra opção, já que não havia linhas de ônibus ativas naquele horário. Esquecendo-se logo
da bizarrice do tratamento na delegacia, começou a contar a experiência no interior do apartamento.
Jairo, obviamente, demorou a acreditar.
– Certeza que não era sonho?
– A polícia me encontrou muito bem acordado.
– Você disse que se sentiu imobilizado. Isso não indica terror noturno?
– Terror noturno deixa marcas pequenas pelo corpo? - Disse Alfredo enquanto mostrava
marcas das pequenas mãos que o prendiam.
Jairo estremeceu ao perceber que as coisas faziam sentido. Os amigos ficaram tão tomados
pelos eventos atípicos que Alfredo relatava que não deram atenção a uma viatura da PM que se
aproximou e reduziu a velocidade. Ao passar do lado deles, o policial no banco do carona, o mesmo
engraçadinho que prendeu Jairo e Alfredo com tiradas anedóticas, abaixou o vidro e voltou-se para
os jovens, com uma entonação sarcástica na voz.
– Boa noite, casal!
A viatura foi-se devagar o suficiente para se ouvir as gargalhadas dentro do carro. Jairo
abaixou a cabeça. Alfredo olhava para o carro da polícia se afastando, enquanto a sua mandíbula
parecia querer divorciar-se de seu rosto.
– Esses caras são malucos?
Alfredo viu que Jairo respondeu constrangido com uma confusão de sons sem sentido,
evitando olhar diretamente nos olhos do amigo que perguntava.
– Jairo, o que você disse no depoimento?
Jairo hesitou.
– Jairo! – Gritou Alfredo.
– Eu disse que nós fomos para o apartamento vazio ter relações homossexuais devido a
uma fantasia sua relacionada à excitação que o perigo causa em você.
Alfredo arregalou os olhos, enfrentou novamente o pedido de divórcio da mandíbula e
parou de respirar, ficando imóvel por alguns segundos. Ao voltar à classe de ente animado, piscou,
inspirou profundamente, envolveu a cabeça com os braços, inclinou as costas, deu marteladas com
as mãos no ar e gritou.
– Filho da puta!
O xingamento saiu de sua garganta com uma vontade e com um ímpeto que nunca tinha
experimentado. Se tivesse atendido ao impulso de enforcar Jairo com as próprias mãos teria tido
menos satisfação que com o brado impetuoso que ecoou por toda a vizinhança. A última palavra
tinha saído tão potente que a seiscentos metros dali uma mulher parada na calçada, usando uma saia
vermelha curtíssima, meia-calça preta e blusa transparente perguntou à colega ao lado se não tinha
ouvido alguém chamar por ela.
– Que obscuro pensamento insano de merda levou sua imbecilidade a cometer esse
disparate?
Quando Alfredo ficava nervoso sempre seguia a comum prática de encher as frases de
palavras desnecessárias e de baixo calão. Jairo tentou acalmar o amigo.
– Você preferia estar preso mantendo a pose de macho?
– Você prefere estar na rua e ser gay?
– Eu não sou gay!
– Então o que fez você pensar que isso era uma boa idéia?
– Cara, você sabe, com todas essas ONGs e movimentos gays e apoio político e da
imprensa à causa homossexual, policial nenhum quer prender gays após eles terem relações em
público com medo de sofrerem punições administrativas e talvez até penais. Imagine neste caso,
que seria uma suposta relação em particular! Ser taxado de preconceituoso pode ter conseqüências
drásticas! Foi o escape perfeito pra situação. O delegado certamente previu cinqüenta militantes
homossexuais se beijando à frente da delegacia em protesto à nossa prisão, acompanhados por dez
carros de equipes de TV.
– Se a nossa imagem heterossexual tivesse sido preservada estaríamos presos, mas amanhã
já voltaríamos pra casa, e a defesa seria fácil. O fato de ter morado lá por anos geraria algum bom
argumento pro meu pai, certamente. Mas se você prefere essa fama, vá procurar um marido
sozinho. Vou pra casa tentar refazer minha imagem.
– Você é um ingrato! Como você faria pra ser delegado com registros criminais?
– Antes uma ficha criminal a uma ficha homossexual! Ficou ainda mais difícil agora!
– Vá logo, seu maluco.

–—
Ainda irado e inconformado com Jairo, Alfredo entrou em casa e bateu a porta. Colocou
uma lista de músicas para tocar, não porque isso fosse ajudá-lo a relaxar, mas porque não queria
ouvir quando Jairo chegasse na casa ao lado.
Esparramou-se no sofá e respirou fundo. Olhou para a frente e viu uma cena estranhíssima
que, em outra situação o teria feito gritar de susto. Micron Osvaldo estava próximo à televisão,
imóvel, com as mãos para trás, como que esperando algo. Só então percebeu que a casa estava
totalmente limpa e organizada. Devido ao estado em que aquela noite absurda o deixou, entretanto,
não se impressionou com nada. Micron Osvaldo interrompeu o player de áudio e pôs-se logo a falar.
– Elegemos você, grande Alfredo, como nosso novo chefe. Não se preocupe, você não nos
notará e…
Uma canção o interrompeu.
Invisíveis muito trabalharemos
Nosso chefe não incomodaremos…
Micron apenas olhou para os cantores, o que fez com que eles se calassem imediatamente e
saíssem com as cabeças baixas. Várias pequenas criaturas se apresentaram, como que se saudassem
o novo chefe. Alfredo olhou seriamente para eles.
– Não quero saber de vocês. Por causa dessa loucura agora vão achar que gosto de homem.
Tenho uma reputação a reconstruir, e ter criaturinhas surreais em casa não é um bom modo de
começar essa reforma. Desapareçam todos!
– O desejo de nosso chefe é sempre cumprido – Disse Micron.
Todas as criaturinhas foram desaparecendo aos poucos. Não antes, claro, de uma última
canção.
Imediatamente o chefe nos despede
Tão logo na casa nós chegamos
Vazio futuro vil incerto nos recebe
Ainda assim ditosos nós cantamos
O cansaço foi maior que a crise de nervos, e logo que os pequenos sumiram Alfredo teve
um conturbado sono, cheio de pesadelos com exposição pública à vergonha, roupas coladas e coisas
cor-de-rosa.
Nos meses seguintes Alfredo tomou medidas para refazer sua imagem. Afastou-se de Jairo,
mudou de prédio e contratou uma jovem razoavelmente bonita para limpar e cuidar da casa. Teve
com ela um caso público por um tempo, que incluía encontros íntimos com janelas abertas e
barulhos intensos. Assim que os rumores de sua homossexualidade foram esquecidos, dispensou a
jovem faxineira e contratou uma senhora que cobrava mais barato e tinha menos atribuições não
relacionadas ao serviço doméstico em si.
Os novos inquilinos do apartamento 110 do residencial Ipê Amarelo tiveram dificuldades
para controlar as baratas.

–—

Bem vestido e bem mais maduro do que quando descobriu as prestativas criaturinhas,
Alfredo entrou na sala de audiências como réu. Era acusado de dois crimes supostamente cometidos
em uma mesma situação. O próprio Alfredo, delegado recém-empossado, tinha prendido Jairo por
uma suspeita cumplicidade devido a um parecer comprometedor em um esquema que envolvia
desvio de recursos públicos por parte de uma ONG que defendia a causa homossexual, para a qual o
antigo amigo de Alfredo prestava serviços de assessoria.
O Ministério Público interveio furiosamente, e Alfredo foi afastado de suas funções e
acusado penalmente de crime contra a liberdade sexual e abuso de poder.
– Ele só pensa em si mesmo, inclusive me usou para tentar provar que era homem e me
dispensou sem me pagar tudo que eu deveria receber segundo meus direitos – disse, em depoimento
que foi fundamental para a formação da convicção da juíza, a já não tão jovem e bem articulada
faxineira que teve um caso com Alfredo. Outro fator bastante influente na decisão judicial foram os
relatos do réu sobre rápidas conversas com pequeninas criaturas.
O declínio social e o desastre na carreira de Alfredo transformaram sua história em uma
fábula que ficou conhecida na região. Os pais sempre a contavam para os seus filhos como uma
advertência para aqueles que não se preocupavam em arrumar suas casas. Na fábula Micronosvaldo
é o nome de um demônio atormentador de recintos bagunçados por um dono preguiçoso. As
crianças tremem ao ouvir seu nome, e têm pesadelos com as musiquinhas dos comparsas da má
criatura.

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