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Carta de um turco (sobre os faquires e se sentado num banco de madeira, lindamente

guarnecido de pregos que lhe penetravam nas


seu amigo Bababec) nádegas, e dir-se-ia que estava num leito de cetim.
François- Marie Arouet de Voltaire Muitas mulheres vinham consultá-lo; ele era o oráculo
das famílias; e pode se dizer que gozava de grande
reputação. Fui testemunha da grande conversa que
Quando me achava na cidade de Benarés, à Omri teve com ele.
margem do Ganges, procurava me instruir. - Acreditas, meu pai - perguntou-lhe Omri -, que
Compreendia mediocremente o hindu; escutava muito após haver passado pela prova das sete
e observava tudo. Eu ficava na casa do meu metempsicoses, possa eu chegar à morada de
correspondente Omri, o homem mais digno que Brama?
conheci na vida. Era ele da religião dos brâmares. - Isto depende - disse o faquir - Como vives?
Quanto a mim, tenho a honra de ser muçulmano. Mas - Trato de ser bom cidadão- explicou Omri -, bom
nunca trocamos uma palavra dissoante a respeito de esposo, bom pai, bom amigo. Empresto dinheiro sem
Maomé e de Brama. Fazíamos as abluções matinais juros aos ricos e dou esmola aos pobres, incentivo a
cada qual para o seu lado; bebíamos da mesma paz entre meus vizinhos...
limonada; comíamos do mesmo arroz, como irmãos. - Não colocas, vez por outro, pregos nas
Fomos um dia juntos ao pagode de Gavani. nádegas?
Assistimos ali vários grupos de faquires. Uns eram - Nunca, reverendo.
janguis, isto é, faquires contemplativos; os outros - Sinto muito; desta maneira só irás para o
eram discípulos dos antigos ginossofistas, que décimo nono céu; é uma pena.
levavam uma vida ativa. - Qual o quê! Está muito certo. Sinto-me muito
Possuem eles, como se sabe, uma língua contente com a minha parte. Que me importa o
erudita que é dos mais antigos brâmares e, nesta décimo- nono ou o vigésimo, contanto que eu cumpra
língua, um livro chamado Vedas. É com certeza o o me dever na minha peregrinação e seja bem
mais antigo livro de toda a Ásia, sem excetuar o recebido na última morada? Não será suficiente ser
Zend-avessa . Passei por um faquir que estava lendo um homem direito neste país e depois um homem
esse livro. venturoso no país de Brama? Para que céus pretende
- Ah, desgraçado infiel - exclamou ele - Tu me ir tu, então, com os teus pregos e as tuas correntes?
fizeste perder o número das vogais que eu estava - Para o trigésimo- quinto céu - disse Bababec.
contando; e, por isso a minha alma vai passar para o - És muito engraçado - replicou Omri - com essa
corpo de uma lebre, em vez de ir para o de um história de querer ficar alojado acima de mim; talvez
papagaio, como tenho motivo para acreditar! isso não passe de uma má ambição! Se condenas
Para consolá-lo, dei- lhe uma rúpia. Alguns aqueles que buscam honrarias nesta vida, por que
passos adiante, me aconteceu a desgraça de espirrar; então ambicionas honrarias tão grandes na outra? E
e o barulho que fiz despertou um faquir que se de resto, por que motivo pretendes ser mais bem
encontrava em estado de êxtase. tratado do que eu? Fica sabendo que em apenas dez
- Onde estou? - disse ele - Que queda horrível! dias dou mais esmolas do que te custam em dez anos
Não vejo mais a ponta do meu nariz! [Quando os todos os pregos que enfias no teu traseiro! A Brama
faquires querem ver a luz celeste, o que é muito pouco se lhe dá que passes o dia nu, com uma
comum entre eles, fixam os olhos na ponta do nariz] A corrente no pescoço. Que belo serviço prestas assim
luz celeste desapareceu! à tua pátria! Considero cem vezes mais a um homem
- Se sou a causa disso - disse-lhe eu -, de que, que semeia legumes ou planta árvores do que todos
afinal, enxergues além da ponta do nariz, eis aqui os teus colegas que olham para a ponta do nariz ou
uma rúpia para reparar o mal. Retoma tua luz celeste! carregam, uma sela, por excesso de nobreza d' alma.
Depois de assim contornar discretamente a Depois de assim falar, Omri se acalmou,
situação, fui ter com os ginossofistas, vários deles me mostrou-se gentil, acarinhou-o, persuadindo-o enfim a
trouxeram vários preguinhos muito bonitos para fincá- que deixasse os pregos e as correntes e fosse viver
los nos meus braços e coxas, em honra de Brama. uma vida direita na sua companhia.
Comprei-lhes os pregos com os quais mandei pregar E assim, tiraram-lhe o cascão do corpo,
os meus tapetes. Outros dançavam sobre as mãos; jogarem-lhe perfumes, vestiram-no decentemente.
outros na corda bamba; outros andavam num pé só. Viveu quinze dias muito sensatamente, e confessou
Havia os que carregavam correntes, caixas... De que era mil vezes mais feliz do que era antes.
resto, era a melhor gente do mundo. Mas...Ficou desacreditado entre o povo e as
Meu amigo Omri levou- me ao cubículo de um mulheres não vinham mais consultá-lo. Ele deixou
dos mais famosos deles; chamava-se Bababec; Omri e voltou aos pregos para ter consideração dos
estava nu como um macaco e trazia ao pescoço uma outros.
cadeia que pesava mais de sessenta libras. Achava-
O sermão de Nasrudin verdade, que poderia fazê-las observar a
Khawajah Nasr Al-din autenticidade - e assim o faria.
O acesso a sua cidade dava-se através de uma
ponte. Sobre ela, o Rei ordenou que fosse construída
- Certo dia, os moradores de um pequeno uma forca.
lugarejo quiseram pregar uma peça no Mullá Quando os portões foram abertos, na alvorada do
Nasrudin. Na época ele já era considerado uma dia seguinte, o Chefe da Guarda estava a postos em
espécie meio indefinível de santo, e então, para testá- frente de um pelotão para testar todos os que por ali
lo, resolveram convidá-lo para fazer um sermão na passassem. Um edital fora imediatamente publicado:
mesquita. Nasrudin concordou. "Todos serão interrogados. Aquele que falar a verdade
No dia marcado, ele subiu ao púlpito e falou: terá seu ingresso na cidade permitido. Caso mentir,
- Ó, fiéis! Vocês sabem o que eu vou falar para será enforcado."
vocês? Nasrudin, na ponte entre alguns populares, deu
- Não, não sabemos - responderam eles, em um passo à frente e começou a cruzar a ponte.
coro. - Onde o senhor pensa que vai? - perguntou o
- Já que não o sabem, não poderei vos falar Chefe da Guarda.
nada. Gente ignorante, isso é o que vocês todos são. - Estou a caminho da forca - respondeu Nasrudin,
Assim não é possível começar o que quer que seja - calmamente.
disse o Mullá, bastante indignado com a ignorância - Não acredito no que está dizendo!
daquela gente que o fazia perder tempo. - Muito bem, se eu estiver mentindo, pode me
Para surpresa geral, Nasrudin desceu do púlpito enforcar.
e foi para casa. - Mas se o enforcarmos por mentir, faremos com
Dias depois, um pouco envergonhados, formaram que aquilo que disse seja verdade!
uma comissão de fiéis que seguiu até a casa de - Isso mesmo - respondeu Nasrudin, sentindo- se
Nasrudin para, mais uma vez, convidá-lo para fazer o vitorioso. - Agora vocês já sabem o que é a verdade :
sermão da Sexta-feira seguinte, dia da oração. é apenas a sua verdade.
Nasrudin subiu ao púlpito e começou o sermão
com a mesma pergunta da semana anterior:
Desta vez, a congregação respondeu em coro: O Relógio
- Sim, Mullá, sabemos. Khawajah Nasr Al-din
- Neste caso - disse Nasrudin - , não existe razão
para prender- vos aqui por mais tempo. Podem se O relógio de Nasrudin vivia marcando a hora
retirar. errada.
E voltou para casa. -Mas será que não dá para tomar uma
Por fim, conseguiram persuadi-lo a fazer o providência? - alguém comentou,
sermão da sexta-feira seguinte, que começou com a - Qual providência? - falou o Mullá.
mesma pergunta: - Bem, o relógio nunca marca a hora certa.
- Sabem ou não sabem? Qualquer que seja a providência já será
A congregação, julgando-se preparada, uma melhora.
respondeu: Nasrudin deu uma martelada no relógio. O
- Alguns sabem e outros não. relógio parou.
- Ótimo - disse Nasrudin - já que é assim, que - você tem toda a razão - disse ele - De fato,
aqueles que sabem transmitam o que sabem para já dá para sentir uma melhora.
aqueles que não sabem. - Eu não quis dizer "qualquer providência",
E foi para casa. assim literalmente. Como é que agora o
relógio pode estar melhor do que antes?
Como Nasrudin criou a verdade - Bem, antes ele nunca marcava a hora
certa. Agora, pelo menos duas vezes por
Khawajah Nasr Al-din dia ele vai estar certo.

As leis não fazem com que as pessoas fiquem


melhores - disse Nasrudin ao Rei - Elas precisam, Moral: É melhor estar certo algumas vezes do
antes, praticar certas coisa de maneira a entrar em que jamais estar certo.
sintonia com a verdade interior, que se assemelha
apenas levemente à verdade aparente.
O Rei, no entanto, decidiu que ele poderia,
sim, fazer com que as pessoas observassem a

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