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ALGUMAS NOTAS EM TORNO DA RELACAO ENTRE O PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ORDEM CONSTITUCIONAL BRASILEIRA' INGO WOLFGANG SARLET ico=4.2A abertura mate fundamentais ¢ o princi de direitos »g0 con ‘pio da dignidade da pessoa humana como fundame fundamentais, 5. Consideragces finais. 1, Notas introdutérias ‘A intima e indissociavel vineulagdo entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais constitui, atualmente, um dos pos tulados nos quais se assenta o direito constitucional - 0 que vale inclusive nas ordens constitucionais onde a dignidade ainda nao foi expressamente reconhecida no ambito do direito po 1. © presente artigo encontra seu fundamento direto. com ra nossa obra Dignidade da Pessoa Humana ¢ Direitos igdo Federal de 1983 (2+ed., Porto Alegre, Livratia do Advogado, 2002, 157 1p). onde, além de termos, em regra, desenvolvido mais os t6picos aqui versados, Teorremos sobre diversos outros aspectos que, em vistude das limitages fisicas ¢ ido objetivo do presente texto, neste momento no tivemos condigées de enfrentr. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA DIREITOS FUNDAMENTAIS re} ime entre a dignidade da como pessoa € 0s di Togo teremos oportunidade de demonsirar-, praticamente s reconhecimento da existéncia e da importancia desta vinculagao Quanto a0 mais — inclusive no que diz. coma prépria compreensao do conterido e significado da dignidade da pessoa humana na (e para a) ordem ju 1a-se farta discusso em nivel doutrinaio e até mesmo jurisprudencial, Assim, definindo o objeto do presente ensaio, € precisamente sobre as relagdes entre a dignidade da pessoa humana © os direitos fundamentais que pretendemos tecer algumas considers- ‘g6es, destacando pelo menos parte dos intimeros aspectos que pode- Sam ser colacionados a respeito do tema, com o objetivo de explorar, ‘mesmo que sumariamente, algumas possiveis aplicagées concretas da ignidade da pessoa no ambito da sua conexao com os direitos fun- damentais. 4, no concemente ao roteiro a ser seguido, convém sinalar que, antes de enveredarmos pela seara das relagées entre a dignidade da pessoa e as direitos fundamentais, torna-se imperiosa uma brevissi- pha incursio pela esfera conceitual, jé que a prépria nogdo a respeito do contetdo e significado da dignidade da pessoa humana, especi ‘mente para a ordem juridica, pressuposto indispensavel do inclusive para 0 efeito de compreendermos minima- -normativa da dignidade da pessoa no or- denamento constitucional patrio. Apés, ja no dominio das vincula- ges entre o principio da dignidade da pessoa humana e os direitos fondamentais, optamos por escolher dois dos diversos t6picos que neste contexto poderiam ser versados, Assim, num primeiro momen- to teremos oportunidade de discorrer a respeito da importancia da dignidade da pessoa para a unidade axiol6gica do ordenamento jurt- ddico © do proprio sistema de direitos fundamentais, destacando a nrecesséria interpretagio conforme a dignidade da pessoa. No seg- nento seguinte abordaremos a questo da abertura material do nosso istema de direitos fundamentais e a fungao da dignidade da pessoa ntificagdo de outros direitos fundamentais, bem como para da deduciio, a pastic do principio da dignidade da pes- itos subjetivos fundamentais no expressamente consa- grados pelo nosso constituinte. Por derradeiro, indispensavel que se Geixe consignado nosso agradecimento a0 Organizador desta colet- 200 INGO WOLFGANG SARLET nea, professor George Saloméo Leite, pela oportunidade de integrar este espago privilegiado de produgio académica na perspectiva juridico-consti tentativas de aproximagao e concretizagao A despeito das intimeras tentativas de conceituagao da dignidade da pessoa formuladas ao longo dos tempos, notadamente (mas ndo ‘exclusivamente) no ambito da fecunda tradigio filoséfica ocidental ~ que aqui no temos condigdes de rastrear nem reproduzir? -, verifica- se que uma conceituagao clara do que efetivamente sej de, inclusive para efeitos de definigo do seu ambito de protecdo como norma juridica fundamental, se revela no minimo dificil de ser obtida, isto sem falar na questionével (e quest de se alcangar algum conceito satisfat6rio do que, afinal de contas, 6 ignifica a dignidade da pessoa humana, hoje. Tal dificuldade, con- soante exaustiva e corretamente destacado na doutrina, decorre cer- tamente (ao menos também) da circunstincia de que se cuida de conceito de contomos vagos e imprecisos,> caracterizado por sua lade e porosidade”, assim como por sua natureza necessa~ riamente polissémica,’ muito embora tais atributos ndo possam ser exclusivamente atribufdos & dignidade da pessoa. Uma das principais dificuldades, todavia - e aqui recothemos a ligio de Michael Sachs -, 2. A respeito deste ponto remetemos a0 nosso Dignidade da Pessoa... ed, onde tivemos oportunidade de abordar (ainda que no exaustivamente) a evolugdo da nogio de dignidade da pessoa na tradigio filoséfica, No Ambito da doutrina pétria, imperiosa a consulta da obra de Fabio Konder Comparato, A Afirmagdo Histérica dos Direitos Humanos, Sto Paulo, Saraiva, 1999. Dentre os autores estrangeiros, ¥: Christoph Enders, Die Menschenwitrde in der Verfassungsordhung ~ zur Dogmatik des Art. | GG, Tubingen, Mohr Siebeck, 1997; Emst Naturrecht und mens- cliliche Warde, 2 ed. Frankfurt am Main, Subckamp, 1991 (este, por um prisma cri- tico-marxista) e Jestis Gonzélez Pérez, La Dignidad de la Persona, Madri, Civitas, 1986. '3, Neste sentido, dentre tantos, a ligho de Theodor Maunz ¢ Reinhold Zippel Deutsches Staatsreckt, 291 ed., Munique, C. H. Beck, 1994, p. 179. “4. Assim o sustenta, entre n6s, Cérmen Lacia Antunes Rocka, "O princfpio da dignidade da pessoa humana e a exclusio social”, revista Interesse Pilico 4/24, 1999. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS 201 reside no fato de que no caso da dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, nao se cuida de aspectos mais ou menos especificos da existéncia humana (integri- midade, vida, propriedade et ‘0 ser humano como tal ~ definigdo, esta, que, todavia, acaba por ndo contribuir muito para uma compreensio satisfatéria do que efetiva- mente € o ambito de protecdo da dignidade,’ na sua condigio juridi- ‘Além disso, verifica-se que a doutrina e a jurisprudéncia ~ damente no que diz com a construgdo de uma nogao juridica de dig- rnidade* ~ cuidaram, ao longo do tempo, de estabelecer alguns contor- nos basilares do conceito, concretizando minimamente seu contetido, ainda que ndo se possa falar, também aqui, de uma definigao genéri- ca e abstrata consensualmente aceita;? isto sem falar no ceticismo 5. Cf. Michael Sachs, Verfassungsrecht II ~ Grundrechte, Berlim/Heidelberg! Nova York, Springer, 2000, p. 173. (6. Quando aqui se fala em uma noglo jurdica de dignidade clarfiear que se esté simplesmente buscando retratar como a dot tende-se apenas ddignidade seja também um cconeeito juridico. Neste sentido, por todos e mais recentemente, Philip Kunig, schisbindung)”, in Ingo von Munch ‘Munique, C. H. Beck, 2000, p. 76 9 de Peter Haberle ("Die Menschenwirde als Grundloge der staatlichen G Joseph Isensee/Paul Kirchhot (orgs). Handbuch des Steatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vo. 1, Heidelberg, C. F. Muller, 1987, p. 853) para quem se revela indispensavel a utilizado de exemplos coneretos para obter uma aproximagdo com 0 conceito de dignidade da pessoa humana, slientando, além disso, a importincia de um preenchimento desta nogio “de baixo para cima’ no sentido de que a prépria ordem juridicainfraconsttucional fomece importante material para a definigdo dos contomnos do coneeito. Registe-se. pot oportuno,a critica de Niklas Luhmann (Grundrechte als Institution, ed, Bet- Tim, Duncker & Homblot, 1974, p. 57), salientando que a Dogmtica Juridica habi- tualmente define a dignidade sem qualquer consideragao pelas Cincias que se ocl- pam do Homem ¢ da Sociedade, aferrando-se a uma tradigdo aristotlica, Ainda que 2 INGO WOLFGANG SARLET manifesto de alguns no que diz com a propria possibilidade de uma concepedo juridica da dignidade.* Neste contexto, costuma-se apon- tar corretamente para a circunstancia de que a dignidade da pessoa humana (por tratar-se, 2 evidéncia ~ e nisto nao diverge de outros valores e princfpios juridicos ~, de categoria axiolégica aberta) néio poder ser conceituada de maneira fixista, ainda mais quando se veri- fica que uma definigao desta natureza nao harmoniza com o pluralis- mo e a diversidade de valores que se manifesta nas sociedades democritticas c pordineas”’ razHo pela qual correto afirmar-se que (também aqui) nos deparamos com um conceito em permanente processo de construgdo e desenvolvimento.” Assim, hd que reconhe- cer que também o contetido da nog de dignidade da pessoa huma- na, na sua condigéo de conceito juridico-normativo, a exemplo de tantos outros conceitos de contornos vagos ¢ abertos, reclama uma constante concretizagio e delimitagio pela praxis constitucional — tarefa cometida a todos 0s 6rgios estat Inicialmente, retomando a idéia nuclear que jé se fazia presente até mesmo no pensamento clissico, importa relembrar a conhecida ¢ multicitada formulagio de Kant sobre o tema, no sentido de que 0 homem, por ser pessoa (e no coisa), constitui um fim em si mesmo, e, portanto, no pode ser considerado como simples meio, de tal sorte Luhmaan poss ter parcial rato, convém destacar que sua obra fo escrita a déca- da de 60, quando a Ciencia Juries exavainiciando o estudo mais siemico da signidae. 8 Newe sentido, deire outros, Cute Neiinck ("La dig te maunas usage une notion pilosopbiqu”, in Pilppe Perot 1s Digit de a Personne Pats, Exontmica, 199, p. 50). adveindo que as nogies flostcas como €o caso da digidode) nd encotram soiug0 0 Dito, Names Greg, Francais Borla ("Le concep de dgnité de la personne humaine” in Pailip~ te Pet (ie), Eig... p. 37) nega que a digndade sja um concsito de dito posivo,emboraadnita que post ser rconhecéaeprteida plo Dio. ‘Cf, ente és, Euilsom Pereia de Fatas (Clisd de Direits. A Honra a Iie. a ida Privada ea Imagem versa Liberdade de Expresso Informa ao Porto Alegre Sérgio Antnio Fabris Editor 1996, p $0) amado, pr sia vez. fas ligdes de Gomes Cantilo e de Celso Lafet 10. Tal como popost recenement, eer outs, por Cérmen Licia Antunes Rocha, "O principio da digniade.." revista Ineresse Piblico 4/24 Canforme averba Reinhold Zipelus in Bonner Kommentar gum Grundge- cidelberg. 1994, p 4 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA € DIREITOS FUNDAMENTAIS 203 que vedada sua instrumentalizagio" — concepsAo, esta, que, ao que parece, restou definitivamente integrada (muito embora a permanen- te sao em torno do tema) ao pensamento filos6fico e juridico ° Neste contexto, cumpre destacar que a dignidade, como qualidade intrinseca da pessoa humana, éirrenunciavel e inalienvel, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele nao pode ser destacado, de tal sorte que nao se pode cogitar da possibili- Gade de determinada pessoa ser titular de uma pretenso a que The seja concedida a dignidade." Esta, portanto, como expressio da pro- pria condigdo humana," pode (¢ deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, néo podendo, contudo (no sentido ora empre~ ‘gado), ser criada, concedida ou retirada, j4 que existe em cada ser umano como algo que Ihe é inerente. Ainda nesta linha de entendi- ‘mento, houve até mesmo quem aficmasse que a dignidade representa o valor absoluto de cada ser humano, que, nao sendo indispensével, 6 insubstituivel”® — 0 que, como se verd mais adiante, nao afasta a dade de uma abordagem de cunho critico e nao inviabiliza, 20 io de algumas dimensoes dda dignidade, notadamente na sua condigio juridico-normativa, t6pi ‘co que aqui néio temos condigdes de desenvolver.' ‘Assim, vale lembrar que a dignidade evidentemente nio existe apenas onde € reconhecida pelo Direito e na medida que este @ reco- rhece,' ja que constitui dado prévio, nfio esquecendo, todavia, que o Direito poderd exercer (@ tem exercido) papel crucial na sua protegdo 12. CE Immanuel Kant, "Grundlegung zor Methaphysik "in Wer- ‘Suhrkamp, 1968, especialmente pp. 59-60. io Carlos Gongalves Loureiro, “O direito a identidade genética do ser Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 280, ci quiver pp. 123 ess. 17. CE. Miguel Angel Alegre Martinez, La Dignidad de la Persona como Fun- damenta del Ordenamiento Constitucional Espafiol, Leén, Universidad de Leén, 208 INGO WOLFGANG SARLET © promogio, de tal sorte que, especialmente quando se cuida de afe- rir a existéncia de ofensas & dignidade, nfo hd como prescindir — na esteira do que leciona Gonzdlez, Pérez ~ de uma cla 20 que se entende por dignidade da pessoa, justam possa constatar e, o que é mais importante, coibir eventuais violagdes da dignidade."* No concemente a compreensio da nogdo juridica de dignidade, ‘do hé como deixar de mencionar o referencial normativo contido no paradigmético art. 1° da Declarago Universal dos Direitos do Homem de 1948 (ONU), segundo o qual “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razio € consciéncia, devem agir uns para com os outros em espfrito de frater- nidade” — preceito que, ap6s a profunda barbérie na qual mergulhou a Humanidade na meira metade deste século, as premissas basilares da doutrina kant na, Na feliz formulagio de Jorge Miranda, 0 fato de os seres huma- nos (todos) serem dotados de razdo € consciéncia representa justamente 0 denominador-comum a todos os homens, expressando ‘em que consiste sua igualdade, Também o Tribunal Constitucional da Espanha, inspicado igualmente na Declaragio Universal, manifestou- se no sentido de que “a dignidade é um valor espiritual e moral ine- rente & pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminagao consciente e responsavel da prépria vida e que leva consigo a preten- sdo ao respeito por parte dos demais”."” 1996, p21. Entre nds, v. José Afonso da Si valor supremo da Democracia”, RDA 212/91 andes da pesioa "no Eun cig "A dignidade da pessoa humana como sentido, Peter Badura ("Generalprivention und Wurde des Mensch p. 341), em multicitado ensaio, j4 havia ponderado que a clareza suficiente a respel- to do contetido da dignidade da pessoa tal qual reconhecida e protegida por uma ‘determinada ordem constitucional constitu pressuposto para a soluco adequada dos ‘casos concretos. 19, Devisdo extaida da obra de Francisco Rubio Llorente (org.), Derechos Fundamentales y Principios Constitucionales, Barcelona, Ariel. p. 72. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS 205 Assim, a luz do que dispde a Declaragio Universal da NU, bem como considerando os entendimentos colacionados em caréter exem- plificativo, verifica-se que o elemento nuclear da nogao de dignidade da pessoa humana parece continuar sendo reconduzido ~ e a doutrina majoritéria conforta esta conclusdo — primordialmente & matriz kan- 1a, centrando-se, portanto, na autonomi: acto da pessoa (de cada pessoa).” Ne: mento, Gomes Canotilho refere que a nogo de dignidade da pessoa humana consubstancia-se “no principio a idéia pré-moderna © modemma da dignitas Mirandola), ou seja, do individuo conformador de sua vida segundo o seu proprio projeto espiritual (plas- tes et fictor) Importa, contudo, ter presente a circunstancia de que esta liber- dade (autonomia) € considerada em abstrato, como sendo a capacida- de potencial que cada ser humano tem de autodeterminar sua condu- ta, no dependendo da sua efetiva realizaco no caso da pessoa em concreto, de tal sorte que também 0 absolutamente incapaz (por exemplo, o portador de grave deficiéncia mental) possui exatamente a mesma dignidade que qualquer outro ser humano fisica e mental- mente capaz.” Ressalte-se, por oportuno, que com isso nao estamos sustenta que mesmo 0 consentimento do ofendido néo descaracteriza uma efetiva agressdo a dignidade da pessoa. Pelo mesmo motivo, também o nascituro encontra- se protegido na sua dignidade, admitindo-se até mesmo que os rflexos da protecio dda dignidade venam a alcangar a pessoa inclusive apés a morte ~ posicionamento {que vai também por nés acolhido. Sobre este ponto ~de resto. objeto de aguda polé- ‘mica, especialmente no que concerne ao marco inicial do reconhecimento de uma protesdo jurfdica da dignidade -, v., entre outros, Ingo von Munch, in Grundgeserz Kommentar. 73-15, bem core na Fran, Ma hhumaine: Quel droit? Qu 1a ligo de Wolfram Hofling (“Anmer- Sachs (org.) Grundgesetz-Kommentar, apontando para a necessidade de uma interpre- Munique, C. H. Beck, 1996, p. 206 INGO WOLFGANG SARLET a sustentar a equiparagiio, mas a intrinseca ligagio entre as nogdes de liberdade e dignidade, j4 qu ‘oreconhecimento e a garant fundamentais de um modo geral) con: no a principal) exigéncias da dignidade da pessoa humana.” Por outro lado, apont para o fato de que a di exclusivamente como algo inerente & natureza humana (no sei uma qualidade inata, pura ¢ simplesmente), isto na medida em que a dignidade possui também um sentido cultural, sendo fruto do traba- Iho de diversas geragées e da Humanidade em seu todo, razio pela qual as dimensGes natural e cultural da dignidade da pessoa se com- plementam ¢ interagem mutuamente.** De acordo com ase; sagem, extraida de importante decisao do Tribunal Constitucional de Portugal, revelando esta inequivoca dimensio hist6rico-cultural da ie da pessoa humana ~ e que aqui se amolda perfeitamente -, se — no nosso sentir, com intei ou corolétios em que se desmul puramente aprioristico, mas que necessariamente tem de concretizar- se hist6rico-culturalmente”.# Ainda a respeito deste ponto, vale re- aslo aberia ¢ ampliativa do conceito vida, de tal sorte a agasalhar as necessérias es- ‘postas normativas as agressGes atuais e potenciais que ameagam a vida humana. 23. V. 0 nosso Dignidade da Pessoa .., 2 ed.. pp. 89 ¢ss., onde também dis- corremos sobre as relagdes entre a dignidade da pessoa e outros direitos fundamen- tais espectficos. 24, Cr, Peter Hiberle ("Die Menschenwarde als Grundlage..", seefPaul Kirchhof (orgs,), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepubl vol 1p. 860), detacando-se que a despeto da referidadmensto cultura jdade da pessoa mantém sempre sua condigao de valor préprio, i tendencialmente universais (pp. 842-843) 25, Acérdo 90-105-2, de 2931990, rel. Bravo Serra, onde, para além do aspectojé referdo, entenden-se ser do levislador, “sobretudo quando, na comunida- de juices, haja de reconhecerse admitt-e como legitimo um pluralismo mundi- videncial ou de concepges”, a tarefa preefpua de, “em cada momento hst6rico, “ler’, traduzire verer no correspondente ordenamento aquilo que nesse momento SEO as decortncis,implicagSes ou exigéncias dos prncipios ‘aberts’ da Constituiglo”. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS 201 gistrar a ligdo de Ernst Benda, de acordo com o qual, para que a noo de dignidade ndo se desvanega como mero apelo ético, impSe-se que seu contetido seja determinado no contexto da situagio concreta da conduta estatal e do comportamento de cada pessoa humana FE justamente neste sentido que assume particular relevancia a constaiagao de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamen- te limite e tarefa dos Poderes estatais e, no nosso sentir, da comuni- dade em geral, de todos e de cada um — condigéo daplice, esta, que também aponta para uma paralela e conexa dimensio defensiva e Com efeito, recothendo-se aqui a Tigao deixando de existit, no haveria mai sendo considerado o elemento fixo e im tarefa (prestagao) imposta ao Estado, a dignidade da pessoa reclama ‘suas aces tanto no sentido de preservar a dignidade existente, quanto objetivando a promogio da dignidade, especial- liter pleno exercicio e fruigdo ou totalmente, suas necessidades basicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Esta- do ou da comunidade (este seria, portanto, o elemento mutavel da dignidade).* Fechado o paréntese, ¢ na perspectiva jé sinalizada (dignidade nidade também se manifesta na medida em que a dignidade represen ta, simultaneamente, expresso da autonomia da pessoa humana (vin- 26.Cf. Emst Benda, “Die Menschenwirde ist Unantastbar”, in ARSP — Beiheft 2723, 1984. 727. Aespeito da dignidade como limite e tarefa ., dentre tantos, ¢ mais ecen- temente, no contexto de uma dipl (positiva), a ligdo de Michael Sachs, Verfasswngsrec 28. Esta a ligdo de Adalbert Podlech, “Anmerkungen zu Art. 1 At Rudolf Wassermann (org.). Kommentar zum Grundgeset: der Bundesrepu- 2ed,, vol. I, Neuwied, Luchterhand, 1989, 208 INGO WOLFGANG SARLET inagio no que diz com as decisdes essen- isténcia), bem como necessidade de sua .co e/ou assisténcia por parte da comunidade ¢ do Estado, espe- cialmente quando fragilizada ou até mesmo ~ ¢ principalmente — ‘quando ausente a capacidade de autodeterminagao.” Assim, a digni- dade, na sua persp va) da pessoa humana, poderé, dadas as prevalecer em face da dimensio autonémica, de tal sorte que todo aquele a quem faltarem as condi- ‘ges para uma deci ambito da Biomedicina ¢ Biostica) poderd até mesmo perder ~ pela nomeagio eventual de um curador ou submissio involuntéria a trata- mento médico e/ou internagdo — 0 exercicio pessoal de sua capacida- de de autodeterminagao, restando-Ihe, contudo, o direito a ser tratado com dignidade (protegido e assistido).”” Tal concepgiio encontra-se, de resto —e reconhecidamente ~, em- basada na doutrina de Dworkin, que demonstra a dificuldade de se explicar um direito a tratamento com dignidade daqueles que jé nao ogram sequer reconhecer insultos & sua auto-estima, ou mesmo daquelas pessoas que ja perderam completamente sua capacidade de € que ainda assim devem receber um tratamento portanto, parte do pressuposto de que a dignidade possui “tanto uma voz ativa quanto uma voz passiva e que ambas las”, de tal sorte que é no valor intrinseco (na labilidade”) da vida humana, de todo e qualquer ser 29, Cf. Manin Koppemock, Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestim- ‘mung, Baden-Baden, Nomos, 1997, pp. 18-20. 30. Assim também Martin Koppernock (Das Grundrecht tando, paciente sem qualquer tipo de indicagio médica, especialmente quando 0 consent re fundado na ignorfncia ‘éenica. Até que ponto nesta e em outras hip6~ vel falar na presenga de uma plena autonomia ico destas consideragbes, mas que nem por isso & de resto, aspecto que refoge ao dr deixa de merecer a devida atengo. 31, CF, Ronald Dworkin, El Dominio de la Vida. Una Discusién Acerca del Aborto, la Ewtanasia y fa Libertad Individual, Barcetona, Ariel. 1998, pp. 306-307. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DIREITOS FUNDAMENTAIS 20 humano, que encontramos a explicagio para 0 fato de que mesmo ‘aquele que ja perdeu a conse (sua dignidade) considerada e respeitada? ‘Assim, seguindo uma tendéncia que parece estar conduzindo a uma releitura ¢ recontextualizagdo da doutrina de Kent (a0 menos naquilo em que aparentemente se encontra centrada exclusivamente nna nogo de autonomia da vontade e racionalidade da pessoa huma- le reproduzit a lipdo de Dieter Grimm, eminente publ ‘de forma aut6noma sobre seus projetos existenciais e felicida- de, € mesmo onde esta autonomia Ihe faltar, ou nao puder ser atuali- zada, ainda assim deve ser considerado ¢ respeitado pela sua condi- fo humana.* 32. Cf, Ronald Dworkin (El Dominio de la Vida ... pp. 307-309), que, nesta Iinha de entendimento, distingue o direito a um tratamento digno do direito & bene- ficéncia, exemplificando tal distingdo com a situagzo peculiar dos presos, que, por ‘serem encarcerados, ndo $80 tratados de forma benéfica (jé que 0 objetivo a pre« vengdo de deltas para 0 beneffcio geral da comunidade), mas ainda assim, na condi ‘glo de seres humanos, devem ser tratados com dignidade, no podendo ser tortura- dos, humilhados, assegurando-se-Ihes um minimo de privacidade e direitos basicos. 33. A respeito deste t6pico, especialmente questionando a instrumentaliza ana por meio da redugio da nogdo de pessoa capacdad igagdes) v, entre n6s, a contibuigéo midade da pessoa humana: co ‘sta (org). A Reconstrugao do Direi 2002, pp. 230 ess. ud Martin Koppemock, Das Grundrecht ... 22), muito embora posicionando-se de forma critica em relaglo ao reco da dignidade exclusivamente com base na pertinéncia biol6gica a uma espécie e cen ‘rando a nolo de dignidade no reconhecimento de direitos a0 individuo, sem os ‘quais este acaba ndo sendo levado a sério como tal. Nesta mesma, ido 0 Tribunal Federal Co (BverfGE [coletinea das deci- s6es do Tribunal Federal Const Vida humana esta deve ter assegurada a proteso de sua dignidade, ndo sendo deci- sivo que 0 titular tenha consciéncia de sua dignidade ou que saiba defender-se a si proprio, bastando, para fundamentagio da dignidade, as qualidades potenciais ine- rentes a todo ser humano. 210 INGO WOLFGANG SARLET Por outro lado, pelo fato de a dignidade da pessoa encontrar-se igo humana de cada individuo, nao ha como descartar ‘uma necesséria dimenso comunitéria (ou social) desta mesma digni- dade de cada pessoa e de todas as pessoas, justamente por serem todos iguais em dignidade e direitos (na iluminada formula da Decla- ago Universal de 1948) e pela circunstdncia de nesta condigao con- viverem em determinada comunidade ou grupo, destacando-se, por- tanto, 0 cardter humana, que jé havia sido referido pelo proprio Kant, sugerindo aexisténcia de um dever de respeito reciproco no ambito da comunidade dos seres humanos.> ‘Seguindo ~ao menos assim o parece esta mesma linha de enten-

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