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sugestões de respostas

Um texto “tipo”
Ilíada e Odisseia?
Uma espécie de “saga” contada
por meio de um poema?
Um poema longo e monótono que
narra eventos históricos com
passagens míticas e presença de
herois, e que, AINDA BEM, já não
se escreve mais?
Um poema dividido em
cantos que não consegue
encantar ninguém?
Mas vamos a ela!
O gênero épico, considerado pela crítica um
gênero esgotado no século XVIII, reuniu (e
reúne), contudo, através dos séculos seguintes,
produções literárias cuja precariedade teórica
em relação à evolução do gênero impediu seu
reconhecimento e mesmo sua inserção nos
percursos épicos ocidentais. No século XX,
contudo, a presença marcante de poemas
longos com evidentes traços épicos exigiu um
redimensionamento teórico e crítico em
relação ao gênero.
Ainda que, por ser uma linguagem literária,
a poesia épica tenha a propriedade de propor
reflexões sobre o estar no mundo e suas
injunções, a natureza encomiasta de muitas
obras, principalmente daquelas produzidas
até o final do século XIX, atenua
sensivelmente seu potencial transgressor
quando a questão em foco envolve História,
heroísmo e nação.
A poesia épica tem feito circular
imagens mítico-históricas ligadas à
Histórica Canônica, daí, muitas
vezes, não representar uma voz de
transgressão, mas uma voz de
reafirmação de valores
historicamente cultuados como os
mais relevantes a partir de uma ótica
patriarcalista, cristã e branca.
No entanto…
A produção épica carrega consigo
importantes informações culturais, o que faz
dela um acervo relevante para a
compreensão dos caminhos seguidos por um
povo em sua trajetória histórica, ainda que a
própria obra muitas vezes não discuta o
caráter perverso de muitas das motivações
que levaram (e levam) esse povo a caminhar
de determinada forma.
O texto épico é, portanto, controvertido,
característica que o torna ainda mais
merecedor de um olhar crítico atento. E
um aspecto pode marcar o início da
abordagem: por que tantos poetas e
tantas poetisas, em determinado
momento, elegem o épico como forma
de manifestação literária?
Dante, Homero, Lucano, Virgílio e outras
grandes figuras da Antiguidade.
(Canto IV de A Divina comédia, de Dante,
ilustração de Gustave Doré)
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a antiga Musa canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

(CAMÕES, Os Lusíadas, p.53)


TEÓRICOS/CRÍTICOS
Aristóteles, Emil Staiger,
C. M. Bowra, Leo Pollmann,
Gilbert Highet,
Anazildo Vasconcelos da Silva,
Daniel Madelénat.
Aristóteles
... o assunto da Odisséia é de curtas dimensões. Um
homem afastado de sua pátria pelo espaço de longos
anos e vigiado de perto por Posseidon acaba por se
encontrar sozinho; sucede, além disso, que em sua casa
os bens vão sendo consumidos por pretendentes que
ainda por cima armam ciladas ao filho; depois de
acossado por muitas tempestades; regressa ao lar, dá-se a
conhecer a algumas pessoas, ataca e mata os adversários
e assim consegue salvar-se. Eis o essencial do assunto;
tudo o mais são episódios.
ARISTÓTELES

A epopeia retrata o homem


melhor do que ele é.
Aristóteles
Nas tragédias é necessário que o maravilhoso
tenha lugar, mas na epopéia pode-se ir mais
além e avançar até o irracional, mercê do
qual se obtém no grau mais elevado esse
maravilhoso, porque nela (na epopéia)
nossos olhos não contemplam espetáculo.
(Arte poética)
STAIGER
A epopéia, ao contrário (da lírica), tem seu lugar
determinado na história. O poeta aqui não fica
sozinho. Está num círculo de ouvintes e lhes conta
suas histórias. Assim como ele imagina o
acontecimento, assim também apresenta-o a seu
público. E quando prossegue em seu caminho e suas
histórias se espalham pela terra, seu público
multiplica-se tornando-se todo um povo.
(Conceitos fundamentais de poética, p. 111)
LEO POLLMANN
Não lhe ocorreria negar, por isso, à Eneida o título de
epopéia; poderia, quando mais, acentuar-se, restringindo
com Cecílio Bowra, que esta é uma épica de caráter
diferente da de Homero, já que se trata de épica literária
em oposição à oral. Na épica literária está precisamente
sempre em jogo a reflexão. /.../ A épica literária
pressupõe, portanto, a oral; é secundária em comparação
com esta, mas seria um anacronismo em ciência literária
que se quisesse sempre interpretar a maior originalidade
como superioridade.

(Tradução de: La épica en las literaturas románicas, p. 94)


HIGHET
Highet esclarece como, além das especificidades
formais da epopéia medieval (cujo ritmo era mais
lento que as homéricas) e da contínua evolução da
barbárie à cultura mais avançada por meio do
contato com a cultura greco-romana e com o
Cristianismo, a produção épica medieval sofreria,
ainda, uma impregnação subjetiva relevante
originada da cultura ao “amor romântico” ou “amor
cortês”.
HIGHET
Após reconhecer na obra de Dante a mais importante
manifestação épica medieval, Highet passa a analisar os
caminhos trilhados, a partir do Renascimento, por esse
tipo de manifestação. Assim, metodologicamente,
propõe quatro grupos distintos de epopéias: as que
imitam diretamente as clássicas; as que tematizam
aventuras heróicas; as que tematizam façanhas
cavalheirescas medievais; e, por fim, as de cunho
religioso, ou, como ele nomeia, as “epopéias religiosas”.
HIGHET
O compositor da epopéia é um só poeta (ou talvez uma
série estreitamente ligada, uma família de poetas) que
relata uma só e grandiosa aventura heróica
detalhadamente, colocando-a dentro de um ambiente
historico, geográfico e espiritual bastante rico para
impregnar essa aventura de um significado mais fundo
que qualquer episódio isolado, por notável que seja, e
impregnando ao mesmo tempo seu relato de profunda
verdade moral.
(Tradução de La tradicion clasica)
ANAZILDO VASCONCELOS DA SILVA
Em 1984, com a Semiotização literária do
discurso, e em 1987, com Formação épica da
literatura brasileira, resgatou o gênero épico,
definindo e redefinindo categorias teóricas
como: “matéria épica”, “dupla instância de
enunicação”, “herói épico”, “modelos épicos”,
“ciclos épicos” e “planos histórico e
maravilhoso”, além de diferenciar epopeia e
romance.
Epopeias clássicas da literatura universal
Odisséia, Ilíada (Homero), Eneida (Vigílio, ), Beowulf,
Canção de Rolando (final séc. XI), Epopéia de Gilgamesh,
Cantar de Mio Cid (autoria desconhecida, em torno de 1140),
A Divina Comédia (Dante, 1307-1321), Orlando furioso,
(Ariosto, 1516), Orlando enamorado (incompleta, Boiardo),
La Franciade (Pierre de Ronsard, 1572), Os Lusíadas (Luis de
Camões, 1572), Araucana (Alonso de Ercilla, 1569/1590),
Jerusalém Libertada (Torquato Tasso, 1581), A rainha das
Fadas (Edmund Spenser, 1590), Mireille (Frédéric Mistral,
1859), Paraíso perdido (John Milton, 1667), Clodoveu (1657) e
Maria Madalena (Saint-Sorlim, 1657, 1669) Messias (Gottlieb
Klopstock, 1748), Hermann e Dorotéia (Goethe, 1798), Martín
Fierro (José Hernandez)
Epopeias brasileiras
De gestis Mendi de Saa (José de Anchieta, 1563), Prosopopéia (Bento Teixeira, 1601), O
Uraguay (Basílio da Gama, 1769), Vila Rica (Cláudio Manuel da Costa, 1773), Caramuru
(Santa Rita Durão, 1781), A lágrima de uma caeté (Nísia Floresta, ), A confederação dos
tamoios (Gonçalves de Magalhães,), Colombo (Araújo Porto- Alegre, 1866), O guesa
(Sousândrade, 1888/?), Toda a América (Ronald de Carvalho, 1925), Martim Cererê (Cassiano
Ricardo, 1928), Cobra Norato (Raul Bopp, 1931), Invenção de Orfeu (Jorge de Lima, 1952),
Romanceiro da Inconfidência (Cecília Meireles, 1953), Cancioneiro, Nordestinados, Sísifo,
Narciso, Íxion, Latinomérica (Marcos Acciolly), Poema sujo (Ferreira Gullar, 1976), A grande
fala do índio guarani perdido na história e outras derrotas (Affonso Romano de Sant’Anna,
1976), Saciologia goiana (Gilberto Mendonça Telles, 1982), As marinhas (Neide Archanjo),
Táxi e Metrô (Adriano Espínola, 1986, 1993), Romanceiro de Anita e Garibaldi, Romanceiro
do Contestado, Romanceiro de Estácio, Cancionário catalão, Cancioneiro romeno,
Romanceiro do Bequimão, Cancioneiro de São Luís, Romanceiro do Aleijadinho, Romanceiro
da abolição, Romanceiro de Delfina e Cancioneiro capixaba, entre outros (Stella Leonardos),
A cor da terra, Fim de um juízo, As cantilenas do Rei-Rainha, Porta bandeira e O Jardim
silencioso (Leda Miranda Hühne), Caraguatá, Guerra entre irmãos, Senhora (Raquel
Naveira, 1993, 1996, 1999), Cantares de Marília (Teresa Cristina Meireles de Oliveira, 1998),
Helênica (Silvia Jacintho, 1994), Trigal com corvos (Waldemar Solha, 2004), Caminhos de
quando e além (Helena Parente Cunha, 2007).
A épica tradicional
FORMA CONTEÚDO
- Poema longo - Evento histórico de natureza bélica
- Distanciamento da voz que alcança uma dimensão mítica
lírica/narrativa - Relato de viagem
- Uso da terceira pessoa - Heroísmo masculino
- Grandiloquência - Superação de adversidades
- Tradição oral relacionadas a uma coletividade
- Presença de: dedicatória, invocação, - Registros culturais nacionais
proposição, divisão em cantos ou livros
- Dupla instância de enunciação
- Planos histórico, maravilhoso e
literário
A nova épica
FORMA CONTEÚDO
- Poema longo - Evento histórico que alcança
- Liberdade formal uma dimensão mítica a partir da
- Participação da voz lírica/narrativa intervenção do plano literário
- Presença opcional de: dedicatória,
- Relato de viagem
invocação, proposição, divisão em
- Heroísmo coletivo
cantos ou livros
- Presença do heroísmo feminino
- Dupla instância de enunciação
- Superação de adversidades
- Planos histórico, maravilhoso e
relacionadas a uma coletividade
literário
- Registros culturais nacionais
EPOS, ETHOS, DUPLA INSTÂNCIA DE ENUNCIAÇÃO,
MATÉRIA ÉPICA, HEROÍSMO ÉPICO, PLANO HISTÓRICO,
PLANO MARAVILHOSO E PLANO LITERÁRIO.
O epos é definido pelos referentes históricos e simbólicos
gerados no seio das representações socioculturais de um
povo, grupo ou comunidade.
O ethos reúne as características predominantes nas
atitudes e nos sentimentos dos indivíduos, que
particularizam as manifestações culturais de seus
respectivos agrupamentos.
Característica típica dos textos híbridos.
No caso da epopeia:
Eu-Lírico + Narrador
Temática que envolve uma
relação importante entre
história e mito.
Ação individual ou coletiva
simultaneamente projetada (pela tradição
ou plea intervenção criativa) na dimensão
histórica e na dimensão mítica que marca
um aspecto relevante de uma cultura.
Conjunto de eventos, circunstâncias e
aspectos que define a inscrição
histórica (e geográfica)
de uma cultura no mundo.
Conjunto de eventos, circunstâncias e
aspectos que define a inscrição mítico-
simbólica de uma cultura no mundo.
Conjunto de intervenções criativas
do/a autor/a no texto, o que inclui
tanto os aspectos formais como
o dimensionamento ou
a apreensão do conteúdo.
DEDICATÓRIA
A natureza muitas vezes laudatória da
epopeia e a necessidade de o/a autor/a
receber apoio para produzir obra tão
extensa são os principais fatores para a
existência de uma “dedicatória” no
poema.
PROPOSIÇÃO
A proposição define o tema
a ser desenvolvido pelo
poema. É uma espécie de
síntese da matéria épica.
PROPOSIÇÃO
 Os Lusíadas

 As armas e os barões assinalados


 Que, da Ocidental praia Lusitana,
 Por mares nunca de antes navegados
 Passaram ainda além da Taprobana,
 E em perigos e guerras esforçados,
 Mais do que prometia a força humana,
 Entre gente remota edificaram
 Novo Reino, que tanto sublimaram;

 E também as memórias gloriosas


 Daqueles Reis que foram dilatando
 A Fé, o Império, e as terras viciosas
 De África e de Ásia andaram devastando,
 E aqueles que por obras valerosas
 Se vão da lei da Morte libertando:
 Cantando espalharei por toda parte,
 Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.

 (LUÍS DE CAMÕES)
PROPOSIÇÃO
 Poema Épico-Trágico

 1

 Portentos de valor, e mil proezas
 Descreve o Grego, canta o Mantuano;
 De seus heróis as cívicas empresas
 Digam outros em metro soberano:
 Ociosos repitam as finezas
 Desse vendado Deus, o amor insano;
 Entusiasmado Apolo lhes inspire,
 Todo o Parnaso a seu favor conspire.

 2

 Com rouca voz, e Lira dissonante
 Meus males cantarei, que o injusto fado
 Contra mim suscitou, com mão possante,
 Empenho vil, rigor precipitado:
 Da fortuna mortal e inconstante
 Darei um exemplar nunca cantado
 Pois que de Casa, honra e Liberdade
 Me usurpou a maior fatalidade.

 (TERESA MARGARIDA DA SILVA E ORTA)
 (Trecho inicial de “Poema Épico-Trágico”. In: Obra completa,, pp. 18-19.)
PROPOSIÇÃO
 Agora sim
 Cobra Norato  Me enfio nessa pele de seda elástica
 E saio a correr mundo.
 Um dia
 eu hei d emorar nas terras do Sem-fim  Vou visitar a rainah Luzia
 Que me casar com sua filha
 Vou andando caminhando caminhando  - então você tem que apagar os olhos primeiro
 Me misturo no ventre do mato mordendo raízes  O sono escorregou nas pálpebras pesadas
 Um chão de lama rouba a força dos meus passos
 Depois
 faço puçanga de flor de tajá de lagoa
 e mando chamar Cobra Norato. (RAUL BOPP)
(Parte I, p. 3)
 - Quero contar-te uma história
 Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
 Faz de conta que há luar.

 A noite chega de mansinho


 Estrelas conversam em voz baixa
 Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
 e estrangulo acobra.
PROPOSIÇÃO
 ANTI-ODE

 Não cantarei vencedores,
 que vencedores não houve,
 que vencedores, se os houve,
 foram caboclos vencidos
 pelo armamento da fome.

 Não cantarei vencedores,
 que vencedores não há
 se há condição desigual,
 que desarmados caboclos
 por força armada vencidos
 armados foram de ideal.

 Não cantarei vencedores:
 acaso existe vitória
 se o injustiçado perdeu?
 Como negar essa glória
 de morrer pelo direito
 de defender o que é seu?

(STELLA LEONARDOS, Romanceiro do Contestado)


INVOCAÇÃO
 Pagã: pedido de inspiração às musas
 Cristã: pedido de inspiração a Deus
 Senhora Conceição
 Senhora dos Navegantes
 ouvi meu apelo enclausurado
 em torno destas dunas
 e fazei cantar o coro de Oxum

 Oh, bela Uiara,
 vem coberta de esperança
 que preciso contornar o labirinto
 e entrar no vosso reino
 rosácea azul brilhante

 (As marinhas, de Neide Archanjo)


DIVISÃO EM CANTOS/LIVROS
Como a epopeia possui uma
dimensão narrativa, a divisão
em cantos é uma forma de
organizar os eventos que serão
relatados ou os aspectos que
serão descritos.
O HEROÍSMO ÉPICO
O sujeito épico é um “ser em ação” e, por essa
ação, ganha um valor sócio-simbólico:
representar a inscrição histórico-existencial
do ser humano que alcançou realizar um
“caminho” no mundo, integrando a esse
caminhar uma experiência mítica que
potencializa o valor simbólico da caminhada.
O ethos cultural constrói a identidade
heroica, produzindo o tipo de herói em que a
comunidade pode reconhecer a transfiguração
mítica de sua história como uma forma de
superação espiritual das imperfeições
humanas ou, inversamente, como conquista
humana da perfeição divina.
Os dois atributos que distinguem o herói épico, desde
Homero, são a conquista da excelência (areté), mérito ou
qualidade pela qual alguém se destaca, e a busca da
glória (kleos), que essa qualidade lhe confere. É a
excelência, grau máximo de aperfeiçoamento alcançado
por um indivíduo, que define a identidade heróica, mas
o conceito de excelência, acompanhando a evolução
cultural das sociedades, modifica-se através do tempo,
definindo sempre novas identidades heróicas. A palavra
areté é traduzida, em quase todas as línguas ocidentais,
como virtude.
Já em Homero, os heróis da Ilíada e da Odisséia
constroem dois diferentes paradigmas da identidade
heróica, o da excelência guerreira, sustentado por
Aquiles, que opta pela morte no campo de batalha
para alcançar a glória heróica da “imortalidade”
épica, e o da excelência da sobrevivência humana,
sustentado por Odisseu, que enfrenta toda sorte de
obstáculos naturais, divinos e humanos, em sua
viagem de regresso ao lar e ao seu povo, lutando por
sua vida e pelo direito de reconquistar sua condição
de marido, pai e rei.
No curso da civilização ocidental, a partir do
renascimento, quando as sociedades estão
voltadas para a paz, a excelência humanista
passa a constituir a identidade heróica, e
Odisseu torna-se o herói arquetípico, matriz
épica do herói civilizador cristão, movido por
ideais nobres e altruístas de liberdade,
fraternidade, coragem e justiça, que alcança a
glória pela ação moral que inspira seus feitos.
O herói neoclássico do século XVIII,
seguindo o modelo do herói
renascentista, assume a identidade
heróica da excelência humanista,
alcançando a glória não no campo de
batalha das guerras que, muitas vezes, é
forçado a enfrentar, mas pela ação
pacificadora de restauração do processo
civilizatório após o conflito.
O herói neoclássico do século XVIII,
seguindo o modelo do herói
renascentista, assume a identidade
heróica da excelência humanista,
alcançando a glória não no campo de
batalha das guerras que, muitas vezes, é
forçado a enfrentar, mas pela ação
pacificadora de restauração do processo
civilizatório após o conflito.
O deslocamento,
espacial ou
imaginário, leva o ser
humano a entrar em
contato com o novo.
Se isso se faz em uma
perspectiva
simbólica coletiva,
que inclui um plano
histórico e um plano
maravilhoso, o
caráter épico fica
evidente.
A “pulsão migratória” (Michel Maffesoli),
compreendendo a necessidade de deslocamento para a
conquista de novos espaços, hábitos e parceiros,
amplia a própria identidade humana e enriquece o
imaginário coletivo global. Essa força de representação
coletiva que o ser em deslocamento possui caracteriza
perfeitamente a inscrição do sujeito épico, pois o
heroísmo épico está atrelado ao deslocamento 
espacial, temporal e mesmo mental ou simbólico, a
depender da época em que se insere a epopéia.
 MOYERS: Mas as pessoas dizem: O mito não é uma mentira?
 CAMPBELL: Não, a mitologia não é uma mentira; mitologia é
poesia, é algo metafórico. Já se disse, e bem, que a mitologia é a
penúltima verdade  penúltima porque a última não pode ser
transposta em palavras. Está além das palavras, além das
imagens, além da borda limitadora da Roda do Devir dos
budistas. A mitologia lança a mente para além dessa borda, para
aquilo que pode ser conhecido, mas não contado. Por isso é a
penúltima verdade. O importante é viver a vida em termos de
experiência e, portanto, de conhecimento, do mistério intrínseco
da vida e do seu próprio mistério. Isso confere à vida uma nova
radiância, uma nova harmonia, um novo esplendor. Pensar em
termos mitológicos ajuda-o a se colocar em acordo com o que há
de inevitável nesse vale de lágrimas. Você aprende a reconhecer
os valores positivos daqueles que aparentam ser os momentos e
aspectos negativos da sua vida. A grande questão é saber se você
vai dizer, de coração, um sonoro sim ao seu desafio.
(O poder do mito, p. 173)
A força simbólica dos mitos
veiculados pela poesia épica
comprova ser a dimensão mítica
importante fator para a
construção, a difusão e mesmo a
transformação das identidades
culturais.
Determinadas imagens míticas
relacionadas ao expansionismo, à
redenção, à superação, à metamorfose, à
punição, à criação, à sedução, entre
outros, consagraram-se na história da
poesia épica ocidental, e essa presença
reincidente explica, por si, a condição e a
natureza humana.
Um mito histórico é tema recorrente na
poesia épica, que, por suas dimensões
histórica e mítica, destaca-se como
produção cultural de uma nação, na qual
está mais evidente a interpenetração
entre a História e o Mito (ou vice-versa)
e suas marcas particularizantes.
 Romanceiro da Inconfidência

 FALA INICIAL

 Não posso mover meus passos
 Por esse atroz labirinto
 De esquecimento e cegueira
 Em que amores e ódios vão:
  pois sinto bater os sinos,
 percebo o roçar das rezas,
 vejo o arrepio da morte,
 à voz da condenação;
  avisto a negra masmorra
 e a sombra do carcereiro
 que transita sobre angústias,
 com chaves no coração;
  descubro as altas madeiras
 do excessivo cadafalso
 e, por muros e janelas,
 o pasmo da multidão.

 (CECÍLIA MEIRELES)
 (Trecho inicial de Romanceiro da inconfidência, p. 35)
A Divina Comédia
A Terra segundo a geografia de Dante. No hemisfério superior está
Jerusalém e o mundo conhecido (século XIV). No hemisfério inferior há um
grande oceano com uma única ilha no seu centro onde desponta uma
montanha tão alta que alcança os céus.
(Ilustração de Helder da Rocha)
INFERNO
 1) O primeiro círculo, o Limbo, abriga as almas das crianças mortas sem batismo e
grandes figuras do paganismo. Nele estão poetas como o próprio Virgílio, Homero,
Horácio, Ovídio e Lucano; filósofos e cientistas como Sócrates, Platão, Demócrito,
Diógenes, Empédocles, Heráclito, Zenão, Euclides, Ptolomeu, Avicena, Hipócrates,
Galeno, Averróis; heróis como Enéias, Heitor e César; e figuras do classicismo mítico-
histórico como Electra, Pantasiléia, Camila, Lavínia, Júlia, Lucrécia, Márcia e Cornélia.
 2) O segundo círculo é o da luxúria. Lá se encontram as egípcias Semíramis e Cleópatra,
Helena de Tróia e Dido, assim como Francesca de Rímini, personagem histórica, famosa
por ter traído o marido com o cunhado.
 3) O terceiro círculo é o da gula.
 4) O quarto círculo é o da avareza.
 5) O quinto círculo é o da ira.
 6) O sexto círculo é o da heresia.
 7) O sétimo círculo é o da violência contra Deus, a natureza, os outros e si
mesmo/mesma.
 8) O oitavo círculo é o da fraudulência por sedução, adulação, magia, tráfico de cargos e
influência, corrupção, venalidade, prevaricação, trapaça, hipocrisia, ladroagem, etc.
 9) O nono círculo é o da traição. A imagem mais forte é a de Lúcifer, punindo, ele próprio,
os maiores traidores: Judas, Brutus e Cássio, óbvia ratificação dos vínculos religiosos e
nacionalistas da epopéia de Dante.
Os que praticaram violência contra Deus sofrem em um deserto incandescente e
são torturados por chuvas de brasas(Canto XIV)
Ilustração de Gustave Doré
Dante desmaia após o relato de Francesca no segundo
círculo onde as almas que pecaram por luxúria são
agitadas como turbilhões de vento
(Canto V, ilustração de William Blake)
Virgílio e Dante observam as almas condenadas pelo pecado da
luxúria sendo carregadas pelo vento. No primeiro plano, Paolo e
Francesca (Canto V, ilustração de Gustave Doré)
Sedutores e rufiões (em sentidos opostos) sendo açoitados por
diabos na primeira vala. No primeiro plano se vê os aduladores
imersos no esterco (segunda vala)
(Canto XVIII, ilustração de Sandro Botticelli)
PURGATÓRIO
 1) No Ante-Purgatório, a primeira seção é a dos/das indolentes, negligentes e omissos/as e
arrependidos/as na hora extrema.
 2) A segunda seção é a dos/das que viviam em pecado, foram assassinados/as, mas, em
ato extremo, perdoaram seus/seus assassinos/as.
 3) Na vala florida, as almas/sombras aguardam a entrada no Purgatório.
 4) O primeiro terraço é o da soberba.
 5) O segundo terraço é o da inveja.
 6) O terceiro terraço é o da ira.
 7) O quarto terraço é o dos/das poucos diligentes nas obras da fé e da caridade.
 8) O quinto terraço é o espaço, onde, de mãos e pés atados, deitados/as de bruços com os
olhos unidos ao solo, encontram-se os avarentos e as avarentas. Em XIX talvez se
encontre a imagem mais fortemente marcada por injunções patriarcais: é a imagem de
uma mulher sedutora repentinamente desmascarada por outra, virtuosa. O modo de
desmascará-la é mostrar o ventre da sedutora aberto e exalando um odor fétido.
 9) O sexto terraço é o lugar da remissão da gula e do vício da bebida.
 10) O sétimo terraço é o da luxúria.
 11) No Monte do Purgatório, Dante receberá dela o aviso da remissão de seus pecados. Vê
Beatriz, passa por um cerimonial (a procissão dos sete candelabros), adormece e, antes de
entrar no paraíso, recebe de Beatriz, que é a porta-voz da “missão do poeta”, sua tarefa:
caberá a ele, após retornar, descrever as visões que teve.
PARAÍSO
 PARAÍSO
 1) A Lua é o primeiro dos céus (concepção de Ptolomeu), ali se
encontram aqueles e aquelas que não puderam (ou foram
impedidos/impedidas) manter integralmente seus votos
religiosos.
 2) No segundo céu, o de Mercúrio, estão os que fizeram o bem,
apesar de motivados pela ânsia de glória.
 3) O terceiro céu, o de Vênus, abriga as almas que se amaram,
mesmo sendo a origem desse amor uma origem carnal.
 4) O céu do Sol, o quarto, abriga os doze teólogos que se
tornaram mestres na Ciência Divina: São Tomás de Aquino (cujo
pensammento inspirou Dante em diversas ocasiões), Alberto
Magno, Pedro Lombardo, Graciano de Chiuse, Salomão, Dionísio
Areopagita, Paulo Orósio, Severino Boécio, Santo Isidoro, o
Venerável Beda, Ricardo de San Vittore e Sigieri de Brabante.
PARAÍSO
 5) No céu de Marte, o quinto, se encontram as almas que combateram em nome
de Cristo.
 6) O sexto céu, de Júpiter, é o dos governantes justos.
 7) No sétimo céu, o riso passa a ser apenas uma luminosidade.
 8) No oitavo céu Dante vê Cristo (uma aparição fugaz), Maria, o Arcanjo
Gabriel, santos e santas do Novo e do Velho Testamento. Ali uma curiosa voz se
faz ouvir: é Adão. Este confessa ter vivido no Limbo durante quatro mil anos até
que Cristo o levasse ao Paraíso
 9) O Primo Móbile é último estágio da viagem, é a reflexão profunda sobre o
encaminhamento da questão religiosa e as desordens do mundo material. A
visão de Deus é um reflexo fulgurante de luz que Dante observa através dos
olhos de Beatriz. Será também através de Beatriz que Dante compreenderá toda
a estrutura celestial, com seus noves céus a se moverem concentricamente em
ritmos diversos e característicos.
 10) O Empíreo é a morada de Deus, local onde todos se reunirão no Juízo Final.
No Empíreo tudo é luz e imaterialidade. E é no rio caudaloso de luz, sinuoso e
em forma de rosa, que Dante sente a presença de Deus a emanar seus raios para
os nove céus e para todo o universo.
Ao se inserirem no maravilhoso o
herói e a heroína realizam,
simbólica e metonimicamente, a
inserção de sua própria cultura
no universo mítico.
Os heróis (e heroínas) épicos são ícones
da inserção afirmativa do humano no
mundo, daí se fazerem, em suas
diferentes constituições ou perfis através
dos tempos, referentes para a
compreensão das várias formas de
assimilação cultural do histórico e do
maravilhoso pela sociedade ocidental.
Eventualmente, observar-se-á a permanência de
certos padrões de heroísmo, culturalmente
arraigados. Outras vezes, heróis e heroínas
absolutamente anti-convencionais surgirão,
parecendo, inclusive, indicar uma “impossibilidade
épica”, situação que oferecerá possibilidades
riquíssimas de novas considerações sobre a
representação do ser humano na arte épica através
dos tempos, dos estilos e mesmo das concepções
individuais, que não podem ser esquecidas.
Os heróis e as heroínas da “História” são indivíduos
que se destacaram realizando feitos relacionados ao
enfrentamento de obstáculos cuja conseqüência terá sido
influenciar os rumos da própria História. Enfocada a
partir de seus eventos mais abrangentes ou mais
específicos ou de heróis e heroínas legitimados
historicamente pela coletividade, a História receberá,
ainda, aderências de ordem mítica, o que, decerto, fará
mais complexo o discurso histórico, dada sua condição
assertiva ou positiva de ser um registro organizado do
passado da Humanidade por meio do qual a própria
Humanidade se reconheça.
POEMA DE UMA RAÇA
Epopéia, “Poema da Raça”, teve o condão
de ser, simultaneamente, o feliz retrato
interior da cosmovisão portuguesa na
época, e a sincera reportagem de um
instante em que Portugal atingia o ápice
como Nação.
(Massaud Moisés, sobre Os Lusíadas)
CONCLUSÃO
O gênero épico, não importa se a manifestação é clássica,
romântica, moderna ou outra qualquer, constitui um
instrumento valioso de expressão literária e cultural,
pois, atraves de suas epopeias, um povo vê perpetuada as
visões de mundo que conduziram o encaminhamento
histórico e mítico para a construção da identidade
nacional. Se a análise de uma epopeia revela uma visão
perversa ou mesmo reconhece eventos e circunstâncias
não positivos para a cultura em questão, não fica
diminuída a importância da obra, já que é dela que se
recolhem os registros que permitem uma posterior visão
crítica da própria identidade que ela ajudou a consolidar.

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