Você está na página 1de 29
Platéo — O Teatro das Idéias Transcrigdo de Palestra proferida na PUC-Rio em 1991 José Américo Motta Pessanha’ Este texto de José Américo Pessanha foi transcrito de uma fita gravada durante a Hl Semana de Filosofia da PUC-Rio: “Platdo e seus Leitores”. Estavamos aos 08 de novembro de 1991 e, portanto, a poucos anos da prematura morte do professor, quando a palestra “Plato — O Teatro das Idéias” fol proferida. Decido agora, em 1997, publicd-la, aproveitando a ocasiao deste volume especial de Filosofia Antiga, me deparo com o seguinte problema: como transformar em escrita a palavra viva de tao brithante orador? Havia as citagées, as vezes incompreenstveis, devido as Jathas da gravagao ou ao desgaste da fita. Como recuperd-las? Havia as repeticdes enfaticas, as observacoes em off, as entonacdes que dao diferentes sentidos as mes- mas palavras, os indescrittveis momentos comicos, os trdgicos e solenes, enfim, to- das as emogdes que a palavra falada é capaz de produzir e que a escrita dificilmente consegue expressar. Mas 0 texto estava ld, como uma heranga valiosa de que nin- guém, exceto quem a guardava, poderia jamais usufruir, ndo fosse uma iniciativa de tornd-lo piblico. Tomet entaéo como minha a difictlima tarefa de reviver a leitura deste fildsofo, cuja sensibilidade € entusiasmo pelo pensamento dos antigos lotou e maravilhou, intimeras vezes, as platéias brasileiras. Nao creio, evidentemente, ter conseguido reproduzir com perfeicao todos os momentos dessa palestra, mas procu- rei, ao reescrever 0 texto, ser, ao maximo, fiel, ndo apenas as idéias do autor, como também, ¢ sobretudo, ao inimitavel estilo do orador. Espero com este trabalho ser, ao menos, bem sucedida em trazer & memoria de cada um de n6s um pouquinho da expresso calorosa deste mago da Filosofia Antiga. Espero que ao ouvi-lo, todos nds, leitores e eternos admiradores, possamos, quebrando o gelo e o silencio de sua mor- te, mais uma vez aplaudi-to. Irley F Franco 1 José Américo Pessanha foi, durante muitos anos, professor do Depto. de Filosofia da UFRJ. ‘© que nos faz pensar n°11, abril de 1997 8 | José Américo Motta Pessanha Quando fui convidado a participar dessa série de apresentacdes sobre “As Leituras de Plato”, eu poderia ter aceito no sentido de trazer aqui o fruto de uma pesquisa que realizei, durante anos, em toro da leitura he- geliana de Platao. Entretanto, como o resultado dessa pesquisa acabou sendo publicado no n° 8 da Revista Filosofica Brasileira, editada pelo Insti- tuto de Filosofia e Ciéncias Sociais da UFRJ, em volume dedicado exclusi- vamente a Platéo, podendo portanto ser lido por qualquer um que dela possua um exemplar, achei que seria mais interessante trazer 0 que me ver tentando ja ha bastante tempo, embora ainda no alinhavo, sem ne- nhum rigor, sem nenhuma organizagao mais sistematica: a questdo da dra- matizagao platénica da filosofia. Ao trazer essa questdo, meu objetivo € propor uma leitura de Platio que procure vé-lo, nado como um escritor, um filésofo que trabalha o texto filosofico de uma forma convencional, tratadistica, sistematica, mas como tum filésofo que filosofa ¢ expressa 0 seu pensamento através de didlogos que, mais do que didlogos propriamente, séo dramas. O que estou pro- pondo é que se leia a filosofia de Plat4o, nao por meio de uma determina- da otica filosofica posterior, como a de Kant, Deleuze, Hegel ou Nietzsche, por exemplo, mas como apontando para uma outra maneira de se pensar e de se fazer filosofia. Essa questéo me foi despertada, sobretudo, por certas observacées que, além das que obviamente sugeria minha leitura pessoal dos ditlogos, fui encontrando ao longo do tempo em comentarios que me faziam, cada vez mais, perceber a importncia do drama na filosofia de Platéo. Dentre esses comentarios, um, particularmente, chamou-me a atencdo, h4 muitos anos atrds. Refiro-me ao de Alexandre Koyré, em livro bastante conhecido, inti- tulado Introduction a la lecture de Platon, publicado em francés pela Galli- mard em 62, mas que o proprio Koyré diz ter sido editado, pela primeira vez, bem antes, em 1945, em inglés, e em N.Y. Desse comentario uma passagem em especial eu lie reli, marquei inumeras vezes, a cada leitura, € com frequéncia a citei para os meus alunos. Essa passagem, que eu consi- dero extremamente estimulante, vou ler agora para vocés: Todos, lendo um didlogo de Platdo, sentem que se poderia represent4-lo, levi-lo a cena. [Aqui ele insere uma nota de rodapé acrescentando o seguinte: “Isso, alias, foi feito no tempo de Cicero, os intelectuais romanos faziam representar os diélogos”.] Todavia, raramente, se extrai disso (da possibilida- de de se representar Platéo] as conseqaéncias que se impéem € que nos pare- Platéo — 0 Teatro das Idéias | 9 cem ter importancia para o entendimento da obra de Platdo. Tentemos, pois, formular essas conseqdtncias, to brevemente e téo simplesmente quanto posstvel. Os didlogos (...) so obras dramaticas que poderiam —e que mesmo de- veriam— ser representadas. Ora, uma obra dramitica ndo se representa no abstrato, diante de bancos vazios. Ela pressupée, necessariamente, um pibli- co ao qual se dirige. Em outras palavras, o drama —ou a comédia—implicam 0 espectador, ou, mais exatamente, o auditor. Isso ndo é tudo: esse especta- dor-auditor tem, no conjunto da representagdo dramatica, um papel, e um papel muito importante a representar. O drama néo € um “espetdculo”, e 0 Publico que assiste ao drama nao se comporta, ou pelo menos no deve se comportar, enquanto puro “espectador”. Ele deve colaborar com o autor, compreender suas intengoes, tirar as consequéncias da agdo que se desenrola diante dele; deve alcangar seu sentido; deve penetrar nele. E essa colaboragio do auditor, do publico para com a obra dramatica é tao mais importante e maior quanto mais perfeita e mais verdadeiramente “dramatica” for a obra. Bem mediocre, com efeito, seria a obra teatral na qual o autor poria, de algum modo, a si mesmo em cena, comentando e explicando ele mesmo. Ou inver- samente, bem mediocre seria o publico para o qual uma tal explicacdo ou tal comentario autorizado fosse necessario. Mais uma vez, 0 didlogo —pelo menos o verdadeiro didlogo, tal como © sao os diélogos socraticos de Platdo, o didlogo género literario, e ndo simples artificio de exposigao como o sao os de Malebranche ou de Gior- dano Bruno, € uma obra dramatica. Disso se segue que, em todo didlogo, ao lado dos dois personagens patentes e explicitos —os dois interlocuto- tes que discutem— ha um terceiro, invistvel, mas presente ¢ igualmente importante: o leitor-auditor. Esse texto de Koyré, pelo fato de em parte ja mostrar 0 motivo da en- cantac4o que o texto de Platdo opera sobre nés leitores, sempre me desa- fiou, e eu freqdentemente o usei como uma espécie de epigrafe ao tipo de trabalho que, sobretudo, nos ultimos cursos sobre Platao, fui desenvol- vendo, em particular na UFRJ. Na verdade, o texto de Platdo nao se coloca Ide nés c4; ele acaba nos envolvendo e nos outorgando, como mostra exa- tamente Koyré, um papel nele, texto. Freqientemente, vemos didlogos de Platéo, dramas filosdficos escritos por Platdo, em que somente alguns falam, quando, na realidade, muitos estao presentes. Exemplo disso € o Fédon, onde muitos personagens estéo 10 | José Américo Motta Pessanha em cena, embora, a primeira vista, possamos nao nos dar conta desse fato, Quando nds vemos o Fédon pintado por certos artistas, como, por exem- plo, Louis David, que pinta a cena final do Sécrates que estende a mao para pegar a taca de cicuta, ficamos sabendo que varios personagens sao mencionados no texto, embora nem todos tomem a palavra. Mas o pintor os representa na tela, numa tela famostssima, a partir da qual nos damos conta de que também nés ocupamos essa cena, ainda que silenciosamente, ainda que nao interferindo explicitamente no andamento do didlogo e no andamento da trama teatral filosofica. Nos, na verdade, somos atores coadjuvantes nas cenas do drama filosdfico de Platao. Nés entramos no. didlogo e, de certa maneira, 14 no fundo, somos pintados também por Louis David, Ainda que nao digamos nada, ainda que nao tenhamos a chance de explicitamente expressar 0 nosso acordo ou desacordo, a nossa admiracdo ou 0 nosso repudio com relacao a qualquer coisa que ali se est4 fazendo ou dizendo, nés mentalmente, invisivelmente, participamos. Ora, quem de nés, em certos momentos, lendo certas tiradas desse personagem famosissimo dos dramas filoséficos de Plato, que é Sécrates, jamais se surpreendeu envolvido em uma cena? Quantas vezes, silenciosa- mente ou ndo, pensamos, e mesmo exclamamos, que os argumentos socr4- ticos so falaciosos, soffsticos, ou ainda, perfeitos, convincentes, etc.? Quem de nés nunca se indignou ou se sentiu fascinado por um argumento de Sécrates? Concordando ou nao, resistindo ou nao aquilo que nos é dito pelos personagens, de certa maneira, vamos entrando em seu drama. Ea coisa se torna realmente séria e passa a nos dizer respeito exatamente por esse fato, por tratar-se af de um texto que jamais se distancia completa- mente de nos. Apesar de ser proveniente de séculos antes de Cristo, ele nos envolve, nos concerne; ele faz com que, de alguma forma, entremos em sua trama, torcendo por um lado ou por outro, concordando ou dis- cordando e, de certa maneira, e ainda que silenciosamente, nds acabamos coadjuvantes de toda uma encenacao filoséfico-dramatica. Isso nfo chega a ser uma novidade, pois muitos que comentaram Pla- tao —infelizmente eu ndo trouxe aqui depoimentos, mas teria sido facil faze-lo— voltaram-se para esssa questéo, embora, eu suponho, nio se te- nham permitido extrair dela todas as conseqiténcias. Vide, por exemplo, a observacdo que faz Emile Chambry, tradutor e comentador de didlogos de Plato, na lingua francesa, em sua nota introdutéria ao Gorgias A composi¢ao do Gérgias esta ordenada como uma pega de teatro, em trés Platéo — O Teatro das Idéias | 11 atos de matéria muito variada, onde o imteresse a vivacidade do combate cres- cem de um para outro ato. O conjunto, sendo coroado por um mondiogo que estende para além da vida o interesse que a justica tem para nds. E 0s perso- nagens desse drama filosofico sao extremamente originais e vivos. Ora, todos —comentadores ou simples leitores— percebem que Pla- tao, além de grande pensador, tem um talento literério extraordinario. Ele consegue criar personagens vivas e consegue fazer com que os seus discur- sos expressem as diferentes personalidades, os diferentes cardteres. Sem duvida alguma, o melhor exemplo, ¢ o mais ébvio, € certamente o Banque- te, que € um didlogo inteiramente constitufdo através de grandes lances dramaticos. Sob todos os aspectos, este didlogo, que vocé lé o tempo todo visualizando cenas, € um grande drama; sob todos os aspectos, sugere a encenagdo. E, com certeza, j4 que os didlogos eram encenados na época romana, na época de Cicero, foi intimeras vezes encenado pelos romanos. De todas as cenas do Banquete, talvez a mais eloquente seja aquela da entrada intempestiva de Alcebfades, depois que um certo apaziguamento, e, mais do que um apaziguamento, depois que uma certa ascese é desen- volvida e que Sécrates, feminilizando sua voz e ele proprio incorporando teatralmente uma personagem, encarna Diotima e faz uma ascese que lem- ‘bra uma espécie de vocalise. Um grande ator, se o representasse, deveria tentar exprimir esse momento de ascese, que precede a entrada de Alce- biades, através de uma vocalise. E quando comecasse a representar aquele momento solene em que Diotima, na voz de Sécrates, usando a linguagem dos ritos de iniciagdo, descreve a erética e os patamares de sua subida, 0 fizesse como que ascendendo, e ascendendo mais e mais, através de uma voz que se tornasse cada vez mais aguda, uma voz que fosse se agudizando A medida que mostrasse a subida da prépria linguagem ea purificagdo que se opera nessa linguagem, até que agudissimamente conseguisse, em de- terminado momento —e é preciso uma grande impostagao, nao sé de voz, mas de alma para fazer isso—, chegar 14, ou quase 4, naquela beleza ulti- ma, ¢ naquela beleza absoluta. Ora, € depois desse momento em que toda a cena nos fez ascender e que por isso mesmo nos sentimos purificados e apaziguados, —sim, por- que também nés que estamos na platéia, nds coadjuvantes, nés auditores, nds espectadores dessa mesma cena, somos levados para aquela ascese lu- minescente, para aquele alumbramento crescente—~, que tudo se transfor- ma. Entram os rutdos, a paixao, a indisciplina, o descontrole: ¢ Alcebfades 12 | José Américo Motta Pessanha que chega, ¢ com ele um certo barulho de uma musica que nao € mais a musica da filosofia, mas que é empirica, sensoria, corpérea; uma musica certamente lasciva, uma musica certamente voltada para a sensibilidade: € a musica da paix4o, o ruido da paixdo, o tumulto da paixdo. E Alcebtades que, embriagado e excessivamente enfeitado entra trazendo consigo uma paixdo, a que tem por Sécrates, e posiciona-se teatralmente ao lado desse mesmo Sécrates, sem perceber, ou fingindo nao perceber, que esté ao lado de Socrates. Nosso directeur de scene, que € 0 proprio Platao, cria essas situagdes de surpresa e de suspense. A cena final do Banquete € também extremamente teatral € leva-nos a uma situacao final quase cinematografica, pois nela o importante j4 nao € exatamente aquilo que € dito e pode ser lido no texto, mas é aquilo que € atuado: € a gesticulacdo, a mimica, a encenacao. O narrador, o autor do drama, o proprio Platao, conta-nos que os trés tiltimos que permaneceram. na sala bebendo de uma mesma taca de vinho, ou de palavras, néo impor- ta, os trés ultimos que resistem até o final sdo, na verdade, os repre- sentantes da comédia, da tragédia e da filosofia: Aristofanes, Agatdo ¢ S6- crates, respectivamente. Eles continuam, mas nés leitores nao sabemos 0 que eles estdo dizendo, como se a camera cinematografica houvesse sido afastada. Nos apenas vernos do texto aquilo que no texto € pura descri¢éo de encenacao e de gestualidade; nds apenas vemos os gestos de trés pes- soas que continuam falando o que nao ouvimos, 0 que, portanto, nao ve- mos. E eles vao passando a taca entre eles, até que um, o representante da tragédia, muito cansado, dorme, ¢ 0 outro, o representante da comédia, muito cansado, dorme. Somente Socrates, o representante da filosofia, permanece acordado e acomoda os dois que nao tém tanto félego, poi nem a tragédia, nem a comédia tém tanto félego quanto a filosofia. Mas Sécrates, o logos vigilante, o logos filoséfico, nao sé permanece acordado, como ainda sai e continua perambulando, ¢ continua andando itinerante, permanentemente itinerante. Ora, isso é uma cena de teatro, de puro tea- tro. E € também uma cena de cinema, uma cena que exigiria um diretor que soubesse afastar a camera de modo a fazer com que nao mais se pres- tasse atenc4o aquilo que est4 sendo dito, porque o que esta sendo dito nao importa. O que importa € apenas o que se lé estar sendo dito através dos gestos, porque os gestos sao significantes e eles estao dizendo aquilo que € talvez a ultima e mais importante mensagem de todo esse drama. Ora, se levamos a sério o cardter teatral dramatico dos didlogos de Pla- t4o, nos sentiremos como que desafiados a aproveita-lo ao maximo, a fazer Platéo — O Teatro das Id muito mais do que o préprio Koyré fez em seu ensaio. Seremos obrigados @ esquecer, ainda que temporariamente, o Plato lido através dos prosado- tes da filosofia, o Platdo traduzido, criticado e comentado professoralmen- te por todos os professores de filosofia ao longo dos séculos, desde Arist- teles, para entao tentar resgatar do platonismo alguma coisa que nao € apenas o aparato da sua manifestagao literaria, da sua expressao dialogica € dramatica, mas que € 0 “o que” nessa expressdo € razao de ser dessa expressio. E posstvel que, ao resgatarmos o sentido dramatico dos dialo- g0, o significado de filosofar para Platéo adquira uma outra dimensao Para nds, De fato, uma coisa é 0 Platao vestido prosaicamente em qualquer ver- s40, a mais genial que seja, de Aristoteles a Nietzsche, a Heidegger ou a Lacan. Outra coisa € © Platao respeitado, no como alguém que pensava genialmente e€ ao mesmo tempo tinha um grande talento que o tomava capaz de vestir o proprio pensamento dessa forma dramatica e dialogada, mas como expressando de fato um contetido através dessa forma dramati- ca, Ou seja, se nés comecarmos a tentar nao desvincular a forma do con- tetdo e nos dermos conta de que, na filosofia platénica, a forma tem que ser mantida para que o contetido seja apreendido e de que a teatratidade e a dramaticidade so fatores inerentes ao pensar filos6fico de Platdo, talvez consigamos resgatar do platonismo uma outra forma de ler e entender. Resgatar do platonismo uma outra forma de ler e entender —eis, em suma, a proposta que fago a vocés, sugerindo que um tal resgaste 6 seja posstvel se, em nossas leituras dos didlogos, nao descartamos a tentativa de compreender os seus sentidos dramaticos. E uma proposta sem duivida tentadora, pois creio que através dela poderemos conquistar muito mais do que geralmente o fazemos nas leituras convencionais. De {ato ¢ isso 0 que, muito ousadamente, venho tentando fazer em meus cursos, ndo ape- nas com aqueles didlogos obviamente draméticos, como € 0 caso do Ban- quete, mas com todos os didlogos, mesmo aqueles aparentemente enxutos, aparentemente os mais abstratos e teéricos, arduos e quase tratadisticos como, por exemplo, o Protdgoras. Evidentemente, contra essa proposta vocés podem imediatamente le- vantar uma grande, séria e inevitavel objec4o: a saber, a de que Platdo € considerado o arquiinimigo da atte. Afinal, estamos diante daquele pensa- dor que, dentre muitas outras coisas, ficou famoso porque acusou poetas € dramaturgos de causarem um grande mal a sociedade e a cidade, e que, por isso mesmo, — isso € dito claramente no livro X da Repiiblica—, con- 14 | José Américo Motta Pessanha siderou que eles deveriam ser afastados, expulsos da cidade-ideal. Todos nés sabemos que Platao é visto assim e lido ao pé da letra, e lido talvez com uma certa superficialidade. Ele é visto como o grande censor das ar- tes, como aquele que impede a criatividade, como aquele que proibe a entrada do artista na cidade-ideal —e 0 que € muito escrito e muito divul- gado, embora eu nao va aqui citar professores conhecidos em artigos, dos quais teria uma infinidade de exemplos: a saber, que o patrulhismo come- cou com Platao, que, para Platao, tudo tem que ter na verdade um sentido politico-pedagogico, € que, se ndo tem um sentido politico-pedagégico, todo tipo de linguagem, evidentemente, fica rejeitada porque é perniciosa. A questao ndo é entretanto tao simples. Para examinar a relago de Pla- t4o com a arte, € necessario, antes, fazer uma distincao entre a relagdo de Platao com a arte ¢ a relacao de Platéo com a arte do seu tempo. Trata-se de duas coisas simultaneas, dialeticamente interdependentes, mas que tem que ser trabalhadas, ainda que provisoriamente, de forma separada. Acho que ninguém melhor do que Pierre-Maxime Schuhl, em seus trabalhos so- bre Platao, particularmente, em Platon et l'art de son temps e “Platon et la musique de son temps”, sendo este ultimo um ensaio inserido num livro chamado Estudos Platonicos (Etudes Platoniciens), trabalhou melhor essa questao da relacdo entre Platao e a arte do seu tempo. E o que diz Pierre- Maxime Schubl a esse respeito? Farei de suas teses um breve resumo, pois o tempo é curto e nem Sherazade eu sou, nem mil-e-uma noites teremos, apenas pouco mais de meia hora. Pois bem, Pierre-Maxime Schuhl diz, nesses trabalhos, que eu espero que vocés ja conhecain ou que, pelo me- nos, venham a conhecer, que de fato Platdo afirma coisas gravissimas, se- rissimas em relagdo a arte, mas nfo & arte enquanto arte simplesmente, isto é, enquanto produtora de obras que, por sua beleza, se contempla pelo prazer de contemplar, mas enquanto algo capaz de interferir nos va- lores do seu proprio tempo. Tomemos, por exemplo, inicialmente a musica. Platéo mostra que a missica no seu tempo est4 conhecendo um grande “avano", um avango que est seduzindo e encantando o publico, porque certas modificacdes, certas revolugdes basicas estao ocorrendo nos préprios instrumentos mu- sicais. A lira nao € mais a lira classica: outras cordas lhe foram acrescenta- das e agora o tocador de lira pode, evidentemente, tirar efeitos sonoros muito mais variados, muito mais envolventes, muito mais sedutores, mui- to mais encantadores. Sé que esse encantamento é uma encantacéo, diz Platdo. Esse encantamento é um encantamento que tem como finalidade 0 Platao — 0 Teatro das idéias | 15 Prestigio; ele €, na verdade, um simulacro, um bajulamento, uma bajula- 40. Os efeitos sonoros da lira estdo apenas bajulando o meu gosto, a mi- nha audicdo empfrica e esto me desviando daqueles acordes fundamen- lais, que so sagrados e fundamentais, porque sdo fundamentantes, nao do meu gosto auditivo, mas fundamentantes da propria organizacdo do cos- mos que, pitagoricamente, deve servir de paradigma a organizacao harm6- nica da polis. Mudar os modos da linguagem musical, diz Plato, ¢ mexer perigosa- mente nos fundamentos da propria cidade. Criar, no sentido novidadeiro, no sentido de criar novidade para o ouvido e, como também veremos, para os olhos, é, na verdade, desviar um certo ritmo que, este sim, estava vinculado a paideia grega, desde a {ase mais arcaica. Esse ritmo fazia com que aquela musica fosse um elemento basico da formacao, nao porque o homem fosse chegado & musica, ou gostasse de musica ou, como se diz hoje, houvesse passado a consumir musica, mas porque, na verdade, quando ele era introduzido na paideia, através da musica, estava sendo introduzido em um ritmo, uma harmonia cujos fundamentos eram mate- matico, cosmoldgico e cosmogénico. Em outras palavras, ele estava sendo introduzido na regularidade da lei universal. E € por isso que se diz que a misica era polttico-pedagégica para Platdo. Por outro lado, o que esta acontecendo com a flauta, que € um outro instrumento importante daquela época? A flauta nao € mais aquela velha flauta, aquela flauta arcaica, aquela flauta através da qual simplesmente, porém, fundamentalmente, controlando-se 0 sopro, o pneuma que vem de dentro, construia-se uma frase musical que era, na verdade, a expressiio da alma-pneuma de quem sopra misturando-se ao pneuma harmonico do cos- mos, ao pneuma-apeiron que j4, desde Anaximenes, sustentava tudo. Quando, antes, arcaicamente, se tocava a flauta, se tocava a nota, a vegra,a lei, a harmonia e também o ritmo da realidade toda. Agora nao. Nao é mais um sopro e uma mo conjugados dentro desse ritmo sagrado porque césmico. Trata-se agora de uma flauta em que um mecanismo, um artefa- to, pode vedar mais ou menos 05 orificios ¢, por isso mesmo, com muito mais rapidez, produzir variagdes e criar uma série de atracdes auditivas que nos encantam, mas que, em compensacao, também nos alastam do ritmo sagrado de nossas almas ¢ da alma do mundo. Ou seja, ha avangos técnicos que nés, hoje, aplaudiriamos histericamente e que, de fato, estao sendo aplaudidos histericamente por aquele povo, naquele momento, mas que, para Plato, est4o apontando para o grande perigo, que 6 0 de cada 16 | José Américo Motta Pessanha vez mais a arte ser uma arte para agradar, para bajular a sensacao, para bajular o corpo e as paixdes do corpo e cada vez menos uma arte da pro- pria musica, isto €, daquela que € voltada para uma sintonia, para um acorde entre 0 sopro do homem e 0 sopro do cosmos. Essa tensao interna a questdo de Plato com a arte de seu tempo apare- ce claramente no Fédon, quando vemos Socrates a beira.da morte dizer que foi chamado a fazer mUsica e poesia e que, pensando ser essa a sua missao, acreditou, num determinado momento, nao ter jamais conseguido realiza-la, mas que, mais tarde, ele préprio reconheceu que precisava en- tender melhor aquele chamado ¢ aquele apelo, pois refletindo deu-se con- ta de que o que passara a fazer —filosofia— isso sim é que era a grande musica e a grande arte, uma arte que nao dizia respeito apenas a propria misica, mas a todas as artes patrocinadas pelas musas. Quando ele reco- nhece que das artes patrocinadas pela musica a mais alta musica é a filoso- fia, ele conclui: “Entao eu faco musica e quem faz musica sou eu”. Ele nio est4 tocando nenhuma flauta, nao esta tangendo nenhuma cftara; ele esta fazendo filosofia. Uma coisa, portanto, € a arte que estd avancando cada vez mais no tempo de Platao, outra é a versao que Platéo esta dando dessas mesmas artes dentro de sua propria obra, porque Sdcrates, ao fazer filosofia, faz 2 mais alta musica, ¢ Platao, ao fazer filosofia através de um Sécrates que diz que faz a mais alta musica, esta também fazendo a mais alta musica, embo- ra esteja criticando todo tipo de musica que esta sendo feita no seu tempo. ‘Ou seja, é tanto mais forte e mais virulenta a critica de Platéo a misica do seu tempo, quanto mais aguda a sua consciéncia de que a musica é uma outra coisa que ndo o que se esta chamando de musica no seu tempo e de que rmisica quem est fazendo é ele ao fazer uma certa filosofia-miisica Passando agora as artes visuais. Ora, o que esta acontecendo com as artes visuais torna a questao de que tratamos ainda mais evidente, como mostra Pierre-Maxime Schuhl em Platon et l'art de son temps, pois nenhu- ma arte mais do que as visuais trabalhava com o objetivo de produzir a ilusdo. Hoje, turisticamente, ficamos deslumbrados, quando chegamos ao Partenon e vemos l4 na Acropole aquele deslumbramento de construgao arquiteténica; ficamos deslumbrados quando, lendo uma obra sobre aque- la construgao ou ouvindo o que diz sobre ela o guia que nos esta condu- zindo, tomamos conhecimento de que aquilo que nos parece vio harmo- nioso ao othar é na realidade o resultado de uma série de distorcées propositalmente produzidas com o objetivo de criar a ilusao da perfeicao. Platéo — O Teatro das tdéias | 17 Se medirmos as distancias entre aquelas colunas, veremos que nao sio perfeitamente iguais, embora parecam iguais, pois o autor genialmente — Platéo diria “sofisticamente”—, interferiu naquele objeto de maneira a dis- tanciar as colunas para que aquele que olha tenha a impressio de harmo- nia, de eqiidistancia e de equilibrio quando, na verdade, 14 mesmo, na construgao, isso néo existe. E um simulacro de harmonia; é uma harmonia para os olhos, é uma harmonia criada para o olhar, apreendida pelo olhar, mas que nao corresponde a realidade do objeto apreendido. Modernamen- te dizemos que tal construcdo é maravilhosa, que o seu arquiteto era ge- nial, pois percebeu que tinha que criar uma escala a medida do homem, pois percebeu, enfim, que o homem € a medida de todas as coisas, como também nés, Protégoras de nossos dias, percebemos, ¢, por isso mesmo, nos admiramos do Protagoras-arquiteto que fez um jogo de simulacdo para que apreendéssemos como se fosse equilibrado aquilo que, na reali- dade, € um desequilibrio ¢ que esteticamente, quer dizer, através dos sen- tides, traduzimos em equilibrio. Mas, os colossos, os maravilhosos colos- SOS gregos, as grandes estdtuas, se fossem feitas em proporcdes reais, seriam percebidas como distorgées. No caso de uma enorme estatua, a sua proximidade, veriamos um pezao imenso e longe, la no alto, uma cabeci- nha € um tronco que iriam diminuindo cada vez mais, produzindo uma apteensio desagradavel e desproporcional. O que o genial sofista-escultor faz € inverter as coisas e mudar as proporcdes do objeto de tal maneira que, ao olhé-lo, ele nos pareca perfeitamente proporcionado e equilibra- do, embora 0 objeto ele mesmo tenha passado por todo um trabalho de escamoteagéo de seu desequilibrio objetivo, a fim de criar naqueles que 0 contemplam uma sensagao agradavel de fruicio equilibrada, quando, na verdade, ele nao ¢ um objeto equilibrado. Mas isso nao € tudo, Ha ainda a questao da ilusdo provocada pelas téc- nicas do desenho e da pintura que continuamente avancam na época de Platéo. Quando Platao diz que Zeuxis pinta frutas com tamanha perfeicao que as aves, crendo-as verdadeiras, vio bicar a sua obra, vemos que a arte gtega no tempo de Platdo, ja havia atingido um avango tal em termos de perspectiva, colorismo e sombreamento, que o pintor ou o desenhista que dominasse essas técnicas, era capaz de iludir qualquer espectador, inclusi- ve os animais, de que aquilo que é na verdade bidimensional, como ¢ 0 caso da fruta pintada que as aves vém bicar, é algo real. E porque o artista é capaz de fazer com que um objeto bidimensional e chapado, sem relevo algum, sem profundidade alguma, nos dé a sensacao contréria do que ele 18 | José Américo Motta Pessanha de fato €, que Platao o considera uma ameaca para a cidade. Na verdade, € a arte transformada num trompe I'ceil, num tromper, num iludir, que assus- ta Platao. A arte deveria, segundo Platéo, apontar para as medidas reais, para as coisas reais; ela deveria ser uma espécie de patamar que conduzisse © homem & compreenséo da realidade, e nao @ ilusdo da realidade, porque a ilusdo € 0 que acorrenta os homens no fundo da caverna, fabricando simulacros, simulagoes, falsificagoes que dao a impressdo de serem uma tealidade tao real que jamais os encorajaria a afastar-se dali. Ora, se a rea lidade € construida pela mais perfeita ilusdo, pela ilusao elevada ao mais alto grau de ilusionismo, o que levaria os homens a suspeitar dela? Todo esse conjunto de ilusionismos é apresentado a populacdo, em particular 4 populacdo de Atenas, nas encenacoes teatrais, nessas maravi- Thas de encenagGes que, até hoje, nos deslumbram. Dat a ira de Platéo no livro X da Republica, ira que ele vai enderecar para a fonte de tudo isso que, afinal de contas, segundo ele, € Homero. Os grandes poetas tragicos gregos —diz Platao, sem mencioné-los e com um altaneiro desprezo— sao todos eles seguidores do primeiro grande enganador: Homero, que fingia saber tudo —medicina, guerra, politica, leis— sem entretanto saber coi- stssima alguma. Platdo, seguindo as pegadas tanto de Herdclito quanto de Xen6fanes recusa toda validade a sabedoria tradicional originada em Ho- mero e diz que toda a sua filiagdo, toda a sua estirpe, a qual pertencem todos os poetas tragicos, na verdade, esta cometendo um grande crime, um duplo crime contra a cidade. Em primeiro lugar, esses poetas esto encenando paixdes. Qualquer um de nés que leu ou viu uma tragédia gre- ga, viu a sua encenagao, sabe 0 que ¢ isso. Para Plato, os uivos de Medéia so abominaveis, porque nao sao verdadeiros. E 0 ator, sobretudo o ator da época, ou a atriz recente, moderna, que faca Medéia querendo matar os filhos, uivando o seu citime € 0 seu desespero, finge, e finge —horror de todos os horrores! : uma paixdo. Por ser uma paixdo ja é alguma coisa que devertamos controlar ao invés de enaltecer, manifestar, expor e dar publi- cidade. Uma paixdo, para Plato, deve ser motivo de trabalho e de contro- le, de trabalho de domagao, de trabalho de contengdo, de trabalho mate- matico, médico, filoséfico, de disciplinacao. E, ao contrario, o que se escancara no teatro grego € a paixdo, € a pior dentre as paixdes: a nao verdadeira, o simulacro da paixdo. E, como se no bastasse o fato de o que est4 sendo encenado ser a paixdo-simulacro, ela agora é encenada com o auxilio de um simulacro da realidade: 0 cendrio. O cenario é o segundo grande crime que cometem os poetas tragicos. A paixdo-simulacro aconte- Plat80 — 0 Teatro das ldéias | 19 ce por exemplo em uma casa que, na verdade, nao é uma casa, embora eu a veja como se fosse uma casa. A casa tem agora um corredor, embora na tealidade nao haja corredor algum. No fundo do corredor tem uma janela, mas essa janela de fato no existe. E tudo de mentira. Tudo aquilo € pinta- do, tudo aquilo € teléo, porque a arte da perspectiva ja fizera com que fosse posstvel acrescentar, aquele simulacro de paixdo, um simulacro de cenério, um simulacro de realidade, Em suma, tudo aquilo que esta apre- sentado ali —duplo horror!— ¢ paixéo numa trama de fingimentos e de ilus6es. Isso para Platao ¢ a anti-verdade, € a sofistica, é 0 reino da sofisti- ca, €a sofistica na arte, ¢ 0 ilusionismo da arte do seu tempo. Ora, se ficdssemos apenas na leitura rapida do livto X da Republica, diriamos que, de fato, para Platao, o poeta e, em particular, o poeta tragi- co, € um ilusionista, ¢ um perverso, é um sofista que ndo pode permane- cer na cidade-ideal. Se a cidade quer ser justa, quer ser equilibrada, quer ser constituida através de uma multiplicidade ritmada que no fundo pro- duz o grande acorde social politico, evidentemente esses artesdos da pin- tura, da escultura, do teatro e, de certa forma, das palavras, ndéo podem estar nela. No entanto, esse Platao, que expulsa os artistas da cidade, es- creve dramas filosdficos. De modo que, ao lado de tudo aquilo que um especialista como Pierre-Maxime Schuhl nos mostra sobre a critica que Platao faz a arte de seu tempo, verificamos que toda essa critica é feita através de uma outra arte. Nao ¢ a arte o que visa a critica de Platao, mas um determinado tipo de arte, a atte do ilusionismo que esta sendo pre- ponderante no seu tempo. Ou seja, Platao nao esta recusando a poesia en- quanto poesia, mas enquanto poesia imitativa, solistica, ilusionista, Ele nao esta recusando o teatro enquanto teatro, mas esta simplesmente recu- sando o teatro das paixdes, que ¢ também um teatro ilusionista. Ele nao esta recusando a mtisica enquanto musica; ele esté recusando aquela mu- sica que embala a sensorialidade, que bajula o gosto do ptblico, que faz uma retorica musical, como os sofistas tao bem sabiam fazer encantando seus auditores, sé que agora encantando com uma flauta ou com uma lira. Ou seja, ele faz a critica das artes naquela feicdo que a arte tomou no seu tempo, que €a de procurar ganhar cada vez mais o publico facilitando sua apreensao da prdpria arte, porque reduzindo essa apreensdo a imediatez da apreenséo sensivel. E ja que nao temos muito tempo, eu gostaria entao de comecar apenas a levantar um outro caminho dizendo o seguinte: Platéo, ao mesmo tempo que recusa uma certa poesia, faz altissima poesia; ao mesmo tempo que 20 | José Américo Motta Pessanha critica os poetas, no livro X, termina o momento mais dcido de seu comen- tario a Homero, criando, ele Platao, também poeta, uma das mais belas imagens da lingua grega, segundo o proprio Aristoteles —ao ponto de Aristoteles registra-la em sua Retérica— e a qual passo a citar agora de meméria: Eles tém apenas a sedugao, a encantacao de um rosto enquanto. jovem, no frescor da juventude, mas, perdendo esse frescor, esse rosto evi- dentemente vai perder toda a sua beleza e toda a sua encantacao. Claro que a frase de Platao € muito mais bonita do que a versio que dela estou dando aqui e, além disso, para que se admirasse a construcao literéria, seria preciso lé-la em seu original grego. De todo modo, minha intencao ao verter essa imagem que diz da efemeridade do poder encanta- tério dos poetas é mostrar 0 quanto essa questao pode nos desafiar e insti- gar. Ora, Platéo acaba de falar mal do poeta dos poetas, do mestre dos poetas, do modelo dos poetas, do patrono dos poetas, que é Homero; aca- ba de afirmar que toda a sua linhagem é perversa, etc., e, quando vai expli- car que perversao € essa, o faz poeticamente, através de uma outra forma de poesia, falando mal de uma certa poesia. Ele ndo sai de dentro da poe- sia para recusar a poesia, mas falando mal de uma certa poesia faz a mais bela prosa poética que sem duvida a antigdidade produziu. E dentro dessa prosa pottica, com todo o direito que a qualidade ¢ o talento de poeta lhe dao, ele condena as outras formas poéticas, ilusionistas, sofisticas. Mas, voltando 4 questo do teatro filosdfico, se nao descartamos de nossas leituras dos didlogos a sua dimenséo dramdtica, quer dizer, os sen- tidos que podemos retirar do que est sendo encenado, ele pode funcionar como uma espécie de antidoto para interpretacées apressadas, que, alids, sdo o grande drama do platonismo, ¢ que em geral dificultam nossa com- preensio de Plato. Por exemplo, numa leitura répida, dizemos, da maio- tia dos didlogos, que Platao € o inimigo numero 1 dos retéricos € dos so- fistas. Realmente, Platéo costuma colocar um desses retéricos ou sofistas debatendo contra Sécrates, que representaria a anti-retérica e a anti-sofis- tica, fazendo-os portanto aparecer em cena como dois antagonistas que desenvolvem cenas terriveis de batalha, que lutam como lutadores de boxe —e de fato o proprio Platdo iré usar a expressao de pugilato para descre- ver essas lutas em um dos mais representativos didlogos contra os sofistas: © Protagoras onde, a questdo de fundo é, mais uma vez, a questdo da virtu- Phatdo — 0 Teatro das ldéias | 21 de, o que ela é e se pode ser ensinada. Nesse didlogo, confrontam-se dois pesos pesadissimos da €poca: Socrates de um lado do ringue, Protdgoras do outro. E, na verdade, ¢ essa luta, é essa heristica, € esse pugilato —diria ele—, que vemos em cena num certo momento. Consequentemente, uma leitura apressada, como a que os compéndios rapidamente divulgam, € a de que Socrates e Platdo combatem a ret6rica e defendem a ciéncia, a epis- teme. Entretanto, quando lemos o proprio Protdgeras com um sentido de encenacio teatral mais exigente, vemos que a coisa nao é t4o simples as- sim: esses dois personagens estdo desenvolvendo aquilo que eu proporia a vocés que entendessem como uma espécie de coreografia das idéias. De um lado esté alguém que usa preferencialmente o didlogo como forma de combate, que, frequentemente, se recusa a comentar os poetas, que no faz tanto uso, como faziam os sofistas, dos provérbios ¢ das citacdes, € que tampouco gosta de fazer discursos longos e continuos, etc.. Do outro lado, esta o grande mestre da interpretacdo dos poetas, dos discursos longos e encantatorios, ou seja, aquele que, por isso mesmo, € 0 grande tetérico do momento, e € 0 grande sofista. No entanto, vamos nos dando conta, pelas artimanhas da encenacdo que Plato propée no seu texto, de que esses antagonistas vao ao mesmo tempo mudando de tese. A principio estdo em confronto duas teses aparentemente opostas ¢ antagOnicas. Mais adiante, aquele que afirmava a tese A comega a reconhecer a possibilidade da tese B, enquanto aquele que afirmava a tese B comeca a assumir a tese A. Do ponto de vista da doutrina, dirfamos nés, houve uma inversao, estranha inversdo de doutrinas. Mas isso nao € tudo. Ao longo dessa coreografia ¢ dessa troca de posicdes cénicas, eles vao trocando também seus instrumentos técnicos de trabalho: 0 que nao dialoga é forgado a dialogar, o que nao comenta poetas € forcade a comentar Simonides. E, diante disso, perguntamo-nos, ¢ eles prdprios se per- guntam, e € assim que a coisa acaba, num suspense de dramaticidade quase insuportavel: “Afinal, quem é quem aqui? Quem ¢ o defensor dessa posicao, quem ¢ 0 defensor da outra? Quem ¢ aquele que dialoga e aquele que comenta Poetas? Quem € 0 retérico? Serdo os dois ret6ricos, sé que um assumido ¢ o Outro nao? Sera que Socrates € tao grande retérico que, para conseguir maio- tes efeitos sobre seu auditério, zomba da propria retérica?” De fato, zombar da retérica pode ser também uma técnica retérica. Quanto mais o retérico afirma nao estar fazendo retérica, mais retorica ele faz, ¢ faz uma retérica muito mais eficiente, porque, evidentemente, se néo esta fazendo retorica e sim mostrando a verdade, fazendo ciéncia, ele 22 | José Américo Motta Pessanha tem muito mais condigao de conseguir o assentimento do seu auditorio, do seu ptblico; ele € muito mais convincente ¢ 0 efeito da sua retorica € muito mais profundo, obviamente. Todos os especialistas hoje em retérica —inclusive o meu caro Chaim Perelman, de quem eu tanto gosto—, mos- tram isso. Nao ha retérica mais escamoteada do que aquela que diz que nao esta fazendo uso apenas de construgdes verbais, mas que esté funda- mentando seus argumentos na propria estrutura do real, seja o real o que for, esse mundo af fora, ou o mundo das idéias. E ai mesmo que se escon- de o retérico mais sagaz; € al mesmo que se encontram os argumentos retéricos mais fortes. Quando terminamos de ler o Protdgoras, ficamos exatamente com essa possibilidade, a de suspeitar que todos aqueles que confundiram Sécrates com os sofistas e que todos aqueles que o condera- ram A morte, como mostra-se 14 na Apologia, ao fim e ao cabo, podiam estar com a razfo. “Sera que nao teriam razio?” —perguntamo-nos, pois a maioria achava que Socrates era mais um sofista, um sofista, além do mais perigoso para a polis, porque subversivo e perverso para com a juventude, a quem introduzia deuses novos e questionava os valores tradicionais, tan- to que acabou sendo condenado. Mas ndo sera justamente esta a quest4o mais dramatica do platonismo: ‘mostrar que 0 filésofo nao € o sofista? Vamos examinar mais de perto algu- mas cenas do Protdgoras, este drama extraordinario em que Platdo, através de sua dramaturgia, conta-nos coisas muito interessantes, as quais, de modo algum, podemos perder. Por exemplo, logo no comego do didlogo conta Sécrates 2 um amigo: Na noite passada, em plena madrugada, Hipécrates, filho de Apolodoro bateu violentamente com o seu bastao 4 minha porta; logo que alguém lha abriu, entrou como um pé-de-vento, gritando a plenos pulmoes: —Sécrates, estas dormindo ou jé acordaste? E eu (...): —Trazes alguma novidade? —Ne- nhuma, respondeu, que nao seja boa. —Ianto melhor, observei. Porém, que houve, e por que vens a estas horas? —Protagoras estd na cidade, disse ele, pondo-se na minha frente. —Desde anteontem, repliquei-Ihe; s6 agora 0 sou- beste? —Sim, pelos deuses! Ontem a noite. (...) Por conhecer a sua natureza decidida e arrebatada, perguntei-lhe: ~E que tens com isso. Acaso Protago- ras te ofendeu em alguma coisa? Ao que respondeu, rindo: —Sim, pelos deu- ses, Sécrates; por ser sébio s6 para si e n4o comunicar o que sabe. —Por Zeus, repliquei-lhe; se lhe deres dinheiro e o persuadires, deixar-te-4 também si- bio. —Prouvera a Zeus, disse-me, e aos demais deuses que assim fosse! (...) Platio — 0 Teatro das idéias | 23 ‘Vamos logo! disse ele. —Ainda nao, meu caro, é muito cedo, respondi-lhe. Porém levantemo-nos e vamos para o patio, onde ficaremos a passear e a con- versar até clarear 0 dia. Além do mais, Protagoras para muito tempo em casa; nao tenhas receio; tudo indica que havemos de encontré-lo (...). Observem como a narrativa j4 € uma narrativa que ndo tem nada de demonstrativa, nada de tratadistica, nada de sistematica. £ uma cena que se abre diante de nossos olhos, onde o elemento cénico da luz é vital. O carro de Apolo mal comegava a despontar. Tudo é ainda obscuro, fora e dentro. E madrugada, a luz € baca e ¢ bago o ambiente. Como a madruga- da que o envolve, também aquele que o viera chamar ansioso esta obscu- recido. Mas, 8 medida que Sécrates vai se preparando para ir ou ndo com ele e enquanto vao conversando, ambos, a cena exterior e o interior de Hipécrates, vao se iluminando, a cena inteira vai, teatralmente, se ilumi- nando, como se o spot fosse se tornando cada vez mais claro. ‘Tudo o que esta acontecendo nesta cena de abertura do Protagoras € de uma clareza dupla, porque o dia nasce dentro e fora da alma do interlocu- tor de Socrates, porque, enquanto o sol ilumina a cena exterior, Sécrates, interrogando, vai iluminando o interior de seu amigo: vai questionando a razao de sua pressa em ver 0 sofista, vai mostrando que o habito de cobrar revela alguma coisa sobre a natureza do sofista ¢ vai ao mesmo tempo per- guntando se ambos terao dinheiro suficiente para pagar o grande sofista, que cobra para ser ouvido e que é muito careiro. E, em determinado mo- mento, quase se sugere que se faca uma vaquinha —lembram-se?—: “Se no tivermos dinheiro, damos um jeito, pedimos aos amigos...”, etc.. E depois hé toda uma discuss4o em torno do que vendem os sofistas, e S6- crates chama a atencao do amigo que quer comprar a sabedoria do sofista dizendo-Ihe que tenha cuidado, porque alimentos para o corpo ao serem comprados podem ainda ser trazidos em alguma sacola, cesta, ou coisa semelhante, mas alimentos para a alma ja os trazemos dentro de nds mes- mos, e, se eles estdo estragados estragam também o seu recipiente interno. Tudo isso € discutido j4 nas primeiras cenas do Protdgoras ¢ a grande ques- tao do pharmacon filosofico versus pharmacon sofistico, a palavra como ve- Teno ou como antidoto, ja est4 posta pelo simples aclaramento de uma cena que € ao mesmo tempo exterior e interior. Os primeiros momentos do Protdgoras, muito antes de se chegar 14 onde esta o proprio Protagoras, sio portanto os momentos mais decisivos do didlogo. As coisas j estéo todas ditas, as grandes categorias ja esto 24 | José Américo Motta Pessanha postas na cena e € a cena quem diz, em grande parte, através de sua ilumi- na¢do crescente, fora, e, sobretudo, dentro. O que estou sugerindo é que, talvez, para Platdo, o trabalho da filosofia seja um trabalho de encenagao € aclaramento de cenas interiores. Mas ainda voltaremos a esse ponto. Retornando, entdo, ao Protdgoras e a questao da distingdo entre o filo- sofo e 0 sofista. Socrates e seu amigo Hipécrates partem para encontrar Protagoras. E, enquanto se dirigem ao local onde esta o sofista, continuam. discutindo e as coisas se aclarando. S6 que chegando 14 e ao baterem & porta do sofista, ouve-se a seguinte frase na vor do eunuco que os recebe: “Chega de sofistas! J4 temos sofistas demais!” Esse € 0 momento mais dramético de todo o platonismo, 0 momento em que chega-se, bate-se a porta de onde ha sofistas e se ¢ visto como sendo outro sofista, E esse o grande drama da dramaturgia platonica, 0 drama do mesmo ¢ do outro, do outro que é quase o mesmo € tao quase 0 Tesmo quanto um sésia, um sésia, além do mais, com o cardter terrivel de quem tem a coragem de afirmar que nao 6, ele proprio, igual ao outro e de dizer que ha uma radical, fundamental e essencial diferenca entre ele ¢ 0 outro, entre o mesmo € o outro. E, no entanto, esse outro é quase ele € ele quase 0 outro. Essa categoria do sésia, essa categoria da mascara que ¢ igual ao rosto, ou melhor, quase igual ao rosto, ao ponto de nao se saber se é méscara ou se € rosto € o grande tema dessa dramaturgia em muitos ¢ muitos atos de muitos e muitos didlogos de Platao. Tudo isso € para dizer que, em Platdo, ou no Sécrates de Platéo, no Socrates personagem dramatico desse conjunto de dramatis personae que aparece na obra de Platdo, a arte do outro que ele condena, no caso agora a arte da palavra, e nao mais a arte do canto, da musica, da pintura, da escultura ou da arquitetura, é muito semelhante a arte da palavra do [il6- foso. A arte da palavra do filésofo é quase a mesma que aquela outra que ele rejeita como perversa e contra a qual ele afirma ser a sua arte diferente, pois € fazendo uma certa retérica e uma certa sofistica que Platéo afirma que Socrates € ele no sao sofistas. De fato, para diferenciar a arte do filésofo da arte do sofista, para poder afirmar o espaco ténue, tenuemente diferente da filosofia, Platéo serA obri- gado a criar uma sofistica ¢ uma retorica tais que ultrapassem 0 limite da medida humana, isto é, o limite da bajulagao e do prazer sensério dos belos cantos verbais. E nao é, talvez, outro o motivo por que, exatamente no Fedro, quando Platéo — 0 Teatro das Idéias | 25 essa questéo recorrente da ret6rica reaparece em um outro cendrio, em contexto que lhe confere outra significaco, o mesmo Socrates, porém em situacdo dramética totalmente diferente, ira dizer que, na verdade, o que © filésofo faz € retérica, so que € uma ret6rica que conduz a situagdes extre- mas, uma retorica que argumenta até as ultimas consequéncias, como acontece, por exemplo no Fédon, onde Sécrates a beira da morte, através de uma argumentagio a mais extremada posstvel, racionaliza a propria es- Peranca, os préprios sentimentos e as préprias expectativas mais irracio- nais da alma. Essa ret6rica in extremis € t4o aguda, tao exigente, téo insaciavel, tao amorosa, tfo erética e tao filha de Eros que, na verdade, ela é capaz de persuadir os proprios deuses. Ou seja, a palavra do filésofo €, como a flauta de Orfeu, capaz de pro- vocar uma encanta¢ao tal que transporte os mortais para o que esta além de sua medida humana. Elz nfo quer apenas encantar os mortais naquilo que facilmente os encanta, tal qual a palavra do encantador sofista, mas quer leva-los para uma exacerbacao da propria medida humana de modo a faz€-los ultrapassar essa medida humana. E eis por que a retérica do filé- sofo deve apontar para paradigmas nao-humanos ou trans-humanos: para © justo em si, o belo em si, o bem em si. Porque sua ret6rica nao quer ficar na aceitagdo do auditério presente, na bajulagéo empirica de quem est4 presente, mas quer levar aquele que esta presente a uma outra dimenséo de amor, ao amor ao bem, a verdade, a justica e ao belo, é que ela deve adquirir uma verticalizacéo, um impeto de transcendéncia que supera 0 amor humano. E aqui eu gostaria de acrescentar, s6 para finalizar 0 assunto “retérica”, uma questao relativa a relagdo entre erastes (amante) e eromenos (amado), quer dizer & relacdo de amor strito sensu, conforme entendida pelos gregos. Como tudo na filosofia de Platéo, também a relacao de amor deve adquirir uma verticalidade que inexiste no plano horizontal do jogo dos sentimen- tos entre amado e amante. O que se d4 no plano da horizontalidade dos sentimentos deve ser destinado a uma outra referéncia, uma referéncia que tanscende os dois componentes da telagao e supera o jogo passional, emocional. Ora, essa transcendéncia é alcancada através de uma ret6rica da verticalidade, como bern exemplifica a erética do Banquete, que conduz 4 contemplacao da beleza. Nao é mais 0 belo corpo do outro, ou a bela alma do outro, etc., aquilo a que se destina o amor, mas a propria beleza, cuja proximidade € conquistada a cada etapa através de um processo de 26 | José Américo Motta Pessanha desindividualizacao da beleza que é acompanhado por uma producao de discursos. Falar e amar tém portanto sentidos interligados na filosofia de Platao. Mas, se é assim, € agora penso mais especificamente no Fedro, possivel- mente 0 filésofo € para Platao, ndo o anti-retorico, mas o retérico capaz de fazer uma ret6rica corretiva, salutar, curativa, terapéutica, verticalizante, podendo resolver inclusive o plano do amor passional. © proprio Platéo em suas andlises etimolégicas, no Crdtilo, muito sabidamente mostra que heros (herdi), eros (amor), erotao (interrogar) erotan, eirein (falar), embora sejam palavras aparentemente provenientes de campos de tealidades dife- rentes, tém a mesma raiz € o mesmo fundamento. Amor, palavra, discurso, convencimento, persuasao, argumentacao e heroismo, para Plato, para 0 Platéo do Cratilo, tem um vinculo fundamental, constituindo uma teia de significagdes perfeitamente interligadas. Consequentemente, o grande re- torico € 0 filésofo que tem, por isso mesmo, que combater a ret6rica dos Tetéricos, ou melhor, a retérica dos retéricos do seu tempo, a sofistica, porque o que ele quer fazer ndo € a retorica da bajulacdo, da permanéncia no prazer sensério, mas é a retérica do desilusionismo. © que ele espera obter com as palavras nao € 0 prestigio, é a desprestidigitacdo, pois, com os mesmos instrumentos que usam os sofistas ¢ hem melhor do que os sofis- tas, ele inverte 0 que 9s outros estaéo fazendo e faz com que o contrario daquilo que é feito, 0 avesso daquilo que é feito na linguagem da misica, na linguagem das palavras, na linguagem da pintura, e assim por diante, seja o direito. E 0 que € 0 direito vira 0 avesso e 0 que parece aqui direito € 0 que se toma na verdade o avesso € € ele que nos fala dessas inversdes no momento talvez mais teatral de toda a sua obra que € o da alegoria, que muitos preferem chamar de mito, da caverna. Vejam bem, é bastante impressionante que esse inimigo do teatro, do teatro do seu tempo, para mostrar a situagao do homem ¢ ao mesmo tem- Po prescrever uma situacdo de direito para o homem, use exatamente uma construgao teatral. Dizem os eruditos que Platao se inspirava no teatrinho de sombras, que ja existia na India, no teatro de marionetes, que também € muito antigo e, sem duvida alguma, nas iniciagdes religiosas feitas nas cavernas. Tudo isso é 6bvio. © que importa entretanto é que ele constréi uma engrenagem teatral de uma complexidade admiravel, a qual, alias, um autor recente, sabre quem falarei logo em seguida, analisa de uma for- ma muito aguda e muito enriquecedora. ‘Anos depois que eu vinha tentando fazer (claro que nao com essa rapi- Platéo — O Teatro das Idéias | 27 dez ¢ essa superficialidade, essa corrida que est sendo aqui, mas com um pouco mais de calma), a andlise de dislogo por dialogo nessa perspectiva da dramaturgia platénica, eu tive uma grande alegria. Por acaso, como sempre acontece com o intelectual subdesenvolvido, passando por uma livraria, encontro uma publicagao chamada Imaginaires du simulacre. O ti- tulo era irresistivel. Tratava-se de uma publicacao da Universidade de Bourgogne, que eu nem sabia o que fazia na vida. Abri o livro e encontrei um ensaio deslumbrante de um autor que eu j4 conhecia e que receito para todo mundo. O autor é Jean-Francois Mattéi que para alegria minha, pois nao estou fazendo nenhuma questao de ser inédito, inclusive porque essas idéias estao espalhadas por ai h4 muito tempo esperando que as aproveitemos ¢ aprofundemos, escreve o seguinte texto: “Le theatre du mythe chez Platon” (O Teatro do Mito em Platao). O que Mattéi faz linda- mente nesse ensaio € analisar o cardter altissima e intrinsecamente teatral do mito dentro da obra de Platao. Embora ele nao explore aquito que eu escolhi para tema da nossa conversa de hoje, o teatro da idéias, ele analisa, mas mostrando sempre a complementacdo disso do lado da dialética pro- priamente, € essa questéo do teatral na montagem dos mitos. E, a uma cerva altura, ele faz 2 andlise répida da caverna, mostrando que ali nao existe apenas um teatro e uma cena teatral, porém quatro embricadas, so- brepostas ¢ intimamente articuladas. De fato, ele tem toda razao. Ha pri- meiramente 0 teatro inferior —a expresso € do proprio Mattéi—, que € 0 teatto dos simulacros, onde ¢ encenado aquilo que o prisioneiro vira des- de sempre, a repetico das imagens, a repeticao dos sonhos, dos ecos que, de tanto se repetirem sem nenhuma novidade, pelo fato de estarem no dominio mesmo da repeticao, adquiriram a aparéncia de realidade. Esse € © momento em que ainda nao houve um desvio, uma conversao do olhar, uma consciéncia da situagio de engédo, de engano, que estava ali trama- da. Na verdade 0 teatro do simulacro € 0 teatro que o prisioneiro sempre viu € que, pelo fato de sempre té-lo visto, Ihe deu a ilusdo de que aquilo que ele via era a realidade. Sobreposto a esse primeiro teatro hd um outro, um segundo que sustenta e justifica o primeiro: um teatro de marionetes. O que o prisoneiro via, o teatrinho de sombras, explica-se pelo fato de certos agentes estarem carregando, por trés de uma espécie de mureta, simula- cros de objetos cujas sombras sao projetadas na parede do fundo da caver- na gracas a luz de um fogo. Sao imagens que parecem ter contornos de objetos reais, os quais entretanto nao sao objetos reais, mas artefatos que copiam objetos reais. O fogo, diante do qual passam esses objetos, tam- 28 | 1036 Américo Motta Pessanha bém, por sua vez, nao é um fogo natural, mas € um fogo ali posto, ali aceso, intencionalmente colocado para criar exatamente o jogo das som- bras. Ha, portanto, um trabalho de marionetes que justifica a existéncia de um teatro de sombras. S6 que, quando o prisioneiro sai, ele sai para um terceiro teatro, diz Mattéi; fazendo um grande esforco para libertar-se e ascender, ele sai, sobe a rampa, ¢ ingressa num teatro superior que ¢ 0 teatro das realidades, Aqui a encenagao ¢ magnifica. Platéo, embora com uma certa rapidez, mostra todo um processo de iniciagdo que ¢ a0 mesmo tempo de acomodagao da ocularidade da viséo. E preciso acostumar pro- gressivamente a visdo na passagem do ilusorio ao real. E preciso ganhar a tealidade 4 medida que progride seu aclaramento. Deve-se primeiro con- templar os astros celestes no céu noturno, enquanto refletidos numa agua tranquila ¢ deve-se permitir que o olhar aos poucos vé ganhando resistén- cia para uma luz maior e mais teal, pois o olhar que se desvia dos simula- cros tem por destino chegar a um afrontamento que é sempre adiado para © meio-dia terrivel, desejado, mas sempre adiado pela sua ofuscagao divi- na, e também, talvez, morttfera, que é olhar o sol de frente, encarar 0 sol de frente. Esses sdo os trés teatros acoplados, mas existe ainda, segundo Mattéi, um quarto teatro que é 0 teatro do mito todo que Platao esta tracan- do, o teatro do que afinal chamamos de o Mito da Caverna. Ou seja, é uma teatralidade feita de trés teatros conjugados que resulta numa grande tea- tralizagdo. Sao trés planos teatrais para compor esse conjunto teatral que ele chama de teatro do mito todo, Ora, a tese que Mattéi defende nesse ensaio —e a qual eu endosso, assino embaixo muito entusiasticamente—, € a de que Platéo, ao mesmo tempo que apresenta um teatro da ilusdo, como é 0 caso do Mito da Caver- na, propée um teatro da verdade, que nao € outro sendo o teatro da desilu- sao. E preciso que se parta de uma forma de teatro que se nega, do mesmo modo que de uma forma de arte que se rejeita, para que se construa a outra arte pelo avesso que na verdade € a mostragdo do direito dessa arte. E preciso virar de cabeca para baixo aquilo que na verdade estava de cabe- a para baixo, e que agora, revirando, fica de cabega para cima. E preciso inverter o que estava invertido, para que as coisas ganhem a sua disposi- gdo e a sua hierarquia corretas. £ preciso condenar o teatro da ilusio, mos- tar como ele € feito, mostrar como € feita a sofistica da arte, tematizar o caso da sofistica através do teatro das sombras, para tirar daf, invertida- mente, a possibilidade de um outro teatro que vai se fazendo ao longo da Platéo — O Teatro das tdéias | 29 obra de Platdo e cujo herdi ¢, sobretudo, ou em grande parte, o herdi $6- crates. Nesse momento, podemos levantar mais uma vez aquela velha questo que jé deu estantes, que j4 deu bibliotecas: “Quem é Sécrates para Platéo, ¢ 0 que é Plato no Sécrates de Platéo? Onde termina um, quando comega 0 ou- tro?” A leitura tradicional, da qual eu participei e muito, diz em geral que Socrates € 0 porta-voz de Platdo, Vista assim, a questdo fica muito mais facil, porque l onde esta Socrates, esta o caminho que leva para a verdade. O outro, se nzo € discfpulo, ¢ aquele adversario que vai ter que ser corrigido, E um certo maniquefsmo vai se implantando em nossas visoes. Mas essa € uma lei- tura que eu hoje reconheco ser muito prosaica, que nio percebe a grandeza da dramaticidade do texto plat6nico e que, de certa maneira, se coloca contra ela, E como se ela dissesse assim: “Platao escreveu na forma dialégica, mas quer ver como consigo contar o que est escrito sem fazer uso de didlogo algum?” E, com isso, passamos para a prosa e para as tratados interpretativos, Para a leitura dita “filosdfica” de Platao, n4o mais dialogada, nao mais tensa, nao mais periclitante, sem aqueles momentos de suspense, como os que apa- recem no final do Protdgoras e do Banquete. E assim vamos pondo as coisas em seus devidos lugares, tentando desenvolver de forma unilinear aquilo que em Platao € uma tensdo, é um espelhamento, é uma luta, € uma embricacio e é uma espécie de antinomia que ndo pode ser desfeita no proprio texto. E ja comecamos desde cedo a ver os inimigos, os adversarios, € a recusd-los in toto, separando de um lado a filosofia, de outro a sofistica, etc., supondo que essas personagens ndo estejam dramaticamente colocadas, no sendo a forma dia- {égica sendo um estilo do talentoso Platéo que acreditava ser essa uma maneira de se comunicar melhor e de atingir pedagogicamente um publico mais adap- tado ao teatro. Eu acho que esse modo de ler pode estar profundamente equi- vocado. Sea intencao de Platdo for dramatica mesmo, e se a dramaticidade for inerente a construgdo tanto da ilusdo quanto da verdade, em nenhum mo- mento ela se extingue, em nenhum momento a bipolaridade cessa, fazendo com que o her6i venga definitivamente e que 0 outro, 0 inimigo, apareca der- rotado, como se se quisesse produzir uma espécie de happy end. E quem de certa maneira sugere que isso ndo é verdade € 0 prdprio Platao, no momento crucial, definitivo desse drama,que € 0 de se tentar esclarecer por que aquele que bate a porta do solista no ¢ mais um sofista, como o eunuco imagina, mas € um ndo-sofista. No momento em que se vai passar a limpo essa quest4o podemos imaginar Platao como que arregacando as mangas, embora nao hou- ‘vesse mangas na Grécia antiga, e dizendo: “Bem, agora vamos saber 0 que € 0 30 | José Américo Motta Pessanha sofista, porque quando soubermos 0 que é 0 sofista também saberemos 0 que é um néo sofista”. Ele promete a si mesmo esse esclarecimento, ele nos pro- mete esse esclarecimento. E cumpre essa promessa, porém de uma forma truncada, adoravelmente truncada, definitivamente truncada, ¢ esse trunca- mento talvez seja uma grande ligdo a nao ser perdida. Estou me teferindo ao Sofista, ao didlogo Sofista, em que Platéo, através de um maravilhoso exercicio dicotomico, dialético-descendente, prope que se descubra finalmente quem € osofista, Mas depois de todas aquelas andlises dicotomicas, em que se tenta enquadrar o sofista nesta ou naquela categoria, na de cacador, pescador, etc., qual € 0 resultado? O resultado de todo esse esforgo analitico é que, acredi- tando ter encontrado a toca em que se esconde o sofista, no momento em que tentamos tiré-lo de la de dentro, como se estivéssemos tirando algo fugidio, que se esconde, que resiste, quem sai de dentro da toca € 0 fildsofo. E Plato nos deixa perplexos diante da seguinte informagio: O endereco é 0 mesma, eles moram na mesma casa, se escondem na mesma toca ¢ eu néo posso pegar um sem pegar o outro. O um € 0 outro —e aqui Platao vai ter que trabalhar ainda mais—, ndo podem ser separados, como se Sécrates estivesse aqui e o ndo-S6- crates ali, o sofista aqui, 0 filésofo ali, definitivamente, simplistamente. Eu s6 posso ter o filésofo quando tenho o sofista; e s6 posso ter 0 sofista quando tenho 0 filésofo. Com isso ndo quero dizer que eles se confundam, porque Platdo insiste, um € 0 direito, é o mesmo, o outro é o avesso, é quase o mesmo, €0 terrivel sésia que parece ser mas ndo €. Um é 0 que é, 0 outro ¢ 0 parecer préximo do que é, nao sendo. $6 que eu nao posso chegar a esse o que é sem esse parecer proximo no sendo do sésia, e nem posso chegar ao sésia sem 0 reverso dele, que € aquele mesmo que ele quase é, ndo sendo. E a coisa termi- na num suspense de uma teatralidade quase insuportavel, ou, talvez, até ex- tremamente enriquecedora. Se me permitem, lerei aqui um trecho de um autor, que nem é conside- rado um dos grandes intérpretes de Plato, mas que conseguiu escrever uma coisa belissima sobre esse momento de Platao, em um livrinho cha- mado Le Platonisme, editado pela Presses Universitaires de France, em 1971: Vincent Descombe. Diz ele o seguinte sobre essa questdo: Se uma exposicdo do platonisme fosse posstvel —pergunta Platéo— como eu teria podido deixar o encargo disso ao cuidado de outros? (E a Carta Vil, quando ele diz que ninguém, ninguém, mas ninguém, nem Deleuze, nem Nietzsche, nem Heidegger, nem Kant, nem Lacan, pode dizer aquilo que ele queria dizer, porque se alguém pudesse dizer aquilo que ele queria dizer e Platdéo — 0 Teatro das Idéias | 31 tentou o tempo todo sem conseguir dizer da forma como deveria ser dito, ainda assim seria ele a pessoa mais indicada para fazt-lo. Mas enfim, conti- nuando a citacio....] Na verdade, 0 sonho do comentador, do leitor, € talvez menos o de substituir Platdo do que o de completd-lo, do que o de descrever © didlogo que Platdo nao escteveu e onde teria fornecido ele proprio essa sintese que em vao se procura em suas obras. Esse didlogo, para sempre iné- dito, de Platao leva portm um nome dado pelo préprio Platéo: O Filésofo. Como se sabe, os interlocutores do Teeteto {—quem leu o Teeteto vai lembrar disso —] se reencontram no inicio do Sofista quando conhecem 0 estrangeito de Elea trazido por Teodoro. A questdo que vao discutir seré a de saber se sofista, politico e filésofo sao res nomes para a mesma coisa ou se séo os nomes de tres generos diferentes [—est4 no Sofista 217 ab—|, E preciso, por- tanto, definir 0 sofista, 0 politico e enfim o filésofo. Procura-se definir um por um, comecando-se pelo sofista. Em seguida vird a vez do polftico. Depois, parece, espera-se, pois foi prometido, nao?, sera a vez do fildsofo. Tudo se passa, pois, como se Platdo tivesse incluido em suas obras e citado de ante- mio um didlogo inexistente. Mais do que isso, tudo se passa como se 0s co- mentadores de Platdo tivessem atribufdo a si proprios a tarefa de escrever um livro faltante, de preencher essa lacuna. Os leitores de Platdo frequentemente se arrogam a autoria de um didlogo, O Fildsofo, que Plato promete € nao escreve. O que deveria conter, com efeito, um didlogo que tratasse de tal tema? Do mesmo modo que um didlogo sobre o sofista refere-se menos a uma figura cultural, um personagem, do que ao espaco e a0 objeto da sofistica, isto é, a aparéncia, o nao-ser, igualmente, um didlogo sobre o filésofo teria por objeto aquilo que € a unica preocupacao do fildsofo, a que aprendemos no Sofista tratar-se do ser. Essa preciosa indicagdo nos ¢ dada no momento em que os interlocutores do Sofista, buscando definir o sofista, parecem ter en- contrado de safda o filésofo. [£ aquela cena terrivel em que o desentocado ¢ © outro € nio aquele que se procurava Poder-se-ia concluir dat que a dife- Tenga que os separa € imperceptivel e sempre fugidia, e que O Filésofo nao foi escrito pela boa razao de que ele j4 esta dado no Sofista. [Ou seja, de certa maneira, O Filésofo ja esta inscrito nas entrelinhas, como diria Clarice Lispec- tor, no avesso do Sofista.] Assim, espanta-se o estrangeiro diante dessa situa- sao: Nao corremos o risco, nés que procuravamos o sofista, de ter, antes de encontré-lo, descoberto o filésofo? Mas logo esclarece: Descobrimos nfo 0 filésofo, mas o lugar de sua morada, o lugar onde serd preciso procuré-lo, {Ou seja, s6 se encontra o filésofo 14 onde mora o sofista.] O filésofo nao & portanto descoberto. Ao contrario, pois compreendendo que ele habita numa 22 | José amérieo Motta Fessanha regio luminosa, compreendemos ao mesmo tempo que é, também ele, dificil de ser visto. Seria necessdrio ser capaz de dizer o que é 0 ser, de escrever um didlogo onde o ser fosse definido para que se oblivesse uma definigdo do filé- sofo. Pois, qualquer que seja 0 propésito explicito do filésofo, € sempre forma do ser que se aplicam seus logismos. © objeto da [ilosofia ¢ portanto ‘nico, ainda que questionado de forma multipla. E um didlogo sobre a filoso- fia seria um didlogo sobre esse objeto Unico, seria entdo 0 tinico didlogo de Platdo. Ele sempre escreveu pelo avesso através dos didlogos em que ele nao escreveu O Filésofo, ele s6 escreveu O Filésofo. E necessario entao dizer que Platao nao parou de escrever esse didlogo que todavia ele jamais escreveu. O Fildsofo nao podia ser escrito, a Carta VII da as razdes disso, porque seu tema seria aquilo sobre o que nao he € permitido escrever, o tema tinico dos mil- tiplos didlogos. Eis por que era preciso que existissem diversos didlogos e que essa pluralidade permanecesse irredutivel. Justamente porque o Livro é im- posstvel, que se multiplicam os livros. & a impossibilidade do Livro da ver- dade do filésofo que enche as bibliotecas. Trazendo a questo para nossa pauta de colocacdo, eu diria que € exa- tamente pela impossibilidade de se dizer definitivamente o que € 0 filoso- fo, o que cessaria todo o drama de procura do filésofo e da verdade, que € imposs{vel sair da dramaturgia e entrar no sistémico, no tratadistico, no demonstrado, no definitivo, no conclusivo e na leitura que fecha, na ence- nago que fecha o drama. E porque se trata de filosofar, e de um filosofar que pretende reverter o avesso para chegar ao direito, sair da imagética da sombra ¢ do teatro das sombras para constituir um teatro das idéias e um teatro das luzes que é preciso rejeitar a limitacao da sombra, do ilusionis- mo das sombras e das imagens, denunciando sua imperfeicdo, sua caren- cia para que a possibilidade do direito que est invertido e que, por en- quanto, seria o avesso, venha a tona e se apresente como direito. O trabalho portanto ¢ o de condenar um certo tipo de teatro em nome de um. teatro que sé pode se constituir pela condenagdo do teatro que ja existe, como s6 pode se constituir pela condenacao do factual, do empirico, do percebido e do concreto. E porque a proposta € sair da cépia para o mode- lo, do simulacro para o paradigma, que o que se tem que fazer € desgastar e denunciar a teatralidade encantatéria desses elementos que nos seduzem de todos os lados, que nos bajulam sofisticamente de todos os lados, para redirecionar o olhat. Ou seja, trata-se de tentar sair de uma encenagdo ex- teriorizada para uma espécie de iluminacao interior, para uma espécie de Platso — O Teatro das idéias | 33 dramaturgia interior que na verdade esta até prescrita, como mostra Mat- téi, nos grandes mitos escatolégicos. Observem, por exemplo o modo como termina o livro X da Republica. Esse livro que comeca e se desenvolve terrivelmente contra a arte, que acusa Homero de ter desviado a cultura grega fazendo com que os gregos pensassem que pensavam quando na verdade se iludiam, termina numa imensa apoteose cénica que € 0 mito de Er. Poucas vezes um cenério foi concebido com tamanha grandiosidade. Poucas vezes uma cena teatral foi pensada com tamanha grandeza. Seria preciso um teatro imenso, o mundo todo, o cosmos como teatro, para que coubesse a encenacdo que ali esta descrita, Porque ali esta descrita a encenacdo do processo de ida e vinda de julgamentos e retornos da propria alma. Ali esta encenado emblemati- camente o processo teatral de queda e subida das almas, cujos julgamen- tos so regidos por uma Necessidade que dramaticamente fia em um fuso que roda, que trama, que tece e que vai fazendo a construcdo dos destinos. Ou seja, porque tem um senso érfico-pitagérico de um grande drama hu- mano e césmico, de um grande drama que tem que ser conquistado, ou Teconquistado, através de uma superagdo das encenacdes pequenas, pe- numbrosas e ilusérias, € que exatamente Platao fala desse teatro das som- bras, ndo para negé-lo enquanto teatro, mas para substitui-lo por uma vi- so teatral da construcgo na harmonia e na luz. Porque ele tem esse senso de dramaturgia, que abre o mundo imediato para as possibilidades de um mundo modelar sempre a conquistar € que ele condena o teatro de seu. tempo. Mas constrdi ele mesmo, ao longo de sua obra, o grande exemplo de teatro: © teatro das idéias. S6 para terminar, darei alguns exemplos de como essa visdo teatral drama- tica € inerente a filosofia de Platao, nao estando simplesmente acoplada a ela como se fosse uma vestimenta, Vamos tentar trabalhar rapidamente a questo do cendrio. Talvez todos voces ja tenham lido o didlogo de Platao, para mim o mais dificil, o mais enlouquecedor e, ao mesmo tempo, o mais estimulante: 0 Fedro. Em nenhum outro didlogo, me parece, o cenario € tdo participante, to atuante quanto neste, mostrando que nao compée apenas um fundo para situar a acdo e o pensamento, mas que é também protagonista neste drama. O cendrio ¢ protagonista ¢ isso é uma coisa deslumbrante, quem leu sabe. Sécra- tes e seu companheiro Fedro saem de Atenas, isto €, szem dos muros da cidade € v4o conversando a respeito da retorica porque Fedro traz consigo um dis- curso ret6rico sobre o amor, composto por Lysias, um sofista. Eles vao cami- nhando e cada vez mais se afastam dos muros da cidade em direcdo & Mégara. 34 | 4056 Américo Motta Pessanha Tudo acontece entre Atenas e Mégara, entre dois universos que se fecham, néo apenas em limites geogréficos muito claros, mas que se fecham inclusive teo- logicamente dentro de jurisdigées divinas muito precisas. Eles vao abando- nando um territorio politico e religioso de uma certa naturezae, enquanto nao chegam ao outro territério politico e religioso, que é de uma outra natureza, No percurso intermediario, nos campos, eles v4o conversando. Sécrates faz entdo um primeiro discurso sobre o amor, o qual, entretanto, eu diria nao traz muita novidade com relagao a tudo aquilo que j4 vinha sendo dito sobre esse assunto em outras obras de Platéo. Mas, a medida que vao se afastando da cidade e portanto do amparo, e nao sé do amparo, mas também da contengao das divindades politicas que os prendiam dentro de una certa convencdo, de uma certa ritualistica da polis, a situagao vai se transformando. Eles agora vao entrando no dominio agreste, silvestre, onde as divindades que presidem sio divindades muito mais antigas, muito mais arcaicas e muito menos discipli- nadoras. E, caminhando por aqueles bosques, os bosques dos faunos, os bos- ques de Pan, os bosques muito mais de Dioniso do que de Apolo, ¢ jé bem afastado da jurisdicgo de Atenas, de repente, Sécrates falando com Fedro, perde a disciplina e a contencao, €, em um momento admiravel, declara estar prestes a ser acometido por ninfolepsia. E a passagem 238d. “Comeco a fazer ditirambos” —diz cle—, ou seja, ele comeca a falar, e sua alma linguageira, como toda alma linguageira, adquire uma outra personalidade. Ele € agora uma outra personalidade e quando agora vai continuar a falar sobre a retorica e sobre o amor, esses temas intrinsecamente fundidos, ¢ um segundo discur- so, um discurso muito diferente do primeiro o que ele faz. O discurso que Socrates faz agora sobre o amor evoca uma teoria do delirio que é toda apre- sentada num clima de entusiasmo no sentido grego. Ele perdeu o pé de si; ele nao se contém mais; esté embriagado de poesia, de mito, de coisa arcaica, deixando-se levar pelas forcas silvestres a um estado de embriaguez muito mais antigo e muito mais fundamental do que aquele do policiamento politi- 0, religioso e matemético da polis. Ele fica “abatematico”, delirante, ele fica dotado de ninfolepsia. E nesse momento exatamente que tudo se transfor- ma: a nocdo de palavra, a nogo de amor e a nocao de relagdo entre a retérica € a ndo-retérica, Sdcrates adquire aquela grandeza de dizer que, enquanto filésofos, o que queremos € ter uma retérica capaz de persuadir os deuses. Ou seja, ao ntvel da desmesura, da desmedida a que a ninfolepsia o conduz, nesse nivel, ele pode querer tentar —como de fato 0 faz— ultrapassar a medida humana. E ele tenta ultrapassé-la retoricamente, ultrapassando os limites da propria retorica, tentando construir uma retérica que convenga o absoluto, Platéo — O Teatro das Idéias | 35 uma retérica definitiva, uma retorica enfim capaz de persuadir os deuses. Como voces véem, nao € posstvel pensar o Fedro a partir somente do que Socrates ou Fedro dizem, sem considerar o que o cenério esta dizendo ou 0 que o cendrio esta fazendo com que os personagens falantes digam, pois 0 cenario af € participante, € personagem, e ndo apenas uma paisagem servindo de fundo para o desenrolar do drama. Evidentemente, hé ai uma carga dramé- tica que nenhum tratado ou leitura prosaica do platonismo poderiam ver. Outro elemento importante para o teatro aparece como determinante: a vestimenta. E 0 caso do Socrates calcado e banhado do Banquete, que todos vocés ja leram. Apolodoro, falando do que havia observado, diz ao companheiro que Aristodemo lhe contara haver encontrado Socrates ba- nihado e calcado com as sandalias, 0 que poucas vezes fazia, e ter-lhe per- guntado onde ia assim to bonito. Ele nao ia assim tao bonito apenas a um banquete. Calcado, banhado, bonito, ele estava purgado, purificado, lim- po € j4 um pouco acima do chio, pois ele nao pisava mais o chao, a terra, com o pé descalgo; ele comecava jé a se preparar, ou jé fora preparado, para um ritual de ascese. Ele sé vai conseguir a vocalise na voz feminina de Diotima, o seu lado anima s6 vai conseguir entrar na ascese que conduz & visto da beleza, através de Diotima, porque, na verdade, ele jé estava preparado para isso. A maneira como ele se veste, o fato de estar banhado significam. Pensamentos de Platao estao sendo ditos no corpo ¢ na vesti- menta de Socrates. E ha muitas mais coisas... Se fOssemos examinar a questao da luz, independentemente do Protd- goras e daquele amanhecer, daquele alvorecer interno e externo, teriamos que examinar sobretudo, e com muita delicadeza e cuidado, a maravilhosa luz que agora nao nasce, mas se pée, e aquele logos sol-poente do Fédon, quando avista-se um barco que anuncia o fim do dia e o pér do sol: € chegada a hora da cicuta e, ao contrario do que acontece no Protdgoras, este € 0 momento em que a luz vai para 0 ocaso; € o momento do poente; € 0 momento do siléncio; € 0 momento do fim; € o limite do logos filosofi- co. A iluminacdo da cena, o que est4 acontecendo, o movimento dos bar- cos, 0 ciclo do mito que esta acontecendo na volta daquele barco, o ciclo do sol passando e se pondo ¢ 0 ciclo da voz de Sécrates caminhando para 0 silencio da cicuta, séo coisas que se entrecruzam dramaticamente e que nenhuma demonstracao tratadistica poderia mostrar.

Você também pode gostar