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PESSOA E INDIViDUO AS CATEGORIAS PESSOA; INDIV{DUO B SUJEITO tendem a con- fundir-se no’ uso comum das Iinguas ocidentais. Alguns saberes €s- pecializados, no entanto, buscam construir a especificidade de cada uum desses termos, de acordo com critérios técnicos, ideolégicos ou histérico-culturais. A antropologia 940 0s conceitua de modo sis- tematico e univoco em todas suas escolas € tendéncias, mas abriga diversas iniciativas de demarcagao semantica em fungao das impli- cagbes culturais diferenciais da historia dessas categorias. Os autores para quem essa distingao é relevante tendem a con- siderar pessoa a categoria de pensamento que, na tradigéo ocidental, designa 08 entes dotados de agéncia propria, capazes de afetar de maneira afirmativa 0 mundo em que vivem. Isso pode incluir tanto o que chamamos de seres humanos singulares quanto entes espirituais (por exemplo, as trés “pessoas” da Santissima Trindade crist) ou en- tidades coletivas (como na ideia de “pessoas juridicas”). Aproxima- ge assim da categoria sujeito, que veio @ significar hodiernamente — por meio de uma derivagao gemAntica peculiar de uma categoria que significa “assujeitado” — justamente o “senhor” especifico de yontade, responsabilidade, deveres e direitos. A necessidade de preci- sar o sentido da categoria pessoa emerge sempre no contexto de sua diferenciagao da categoria individuo. Nesse caso, pessoa representa ‘os entes socialmente relevantes imersos em sua rede de relagdes € ‘em sua trama densa de atribuigoes € significados. Individuo, por sua 14 (ez, representa as unidades minimas, pensadas como auténomas, da 0 que foi chamado por Louis Dumont (1983) de relacional x um ser autonomo, Para alguns autores que fazem uso dessa distinglo, a tensio entre s sociais descritas pelas duas categorias ¢ uma proprie- dade generalizada (sendo universal) da vida social. Nesse caso, a ca tegoria pessoa pode assumir a conotagdo de uma “mascara” social da ” cujo desempenho a so- ciedade Ihe exige. Sem endossar completamente essa acep¢ao, Marcel Mauss Para outros autores qué essa distingao, é fundamental apontar para a especificidade histérico- cultural da categoria individuo, por oposicio A universalidade da ideia tal, enquanto unidade de realidade minim: |, ela teria sido sistematicamente aplicada (ou se tornado aplicivel) aos seres huma- 1nos, em decorréncia das transformagtes historicas que ensejaram a emergéncia da “modernidade” ocidental, Entre outros modelos dessa transformacdo, encontra-se o da emergéncia e progressiva hegemonia de uma representagio paradoxal de pessoa que enfatizar sua autonomia fundamental em detrimento de ou em o de uma representacio holista ¢ hierarquica da ordem social, ou seja, sua definigio seria sempre decorrente das demarcagdes cosmolégi- cas abrangentes e se efetivaria sempre por meio de diferenciagoes de estatuto social (decorrentes da distribui letrado e réstico etc. seriam manifestagdes especificas de um modo universal de construgao de pessoas. 142 ANTROPOLOGIA HDVARLTO ‘A categoria individuo designaria, em vez disso, 0 sujeito especifico modernidade: um ser indiviso dotado de liberdade e igualdade, se- de uma vontade ¢ de responsabilidade ou senso moral proprio, variagbes desse modelo ideol6gico foram desenvolvidas desde propds que viesse a sustentar a ordem social prevalecente no 0 teria surgido de chofre. Propde-se encontrar sinais de sua emergéncia na representagao crista de uma ‘glo universalizante do Vé-se assim como a categoria individuo vi deal de pessoa prevalecente na {ores analisaram o modo como essa associagao se viu expressa, de Jodo negativo, na acepgio pejorativa da categoria individualismo, idade cultural da nosao de individuo, Encontra-se ‘opm quase exclusivamente na teotia jurfdica a nogao de pessoa eR= {enclida a0 mesmo tempo como o ii 10 portador dos direitos fe deveres modernos, ¢ como a pessoa entranhada em sua rede de Telagdes com outras pessoas e com as coisas, tomando a forma de obrigagdes, A categoria individuo tende a ser empregada de modo i iis descritivo, para designar ngular ou as incidén~ ec: comum do povo brasileiro (como na acepgao negative ‘com que se apres chegou, nesse sent “wnalisado como um si ‘vonivels & preservagao de um si ierarquico, diferenciante, dt ‘Hogi de pessoa, PaKOA HANDIVIDUO gM interessante, porém, verificar como a teoria juridica se ocu- pa desse problema, ao tratar, por exemplo, da emergéncia do que chama de direito subjetivo. Essa categoria designaria, nos termos aqui explicitados, a emergéncia do reconhecimento de um indivi- duo portador de direitos e deveres intrinsecos a luz das ordenagdes juridicas tradicionais, ocupadas inevitavelmente com 0 estatuto de pessoas socialmente localizadas. ta da pessoa na ordenagao jiuridico-politica das sociedades ocidentais envolve imtimeras questes de grande interesse. De um ponto de vista , pode-se discutir, por exemplo, a importancia da ideia de um direito natural, que é um instrumento para a deslegitimagao das ordens hierarquicas tradicio- nais pela naturalizaco dos valores de liberdade e igualdade, intrinse- cos ao individuo. Pode-se encontrar sinais desse processo nas discus~ s0es sobre as propriedades diferenciais da tradic2o juridica romana € da common Law anglo-saxa (vista, as vezes, como herdeira de um “ndividualismo” germanico arcaico). Pode-se também compreender melhor a importincia do cédigo civil napoleénico para a ordenacio juridica moderna, pois af se demarcou pela primeira vez o reconheci= mento pleno do ideério individualista pelo direito positivo. Em outro registro, ¢ fundamental reconhecer a importéncia para a tradieao cultural ocidental da teoria das pessoas juridicas, desen~ volvida sobretudo na drea comercial. Basta reconhecer 0 quanto a representacdo moderna de sociedade, enquanto associagao de livres contratantes, deve a fic¢ao juridica medieval da sociedade mercantil. A prOpria representagao da nagao moderna, embora se deva em boa parte & representacao historicista-romantica da comunidade de ori gem, se nutre dessa tradigdo de justificagdo juridica da coletividade enquanto pessoa (sua “personalidade” juridica). ‘A acepsio individualista de pessoa prevalecente na ordenagio juridica moderna impde uma particular preocupagdo com as ques tes da identidade, da responsabilidade e da representaga0 dos su jeitos. As recentes medidas de adogao de uma legislagio de direitos civis da crianga e de aboligao da figura da patria potestas 6 um exem= 144g, AxrnovoLOGrA w DuRREEO plo marcante da tendéncia a eliminar (ou reduzir) as situagdes de dos cidadios, estendendo no mesmo processo as fronteiras da individualizacao dos sujeitos. Idéntico processo deu-se na tiltima década em relacio a preservacio do estatuto de individuo dos doentes mentais. No mesmo tegistro, outra ativa frente de preocupago quanto 0 estatuto da pessoa/individuo nas sociedades contemporneas 6 a da condi¢ao do embriao e do feto humanos. A questo do aborto € particularmente exemplar, ao contrapor diferentes niveis de atuali- ‘agao da pessoa ou do individuo, conforme se pri isolado de seu contexto materno ou se defenda o direito da mulher ir 0 seu proprio corpo; conforme se o represente como um ente indistinto a ser tornado pessoa a partir do nascimento (e do decor- rente reconhecimento social) ou se 0 conceba como um individuo autdnomo pela sua humanidade potencial. Com a complexificagao dos recursos tecnol6gicos aplicaveis & concepgao ¢ & gestagéo de se res humanos, abrem-se novas frentes de imprecisio das fronteiras, centre pessoa e individuo. O temor da clonagem de seres humanos se presenta hoje no horizonte das inquietacoes, ao ameagar a suposta identidade entre a individualidade (biolégica ou genética) e a pes~ soa ou personalidade (no sentido tanto psicol6gico quanto juridico), Ve-se, por outro lado, emergir a discusséo da extensio, mutatis m= tandis, dos direitos individuais aos animais (ou, alternativamente, As |, numa exacerbagio caracteristica da profundidade: LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE

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