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JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE: A INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NAS

POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE

Luciano Miranda de Freitas *


Orientador: Prof. André Cezar **

RESUMO

A proposta deste estudo é analisar o direito à saúde enquanto um direito fundamental. Será
observado, também, o fenômeno da judicialização da saúde e os principais posicionamentos contrários
e favoráveis a ele.

Palavras-chave: direito; fundamental; saúde; judicialização; políticas; públicas.

1. INTRODUÇÃO

O direito à saúde, malgrado seja, cristalinamente, intrínseco ao direito à vida, somente veio a
ser elevado ao patamar dos direitos fundamentais com o advento da Constituição Federal de 1988.

O constitucionalista José Afonso da Silva diz que “O tema não era de todo estranho ao nosso
Direito Constitucional anterior, que dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da
saúde, mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias”. 1

Hodiernamente, a saúde vem agasalhada, na ordem constitucional pátria, pelo artigo 6º


como um direito social, e pelos artigos 196 e 197 como um direito de todos e dever do Estado,
garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação, serviços e ações que são de relevância pública.

Dessa forma, o legislador constituinte chancelou à saúde o status de direito fundamental.


Quando atribuímos a qualidade de direito fundamental a um determinado direito, não se
estamos simplesmente conferindo a ele uma importância retórica, mas lhe outorgando efetividade, isto

*Acadêmico do curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil em Guaíba.


** Mestre, especialista em Direito, professor e coordenador do curso de Direito na Universidade Luterana do
Brasil em Guaíba.
1
Curso de Direito Constitucional Positivo, 2000, p. 312.
2

é, materializando-o no mundo dos fatos, aproximando o dever-ser normativo e o ser da realidade


social. 2

Assim, uma vez que posto em debate o direito à saúde na realidade social brasileira, a
principal discussão direciona-se à sua abrangência, porquanto se trata de tema de grande
complexidade e de conceito assaz amplo.

Cumpre observar, no entanto, que, sempre que ouvimos falar a respeito desse direito,
somos, de plano, remetidos às idéias de prevenção e/ou tratamento, mormente essa segunda. Isso
porque, atualmente, ante a parca assistência oferecida pelo Estado no âmbito da saúde, ou ainda, ante
a não rara ineficácia do Poder Público na prestação dessa assistência, o cidadão somente tem
vislumbrado a efetivação das políticas públicas de saúde na seara da assistência médico-farmacêutica,
ainda assim, da forma mais precária possível. Dessa maneira, ante tal situação, buscando a efetivação
dessa assistência, o cidadão invoca o auxilio do Poder Judiciário. Tal proceder acabou dando gênese
ao fenômeno que muitos autores chamam de judicialização da saúde.

Entretanto, no momento em que o Judiciário intervém na questão das políticas públicas de


saúde como medida de efetivação de direito, deve fazê-lo com grande precaução. Isso porque, pari
passu com a expansão desse meio de acesso coercitivo que muitos vêem como a única forma de se
incluírem nessas políticas, crescem, também, as críticas à forma pela qual tal fenômeno tem sido
levado a efeito.
Veremos neste estudo, sucintamente, quais são as principais alegações daqueles que se
insurgem à essa prática, bem como as dos que a defendem. Dentre as teses encontraremos a objeção
técnica, a embasada no princípio da “reserva do possível” e a fulcrada na autonomia dos poderes. Ao
final, faremos breves apontamentos gerais sobre o tema apresentado.

2. PRINCIPAIS TESES FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS


2.1. A OBJEÇÃO EMBASADA NO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DOS PODERES.

A primeira das críticas que surge, diz respeito à questão da autonomia dos poderes. De
acordo com o art. 2º da Constituição Federal, são poderes da União o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário, e estes são independentes e harmônicos entre si. Fundados nisso, muitos afirmam que, não
obstante a boa intenção do Judiciário de buscar conferir aplicabilidade ao direito fundamental à saúde,
este não pode tomar para si a tarefa de suprir as carências de todos os cidadãos.

2
BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e possibilidades
3

Ademais, se o art. 196 da CF/88 apregoa que o direito à saúde será garantido mediante
políticas sociais e econômicas, inferimos daí, portanto, que essa garantia, nem de longe, incumbe ao
Judiciário.

Assim, os adeptos a essa idéia sustentam que o povo não pode ser privado da prerrogativa
de decidir, por meio de seus eleitos, em quais áreas, ou de que forma, a aplicação dos recursos
públicos lhe será mais proveitosa ou favorável.

Nesse sentido, inteligentemente, José Joaquim Gomes Canotilho leciona que “os juízes não
se podem transformar em conformadores sociais, nem é possível, em termos democráticos
processuais, obrigar juridicamente os órgãos políticos a cumprir determinado programa de ação”. 3

Esse argumento, contudo, é facilmente rebatido. Não podemos olvidar que a Magna Carta,
em seu artigo 5º, inciso XXXV, garante que toda e qualquer lesão ou ameaça de direito será passível
de apreciação do Poder Judiciário. Como já referido pelo eminente Desembargador Claudir Fidelis
Faccenda:

A administração pública, que prima pelo princípio da publicidade dos atos


administrativos, não pode se escudar na alegada discricionariedade para afastar do Poder
Judiciário a análise dos fatos que envolvem eventual violação de direitos. Tão pouco se
cogita da hipótese de violação ao princípio da independência dos poderes, porque não há
ingerência em assuntos privados da administração pública. Se o Poder Público tem o dever
constitucional de direcionar recursos à saúde, não é o Poder Judiciário que vai determinar a
destinação das verbas, pois atua essencialmente como instrumento de realização dos
preceitos contidos na Lei Maior. 4

Vemos, dessarte, que, em se tratando o direito à saúde de um direito fundamental, o Poder


Judiciário é legítimo para interferir nas políticas públicas de saúde quando esse direito é lesado. Isso
porque cabe ao Judiciário intervir na solução dos conflitos, dando respostas alternativas e positivas aos
que buscam o direito fundamental à saúde.

2.2. A CRÍTICA TÉCNICA.

Outra objeção muito forte, imposta em face da judicialização da saúde, é a relativa à questão
técnica. Tal contraposição sustenta-se da afirmação de que os magistrados responsáveis por julgar as
demandas judiciais, na grande maioria das vezes, não são dotados de específico conhecimento para
que possam proceder da forma mais profícua no que diz à intervenção do Poder Judiciário nas políticas

da Constituição Brasileira, 1996, p. 83.


3
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 2001, p. 946.
4

públicas de saúde. Assim, consoante é alegado, o magistrado, preocupado com o caso-concreto,


acaba por ignorar questões de âmbito muito maior, como, por exemplo, a efetivação de políticas sociais
de saúde que poderiam abranger um número de pessoas muito superior, beneficiando uma
comunidade inteira, e não só uma única pessoa.

Contudo, tais alegações são atacadas de maneira bastante simples e objetiva. Em face das
considerações supra, a alegação é de que as demandas são interpostas exatamente por não haver
políticas sociais eficazes.

Dessa forma, segundo a tese, se o Poder Público realmente objetivasse investir recursos
públicos em políticas de saúde que fossem levadas a efeito, já o teria feito, e as ações judiciais que
hoje são movidas pelos cidadãos que buscam a aplicação do direito fundamental à saúde seriam
despiciendas.

2.3. A OBJEÇÃO EMBASADA NO PRINCÍPIO DA “RESERVA DO POSSÍVEL”.

Talvez a crítica imposta mais frequente seja a fulcrada no princípio que se convencionou
designar “reserva do possível”. É uma crítica essencialmente financeira que sustenta que, do Poder
Público, são exigidas difíceis tomadas de decisão, uma vez que aplicar recursos públicos em
determinada área sempre implica deixar de aplicá-los em outra, haja vista que tais recursos seriam
insuficientes para atender às necessidades sociais.

Canotilho coloca a efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais dentro de uma
“reserva do possível” e aponta a sua dependência dos recursos econômicos. 5
Em suma, a teoria da “reserva do possível”, no tocante ao assunto ora em comento, diz que,
geralmente, o juiz não se preocupa com os impactos orçamentários de sua decisão, tampouco com a
existência de meios materiais disponíveis para o seu cumprimento. Esquece-se, porém, que os
recursos são finitos.

Contudo, em face dessa teoria, aparece a teoria do “mínimo existencial”, correspondente ao


conjunto de situações materiais indispensáveis a uma existência humana digna e que deve ser
preservado acima de tudo. 6

4
Apelação n.º 70031231913, 8ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Relator: Claudir
Fidelis Faccenda
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição, 2001, p. 469.
6
BARCELLOS, Ana Paula de. O Mínimo Existencial e Algumas Fundamentações: Jonh Rawls, Michael Walzer
e Robert Alexy. In: Ricardo Lobo Torres. (Org.). Legitimação dos direitos humanos, 2002, p. 45.
5

A assistência médico-farmacêutica, em sendo uma necessidade imanente à dignidade da


pessoa humana, integra esse “mínimo existencial”. Assim, a necessidade de garantir o “mínimo
existencial”, em casos de demandas postulando o fornecimento de medicamentos e/ou assistência
médica, sobrepõe-se ao postulado da “reserva do possível”.

Nesse sentido, o insigne Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis manifesta-se


aduzindo que:

As doutrinas de resistência à justiciabilidade dos direitos sociais da afronta ao


princípio da separação dos poderes, inexistência de previsão orçamentária e reserva do
possível não têm lugar quando em pauta direito fundamental que se relaciona intimamente
com o princípio da dignidade da pessoa humana e insere-se no padrão hermenêutico do
mínimo existencial, como o direito à saúde [...] 7

No passo dessas considerações, podemos verificar que se mostra infundado o postulado da


“reserva do possível” quando sobreposto direito que integra esse conjunto denominado “mínimo
existencial”.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o que foi apresentado neste estudo, verifica-se que tem sido crescente o número de
casos nos quais o Poder Judiciário tem de intervir coativamente para que o Poder Público leve a efeito
o direito à saúde que, consoante se demonstrou, é um direito fundamental.

As críticas e objeções, contudo, são incisivas e constantes, e partem principalmente do


próprio Estado, vez que é sobre ele que os efeitos da judicialização da saúde recaem
preponderantemente.

Todavia, tal proceder tem se mostrado necessário porquanto o cidadão não pode ser
penalizado pela ineficiência que o Poder Público vem apresentando no cumprimento dos deveres que a
Constituição lhe impõe.

Nesse contexto, concluímos que, no momento, é fundamental que o Poder Judiciário se


mantenha com a responsabilidade de concretizar o direito à saúde, ainda que subsidiariamente. Isso
porque, enquanto houver negligência na efetivação dos direitos sociais, a intervenção do Judiciário, de
forma coativa, sustentado na parcela de soberania que lhe é conferida, continuará sendo a maneira

7
Apelação e Reexame Necessário n.º 70011110509, 7ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS. Relator: José
Carlos Teixeira Giorgis
6

mais eficaz de proteger os interesses sociais do cidadão brasileiro, outrossim, adotando certas cautelas
para que não sejam cometidas injustiças, nem no âmbito coletivo, e nem no individual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARCELLOS, Ana Paula de. O Mínimo Existencial e Algumas Fundamentações: Jonh Rawls, Michael
Walzer e Robert Alexy. In: Ricardo Lobo Torres (Org.). Legitimação dos direitos humanos. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de Suas Normas: limites e


possibilidades da Constituição Brasileira. São Paulo: Renovar, 1996.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição Coimbra:


Almedina, 2001.

DA SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros Editores,
2000.

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