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DEVIDO LUGAR
Rodrigo Acioli Peixoto
Sua casa, pequena, tétrica, uma única janela estreita, cama, com-
putador, pão, mesa, telas, café, desenhos, cds, cigarros, roupas limpas e sujas,
fogão e livros, muitos livros. Tudo comprimido em parcos metros quadrados.
Ele anda. Desolado. Pensativo.
Ulisses, de tão magro, costumava ouvir constantemente que se ema-
grecesse um pouco mais, desapareceria. Branco, como uma página de ofício.
As linhas que desenhavam sua face eram fundas e afiladas qual uma xilogra-
vura. Seus olhos sempre semicerrados davam a impressão de tinta a escorrer.
Mais parecia um livro desencadernado em meio a tantos outros espalhados
pelo quarto. Havia livros mais grossos que ele.
Seu nome: Ulisses. Não era uma homenagem à Odisséia dos
homeríadas, contudo, livresco como era, sempre mentia sobre a etimologia de
si. O nome, em verdade, fora-lhe concedido em homenagem ao seu avô. Este,
segundo contam, fizera uma odisséia das mais comuns em seu tempo: saiu as
pressas da fome seca de algum sertão à fome chuvosa de alguma cidade. O Ul-
isses avô morrera no dia do neto vir a prelo. Apesar do enredo, Ulisses (o neto)
achava a história de seu avô demasiado clichê e preferia atribuir ao intelecto
de seu pai (imaginário) a idéia de citar no filho, um livro. Para completar a
sua biografia, Ulisses contava que seu pai era um erudito autodidata, quando,
de fato, era um comerciante que só havia aprendido números e alguns poucos
sinais de trânsito.
III
IV
Ulisses, apesar de não tem certeza se sonhou esta noite, acorda com o
gosto acre do pesadelo nos lábios. Ergue os olhos embaçados à biblioteca com-
pletamente desarrumada. Neste pesadelo ele está desperto. Dá um trago longo
no cigarro, a expiração ainda mais longa, como se houvesse mais ar dentro do
que fora de si. O trabalho, o trabalho. A vida não esperou e passou. Todavia,
enquanto a desordem empestasse – dentro e fora – era-lhe vedado o dia-a-dia.
Ainda incerto, pega o telefone:
– Alô... aqui é Ulisses. seu
Paulo está?... alô, seu Paulo,
é o seguinte, acordei mal,
muito mal... mas é que
estou vomitando e minha
barriga está esparramada
no banheiro... sei, sei sim,
mas infelizmente não posso
trabalhar hoje... hã?... não...
também sei que é a terceira
vez esse mês e entendo...
... certo, conversaremos
amanhã... me cuido sim,
como não?
Ao fim da conversa, resta-lhe o semblante tenso. Tudo que Ulisses
não precisa é de uma conversa séria com o chefe. Mas antes que as preo-
cupações cotidianas o desviem, os livros o atropelam e exigem uma ordem.
Dedicará seu dia, noite e madrugada, se preciso, à biblioteca.
Postula uma sofisticada taxionomia, ainda muito influenciada pelo
modelo anterior, mas, agora o principio de classificação são as escolas de pen-
samento, que englobariam tanto os saberes, quanto sua historicidade. Com
efeito, um brilho leve de alegria mal o toma e logo desfalece; antes mesmo de
um sorriso. Há autores de natureza tão louca e rebelde que dificilmente se en-
caixam em alguma época. Por outro lado, qual autor teria o privilégio, dentre
todos, de classificar e hierarquizar as demais escolas? Nietzsche, junto com os
sofistas e os pós-modernos? Perdido nesses pensamentos, Ulisses é assolado
por movimentos bruscos de seu estômago. Procura comida, mas tudo que é
resto está podre e vivo: bolor, baratas e outras formas de vida não classificadas
pela ciência. Em todo caso, não comestíveis. Desiste e sai para comer algo
seguramente morto.
VIII
IX
Acende um baseado.
Sua memória volta ao sonho e percebe que a Ordem não deve ser ex-
terior a si. No fim das contas, basta a ele ser possível decodificar o seu sistema;
basta a ele criar o seu dhcmrlchdj. A ligação entre suas afecções intelectuais só
podem ter ele como criador e decifrador do seu segredo. Joga a inteligibilidade
ao mar.
No cume do novo sistema, decide criar anagramas nos quais as pa-
lavras seriam lembrança do sonho – agora, não mais pesadelo – revelador. E
cada palavra-oniríca remeteria às iniciais de seus companheiros mortos.
Ulisses, o demiurgo, inicia
a re-arrumação e se depara, novamente,
com Paulo Coelho. Enfurecido o joga pela
janela.
– Agora, sem isso, tudo dará
certo em minha vida!
Senta à mesa, acompanhado
da 9ª de Beethoven, digita os anagramas
oníricos, ou, como grafa, onirogramas:
Delfos – Derrida, Lacan,
Freud, Orwell, e Saussure; Estrutura, És-
quilo, Tchekhov, Rousseau, Aristóteles;
Sonho: Saramago, Nietzsche, Hobsbaw
ou Hobbes, ou Hegel? Prefere Hobbes;
ao escrever o quaro anagrama Fome, per-
cebe que a fome não é a do sonho, mas
sim do agora. Não come desde o dia an-
terior. Interrompe a composição e resolve
dar-se o prêmio de uma boa comida. Sai
do quarto, não antes sem contemplar com
um sorriso os primeiros movimentos de
sua Ordem.
XI
Abre a porta, desta vez, sem livros, mas disposto e talvez até feliz.
Batiza a nova ordem de hexágono onirogramático-sentimental. Retoma fre-
neticamente o trabalho de ordenador das letras. Até ser despertado do transe
pela histeria do telefone:
– Alô... é ele... e aí, Erasmo! você parece que adivinhou, é claro que
quero beber em demasia, hoje é uma questão de mérito. olha, tu sabes se
minha Helena... hum... perfeito, a Fortuna sorri pra mim... Até!
Orgulhoso seu novo sistema, vai comemorar esperançoso pela rec-
ompensa da fortuna aos seus esforços homéricos contra o caos.
Destoando da silente madrugada, Ulisses chega ao seu vestíbulo
hexagonal de mãos dadas à sua sonhada Helena. Ambos sorrindo, bêbados,
apressadamente a se despirem e se devorarem – com a sede dos que andam
pelos desertos. A fortuna sorri até para os mais miseráveis, é o seu ultimo pen-
samento antes de adormecer nos braços da personagem desejada. Enfim, tudo
está em seu devido lugar. Ulisses experimenta o sono que apenas os justos e as
crianças têm.
XII
XIII