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Melhoração e Pejoração em Save the Last Dance: A Inclusão de Sara

Taís de Oliveira*

Resumo: A partir do conceito de mestiçagem tratado por Zilberberg (2004),


analisamos o processo de inclusão da personagem principal do filme Save the last
dance (No balanço do amor, Thomas Carter, 2001), Sara – garota branca, de classe
média, que vai morar num bairro de classe média baixa, predominantemente habitado
por negros.
Palavras-chave: Save the last dance; No balanço do amor; mestiçagem; semiótica
discursiva.

1. Introdução
O drama contemporâneo Save the last dance (No balanço do amor –
dirigido por Thomas Carter, 2001) - tem como temática central a questão da inclusão.
Quem passa por esse processo é Sara – personagem principal da trama –, uma garota
branca, de classe média, que vivia com a mãe até o dia em que esta morre e a garota,
uma adolescente de dezessete anos, vai morar com o pai, com quem sempre teve muito
pouco contato, numa comunidade de classe média baixa, predominantemente composta
por negros.
Tal problemática nos instigou a investigar as construções de sentido dos
valores e imagens projetadas por Sara e pelos componentes do grupo do qual ela tenta
fazer parte. Como suporte teórico, optamos pela semiótica discursiva e tensiva, campo
no qual idéias relacionadas à mestiçagem e aos valores concernentes a ela têm sido
estudadas, principalmente por Claude Zilberberg. Num texto teórico de vital
importância para este trabalho, “As condições semióticas da mestiçagem” (2004:73),
Zilberberg introduz o conceito de classe – “um recinto bem guardado [...], que veda a
saída para aqueles que estão dentro, bem como proíbe a penetração daqueles que estão
fora”.
O que pretendemos, no entanto, não é encontrar as razões pelas quais as
classes se constituem no filme em questão, já que, para Zilberberg (2004:73), tais
razões não existem – “a divisão em classes deve ser tratada pelas categorias com que
Saussure especifica sua concepção do signo no Curso, a saber, a arbitrariedade e a
mutabilidade” – mas identificá-las a partir dos discursos de legitimação, que, ainda
conforme Zilberberg, no mesmo texto, procedem das classes, e não o contrário.
*
Undergraduate student at the University of São Paulo.
2. O estabelecimento de classes
“You’ll never look as good as she does with him. That’s oil. You’re milk.
Ain’t no point trying to mix.”. É assim que uma das personagens de Save the last dance
– amigo de Derek (garoto negro que namora Sara) – nos mostra a pertinência do estudo
das classes, conforme definição já citada de Zilberberg, para melhor entendermos a
miscigenação étnica que ocorre em nosso filme.
A evidência da visão de dois universos distintos e que devem continuar
separados para que a ordem se mantenha não se mostra apenas no comentário que
Malakai faz a Sara, ao vê-la chateada, observando seu namorado (um jovem negro)
dançando com sua ex-namorada Nikki (também negra). Temos várias outras passagens
do drama que, de acordo com os valores defendidos por parte considerável das
personagens, convencem-nos disso. Numa dessas passagens, Chenille – melhor amiga
de Sara e irmã de Derek – defende a existência de dois mundos:

1:24:211
1. Chenille: (…)That is what Nikki meant about you up in our world.
2. Sara: There’s only one world, Chenille.
3. Chenille: That is what they teach you. We know different.

Na mesma passagem, vemos, no entanto, que Sara defende a posição


contrária, a da existência de um único mundo, enquanto Chenille coloca o embate entre
“ideologia” e “realidade”, como se houvesse leitura de realidade sem ideologia em sua
base. Ela diz “they teach you”, mas “we know”; fazendo alusão ao discurso segundo o
qual os brancos, os WASPs (White Anglo-Saxon Protestants), defendem haver somente
um mundo para escamotear a segregação dos negros e conservar a relação de forças.
Portanto, percebemos que há, no filme, tais visões por parte das próprias
personagens: a da divisão do universo em duas partes separadas e impossíveis de se
misturarem; e a do mundo como um só complexo, tenso de relações.

3. O processo de inclusão
Como já dissemos, Sara chega para morar numa comunidade onde as
pessoas são diferentes dela tanto na questão étnica como na sócio-econômica. Tratamos,
1
As transcrições mantêm a linguagem informal usada no filme.
portanto, de miscigenação, de mestiçagem entre pessoas de diferentes backgrounds,
situação que abala e modifica as relações sociais concebidas anteriormente, os
agrupamentos formados anteriormente (nesse caso, de pessoas de mesma classe social e
semelhantes backgrounds), que, como prevê Zilberberg (idem) são instáveis e passíveis
de mudanças. Examinaremos, agora, tal processo de mistura com maior detalhamento,
passando pelas fases descritas por Zilberberg no texto já mencionado, na forma de
“quatro estados aspectuais” (grifo do texto original).

3.1 Separação
No estado de separação, a triagem é plena e a mistura é nula. Ou seja, a
classe dos negros (“Black world”, como colocado por Chenille) vive, nessa fase, sem a
grandeza que posteriormente causará desequilíbrio à divisão. Zilberberg (2004:76)
representa a separação da seguinte maneira:

Vemos um bom exemplo desse estado logo no início do filme, na


primeira vez que Sara vai à nova escola. Ao entrar, a garota recebe olhares de
estranhamento e ela própria estranha também as situações do novo colégio (por
exemplo, o rigor da revista, na entrada).
Também podemos perceber que Sara não faz parte daquela comunidade
pela diferença de comportamento e pela discussão que tem com Derek logo no seu
primeiro dia de aula. Também é motivo de distinção a distância entre o conhecimento
que Sara tem e aquele que o professor espera que ela tenha. Sara surpreende a todos
mostrando que, mesmo sem estudar naquele colégio, já tinha lido o romance sobre o
qual estavam discutindo.
Segue a transcrição da cena:

0:11:04
4. Mr. Campbell: Truman Capote In Cold Blood represents a complete turning point in
5.American history and American literature. Do you want to take that cap off and tell us
6.why, Mr. Ricard?
7. Ricard: Gay rights? The Com-pote dude who wrote it…
8. Mr. Campbell: Capote.
9. Ricard: Capote?
10. Mr. Campbell: Capote.
11. Ricard: Sweet tooth. Straight-up fag, Mr. C. I’m serious. (os demais alunos riem,
com exceção de uma garota branca, que vira os olhos em sinal de reprovação)
12.Flaming!
13. Mr. Campbell: Thank you very much, Mr. Ricard. We can now promote you up to
14.kindergarten. (os alunos riem, inclusive Sara) Anybody else? Once, twice… Ah,
15.Miss Johnson, I apologise if any of this is over your head. If you see me after class,
16.I’ll give you some chapters. Anybody? Come on! (Derek levanta a mão)
17. Sara: It’s a non-fiction novel. Capote mixed true events with things he couldn’t
18.know, so he made them up. He created a new genre.
19. Derek: White folks back then felt safe. Capote scared them. He took hardcore crime
20.out of the ghetto and placed it in American’s backyard. That’s what makes the book
21.special.
22. Sara: Yeah, that’s part of it.
23. Derek: That’s all of it.
24. Mr. Campbell: We got a debate going on now.
25. Derek: Capote wasn’t the first. Richard Wright, James Baldwin did the same
26.thing. (a garota branca vira os olhos novamente) Wasn’t nobody trying to read
27.them, though.
28. Sara: (hesitante) A lot of people read them.
29. Derek: A lot of people like who? You? (os alunos murmuram; Sara abaixa o
30.olhar) Didn’t think so. (os alunos riem)
31. Ricard: Hey, hey, hey, yo! Mr. C., Mr. C.
32. Mr. Campbell: Yeah.
33. Ricard: Your girl needs to bone up. I think you need to give her a pass to the
34.library. Security pair. We need to get a parent-teacher’s conference, something is
35.going on. (os alunos riem)
36. Mr. Campbell: So what, man? Why don’t you lend her yours? ‘Cause obviously you
37.don’t ever use it. (os alunos riem, Sara mantém o rosto abaixado)
0:12:46

Quando Mr. Campbell pede desculpas a Sara, a garota tenta estabelecer


uma imagem de si diferente daquela que o professor colocou em circulação. Sara
investe então em construir uma imagem de sujeito em conjunção com o saber e, então,
discute com Derek. Ao “perder” o debate, Sara sente-se envergonhada, o que é visível
por sinais como cabeça baixa e face enrubescida, conforme discutido em Harkot-de-La-
Taille, 1999.

3.2 Contigüidade
Nesta e na próxima fase, triagem e mistura convivem; porém, aqui, a
triagem domina sobre a mistura. Estamos, portanto, no domínio do ou, assim
representado por Zilberberg (2004:76):

No nosso filme, Sara começa, após o choque inicial, uma amizade com
Chenille – garota pertencente à comunidade negra –, que leva Sara a um clube (Steps)
onde eles costumam dançar, pela primeira vez.
Antes de irem ao Steps, Sara vai até a casa de Chenille para encontrá-la e
irem juntas. Lá, Sara elogia a roupa de Chenille usando a expressão “Cool outfit” e
Chenille a corrige: “Slammin’. Slammin’ outfit”. Em seguida, Sara pergunta a Chenille
se sua roupa está boa. A amiga responde que sim, um pouco hesitante. As meninas saem
e, antes de entrarem no Steps, Sara pergunta se está realmente boa a sua roupa, Chenille
entra em um carro com ela e ‘transforma’ seu visual.
Notamos assim o esforço de Sara para fazer parte do grupo e a boa
vontade de Chenille em ensiná-la. Mas, então, porque podemos dizer que essa fase
ainda é a contigüidade? Por que a triagem ainda é maior que a mistura?
Temos algumas evidências como o fato de, na casa de Chenille, Sara
ficar chocada ao ver que a garota tem um filho e, ao entrarem no Steps, o estranhamento
das pessoas de lá, ao verem Sara. Um bom exemplo desse estranhamento é a discussão
que acontece quando as duas se aproximam da mesa onde as garotas que Chenille
conhece estão:

0:29:00
38. Diggy: Hey, what’s up?
39. Chenille: We’re here. Shawna! Sara, Shawna. Shawna, Sara.
40. Sara: Hi.
41. Chenille: Hi, love. So, this place is tight, right?
42. Sara: It’s so cool.
43: Nikki: What is up with this place? Seems like they’re letting anybody in.
44. Chenille: And they started with you.
45. Nikki: I’m Nikki. Alyssa, Jasmin. You know Diggy, right… Marsha?
46. Sara: Sara. It’s Sara, actually. I know you, though. You’re in my gym class,
47.right?
48. Nikki: That don’t mean you know me.
49. Chenille: Quit it, Nikki.
50. Nikki: Quit what? I ain’t walking on eggshells just ‘cause you brought the Brady
51.Bunch to the Negro Club.
52. Sara: Maybe you came to the wrong spot, ‘cause I’m pretty sure there aren’t any
53.Negroes here. (Nikki encara Sara)
54. Chenille: Ow! (Chenille e Sara riem)
55. Nikki: I’m pretty sure you came with one.
56. Chenille: (levantando-se) Oh, no, wench, you did not just call me a Negro.
57. Diggy: (levantando-se) You all just chill, ok?
58. Nikki: Why don’t you tell her to chill? She the one that’s always got something to
59.say.
60. Chenille: I could say a lot more. You keep talking, Nikki, I will lay all your shit
61.bare. (Nikki encara Chenille e sai, Sara abaixa a cabeça)
62. Diggy: Hey! Why you got to burn her like that, Chenille?
63. Chenille: ‘Cause I can’t stand her ass and the way she played my brother.
0:30:30

3.3 Mescla
A mescla tem em comum com a contigüidade a convivência de triagem e
mistura, porém com dominância invertida: aqui, a triagem é dominada pela mistura.
Chamamos essa relação de e, pois grandezas de duas classes estão juntas, mas ainda é
possível detectar diferenças entre elas; como na representação feita por Zilberberg
(2004:76), onde as linhas horizontais e verticais se cruzam, porém ainda podemos notar
que a figura é composta por dois tipos diferentes de linha:

Em certa altura do filme (mais precisamente à 1h17min06s) acontece


uma discussão entre Nikki e Sara, tendo como pivô o relacionamento entre Sara e Derek
– jovem negro, ex-namorado de Nikki. Como Sara está namorando um dos garotos da
comunidade negra, e tem também amigos que fazem parte desta classe, entendemos que
ela já está parcialmente integrada, mas as diferenças e estranhamentos podem ser vistos
na discussão que reproduzimos abaixo e também em algumas cenas que a seguem:

1:17:06
64. Nikki: It ain’t over, bitch.
65. Sara: I don’t even know why it started, bitch.
66. Nikki: ‘Cause you always in my way.
67. Sara: I’m only in your way when it comes to Derek. That’s what this is all about.
68. Nikki: No, it’s about you. White girls like you. Creeping up, taking our men…
69.The whole world ain’t enough, you gotta conquer ours too.
70. Sara: Whatever, Nikki…You know what, Derek and I like each other, and if you
71.have a problem with that, screw you.
1:17:38
Nas cenas seguintes alguns amigos de Derek acusam-no de estar
esquecendo de suas origens, de seus amigos, de quem ele verdadeiramente é, por causa
de Sara. E Sara, por sua vez, discute com Chenille, que dá razão à Nikki com relação à
briga entre esta última e Sara.
Neste ponto da trama a pressão da classe dominante sobre a grandeza que
está entrando nela, Sara, e sobre aquela que se diferencia das demais grandezas de sua
classe, Derek2 , é tão grande que Sara e Derek discutem e rompem.

3.4 Fusão
À fase da mescla segue uma parte do filme na qual parece que as coisas
“voltam aos seus lugares”; isto é, Sara está excluída do grupo e Derek completamente
entrosado. Tal fase dura pouco e logo se reverte em total admissão de Sara por parte do
grupo. A esta “admissão total” Zilberberg (2004:76) dá o nome de fusão, identificada
pelo com e representada pela figura abaixo:

Nesta fase já não conseguimos mais perceber a diferença entre as


grandezas que já faziam parte da classe inicial e aquelas que foram nela admitidas
posteriormente. É como na figura acima, onde não podemos mais distinguir as linhas
horizontais das verticais.
Em Save the last dance, a fusão aparece somente na última cena. Nela,
Sara e Derek chegam ao Steps, onde Sara faz as pazes com Chenille e dança com os
demais presentes sem causar espanto, embaraço ou admiração. Ela simplesmente é parte
deles.

4. Axiologia

2
Derek acaba expulso por se afastar dos valores defendidos por seus antigos pares, até ser excluído do
grupo. Tratamos esse assunto no texto “Construção identitária do jovem negro em Save the last dance”
(publicação prevista para 2009, nos anais do VI SELISIGNO)
As operações de triagem e de mistura nunca são inocentes, isto é, sempre
implicam uma melhoração ou uma pejoração dos grupos ou das grandezas que se
misturam ou que se privam de um outro grupo ou grandeza (Zilberberg, 2004).
No cruzamento entre os processos de mestiçagem e as axiologias,
Zilberberg encontra quatro tipos de mistura: seleção, eliminação, enriquecimento e
profanação; sendo os dois primeiros relacionados às operações de triagem ou extração e
os dois últimos às operações de mistura ou inclusão.
A chegada de Sara é vista inicialmente, pela maioria dos integrantes da
comunidade, como uma profanação; isto é, a inclusão de uma grandeza má a uma
totalidade boa. Como decorrência do fato de acreditarem estar sendo “corrompidos”
com a chegada da garota, eliminam o membro do grupo que corrobora para sua
inclusão; isto é, extraem a grandeza que consideram estar trazendo coisas ruins para o
grupo (Derek).
Na última cena do filme – descrita no item 3.4 Fusão –, percebemos que
a inclusão de Sara não é mais vista como uma profanação, mas como um
enriquecimento: inclusão de uma grandeza boa a uma totalidade considerada
incompleta.

5. Considerações finais
Zilberberg (2004) assinala ainda que a melhoração e a pejoração podem
afetar a totalidade ou apenas uma parte da classe em questão.
Podemos dizer, com vista às análises de cenas do filme que fizemos até
aqui, que para a maioria das personagens de Save the last dance (com exceção de Derek
e Sara) a pejoração sofrida com a inclusão de Sara afetaria todo o grupo, o que aponta
para a construção de um tipo específico de identidade: aquela fundida na identidade de
seu grupo, em que a condição de sujeito é substituída pela de uma entidade que não
mais responde pelo que faz, pois o que faz é enquanto instrumento do grupo (Ricoeur,
2004).
Derek e Sara se encaixam em outro tipo de identidade: a do sujeito que
age e responde (tem responsabilidade) pelo que faz, e, portanto, constroem uma
identidade individual, autônoma, vinculada à condição humana, e independente do
grupo ao qual pertencem.

Referências bibliográficas
HARKOT-DE-LA-TAILLE, Elizabeth, 1999. Ensaio Semiótico sobre a Vergonha. São Paulo:
Humanitas-FFLCH-USP.
OLIVEIRA, Taís. 2008, Construção Identitária do Jovem Negro em Save the Last Dance. In: Selisigno,
VI, Londrina. Anais do VI Selisigno. Londrina: No Prelo.
RICOEUR, Paul., 2004. Parcours de la Reconnaissance: Trois Etudes. Paris: Stock.
ZILBERBERG, Claude. 2004. As Condições Semióticas da Mestiçagem. In: Cañizal, e. P. & Caetano, K.
E. (orgs.) O Olhar à Deriva: Mídia, Significação e Cultura. São Paulo: Annablume, pp. 69-101.

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