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SERMOES DO PADRE ANTONIO VIEIRA Apresentagao critica, selecgio, notas © sugestdes para andlise literdria de Margarida Vieira Mendes 4 EDIGAO, Editorial Comunicagao aigto Titulo Autor 3. edigto Capa Oviemagdo gratiea (© Batorial Comunicagio Deposivo Lega wr. SERMOES DO PADRE ANTONIO VIEIRA Margavida’ Vieira Mendes 1987 (1? ed, 1978; 2." dy 1982) Soares Rocha J.-A. Rosado Flores Rua da Misericdidia, 67, 2.°, 64 1200 Lisboa NeUTT8T INDICE APRESENTAGAO CRITICA |. Biografia cronoldgica do P. Anténio Vieira . Comentiitio......... 2. A pedagogia jesuitica 2. A Retrica .. 2.2, A Filosofia. fe 2.3. Os Exercicios Espirituats... 4. A puitica hist6riea dos Jesuitas 4 10 retdrica € desempenho literairio.... 4.1. A’ Retériea no S, da Sexagésima 4.2, Linguagem © Natureza 4.3. 0 «estilo culto» : di. A aagudeza» no estilo culto . 4.5. © aconceito prediciivel> ....... 4.6, O Barroco Dice 5. Critérios seguidos: na apr 10 ¢ estabel dos textos... Bibliogratia. 1. Obras do Ps Antonio LiL. Sermaes, 1,2, Outras obras eo... Estudos sobre 0 Pe Antéi EXTOS midio de S, Antonio... mio da Sexagésima ... 1 u 15 16 18 19 2B 25 25 2 28 31 4 37 40 a2 43 M4 49 an 1. Biografia cronolégica do P.* Anténio Vieira 1608 — Nasce em Lisboa, filho de um escrivao oficial, 1614 — Parte para 0 Brasil onde © pai passou a exercer fun: ges de escrivao da Relagio da Baia Estuda no colégio dos Jesuitas. 1623 — Dizem os bidgrafos, citando um ditirio de A. Vi que nao chegou até ouvindo um: da tarde, do P 6s: «Aos II de Margo de 1623, do inferno em uma pregagaio do Couto, me d por um ano, 1626 — F encarregado pelos seus superiores de redigir a Carta Anua (relatério anual dos trabalhos provinciais da Companhia da Jesus), onde dé conta dos episédios relatives i invasio holandesa, Ensina uma eadeira de Retérica em Ol 1633 — Prega pela primeira vez na Baia, mente ji 0 tivesse feito antes nas ald 1635 — E ordenado sacerdote ¢ passa pregador, correndo as aldeias ida, provavel- a exercer a funcio de longo de 1038 loa0 — lott — 1642 — 1643 — 1646 — 16419 1652 — ‘ntemente politica, acom a 1ando os problemas de entiio: © sebas- ileses, os males da admi- tismo, a guerra com os Hol nistragao colonial Novo cereo dos Holandeses & Baia. Restauragdo portuguesa. Parte para Portugal, acompanhando 0 filho do vice -rei do Brasil, a fim de trazer a adesio da colénia 0 novo tei Conquista 0 favor de D, Joao IV ¢ inicia a sua car teira publica € politica. Prega pela primeira vez na Capela Rea moes de entdo sio instrumentos de luta politica a favor do rei e contra Castela, funcionando A. Vieira como uma «espécie de ministro da propaganda do rei» (Ant6nio Sérgio). Alguns desses sermdes sao edi- tados € mesmo virias vezes refundidas. «l pete de madrugada em S. Roque passou a ser mods, segundo 0 testemunho de Francisco Manuel de Melo. Primeira «Proposta a EL-Rei D. Jodo IV...» sobre os icionada com 0 seu projecto eco- glo nacional sss diplos is na Buropa, onde tenta negociar nvio s6 com os chefes politicos mas também com as comunidades de judeus que eam 0 os detentores da maioria do capital mével, os hhomiens de nezdcios que Vieira pretendia cativar para a fundagiio de companhias comerciais portug Comeca a rediir a Histéria do Futuro, obra de cari (er profético. E fundada a Compa © Comércio com 0 Bra. sil, com capital isento do confiseo inquisitorial, Vai para o Brasil como missionirio no estado do Maranhio, depois de se ter envolvido em conflitos internos & Companhia de Jesus, que quase the vale- ram a expulsio. Passa a tomar papel entre jesuitas € colonos indigena. I. Os seus ser- ctivo no secular antagonismo propdsito da méo-de-obra 1654 — Prega a 13 de Junho © Sermdo de Santo Antonio. Parte clandestinamente pi 1655 — Prega em Lisboa o Sermio da seguem outros. Volta 0 Brasil, munido da influéneia dos Jesui Até 1661 participa rior, como missiondri 1656 — Morre D. Joao IV. 1659 — Fscreve a carta ao Bispo do Japio sobre as Esperan- gas de Portugal, Quinto Império do Mundo, em que defende como teses proféticas as trovas do sapateiro Bandarra ¢ prevé a ressurreigiio de D. Joao IV, futuro, soberano do império ctistéio-portuguas. Este escrito constitui a base do proceso que posteriormente the moveu 0 Santo Officio. 1661 — E expulso do Maranhao pelos colonos, juntamente com todos os jesuitas, Em sermdes pronunciados em Lisboa defende a acgaio dos m irios da Com- panhia. 1662 — Um golpe de Estado coloca D, Afonso VI no trono: governo de Castelo-Melhor até 1667, A. Vieira desterrado no Porto, 1663 — E promulgado um diploma que estabelece a aboligio da jurisdigdo temporal das missdes de Jesuitas no Brasil, 1665 — Entra na prisio do Tribu Coimb: 1667 — E lida a sua sentenga: «(...) Seja privado para sei pre de vor activa ¢ passiva e do poder de pregar, ¢ recluso no colegio ou easa de sua religido que 0 Santo Oficio the ordenar, e de onde, sem ordem sua, nao aid.» D, Afonso V1 ¢ preso © Castelo-Melhor expulso. 1668 — Vicira amnistiado. Recomegam em Lisboa as suas pre. gagdes. 1669 — Parte para Roma onde obtém bi 1¢ 0 Tribunal do S: Sexagésinna, que se i que beneficiava a sobre os indios, n arriscadas expedigdes ao inte- e chefe das «entradas» al do Santo Oficio em tante sticesso, cio fazendo uma \de 08 cristdos- B -novos ¢ 0 seu dinheiro, que possibilitaria a funda cio de uma companhia comercial da india, e luta a favor das miss6es no Brasil. 1674 — I ordenada pela Ci suspen -de-fé em Portugal, que dura até 1681 1675 — Volta a Lisboa por ordem do Regente, munido de wm Breve pontificio que o isenta da jurisdigio inquisitorial. 1679 — Sai 0 1.° volume dos Sermoes. 1681 — Volta ao Brasil Baia, ja que em Lisboa encontrava ambiente favorivel, tendo perdido das questées por que tutara em Roma, 1688 — FE nomeado Visitador da Provincia do Brasil. Vai rees- crevendo € organizando a edigo completa dos seus sermdes com grande regularidade, servindo-se de con- fusos apontamentos que tina. 1697 — Morre ia com 89 anos, depois de rever 0 13.° dlos autos apalicios alt comparagio com os sermées, meras «choupanasy: a Clavis Prophetarum. COMENTARIO Este quadro pretende evidenciar pelo menos quatro cons tantes na vida de Vieira, relacionadas com a sua militan que condicionam e detei n os sermoes: ') a permente ligago entre 0 eseritor ¢ as homem piiblico, do homem de intervengao; b) 0 facto de essa intervengao ser frequentemente comba- tiva, muito agitada, por vezes de consequéncias viotentas; €) © facto de essa intervengo se equacionar geralmente como poder real, papal ¢ 0 da Com Jesu «d) as questios em que Vieira se envolveu foram sempre as: os Holandeses no Brasil, a Restauragio D. Joao 1V, 05 cristdos-novos, as companhias de comércio nacionais, 10, as misses, a pregagao, a Companhia de Jesus, ros ¢ finalmente a fechar, ou mesmo a ge tudo isto, 0 profetismo © 0 messianismo politico-religioso. Todos estes assuntos esto interligados, so indissociiveis atravessam a da produgao oratéria do Padre Vieira, 2. A pedagogia jesuitica corre todo o século XVII, época muito contraditéria, com profundos desniveis culturais, ideokigicos ¢ econdmieos no espago geopolitico europeu. Em paises como 4 Holanda € a Inglaterra comegava jé a dar livre curso 20 desenvolvimento do capitalismo mereantil € ao pensamento empirista, racionalista e experimental que durou até finais do século XIX: obras como as de Galilew, Decartes, Spino tius ou Lock incipio da autoridade, a nica religiosa e defendiam 0 iio geométrico, a diivid: mietéclica, a experignei 6 natural, Em Portugal ta bém em Espanha, pelo contririo, exasperav a persepuigao a judeus e eristdos-novos, muito ligados 20 He comércio intern .€ a perseguigio a tudo o que pusesse em causa os prinefpios ¢ dogmas da Contra-Reforma, defendidos cetequeticamente pelos esi por outras ordens € clero secular. Procedia ta de livros € aos autosde-fé de livros ¢ de p A maior parte da produgio literaria, que tante, € de origem clerical ¢ modelada pela retorica das esco- las jesuitas, pelo pensamento escolistico, pelo gosto barroco peninsular, tendo além disso afrouxado 1 a leitura de livros estrangeiros e mesmo portugueses, em grande parte proibidos. Praticamente todos os aparelhos de formagao e informa cultural ¢ ideoldgica se encontravam nas mios de ordens religiosas, entre as quais dominava entito a dos Jesuitas, ins talada em Portugal desde 1540 ¢ que cem anos depois ja con- tava com 650 casas, incluindo noviciados, asilos, hospitais, escolas e semindrios. Aleangaram os jesuitas grande popula ridade, sobretudo pelas actividades de assisténcia e, junto dos \dios brasileiros, pelas misses. Sobre os grupos dominantes to sensivelmente passaram a exercer também uma forte influéncia devide aos cargos de confessores, capeliies, conselheiros, pregadores © pedagogos, E conhecida dos historiadores a acgio desencadeada pelt Companhia de Jesus para obter 0 monopélio do ensino, quer Is normal quer universitério. Conseguiram montar uma rede de colégios ¢ escolas oficiais por todo © pais ¢ coldnias, além de universidades que rivalizavam com a de Coimbra, responsi veis pela formacio do escol intelectual de entito (por ki pas: saram tambél Francisco Manuel de Melo). Para essas escolas criaram uma pedagogia € um plano de estudos proprios, que condicionam geneticamente alg facetas da produgio de Vieira, 2. A Retorica Entre as disciplinas ministradas (Latim, Grego, Teologia, Gramética) contava-se a Retdrica, ou seja, a disci- plina que ensina um orador a construir um discurso de forma a persuadir os seus ouvintes. Nesta, como noutras matérias os Jesuitas adoptavam o livro tinico, 0 compéndio dado por todos os professores, com o consequente abandono da leitura directa dos tratadistas antigos, © que veio a contribuir para &-anquilose ¢ uniformizagao da construgaio dos sermées ao longo do século. Tambem estimularam bastante 0 uso, entio vulgarizado, de colecgdes ou elencos de lugares-comuns, listas veis de passos das Eserituras, dos Doutores da Ign de alguns escritores latinos. Neles 0 pregador podia encon- tar 0s «conceitos predicdveis» ' que serviam de fu obrigatério & sua argumentagiio, Se se conhecer um plano de estudos como © Ratio studio- rum de 1599, em vigéncia dun verifica-se que na formagio do educando entrava um sério © apurado treino para a prega io de constantes sabatinas ¢ exerefcios escritos de composigaio que, além de est mularem a emulagde ¢ 0 espitito combative, faziam desen- volver a capacidade dialéctica e a procura da novidade, dt surpresa, da «agudeza» (descoberta de realgdes subtis ent dois ou mais termos). O critério de orientagao € de aprecia silo dos mestres integrava miiltiplos e minuciosos factores que \damento 0 de Vieira, "Vd. pa. 16 ses, su ligagio, teor dos lugares-comuns, digressdes, ete.), (© que revela um efectivo adestramento dos seus pupilos na ia oratoria. iF, 0 que Vird a pesar no assunto predominante retd: rico do sermio da Sexagesima, Mais tarde os seus sermoes. tornaram-se © paradigma do que se convencionow chamar «anétodo portugues de pregar», por oposi¢ao ao «anétodo fran- » posterior *, e passaram a ser estudados nos colégios, fipu: rando em virias coleegdes antoldgicas. Sendo parte da juventude educada praticamente s6 pelos Jesuitas, ndo € de estranhar que Vieira encontrasse um priblice apto ¢ motivado para se interessar e perceber um sermio de teor tio tedrico como o da Sexagésima (alids grande parte do auditério era constituida também por pregadores). Ak disso, um sermio sobre © sermao, como este é, também se justifiea pelo facto de a pregagio constituir uma das priticas sociais ais correntes € importantes e de 09 5 dos, Tidos e ensinados como obras literirias * Para além da Retériea, faziam parte da formagio de bons tecnicos na eloquéncia aquilo a que J. L.. de Azevedo se retere nestes termos, a propésito dos dois anos dle noviciado na Com- panhia: «Diariamente exercieios de meméria, com textos deco: rados do Antigo Novo Testamento; ¢ os de declamagiio, que nna lingua da Companhia se denominavam repetigao dos tons para as inflexdes do piilpito. Instrugao sobre 0 porte e ad manes, sobre 0 andar, 0 riso, a voz, a posigio das maos, a (0 do olhar, 0 modo de compor © vestido, Os I nao devem estar contraidos nem em demasia abertos. E se © franzir da testa ou do nariz, pois cumpre que se teia no rosto, espelhio da alma, a serenidade do interior. Tudo isto, acha especificado em regras eseritas que o novigo tem de mes serem public © C4. A. Pinto de Casto, Resica e Feoricacdo Literdria em Portal, a » Vejacse a este propdsito © artigo de J. Prado Costho sobre «Oratériay no Diciondrio de Literatura, onde se da conta da. grande quantidade de lvtos ide setmies publicados nos séctlos XVHF © XVII ” comhever e praticar.» * Assim se v8 que 0 sermdo, 0 texto de ue hoje dispomos, & apenas uma das partes que compunbam 6 espectaculo teatral da pregagdo, onde intervinham outras tunidades significativas como © espago agio, A mareagdo, os gestos, as emtoagdes, ete. A propria arquitee- tura barroca adoptou 0 modelo jesuitico da naves laterais para que © pilpito pudesse ser visto (como a Igreja de S. Roque em Lisboa). .2. A Filosofia a ter sido © wn iniiar-se em cialmente em ex Sabemos também que depois de Viet para dar um curso de Ret6riea, © mandat sofia, disciplina que consistia entdo essen - cicios de dialéctica © de argumentagao silogistica. A leitura € comentirio («grosas») de alguns filsofos antigos, destaca- damente de Aristételes, servia sobretudo como instrumento 10 casuistica, exercitando-se nela os estudan- tes. Antnio Sérgio da exemplos de alguns desses casos dis- paratados, «abtusos», contidos num livro que pertenceu a0 Colégio de Evora: ase foi a mie de Cristo, suposta a inferio. ridade feminil, realmente mulher vardo?», ou «a Virgem Maria foi coneebida sem pecado: logo 0 Pontifice & imperador de toda a terra» *, Dai que o estudo da filosofia servisse tam: bém a preparagiio de argumentadores eximinos, tanto quanto mais disparatados os silogismos que se conseguiam pro: var. Tudo isto se passava dentro de um limitado horizonte de irracionalismo ¢ circularidade que impedia a produgao de n cuja drbita girava também a actividade de ‘outros centros de produgilo ¢ reproduce cultural: nas Aca. demias de entao estabelecia-se 0 mesmo tipo de disputas inte~ lectuais, ligadas ao brilho © & ostentagao da agudez mental © alegérica no discorrer, viado de argumenta * Misia de Antonio Vieira, 1, ps 20. © Cf uPreticiow in P. A, Viet, Obras Escothidas, v0. pp) XVUI-XIN, 2.3. Os Exercicios Espirituais Na formagio religiosa do Jesuita, para além da leitura directa dos textos biblicos e dos Padres da Igreja, havia ui pratica regular de exercicios misticos, deguindo-se para isso © texto dos Exercicios Espirituais de Inicio de Loyola, fun- dador da Companhia. Ora no discurso inaciano, que o eri tico R. Barthes ajudou a caracterizar *, a prop prece por ele proposta nido tem Feigio mistica, antes & enfor- iada pelos processos retdricos da eloquéncia, com uma esco- tha © combinagao de argumentos que visam atingir © interlocutor, neste caso Deus. Assim se di x penetragio dum énero, que viria a ser dominante no século XVII — a orate ia sacra — numa outa literatura — a mistien, A estrutura da lingua inaciana ¢ interroga tiva, ¢ @ interrogagdo é um dos provessos mais frequentes dl oratéria, com miltiplas fungdes possiveis: pode servir para sacudir © piiblico © manter © contacto, para provocar uma tesposta explicativa (do proprio interrogador), para fazer pro- dir 0 diseurso ou {20-s6 articuli-lo, ete, Por outro lado, encontramos também a interrogagiio a fazer entrar dentro do prdprio enunciado do sermao interlocutores ficcionados ¢ apostrofados, como Deus ou os peixes (no S. de §. Anténio). Além da interrogago € consequente aparigio de interlo. cutores encontramos nos Exercicios outras earacteristicas que sto comuns a estrutura parenética posterior, nomeadamente a de Vieira, Uma delas & 0 distinguo, a permanente divisio em partes, a arrumagao meticulosa € obsessiva, as miiltiplas delimitagdes & maneira escoldstica, © que constitui mais um dos alicerces da marcha discursiva destes sermbes, as vezes um grat de exasperagdo doentia € espectacular ao mesmo tempo, O projecto € aqui parandico e totalitirio: esta «raiva da contabilidade» proviria, segundo Barthes de ocupar a totalidade do territério mentab», © que se Faria por uma «arborescéncia continua do discurso, er ie * Sade, Fourier, Lovote, Sui, Pati, 1971 Sea alpunas das refledes de R. Ha proposigdes metalinguisticas do 8, da Sexagésima esta tendén- pada ¢ cristalizada, numa espécie de mise cia aparece repres en abyme, na célebre imagem da aryore dividida em 7 paries (vd, cap. VI do sermao). Também o tipo de ima 9 mais cara a St.” Indcio se encontra nos sermdes de Vieira, Os Exercicios propoem o imagens sen para suporte e concretizagio das sas, imagens essas geralmente codificadas © banais, tiradas do arsenal biblico ¢ da tradigio oral, Tém por tanto essas imagens uma origem menos espontinea ¢ criativa que candnica, ja feita, € voluntarista. Sido livrescas, ndo resal- ndo de uma pessoal energia imaginativa. Nos sermoes de ira, € ndo s6, elas funcionam predominantemente como egorias ¢ como unidades ow «figuras» do pensamento. A. J. Saraiva ? consegue demonstrar que é a interaccio magem ¢ do conceito um dos motores que fazem progre- Vi da dir o discurso nos sermdes de Vieira. Um nao est do outro, ambos se estimulam € movimentam num encadea- mento ao mesmo tempo sintagmatico € paradigntico, pois fas suas relagdes no sio s6 de contiguidade mas também de similitude: ecoam um no outro, correspondem-se, como se se tratasse de uma mesma substiincia com duas apar es. Ao descrever o sistema epistemoldgico dos séculos XVI- que antecedeu a ruptura feita pelo racionalismo postetior, Michel Foucault * reparte a configuragio do saber de entdo em quatro figuras todas elas relacionadas cor semethanga, principio organizador de todo 0 conhecimento, uma das quais é precisamente a anafogia; semelhanga no pro priamente entre as coisas mas entre as relagdes. Deste modo, esirutura dos conceitos desencadeia analogicamente ‘do de certas imagens ou figuras € vice-versa, A descrigio de uma imagem € de ritmo ge matico € no naturalista ou verista: o que interessa & fazer corresponder as unidades que a compdem as unidades do con- ccito polarizado. Isto passa-se tanto nas chamadas deserigdes > C1. © Discurso Engenhoso, 1.* pate © Les mots et les choses Gallimard, 1966, Trad. port. As Palavras ¢ as Cofsas, Portugalia, 1968. 20 (representagio estitica de objectos) como nas narragdes (repr semlagio dindmica de processos ¢ acontecimentos). A nivel da disposigao o discurso passa a ser uma sucesso ou acumuls gio de coisas parecidas (ou o inverso, de coisas opostas) Dai a circularidade do pensamento de Vi tao Longe se encontra da meditagiio, da reflexiio, Seguem-se sintagmaticamente imagem-conceito-imagem.... € as suas relagdes ou articulagdes so analégicas, A imagem nao fun: ciona, portanto, como um ornamento mas como um elo fun: damental da cadeia discursiva, cuja extracgaio Ihe romperia a Iogica. Por outro lado, ao funcionar como alegor 10 de um conceit, a imagem torna-se u Jo, como se Fosse um texto si na forma © qualidades concretas da it , como mate: 1 prova na lo: © que se passa gem ou figura serve para fazer aceitar obrigatoriamente conceito ou tese que se esta a defender, O mecanismo ¢ aqui também de semelhia «assim como... também! Dd dai ntro das imagens © senticlo mais explorado é 0 da visio abundancia de palavras como «cegor, «eegucita>, «verde», colhai». Eo sentido em que mais se insiste nos ser mes de Vieira, inclusivamente como um argumento de ver~ dade, Jai em St." Indcio a imagem visual era exeessivamente valorizada, com o fim de criar auténtieas alu citando, A utilizagao de uma t6pica é outra caracteristica da. lin gia inaciana: um conjunto de lugares-eomuns (apoi) codi ficados, que preexistem 2 invengao mas que passim a crever-se no diseurso, como uma grelha de motivos que oca- onalmente suportam determinados passos desse discurso, cm mimero finito € constituem um aparelho através do qual 6 tema ou assunto se vai expondo, se vai desdobrando, Nos sermoes do P. Ant6nio Vieira niio esta estucada utiliza- Gao desse arsenal ou lista de lugares, mas podemos encontrar nestes dois textos, com uma certa frequéncia, lugares como oposigao religiosa vertical céu/terra ¢ céu/inferno, os (ro elementos da natureza, as estagdes do ano, ou ainda & pequenez de David/a randeza de Golias, ou os pecados mortais, inagdes no exer a Interessa por tiltimo mencionar os assuntos que o exer tando meditava segundo esses Exercicios: 0 pecado, 0 inferno, a figura de Cristo-Rei, imperador sobre os infiis, ¢ € Ressurreigdo, Nos dois sermoes aqui transcritos S40 apresemtados com insisténcia pelo menos trés assuntos: 0 pecado, 0 inferno ¢ a Paixtio de Cristo. 3. A pratica histérica dos Jesuitas Sabemos que a actuagio histér! foi determinante do século XVI ao XVIII, a nivel de ‘mas superstruturas da sociedade portuguesa, sobretuclo como. agentes privilegiados da nova politica religiosa ¢ cultural saida lo concilio de Trento, Nao sto alheios a esse papel funda- mental os moldes em que se processava o novieiado, nomea- amente uma certa despersonalizagio dos seus sacerdotes, que assim se transformavam em aguertidos militantes nesse ver- dadeito exército que era a Companhia. Esta fei tiva e esta vontade de poder siio também, ¢ de nso, as do estilo pessoal de Vieira: a maio duo oratéria, assim como toda a sua vida, nasee ¢ alimenta: cde uma grande agressividade ofensiva e defensiva. Muito articularmente o pilpito, além de ser um lugar de eatequese cedificagio, ou de exibigvio espectacular de virtuosismos Litios ¢ conceptuais, era também um local de luta ideol6; Dai que, em determinadas conjunturas histéricas, alguns ser- 's fossem publicados e divulgados como meios de pers sio © propaganda dos drgaos de poder. I o caso das varias edigdes soltas de sermbes de Vieira, sobretudo entre 1642 1650, sermées esses que veiculam a politica real de entio. Também mio € de estranhar que no Kexico dos sermoes de Vieira 0 vocabuldrio ligado ao campo semantico da guerra ccupe o primeiro lugar em frequé © voca. bulitio da navegagio e da pesca), segundo a descrigao estilis: tica de R. Cantel”. Pode relacionar-se com 0 ensino pritica dos jesuitas de entio a distribuigdio nos sermoes de Vieira, com um dose: mento variavel, das trés orientagdes fundamentals que a Com- ia & sua intery histériea: a politica, a ficante © missioniria, ea pedagdgivo-literiria, todas elas ‘a0 servigo de uma cada ver maior confirmagio do importante lugar da Companhia nas instituigdes. Se repararmos na bio- grafia de Vieira & Feil nela verificarmos estas tendéneias ao ° CE. Les sermons de Vieira, 1." ya longo de toda a sua vida, nele reunidas possivelmente num tinico ideal, visionério, para o qual concorriam unanimemente: ‘0 de um império eristdo catédtico, de dominio jesuitico-papal, ‘com umn regente que fosse um soberano portugues, coincidindo portanto com o inpério cotoni independ ¢ fortalecido, Essas tendéncias encontram-se geralmente mis- turadas. Assim, 0 apelo & moralizagiio dos costumes dos colo- nos do Maranhio, no S. de Santo Anténio, & a0 mesmo tempo uta politica pelo dominio sobre os indigenas. Também a eri- mplacdvel feita aos pregadores gongdricos, no 5 xxésima, & 20 mesmo tempo luta pela superioridade ¢ influencia oratdria de Anténio Vieira, um dos Jesuitas, sobre outros pregadores régios como 0s Dominicanos, © uma reflexio tcdrico-lterdria sobre as regras. de um género — 0 sermao. ‘A dimensio metalinguistica ¢ alids frequente nos sermées do P. Anténio ctica, conseiéneia lit de que © conhecimento € a correcta uilizago do saber retérico eram poderoso instrumento dle intervensato religiosa e politica. 24 4. Teorizagao retori 1 ¢ desempenho literdrio Tentemos aprofundar um pouco mais aquilo que diz. res- peito & actividade mais especificamente literdria, neste caso ‘aos problemas da pritica parenética e da sua teorizagio reté- a, assim como os da escrita dita «culta» ¢ do barroco «1 eral. HL. A Retérica no S. da Sexagésima ALém de ter ensinado Retérica em Olinda, sabemos pelo prologo ao «Leitor», escrito por Vieira para a 1! edigio con pleta dos Sermdes, que os problemas ligados ao modus faciendi da pregagio constituiam para si um objecto de refle- xilo tedrica e pritica: «Se chegar a receber a iiltima forma uum Livro, que tenho ideado com titulo de Pregador, ¢ Ouvinte Cristo, nele vers as regras, nao sei se da arte, se do génio, que me guiaram por este novo caminho. Entretanto se quis res saber as causas, por que me apartei do mais seguido, © nario, no Sermiao de Semen est verbum Dei as ach 0 qual por isso se pde em primeiro lugar, como prélogo dos. demais.» ", A. Pinto de Castro " seguinda o conselho de Vieira de cobre na sua propria estrutura e comtetido manifestos des sermao, 0 da Sexagésina, a teoria de Vieira sobre a oratoria sacra e a primeira exposigdo do «método portugues de pregary, Aliis nao é s6 neste serméio que podemos encontrar refle- axes metalinguisticas sobre a agramdtican da pregagio, sobre 4 lingua, sobre os signos ou a metéfora, mas noutros sermoes clas aparecem apenas de uma forma fragmentiria, ocasional € no sistemtica, 0 que aqui se ndo verifica Nao é por acaso que Vieira colocou este sermao a abrir a edigtio princeps, como uma espécie de manifesto ou de arte ° Sermoes, WF paris, Lishoa, 1679, «Leitorn "Ch op cit, sap Mh poética, onde se encontraria exposta a razdo de ser da forma dada a toda a criagdo oratéria do autor, espalhada por quinze volumes, Do ponto de vista didgctico, toda essa producio poderia passar a funcionar como uma exemplificagao, uma ilustragao abundante do modelo delineado no primeito ser- mio, o da Sexagésinta. B, de facto, os sermées de Vieira pas- saram a ser utilizados no ensino, cumprindo-se assim um dos, objectivos dos Jesuitas ao publicarem essa obra com- event pleta, ‘Othemos mais de perto o sermio em causa, No cap. IV Vieira enumera cinco «cireunstinci a Cig cia, a Matéria, 0 Estilo, a Vor», € depois distribui cada uma dessas acircunstancias» pelos eapitulos seguintes: no LV trata da pessoa, no V do estilo, no VI da no VIL da ign: cia, no VII da voz. Estas partes correspondem em certa medida as tradicionais divis6es dos tratados de ret6rica: a Invengao © « Disposigdo integravam a matéria e sua divisito, © estilo dizia respeito a Elocugdo, © a Pronunciagdo inelui a voz. Por outro lado, no cap. VI Vieira expe as tegras da Dis- posico do sermao, as quais, segundo A. Pinto de Castro, sa as. do «método portugues»: «Hd de tomar o pregador tit s6 matéria: ha-de defini-la; para que se conheya: hit de dividicha; para que se distinga: I de provi-ta com a Escritura: hii de declari-la com a raziio, hit de confirmé-la com 0 exemple, hi de amplificé-la com as causas, com os efeitos, com as cireun- Lancias, com as convenigncias, que se hilo de seguir; com os inconvenientes, que se des Ind de responder as dtvi- das, hd de satisfazer as dificuldades: ha de impugnar, refutar com toda a forga da eloquéncia os argumentos contritios: ¢ depois disto hii de colher, ha de apertar, ha de coneluir, Seriam estas as re desse «métodon: o tema (em latim), a 4 prova ou confirmagéio com os textos turas, ou Seja, © «conceito predic amplifica- 0 com recurso aos lugares-comuns, & confutagao e, por fim, 4 peroragao, local onde se deveria colocar a conchusio ¢ insis tir na persuasio, tes constitutis vel», 6 Aqui se encontram também as marcas deixadas pela formagio retérica de Vieira: as autoridades onde pretende aizar 9 seu método silo os tratadistas classicos, resumidos nos manuais de retdrica usados entdo no ensino — Aristéte- les, Quimtiliano, Tiilio (Cicero) —assim como os Padres da Igreja 8. Basilio, S. Cipriano, etc., que constituem o mais fre: quente intertexto dos seus sermdes, Verifica-se ainda neste sermao a divisiio Pregador/Ouvinte, pois se nos capitulos centrais se fala do primeiro, no III ¢ no X fala-se do segundo. E ‘Jo coincide portanto com a do trabalho de retérica eclesidstica que Vieira nunca esc veu, mas de que dé noticia no prélogo ao «Leitor acima citado. m_¢ Natureza 4.2. Ling Também passa por este sermao a sempre retomada discus- so estética sobre a correlagiio de forgas na obra de arte, neste caso na eloquénci entre 0 trabalho, ou © artificio, & a Natureza, 0 acaso, espontaneidade (ef. cap. V). Vieira parece mostrar-se favordvel a um peso maior da anatureza», ao estilo cmnuito naturals, contra a «arte» ou attificio, a afectagio, Nao interessa pensarmos na coeréncia ou incoeréncia entre a teo- ria estética aqui exposta ¢ a propria pritica de escrita de Vi € patente nos sermées um intenso trabalho textual de superfi- cie de tal modo que eles tém servido de inesgotivel fonte para tunalises estilisticas ', Interessa antes reflectir sobre a concep- ao de linguagem que sustém essa incoeréncia, A dupla metéfora do «Céu semeado de estrelas» equiva lente ao sermao semeado de palavras pode ajudar a aprofun: dar esta questiio. Segundo Vieira as estrelas teriam uma disposigdo prépria, uma Gorden, uma charmonian: «mas ordem que faz influéncia, nao é ordem que faga lavorn, nado um axadrez» forgado. Parece pois que 0 trabalho («lavor) sobre as palavras destrdi a organizagiio harménica que elas em si prdprias naturalmente possuem, por « ncian, ow seja, "Va, Bibliogratia sobre Vi 27

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