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Eduardo Pellejero, Univocidade Do Ser (In. Abecedário. Educação Da Diferença)
Eduardo Pellejero, Univocidade Do Ser (In. Abecedário. Educação Da Diferença)
Eduardo Pellejero
Univocidade do ser
os limites do cu mudaram
agora esto cheios de corpos que se abraam
e do abrigo e consolao e tristeza
Juan Gelman, Outras partes
Somos todos a mesma coisa. A univocidade uma tese da filosofia poltica e este o seu
enunciado mnimo irredutvel. Tem uma hora para ser pronunciado (meia-noite), um lugar
(fora) e uma forma (palavra de ordem). Se se pronuncia a outras horas, noutro lugar ou de
outra forma, no produz outro efeito que uma sombra de transcendncia (pantesmo,
humanismo, eterno retorno do mesmo). E mesmo quando ao se pronunciar principie
efectivamente um novo dia, e caiam todas as barreiras, e se instaure uma ordem diferente,
na manh do dia seguinte no aparecer mais que como um duplo formal (estril) das teses
da equivocidade. Mas o mundo j no o mesmo, o mesmo no volta, uma vez que tem
lugar a expresso do comum, o acontecimento de uma comunidade metafsica (Duns Escoto),
imanente (Espinosa) ou intempestiva (Nietzsche), que problematiza e (re)parte as identidades
institudas.
A equivocidade ou plurivocidade do ser o princpio de uma filosofia poltica
incomensurvel (o seu duplo reactivo): o ouro, a prata, o bronze e o ferro, so repartidos
nas almas dos homens segundo uma hierarquia inabalvel. H gente que mais gente que
outra gente. Do modelo cpia, e da cpia ao simulacro, a plenitude do ser conhece assim
a finitude, a corrupo, a carncia; do per prius da substncia ao per posterius dos acidentes, o
ser diz-se de diferente maneira (a relao, o lugar, a qualidade, afantasmam-se na
in(e)minncia da substncia); a realidade de Deus no (no pode ser) a das criaturas, que
no so completamente reais ou no tm toda a realidade que possvel.
Eduardo Pellejero, Univocidade do ser. In: Corazza (org.), Abecedrio: Educao da diferena,
Porto Alegre, Papirus, 2009.
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Mas do mesmo modo que a equivocidade recusa a plenitude do ser, volta a assumir
esta, mediante uma dupla negao (modo eminentiori), numa instncia transcendente,
princpio inviolvel cuja realidade a plenitudo essendi. Nesse sentido, tambm no despreza a
diferena dos entes (a sua fora de trabalho), mesmo que no seja seno porque necessita
deles e do seu ser segundo para produzir a sombra de transcendncia que assegura a
eminncia do ser primeiro (acumulao de mais-valia).
A analogia (quando no a homonmia no acidental) constitui a dimenso
conceptual desta hierarquia do ser por relao a um primeiro (Deus, Rei, Estado, Capital),
que representa a perfeio do ser (a diferena afirmada pela equivocidade sempre uma
diferena de segundo grau, em relao a um ser eminente do qual s dispomos dos
despojos, os restos: PLURIVOCIDADE PLURALISMO). O ser (a vida, o desejo) no est aqui
entre ns (est sempre noutro lugar, ou noutro momento), mas os entes podem conjurar
essa ausncia negando o seu prprio ser: Deus no bom, nem justo nem belo, pelo
menos no sentido no qual as criaturas podem s-lo, mas da eminncia da sua bondade, da
sua justia e da sua beleza, fundadas na negao da finitude dos nossos atributos,
recebemos cada quem a parte que nos cabe neste mundo; do mesmo modo, o Estado
uma alienao da vida nua (da sua soberania), mas a vida nua confunde o momento da sua
determinao efectiva com a cidadania que emana do primeiro, e pensa a sua diferena
como um direito adquirido, no como uma potncia inata; o Capital, por fim, nega o valor
do trabalho para afirmar, para se apropriar do seu valor como valor de cmbio, elevando a
seguir esse atributo como critrio universal (abstracto) de toda a identidade e toda a relao.
No surpreende, portanto, que a doutrina da equivocidade do ser aparea
sucessivamente como teologia negativa, ontoteologia, contrato social, lei do mercado
(reproduzindo indefinidamente uma certa imagem do pensamento).
A univocidade do ser, pela sua parte, opera por afirmao de perspectivas,
suspenso de sentido, alianas estratgicas, linhas de fuga. O ser unvoco uma suma a-
teolgica (lugar onde a renncia a toda a totalizao da realidade pela representao vem
transvalorar a morte de Deus, para alm do fim das utopias historicistas e a celebrao do
niilismo reinante). Neste sentido, no se reconhece na forma da substncia (Espinoza), mas
apenas numa variao contnua (Nietzsche).
Eduardo Pellejero, Univocidade do ser. In: Corazza (org.), Abecedrio: Educao da diferena,
Porto Alegre, Papirus, 2009.
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