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Diversidade de dicções: as linguagens da experiência literária

Wislawa Szymborska (Kórnik, Polônia, 1923- Cracóvia, 2012)


“ABC”
Jamais vou descobrir
o que A. pensava de mim.
Se B. até o fim não me perdoou.
Por que C. fingia que estava tudo bem.
Que papel teve D. no silêncio de E.
O que F. esperava, se é que esperava.
Por que G. fingia, já que sabia muito bem.
O que H. tinha a esconder.
O que I. queria acrescentar.
Se o fato de eu estar ali ao lado
teve qualquer importância
para J., para K. e para o resto do alfabeto.

SZYMBORSKA, Wislawa. Um amor feliz. Tradução de Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
“O Poeta e o mundo” – Discurso de Wislawa Szymborska
(Prêmio Nobel 1966)
“Claro, no discurso cotidiano, em que não paramos para
considerar toda palavra dita, todos fazemos uso de frases como “o
mundo normal”, “a vida normal”, “o curso normal dos eventos"...
Mas na linguagem da poesia, em que toda palavra tem seu peso, nada
é corriqueiro ou normal. Nem uma simples pedra e nem uma simples
nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite que a ele
se segue. E acima de tudo, nem uma única existência, nem a existência
de qualquer pessoa nesse mundo.
Ao que parece, os poetas sempre terão um trabalho duro à
frente.”
Biografia de Szymborska revela poeta brincalhona e amante de novela
Tarefa das autoras de Quinquilharias e Recordações não foi fácil, já que a polonesa
detestava falar sobre sua vida.

Noemi Jaffe, Escritora e crítica literária, é autora de O Que Ela Sussurra e A


Verdadeira História do Alfabeto
Não foi tarefa fácil, para Anna Bikont e Joanna Szczesna, escrever "Quinquilharias e Recordações", a biografia de
Wislawa Szymborska, que sai agora no Brasil, pela editora Âyiné, oito anos depois de ser lançada na Polônia.
Antes de ganhar o Nobel, ou seja, durante 73 anos de vida, a poeta tinha concedido só dez entrevistas e, com o
prêmio, lamentava se ver obrigada a aparecer na televisão, em jornais, revistas e incontáveis palestras.
Em Estocolmo, alguns dias antes de ser agraciada, Szymborska chegou a passar mal e, ao ser examinada pelo
médico, ele disse que o mal-estar era normal. "É a doença do Nobel." E o poeta irlandês Seamus Heaney,
ganhador no ano anterior, telefonou para a polonesa para lhe alertar sobre o "fardo" que recairia sobre ela.
Wislawa Szymborska —e isso fica claro em seus poemas sensivelmente secos— não gostava, ou melhor,
detestava falar sobre sua vida privada ou fazer confidências a quem não fosse amigo seu, coisa que ela chegava a
contar nos dedos de uma só mão.
Sempre se caracterizou, apesar de ser tão brincalhona e de presentear seus amigos com colagens engraçadas, por
uma discrição e elegância quase rígidas, que a mantinham em absoluta privacidade.
No início, em 1997, quando a biografia começou a ser escrita, as autoras se basearam principalmente nas
"Leituras Não Obrigatórias" —série de textos em que Szymborska escrevia sobre obras das "prateleiras de
baixo", como ela gostava de dizer—, além de conversas com dezenas de conhecidos da autora. Foi só depois de
muitas tentativas que a poeta finalmente concordou em conversar com elas.
No início, em 1997, quando a biografia começou a ser escrita, as autoras se basearam principalmente nas
"Leituras Não Obrigatórias" —série de textos em que Szymborska escrevia sobre obras das "prateleiras de
baixo", como ela gostava de dizer—, além de conversas com dezenas de conhecidos da autora. Foi só depois
de muitas tentativas que a poeta finalmente concordou em conversar com elas.
A partir desse panorama, a leitura do livro vai compondo lentamente —são mais de 500 páginas— uma mulher
complexa, cuja adesão inicial ao comunismo soviético causa um trauma profundo; cuja relação com o pai era mais
forte do que com a mãe; com dois casamentos muito diferentes entre si; que desde sempre foi apaixonada por
limeriques, brincadeiras, jogos e trocadilhos, mas que reservava crises emocionais para a solidão; que amava
Montaigne, Thomas Mann, Charles Dickens e Dostoiévski e que, basicamente, sempre manteve a "a crença nos
misteriosos poderes adormecidos em cada coisa".
Quem conhece sua poesia sabe que o que mais a atraía eram as coisas. Seus poemas problematizam questões
existenciais, políticas e até metafísicas, mas nunca pelo viés da grandiloquência ou das abstrações conceituais. Ao
contrário, suas palavras são simples, "menores", assim como ela mesma considerava a sua uma "poesia modesta".
É verdade. Modéstia não precisa significar inferioridade, assim como a "poesia menor" do nosso Manuel Bandeira
nunca valeu menos por isso. A modéstia dos poemas de Szymborska vem desse caminho infinito que vai do
particular, das quinquilharias, para o geral, extraindo significado do aparentemente insignificante.
Uma das coisas que ressalta na biografia é o amor entre a autora e seu segundo marido, Kornel Filipowicz, com
quem ela saía frequentemente para pescar e com quem organizava jantares com cardápios chiquérrimos, só para
marcar todos os pratos com "não tem".
Ao final desses jantares, em que servia asinhas de frango do Kentucky Fried Chicken, Szymborska sorteava uma de
suas bugigangas, reunidas ao longo de uma vida de atenção a esses pequenos nadas.
A biografia se ressente um pouco da forma de listagem, muitas vezes se assemelhando mais a um grande
apanhado do que a um texto fluente e propriamente narrativo. Mesmo assim, a personagem biografada é tão
fascinante e o esforço de pesquisa tão valioso que, certamente, a leitura é gratificante.
Nascimento: 19 de dezembro de 1916, Cuiabá, Mato Grosso
Falecimento: 13 de novembro de 2014, Campo Grande, Mato Grosso do Sul
“Poema VII, de Mundo pequeno”
Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
leituras não era a beleza das frases, mas a doença
delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida
um certo gosto por nadas…
E se riu.
Você não é de bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas
e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
agramática.
BARROS, Manoel de. Livro das ignorãnças. In: Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. p. 319
“O menino que carregava água na peneira”

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira


era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo


que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.


Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino


que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que


escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu


que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.


Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.


O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios


com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

BARROS, Manoel. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2011.

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