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O caçador de dotes veio hoje à Vila. Tinha assuntos a tratar.

Assim às primeiras, poderia


imaginar-se um desses tipos citadinos, bem apessoados, bem trajados, bem antiquados
não direi, porque a profissão não está assim tão fora de moda como se poderia pensar,
bem etc., etc., etc., bem muita coisa mais, bem tudo o que a nossa imaginação possa
conceber e que seja boa chave para o negócio.
Mas não, ele hoje incarnou num indivíduo de tipo grosseiro, que não vem da cidade,
mas do campo à Vila. Só o vejo da cintura para cima, que o balcão de um serviço
público mais não permite. Tem uma camisa verde-seco, uma gravata e fumo pretos. A
pele bem queimada do sol, mãos fortes e longe da delicadeza, alourado e de olhos azuis,
descendente longínquo e quase directo de bárbaros. De bárbaros, pois então!
O Sr. Senso Comum, que se senta à minha frente, resolveu meter-se com ele:
- Então, malandro, já mataste duas e estás preparado para mais? Este que aqui está já
enviuvou duas vezes e está pronto para a terceira! – explicou-me, voltando-se para mim.
– Estás pronto ou não, velhaco?
- Bem… faz-se pela vida, responde o Caçador de Dotes.
- Olha lá, diz aqui para a gente quantos anos tinha ela…
- Não sei se no dia em que morreu, se no seguinte, fez os setenta.
- E tu?...
- Quarenta e sete.
- Malandro!...
- Malandro o quê, pá? Fica sabendo que ela até gostava muito de mim. Eu até era muito
carinhoso para com ela: lavava-a, ajeitava-a, dava-lhe mimos…
Não consegui perceber que mais ele lhe deva ou fazia porque o Sr. Senso Comum
começou a contar-me que com a outra tinha sido diferente, mas com esta, uma anedota.
Ela já estava doente, parece até que no hospital, quando casaram. E já quase a morrer,
no leito da morte, dizia ele, conseguiu convencê-la a deixar-lhe tudo. Era já viúva e
tinha herdado do marido uns belos bens. Sim, que o malandro sabia o que fazia: as
fazendas dele, deixadas pelo pai, mais as da primeira, mais as desta, o gajo tinha para
cima de três mil contos. Ou mais. E ainda não tinha parado. Mas a velha, ai mãe, tinha
uns peitos tão grandes! E mostrou-me, com as mãos a partir do peito, o tamanho deles.
Até parecia uma vaca!
- … tenho muita pena de ela ter morrido – continuava o Caçador de Dotes. – Tenho,
sim, pá, estou a rir, mas tenho. Vocês é que me fazem rir.
- Olha lá, e o que ficou, ainda foi alguma coisa de jeito, ou quê?...
- Oh, pá, também tive muitas despesas… Fiz-lhe um funeral bonito… Não te rias, pá,
que foi mesmo assim… Paguei também cento e tal contos dos direitos…
- Para pagares isso, quanto recebeste tu?
- Bom, aquilo está registado p’raí em trezentos e oitenta e tal contos…
- Ora, se isso é no registo, quanto não valem elas na realidade?
- Cala-te, pá, que aquilo é uma chatice… muita despesa… problemas para apanhar a
alfarroba… arranjar pessoal… já lá tenho duzentas e tal arrobas…
- Sim, está bem, a gente já sabe que tudo isso é uma chatice para ti – responde-lhe o Sr.
Senso Comum. Mas com a outra foi diferente. Conta lá…
- Ai, lá isso foi! Era uma boa mulherzinha… minha bela mulher… - Consegue um ar
consternado e um sorriso nos lábios simultâneos.
- Que idades tinham vocês?
- Bem, eu quando casei pela primeira vez tinha trinta e dois e ela quarenta e sete.
Vivemos catorze anos juntos.
O Sr. Senso Comum explica-me que com a outra foi diferente, como já me tinha dito. O
indivíduo casou, mas não estava à espera que a mulher morresse. Mas um dia ela ia
passando junto de uma casa velha, uma parede abateu, caiu-lhe em cima, ora, foi a
morte dela. Coisas do destino. Sim, que o destino, às vezes, tem destas coisas. É
verdade que também era mais velha e tinha bens, que isso foi sempre mania dele, mas
não era uma diferença tão grande como com esta última.
- Olha lá, e já tens alguma coisa em vista?
- Sim… qualquer coisa…
- Mas uma coisa boa, assim jeitosa, enfim, percebes? – e o Sr. Senso Comum desenha
no ar formas imaginárias, com as mãos e os gestos desajeitados, e eu fico a pensar na
linda coisa que deveria ser a que tivesse aqueles disparatados contornos.
- Ah, não, essas coisas não são para mim. Tu já sabes que não, pá! Eu tenho medo
dessas coisas… o respeitinho é muito bonito… eu não me interesso por isso…
- Tu interessas-te é por isto, hem? – e com o indicador e o polegar direitos faz-lhe o
velho sinal de dinheiro.
- Ora aí está. Isso é comigo.
O Sr. Senso Comum abana-me a cabeça
- Mas diz lá, pá, diz lá o que tens em vista!
- Bem, esta tem quarenta e tal anos…
- Ora aí está uma boa para ti…
- É boa, é, pá. Esta é que é mesmo boa: tem dois irmãos, um doido e outro solteirão,
com mais de sessenta anos, e fazenda que se farta!
- Mas tu não podes pensar só nisso, pá! – E o Sr. Senso Comum tem razão, porque
afinal o comum não é um homem só se casar com mulheres velhas, com fazenda. Ele,
por exemplo, casou com uma jovem, quando ele também o era, claro. O ideal seria
poder juntar as duas coisas: riqueza e juventude, mas como as que tinham a primeira
não o queriam, optou por uma que só tinha a segunda. – Olha, pá, lá próximo de onde
eu moro há uma rapariguita ainda nova, em muito bom estado, bem boa, por sinal,
viúva, com três filhos…
- Ai, e eu queria, hem? Deixava de herdar os meus sobrinhos, sim, porque filhos não
tenho, para dar a outros que não me são nada? – declara muito logicamente o Caçador
de Dotes. – Bem, tens mais alguma pergunta a fazer? Isto até parece um interrogatório.
Aproveita agora, pá, que estou de maré.
- Não, deixa lá, vai à tua vida que eu também tenho que trabalhar. Olha, ela lá está, à tua
espera…
- Quem, a tal? Obrigado! Deixa lá que eu cá me amanho, não te preocupes. Gente dessa,
não! Vê lá se me tenho dado mal? Até outro dia! Já perdi foi tempo demais com vocês,
que diabo!

Já nem sei se o homem me irritou ou não!...

Maria Lúcia
Agosto de 1981

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