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A ideologia nos cursos de medicina

Marco Aurélio Da Ros

Da Ros MA. A ideologia nos cursos de medicina. In: Marins JJN, Rego S, Lampert JB, Araújo JGC
(Orgs.). Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas
realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 224-244.

Alguns entendimentos sobre ideologia

Da profusão de autores que tratam o tema, Marilena Chauí1 me pareceua a mais adequada(...)

Adota e aprofunda a concepção marxista de ideologia, afirmando, para explica-la, que a consciência
está indissoluvelmente ligada às condições materiais de existência e que as idéias nascem, em
última instância, das atividades materiais. Como cada um dificilmente pode escapar da atividade que
lhe é imposta socialmente, todo o conjunto de relações sociais aparece nas idéias como se tivesse
origem por si mesmo, e não fosse conseqüência das ações humanas. Nasce, assim, a ideologia,
propriamente dita, que é sempre a da classe dominante.

Ora, é justamente o que penso que ocorre com a categoria médica hegemonicamente. Ela
conhece a história da prática de sua profissão (a não ser para alguns contra-hegemônicos) apenas
como mera sucessão de datas, personagens e inventos, descontextualizada e sem o entendimento
das condições materiais da existência dos homens e duas relações naquelas épocas. Pior ainda:
está convencida de que não tem de entender isso. Que já chegou à verdade científica. A alienação
gerada pela ideologia dominante a faz pensar que sua vida e sua prática são dirigidas pela ação de
entidades como a natureza, os deuses ou a razão (como se esta não fosse histórica também).

Marx & Engels2 dizem que “as idéias da classe dominante são em cada época as idéias
dominantes (...) e aos trabalhadores é dada a alienação”. Buss3 confirma a mesma lógica e o papel
do Estado nessas circunstâncias, aplicando-a aos profissionais de saúde. Ou seja, lhes é dado a
imaginar que é natural e verdadeiro que as coisas sejam pensadas da forma como são.

O início desta história - século XIX

Em 1848, Virchow - considerado o pai da medicina social - afirmava que as doenças eram
causadas pelas más condições de vida e, com Neumann, propõe mudanças nas leis prussianas,
objetivando superar a exploração da força de trabalho e garantir melhores condições de sua
reprodução, colocando no Estado a obrigação de suprir estas necessidades.

Entre 1870 e 1900, com o desenvolvimento de diversos campos do conhecimento, aparentemente


díspares, como patologia, histologia, química, fisiologia e, principalmente, microbiologia, eclode
verdadeira revolução no conhecimento médico. A partir daí, seja por interesse do capital e/ou do
complexo médico industrial, ou porque o conhecimento na área inicia sua fragmentação de fato, ou
porque as tentativas de transformação social fossem derrotadas, ou mesmo por todos esses motivos,
perde força, na Europa, o entendimento da saúde como questão determinada socialmente.

Behring, em 1898, segundo Rosen10, sintetiza a ruptura com o modelo de medicina social,
dizendo que, graças à descoberta das bactérias, a medicina não precisaria mais perder tempo
problemas sociais. A partir desse discurso de Behring e simultaneamente à teoria dos germes de
Pasteur, a unicausalidade fica assentada.

A hegemonia, definitivamente, não gostava das pesquisas e investigações da medicina


social, que apontavam invariavelmente para mudanças sócias, quer dos capitalistas ou do Estado
que os representava. Teriam que aumentar salários, conceder direitos sociais aos menores e às
grávidas, diminuir a carga horária de trabalho, garantir alimento e moradia decente, saneamento,
lazer, etc. Já a unicausalidade descarregava a culpabilidade do poder e abria a possibilidade de
culpar a vítima - “não usou equipamentos, não usou sapatos, não lavou as mãos, etc.” -, abrindo a
porta ao higienismo na saúde pública e ao desenvolvimento de tecnologia de investigação para
“unicausas” e para os medicamentos que erradicassem aquela “causa”.

Esta forma parece ser um exemplo típico de como a hegemonia instala ideologicamente um
jeito de pensar (não se pensa mais na questão da sociedade). Na Europa, o pensamento bacteriano
convive com o da medicina social em declínio, mas nos Estados Unidos, por condições particulares
quer da formação social, quer do modelo médico preexistente, o terreno da unicausalidade
rapidamente se torna hegemônico. Os médicos norte-americanos, enfim, faziam as pazes com a
ciência.11 E esta ciência se pautava na possibilidade de o capital amealhar grandes dividendos.12
Instalavam-se as bases para o chamado complexo médico industrial:13 de aparelhos de
investigação, com microscópios cada vez mais poderosos, a exames hematológicos cada vez mais
sofisticados; de medicamentos sintomáticos a antibióticos; hospitais especializados cada vez maiores
e mais equipados.

O chamado modelo flexneriano Esse modelo rapidamente torna-se hegemônico nos E.U.A.,
possibilitando o desenvolvimento das bases para o capitalismo auferir lucros com a doença - o
chamado complexo médico industrial. Em poucos anos, expande-se para as Américas do Norte e
Central, mas encontra dificuldades de hegemonia na América Latina.11

O complexo médico-industrial no Brasil e o Movimento Sanitário

O modelo flexneriano aporta com toda a força no Brasil em função do golpe militar de 1964. Era,
então, criado o modelo que formou quase todos os professores de nossos atuais cursos de medicina
- o modelo flexneriano.

O modelo de saúde imposto pelo governo militar restringia em muito as verbas para
prevenção (de 8% do orçamento em 1963, apara 0,8% em 1973), e sua ênfase era posta na atenção
à doença, privilegiando o uso de tecnologia. Financiava-se com dinheiro público a construção de
hospitais privados. Pagava-se por ações realizadas, e, quanto mais utilizassem equipamentos,
melhor pagamento recebiam. Isso destacava as especialidades de tal modo que a formação das
universidades se voltava para esse novo mercado.18 O local de trabalho dos

sonhos passava a ser o hospital, bem equipado, com muitos laboratórios e abundância de
medicamentos.

Hipertrofiam-se as faculdades de medicina, onde não se ensina mais terapêutica. Fragmenta-se o


curso em múltiplas disciplinas/especialidades, as aulas são ministradas pelo especialista mais
atualizado (e não por quem entende de educação).

Quanto a macrotendências ideológicas na medicina, o final dos anos 1980 mostra esses dois
blocos: complexo médico-industrial vs. movimento sanitário.

No governo Tancredo/Sarney, realiza-se a 8ª Conferência Nacional de Saúde - grande palco


para a demonstração de força do Movimento Sanitário em Brasília. Dela se desenha a necessidade
de construir o SUS e resgatar as bandeiras do movimento de medicina social europeu do século XIX
- que a saúde fosse direito de todos e dever do Estado.

Do SUS ao Programa Saúde da Família


A aprovação da nova Constituição em 1988 e das Leis Orgânicas em 1990 garante legalmente um
sistema público de saúde que deve ter equidade, integralidade, universalidade, controle social e
hierarquização da assistência.

Uma entre as múltiplas constatações é a de que as universidades têm de formar outro tipo de
profissional. Um profissional que praticamente inexiste na atenção primária/básica. As filas nos
hospitais são enormes em função disso. E a leitura que a hegemonia faz é de que devem ser
construídos mais hospitais.

Pois bem, aí se põe a contradição em evidência. Os municípios precisam de um profissional


que as faculdades de medicina, na grande maioria, não estão formando, e não querem um
especialista, nem trabalho no hospital.

O que nos pode parecer estranho na verdade tem uma razoável explicação. O capitalismo
internacional, no interesse de garantir o pagamento de dívidas externas dos países aos bancos,
passa a se interessar por colaborar com os países que queiram investir em atenção básica. O
entendimento é que esta atende melhor, com menor custo. Isto permite que algumas diretrizes do
SUS tenham financiamento internacional. Este fato, associado à luta do movimento sanitário, começa
a criar outra hegemonia na área da saúde.

Um pouco de epistemologia

Fleck,21 médico epistemólogo, ao estudar estilos/coletivos de pensamento, nos explica como


se dá a instauração de um estilo, como dentro de um coletivo ele se mantém e granjeia novos
“adeptos”, e como um estilo tende a persistir e a não dialogar com os diferentes.

Acredito que uma caricatura de um exemplo prático seja a forma mais fácil de decodificar
como se dá a entrada de um novo integrante num estilo de pensamento e como este vai reproduzi-lo
depois. Tomemos um médico, que trabalha como professor vinte horas por semana num hospital-
escola e outras vinte horas semanais em seu consultório privado, numa policlínica, em sua
especialidade. Faz dois plantões em emergência por semana. Fez sua especialização num hospital
em Ohio (E.U.A.), tendo morado lá durante quatro anos. É professor há dois anos, e seu salário
como tal beira o ridículo. Um de seus alunos na décima terceira fase do curso pergunta sobre um
detalhe anatômico raro num músculo que só uma cirurgia especializada consegue visualizar. O
professor sabe a resposta, estudou muito sobre aquilo (aquele pedaço do corpo), já salvou vidas em
função disto, ganha dinheiro com esse saber, fez um curso recente de atualização e aprendeu novos
exames e medicamentos a recomendar. Ele não lembra o nome de seu paciente, também não sabe
se tem família ou em que trabalha; refere-se a ele como “o do leito 14”. Lembra que suas aulas
(quando ainda era aluno) eram para cem alunos, e ele tinha que estudar muito em casa para decorar
novas inserções musculares (era isso que caía na prova); teve de “ralar” muito para conseguir fazer
sua residência; teve de copiar o discurso de seus professores (estudando por cadernos), se não
“rodava”. Lembra quando o professor disse que, se não usasse as palavras científicas, não seria
aceito no coletivo. Lembra também quando ouviu o “rolar protodistólico” no leito 37, que o professor
de semiologia tanto valorizou; seus colegas não ouviram (Ah! Que satisfação tão grande ganhar uma
competição de conhecimentos...). Portanto, aprendeu um jeito de falar, teve reforço psicológico por
ouvir de uma determinada forma, tirou notas boas por decorar técnicas, e em função disso foi aceito
num coletivo. Acabava, dessa forma, de entrar no estilo de pensamento hegemônico, sem ao menos
saber o que é hegemonia ou os grandes blocos históricos.7

Além disso, dentro do estilo de pensamento gerado, os outros profissionais da saúde


estudaram menos, sabem menos, tem menos responsabilidade, portanto quem deve tudo mandar é
o médico. E, como conseqüência, trabalho interdisciplinar não cabe. Para manter o monopólio do
conhecimento do fragmento, deve participar de muitos congressos de especialidade, onde não
existem questionamentos sobre o caráter geral/social que a medicina deve ter. E entende que, para
ser bom professor, basta aprofundar o conhecimento técnico da especialidade e despejar este
conteúdo no recipiente vazio, que é a cabeça do aluno.25

Tudo o que não esteja de acordo com o seu pensamento cartesiano é “falsa medicina”, perda
de tempo ou politicagem. Não conhece o SUS, ou o que seja promover saúde. Saúde pública é para
sanitaristas. Desconhece ou nega que epidemiologia é a base de seu raciocínio.26 Acredita que, se a
maioria da categoria médica pensa de uma forma, nada vai mudar nas políticas de saúde (nem para
ele), por isso não precisa estar atualizado nelas. O melhor lugar para pedir exames é uma clínica que
já tenha laboratório ou um hospital. Ah! O hospital!!! Entende que não é possível saber toda
medicina, então se aprofunda na parte (oportunamente na víscera). Acredita que sabe tratar
prescrevendo: exercício, dieta, mudança de hábitos, medicamentos e cuidados. Mas atenção! É aqui
que a falácia se estabelece:

- Onde ele aprendeu medicamentos? Na farmacologia da quarta fase? Como os


representantes de laboratório? Copiando como verdade o que o professore do leito prescreve?

- O que sabe de dieta, se em seu curso não gastou mais que (no máximo) vinte horas
estudando alimentos?

- Exercícios adequados ele aprendeu com fisioterapeuta ou com professor de educação


física? Já que médico tem de ensinar médico, qual o médico que sabe disso?

- Para mudar hábitos há implicações pedagógicas. Onde aprendeu educação? Vendo os


seus professores? As propagandas do Ministério? Já estudou alguma vez Paulo Freire ou pedagogia
problematizadora ou PBL?

As possibilidades de mudança

Se a ideologia está baseada nas condições materiais de existência, e estas produzem o


pensamento hegemônico, a mudança do mercado de trabalho é um potente mecanismo indutor de
mudanças. Com uma nova lógica de financiamento para a atenção básica e sendo o grande agente
contratador os municípios - que recebem mais por terem médicos gerais que promovam saúde -, há
um estímulo para que formação se dê de forma diferenciada.

Para trabalhar a questão, que é fundamental, temos que entender cada vez mais como
funcionam “as cabeças” dos médicos do modelo tradicional. Não adianta iniciar as discussões por
filosofia/epistemologia, porque eles nem virão se o tema for este. Só admitirão reconhecer esses
assuntos como importantes se sua “verdade médica” for abalada. É o que Cutulo17 chama de criar
ou buscar complicações para este raciocínio linear do positivismo. Desestabilizar as “verdades”.
Portanto, trabalhar com o desmonte dessas verdades médicas que não incorporam o psicológico, o
cultural e o social.27 Desconstruir o “paradigma” biologicista. Desmascarar as certezas (saber
remédios, dietas, exercícios, cuidados; onde aprenderam?).

Será necessário formar novos profissionais, mesmo que o grupo contra-hegemônico seja
minoritário, para que estes sejam os novos professores. O Ministério da Saúde tem feito a sua parte,
estimulando as rodas de Educação Permanente, também como fonte de financiamento para projetos.
A Portaria 198 do Ministério da Saúde de fevereiro de 2004 (MS-2004) caracteriza a Educação
Permanente como a continuidade da luta pela reforma sanitária e a ruptura dos monopólios do saber;
não é a academia que tudo sabe, nem o serviço, porquanto fruto também dessa academia, mas a
interface dos dois, com os atores do controle social, que pode apontar as verdadeiras necessidades
da população.

Teremos de continuar a pressionar o MEC, ampliando o número de aliados nesta direção,


para rever sua política de pós-graduação, compatibilizar as necessidades da população com as
residências médicas (aliás, por que não multiprofissionais?), contratar novos professores, mudar a
graduação, etc.

Não se trata de abandonar a prática médica clínica tradicional, mas redimensiona-la, ressignificá-la,
enquadra-la numa prática humanizada, crítica, reflexiva, que veja a pessoa como um todo nas suas
relações e que amplie as possibilidades de resolubilidade. Em suma, contribuir para que o povo reaja
às situações de opressão física, mental e social, e possa ser mais feliz. E isso inclui as possibilidades
para que o médico também possa ser.

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