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A Teoria SOcIO-INTERACIONISTA DE MIKHAIL BAKHTIN E Suas ImpLicagdes Para a AvatiagAo Epucacional, Livia Suassuna (UFPE) Néo hi uma palavra que seja a primeira ou a tiltima, ¢ nao hd limites para 0 contexto dialégico (este se perde num passado ilimitado e num futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passa- dos, aqueles que nasceram do didlogo com os séculos passados, nunca estio estabilizados (encerrados, acabados de uma vez, por todas). Sempre se modificarao (renovando-se) no desenrolar do didlogo subseqiiente, futuro. Em cada um dos pontos do diilo- go que se desenrola, existe uma multiplicidade inumeravel, ili- mitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado ponto, no desenrolar do didlogo, ao sabor de sua evolugao, cles seraio rememorados e renascerio numa forma renovada (num contex- to novo). Nao ha nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejara um dia seu renascimento. (Mikhail Bakhtin) 1, A AvaLtacao EDucacionaL — ALGUMAS QUESTOES Ao longo da década passada, comegaram a ganhar corpo, em todo o pais, os debates acerca da qualidade do ensino e de suas formas de controle, sobretudo em se tratando de redes puiblicas. Con- solidaram-se, assim, diferentes programas e polfticas de avaliagio de escolas e/ou redes de ensino, que vieram se somar tradicional ava- liacdo da aprendizagem, quase sempre centrada no desempenho indi- vidual do aluno. Muitos estudos contempordneos no campo da educagao tém focalizado essas priticas avaliativas que se dao tanto dentro quanto fora da sala de aula. Na verdade, o tema da avaliagao ¢ seus resulta- dos se enquadra numa discussfio mais ampla, precisamente aquela que problematiza os paradigmas clissicos da educagio ¢ tenta rever + eee 70 Livia Suassuna verdades iluministas que sempre nos pareceram trangiiilas ¢ natu- rais, como as do sujeito fundante, da razdo transcendental ¢ do ho- mem natural ¢ universal (VEIGA-NETO, 1994). Isso porque a ciéncia classica, a despeito de seus notaveis avangos e descobertas, ndo impediu, por exemplo, o fendmeno do fracasso escolar, expresso em altas taxas de evasiio e repeténcia, so- bretudo na escola ptiblica brasileira. Historicamente, alids, a avalia- cao tem funcionado como mecanismo legitimador desse fracasso: seleciona, de modo unilateral e coercitivo, os “melhores” alunos e exclui, por extensao, aqueles considerados “inaptos”, naturalizando 0 processo de exclusio social. DEACON e PARKER (1994), remetendo as idéias de Michel Foucault expostas em Vigiar e punir, mostram o caréter disciplinador do exame. Este funcionaria como uma espécie de ins- trumento pelo qual “se sujeita aquele que & percebido como objeto ¢ se objetifica aquele que é sujeitado”. Os autores também dizem que 0 exame, com seus mecanismos associados de julgamento e classi fo, determina uma padronizagio dos resultados, minimizando as caracteristicas particulares dos sujeitos sob observagio ou anilise. SARMENTO (1997), em estudo sobre as praticas avaliativas de trés escolas diferentes, pode observar, a despeito de certas particularidades, pontos comuns entre elas. Desses pontos, des- tacamos alguns que nos pareceram relevantes: ica- a) a avaliago constitui-se num “ritual impresso na rotina dos alunos”: as atividades, previamente estabelecidas pelas profes- (0 distribufdas no tempo escolar de modo invaridvel; soras, b) a corregtio das tarefas é feita de forma mecfnica, sem retorno para o aluno quanto ao tipo de erro que ele tenha cometido; c) 0 erro é visto como responsabilidade do aluno e é siste- maticamente atribufdo A falta de atengi d) nao hé preocupacdo com os interesses, motivagdes ¢ di- ficuldades dos alunos; as tarefas so propostas ou interrompidas de modo brusco, sem critério aparente; e) as tarefas so apresentadas como um dever a cumprir, sem diélogos ou questionamentos e t8m o papel de manter as crian- gas ocupadas durante todo o tempo; ‘hail Bakhtin ¢ suas implicagdes.... 71 f) so constantes as ameagas de castigo ou privagdo, a ava- liagdo, nesse sentido, funciona como um recurso para manter a or- dem, na medida em que se explicita constantemente a relagio entre elae a possibilidade de aprovagdo ou reprovacao do aluno; g) as professoras valorizam aspectos secundarios do desem- penho dos alunos, tais como letra bonita, caderno limpo, capricho... ete.; h) as provas so 0 instrumento preferencial de avaliagio enfatiza-se a nota como um dado em si mesmo; i) nos exames, os alunos devem repetir 0 que foi ensinado, restando pouco ou quase nenhum espago para a criatividade; j) a avaliagdo 6 encarada como uma atividade rotineira ¢ burocratica e néio como parte integrante ou necessidade intrinseca do processo ensino-aprendizagem Sarmento, tendo-se utilizado de diversos materiais de and- lise — entre eles regimentos das escolas ¢ depoimentos de professoras, diretoras e supervisoras —, constatou um significativo desnivel entre a pratica avaliativa e os discursos sobre a avaliagdio. Com efeito, embora nestes se fale da importdncia do desenvolvimento cognitivo do aluno, naquela a énfase recai sobre 0 seu comportamento ¢ conduta. Na conclusio do trabalho, a autora diz que as praticas ob- servadas ilustravam uma avaliagio repetitiva, acritica, fragmentaria, classificat6ria, disciplinar, que tem servido ao controle social do cor- po discente (via poder de ameaca), sem que sejam consideradas as rafzes sociais do fracasso escolar’. Vejamos agora como essas questdes se colocam no nosso campo especifico de investigagao, que é 0 ensino de lingua materna Podemos dizer que a avaliagdo nao se configura, efetivamente, como um processo dialégico, reduzindo-se, muitas vezes, a uma mera afe- rigdo do conhecimento metalingiifstico acabado (nomenclaturas e clas- " Salientamos, todavia, que as conclusGes da autora nao param ai. Ela tece, em seguida, consideragSes importantes sobre a relago educ x sociedade, ¢ indica alguns caminhos para a transformagdo da pratica da avaliagdo, No momento, nfo aprofundaremos essa discus 72. Livia Suassuna sificagdes), ou de verificagao de erros presentes na superficie textual (como 0s de ortografia, por exemplo). Esse procedimento remonta & propria origem do ensino de portugués, que sempre foi pautado nas graméticas normativas tradi- cionais, nas quais a lingua é descrita como um cédigo estitico e aca- bado, exterior aos sujeitos ¢ descolado dos contextos de uso (dai por que muitos dos exemplos compilados nilo correspondem a produgao lingiifstica efetiva). Partindo da conceituagao da gramatica como “a arte de bem falar e escrever”, os graméticos sempre estiveram preocupados em estabelecer um modelo de uso da lingua. Com poucas variacées, os compéndios pedagégicos, em geral, obedecem a uma organizagio padronizada: conceitos e regras de bom uso, seguidos de exemplos (retirados, via de regra, da literatura) e exercicios de identificagio dos elementos gramaticais e corregao de frases. Embora nao possamos negar a riqueza de grande parte das descrigées gramaticais cléssicas, 0 fato é que as graméticas (¢m mui- tos limites, especialmente se levarmos em considerago as implica- Ses, para o ensino, de sua concepgao de lingua enquanto cdigo. Os alunos passam a crer que: ~ a lingua é apenas aquela modalidade descrita na graméti - a Ifngua é um conjunto de palavras e frases descon- textualizadas: 36 se estuda a Iingua escrit qualquer uso diferente do prescrito é errado; saber a lingua é saber a nomenclatura com que se descreve a lingua. Dentro desse quadro, ganhou forga (na escola, principal- mente) a dicotomia “certo x errado”. O ensino de portugués se con- centra no estabelecimento de formas lingiifsticas ideais, modelares, bem como na memorizagao da metalinguagem gramatical e, nessa perspectiva, a avaliagio da aprendizagem se reduz a verificagao da correcio lingiifstica como um conhecimento-em-si, ou da corregao com que se emprega a nomenelatura em exaustivos exerefcios de clas sificagao. A teoria sécio-interacionista de Mikhail Bakhtin @ suas implicagoes Nosso propésito, no presente estudo, é problematizar a pra- tica tradicional da avaliagio no ambito do ensino da lingua portugue- sa, tomando-a como uma agio discursiva multifacetada, Acreditamos que uma concep¢o ampliada de avaliagZo seria benéfica em dois niveis: a) institucional — na medida em que ela funciona como indutora de politicas educacionais, visando 4 melhoria da qualidade do ensino, 2 garantia da aprendizagem e a socializagdo dos resulta- dos do trabalho escolar; b) epistemolégico ~ na medida em que propicia uma nova abordagem do erro: ao invés de consider4-lo como uma produgao lingtifstica diferente da estabelecida nas gramdticas normativas, ou mesmo como indice de fracasso do ensino e da aprendizagem da lei- tura/escrita, deve-se entendé-lo como uma produgia lingiifstica re- sultante da relagio do usuario com a situagio de discurso e do seu nivel de conhecimento da lingua, gerado pelas situacdes de ensino e manifestado na forma de um conjunto de hipéteses (que podem ser inadequadas, incompletas, provis6rias... etc.) O autor em cujo pensamento nos baseamos para a reconceptualizagao da avaliagao é Mikhail Bakhtin. No préximo item deste trabalho, vamos expor, de modo sinstico, algumas de suas idéi- as sobre a linguagem que tiveram grande repercussao nos estudos sobre a educagiio em geral e sobre a avaliagaio em particular 2. MIKHAIL BAKHTIN E 0 SOCIO-INTERACIONISMO Na obra “Marxismo e filosofia da linguagem”, Mikhail Bakhtin aponta os limites dos estudos classicos da linguagem, dividi- dos, segundo ele, em duas grandes tendéncias: o subjetivismo idealis- ta e 0 objetivismo abstrato. A primeira tendéncia tomaria o ato de fala como resultado da criagao individual, mera expressao de uma subjetividade dada a priori, e a lingua como um produto acabado; de 2 Nesse sentido, a identificagdo / interpretagdo do erro permite nao apenas compreender a trajet6ria cognitiva do aluno e as necessidades de aprendizagem daf decorrentes, como também, e paralelamente, fundamentar a ago do professor. 74 Livia Suassuna acordo com a segunda orientagiio, o centro organizador de tades os fatos da lingua seria o sistema lingiifstico, caracterizado por ser tini- co para todos os individuos, por sua independéncia em relagio aos atos individuais de fala, por sua estabilidade ¢ a-historicidade. Para © autor, nenhuma dessas tendéncias teria dado conta da ideolo; da dialogicidade da pratica lingiiistica (BAKHTIN, 1986) Bakhtin concebia a linguagem como atividade, pratica so- cial, situada em contextos comunicativos / culturais concretos. As- sim, a fala seria socialmente orientada e cada enunciagao deveria ser tomada como um elo dé uma cadeia ininterrupta de atos de fala. Vale destacar que, para Bakhtin, os diferentes contextos de fala nao sao justapostos, mas atravessados por conflitos ideolégicos, na medida mesma em que a enunciacfio é de natureza social. Fle afirmava que a interacfio social é a realidade fundamental da lingua (idem, ibidem). A lingua enquanto sistema de formas que remetem a uma norma nao passa de uma abstraco. Os signos, na verdade, siio vari- Aveis e flexiveis; é justamente 0 contexto social que lhes confere sen- tido. Os enunciados significam nao por uma mera conformidade a norma, mas por sua insergao em situagdes sociais concretas. Essa insergdo social do signo lingiiistico faz dele um elemento carregado de sentido ideoldgico, uma vez. que o signo, ao refletir a realidade, reflete, juntamente com ela, uma visdo socialmente determinada des- sa realidade (FREITAS, 1996). Portanto, a palavra €, ao mesmo tem- po, portadora de e sujeita a avaliagdes sociais e juizos de valor. A natureza social do signo também leva A concepgiio dos enunciados como objetos culturais e histéricos. Cada texto, entao, € produto do didlogo entre os muitos outros textos que circulam no mundo da cultura (BARROS, 1999). Os elementos simbdlicos esto sempre em relag&io uns com os outros e com os dados do proprio contexto em que 0 texto é produzido, numa espécie de teia infinita e ininterrupta de significagdes. Daf 0 destaque dado A nogdo de discur- so, que envolve fatores estritamente linglifsticos, tanto quanto aque- Jes mais ligados a enunciagao (proceso de produgao do discurso). A teoria bakhtiniana toma a linguagem como processo, in- corporando a sua exterioridade constitutiva. Assim, compreender 0 funcionamento da linguagem como fenémeno social / cultural obri- @ suas implicagée: Ateoria sécio-interacionista de Mikhail Bakt ga-nos a considerar o papel do contexto extraverbal na sua estruturagao. De acordo com Bakhtin, 0 contexto extraverbal com- porta a) a extensiio espacial comum aos interlocutores; b)o conhecimento ¢ a compreensiio comum da situagao existente entre os interlocutores: c) aavaliagio comum dessa situacao. Ocontexto extraverbal assim entendido sa mecdnica do enunciado, mas parte constitutiva essencial & estru- tura de sua significagao (BRAIT, 1999). Um outro conceito de grande relevancia dentro do pensa- mento de Bakhtin € 0 de dialogismo, considerado pelo autor como caracterfstica essencial da linguagem, principio constitutivo do dis- curso e condigéio do seu sentido. A fala incorpora e representa os discursos de outros; por outro lado, pressupde e implica a réplica, a contrapalavra. £ dialogicamente que se produz ¢ se compreende 0 sentido, Desse modo, a intertextualidade (o cruzamento de textos que se remetem uns aos outros num dialogismo inconcluso) nao é uma propriedade derivada do discurso, mas uma dimensao fundante, da qual o texto deriva (BARROS, 1999). O locutor do discurso pertence a uma comunidade lingii tica definida, mas nao recebe dela a lingua como instrumento acaba- do, pronto para ser usado. Ele penetra numa corrente de comunicagaio verbal; por isso, ndo temos, no universo da linguagem, um sujeito centrado, individual, mas vozes sociais que se cruzam, negam, afir- mam, perpassam, retomam... indefinidamente. O sujeito da lingua- gem, longe de ser o falante-ouvinte ideal dos modelos formalistas da lingiifstica, constitui-se heterogeneamente, desloca-se permanentemen- te no contexto enunciativo, formula sentidos interdiscursivamente. O eu $6 existe na relagio como tu, a partir do didlogo com os outros eus. Quando, nas diversas situagdes enunciativas, o eu formula seu discurso, realiza operagées de selegiio determinadas por jufzos de valor, pela imagem e pela palavra do outro. As palavras dos outros tecem o discurso individual. Do mesmo modo, 0 interlocutor, ao re- ceber 0 discurso do locutor, assume diante dele alguma posigao, ela- 76 Livia Suassuna bora juizos de valor para compreender a palavra do outro, o que faz da compreensao também uma ago dialdgica. A consciéncia do sujeito da linguagem ~ seja locutor, seja interlocutor — comega a operar na medida em que ele se inscreve na cadeia discursiva. Daf Bakhtin sustentar a idéia da alteridade como condigiio da identidade: os outros constituem dialogicamente 0 eu; a propria palavra é também a palavra dos outros. Locutor ¢ interlocutor, seres de linguagem, dotados de uma consciéncia ativa e responsiva, constituem-se exatamente na interagi social, em meio a uma rede complexa de relagdes sociais; niio so, pois, individuos isolados que apenas atualizam um sistema abstrato de regras ou expressam um contetido interior. Locutor e interlocutor sao individuos socialmente organizados, constitu{dos ¢ inseridos em situagées histéricas dadas (FARACO, 1996). 0 uso da linguagem implica a existéncia desses sujeitos con- cretos, dotados de emogGes, intengoes, ideologias ¢ vivéncias. Isso faz com que o discurso seja determinado, a um s6 tem- po, pelo fato de que procede de alguém ¢ vai para alguém. A significagio, na verdade, constréi-se na e pela enunciagao, correspondendo a um processo de permanente negoci de sentidos. a relacio constitutiva entre locutor e interlocutor € contrapartida da dupla face da palavra; esta 6 .. determinada tanto pelo fato de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitu justamente o produto da interacdo do locutor e do ouvinte. Toda palavea serve de expresso a wm em relago ao outro. Através da palavra, defino-me em relagfo a0 outro, isto é, em dltima anflise, em relagao a coletividade (...) A palavra € 0 territ6rio comum do locutor e do interlocutor. (BAKHTIN, 1986, p. 113). Vé-se, aqui, 0 papel que Bakhtin atribufa ao outro na cons- truigao do sentido, jd que a palavra € fungao da pessoa do interlocutor. A twalizagio do signo na enunciagio € determinada pelas Jo, como ja se viu, é produto da intera A teoria s6cio-interacionista de Mikhail Bakhtin e suas implicagdes..._ 7 de sujeitos socialmente organizados. O centro organizador da enunciagao est situado, portanto, no meio social que envolve os in- divfduos e nao nos individuos ou no sistema lingiifstico em si mes- mos. No conjunto das reflexdes de Bakhtin sobre a linguagem, podemos encontrar ainda idéias muito férteis acerca da questao da consciéncia. Também na discussao acerca desse tema, encontramos a orga do social. Os signos funcionariam como elementos mediado- res da relagdo homem-mundo e seriam, dessa forma, 0 material da consciéncia. Como a palavra s6 emerge no terreno interindividual, sua significagdo se produz na dinamica mesma da interlocugao. A expressdo do individuo — socialmente dada — exerce efeito sobre a atividade mental, estruturando a vida interior (BAKHTIN, 1986). A atividade mental € concebida por Bakhtin como um terri- t6rio social. A consciéncia se produz no processo de assimilagao da experiéncia e da palavra alheia, através da comunicagao; nao hd sig- no interno da consciéncia que nao tenha sido engendrado socialmente (FREITAS, 1996). Numa visio avangada para seu tempo, Bakhtin sustentava que nao é a atividade mental que organiza a expressdo, mas, ao contrdrio, é a expressiio que organiza a atividade mental, que modela e determina sua orientagiio, a tal ponto que o grau de consci- éncia, clareza ¢ acabamento formal da atividade mental é diretamen- te proporcional ao seu grau de orientago social (BAKHTIN, 1986). No ambito do ensino de portugués, adotar a concepgiio bakhtiniana de lingua enquanto discurso, interag’o, pratica sécio- historica significa fazer um deslocamento da regra absolutizada para a dindmica do funcionamento da lingua no seio da sociedade e na mente dos individuos. Esse deslocamento reorienta a visdo sobre 0 processo de aprendizagem: os sujeitos aprendem nao porque previa- mente lhes sdo mostrados modelos e regras de uma lingua pronta, mas porque usam a lingua em contextos hist6ricos concretos, como resultado de suas necessidades comunicativas (¢ quanto mais expan- didas e diversificadas essas situagdes de uso, mais conhecimentos lingiifsticos eles constroem), Por extensdo, se se deseja que a avalia- Go ultrapasse a linearidade, funcionando como um mecanismo efetivo 78 Livia Suassuna de ampliagao e garantia da aprendizagem, € necessério que também ela seja concebida e praticada como discurso / interacio. 3. A AVALIAGAo Como PRATICA DIALOGICA Neste altimo item, teceremos consideragées sobre as impli- cagées do pensamento de Mikhail Bakhtin para a avaliac&o escolar, ndo sem antes discutir algo acerca do sujeito da linguagem / da apren- dizagem. Parece-nos correto reafirmar como valido, no interior do processo de ensino de lingua, 0 postulado da heterogeneidade, As- sim, temos sujeitos em permanente deslocamento, tecendo, com pala- vras suas € outras, o seu discurso, A intersecgdo de vozes significa que o lugar de onde o su- jeito fala é também constitufdo de forma heterogénea: os alunos nao escolhem de modo totalmente livre o que dizer dentro da escola; an- tes, suas posig6es sdio desenhadas por outras falas, que siio, por sua vez, parte de sua meméria. Por isso se pode afirmar que qualquer discurso resulta de um trabalho sobre outros discursos, que a pala- vra do enunciador é habitada por outras (MAINGUENEAU, 1997). Além do mais, as posigdes nao sao definidas estitica ¢ definitiva- mente, uma para cada sujeito. Na verdade, trata-se de lugares e posi- Ges instveis, por entre os quais 0 mesmo sujeito se move. O sujeito do discurso é ainda atravessado por identidades imagindrias e pela ideologia. No entanto, nao achamos que imagens ¢ ideologias assujeitem totalmente o sujeito. Estamos aqui, nesse as- pecto, em conformidade com a idéia de GERALDI (1995), segundo aqual o sujeito nem é fonte absoluta do sentido, nem, por outro lado, porta-voz da hegemonia discursiva de seu tempo. O mesmo autor, em outro trabalho, refletindo sobre a condigao de agente do sujeito do discurso, indaga: Como defender a existéncia de agentes, reconhecendo-se as constrigSes préprias dos processos, relagSes ¢ instrumentos de produgio disponiveis e sem os quais nao ha diferenga possivel? (1996, p. 18). E, adiante, formula uma resposta: A teoria s6cio-interacionista de Mikhail Bakhtin e suas implicagdes.... 79 “Para um projeto que queira ao mesmo tempo conhecer a repeticfio e a criagio num mesmo espaco de produgio, & crucial definir, ¢ se impossivel, desenhar ou no minimo dar- se uma teoria do sujeito. Inspirado em Bakhtin, entende-se que 0 sujeito se constitui como tal & medida que interage com 0 outros, sua consciéncia e seu conhecimento de mun- do resultam como ‘produto sempre inacabado’ deste mesmo processo no qual o sujeito internaliza a linguagem e consti- tui-se como ser social (...). Isto implica que no hé um sujei- to dado, pronto, que entra em interacdo, mas um sujeito se completando e se construindo nas suas falas ¢ nas falas dos outros.” (idem, ibidem, p. 18-19), Logo, trata-se de um sujeito disperso, que assume uma pluralidade de formas, posigdes ¢ fungdes; que, articulando discur- sos ¢ visdes de mundo, trabalha sobre e com a linguagem para cons- tituir 0 seu proprio discurso. Isso tudo nos conduz, como jé indicado, a uma outra refle- xao: aquela que se hi de fazer sobre as implicagGes da teoria dialégica para a avaliagao. Primeiramente, ela permitiria por em questdo a forma de atuacio universalizante da escola (aluno ideal, contetido fetichizado, avaliagdo padronizante), em franca contradi¢ao com o primado da heterogeneidade do discurso, da lingua, dos sentidos ¢ do proprio sujeito. Em segundo lugar, retomamos a tese bakhtiniana de que o dialogismo, a relagdo com 0 outro constitui o fundamento de toda discursividade (BAKHTIN, 1986). Avaliar, portanto, seria, antes de mais nada, dialogar com 0 texto do aluno?. Nao apenas buscando os contetidos (ou os erros e problemas) desse texto, mas posicionando- hos como o outro institufdo pela interlocugiio, buscando os sentidos construidos no intervalo entre as posigdes enunciativas. A teoria interacionista também se configura como um im- portante campo de conhecimento para a avaliacao escolar por permitir * O temo dialogar, aqui, tal como sugerido pelo proprio Bakhtin, deve ser entendido em sentido amplo, isto , nao apenas como a comunicagao em voz alta de pessoas colocadas face a face: 80 Livia Suassuna lidar com 0 processo de produgo de sentidos, e nao apenas com o seu produto; por extensao, permite ao professor fazer avaliagdes mais descritivas ¢ qualitativas das formulagées dos alunos, pela inaugura- cao de novas praticas de leitura, de novos mecanismos de escuta que Jevem em conta a relagiio entre 0 que é dito em um discurso e 0 que € dito em outro, 0 que é dito de um modo e 0 que € dito de outro; mecanismos que permitam também ver o nao-dito naquilo que é dito. Em quarto lugar, 0 interacionismo, em termos meto- dolégicos, contempla os gestos de interpretagiio postos no proceso de ensino, que tanto podem ser do aluno (em seu trabalho continuo de interpretagio e reinterpretagio do conhecimento), quanto do profes- sor (em seu trabalho de compreensio da relagio aluno-conhecimen- to). Isso porque a multiplicidade de leituras possfveis, a polissemia constitutiva do texto tém como sustentagdo a textualidade enquanto iscursiva. Outro aspecto positive dessa teoria é que 0 conceito de dis- curso contribuiu para abordagens mais amplas, ndo-redutoras, da- quiilo que sempre foi rechagado na escola, e que sempre desqualificou © reprovou o aluno (PFEIFFER, 1995). Por outro lado, podemos en- contrar também af algumas safdas para o dilema representado pela hist6riea opsigdo certo x errado; nao € por ser tomada discur- sivamente que qualquer produgao de qualquer aluno pode ser consi- derada valida, | singularidade do sujeito anda de par com stu constituigao no interior das formagoes discursivas; por- Lanto, nao nos enganemos: a inserigao da lingua e do sujeito na histé- ria implica també quais os alunos esto Ijeilos, © isso faz parte da produgao / circulag’io do conhecimento (ORLANDI, 1998a, 1998b). A contribuigao do s6cio-interacionismo para a avalia cesta também em que ele pode mostrar a escola como espaco de refle- xao ¢ de alargamento da capacidade interpretativa do sujeito, lugar fundamental para a elaboragao da experiéncia da autoria (passagem da fungio de sujeito enunciador para a de sujeito autor) na relagdio com a linguagem (ORLANDI, 1988, 1998a). Outro pressuposto a ser assumido € o da plurivaléncia do signo, pressuposto, alids, que € correlato da heterogeneidade do su- gitima, corre 1 constrigdes simbélicas A teoria sécio-interacionista de Mikhail Bakhtin @ suas implicagdes... 81 jeito (BAKHTIN, 1986). Desse modo, os signos mobilizados pelo aluno sao indicadores de seu nivel de consciéncia e conhecimento, que resulta do ininterrupto processo de interagio no qual ele internaliza a linguagem e se constitui como ser social (GERALDI, 1996). Algo semelhante é sugerido por BATISTA (1997). O autor comenta que, no modelo de escola e de ensino vigente hoje, a disper- so e a heterogeneidade do discurso tendem a ser reduzidas e homogeneizadas. Ele também destaca a natureza corretiva do ensino e sua influéncia nos resultados, uma vez que essa supervalorizagio do certo conforma a relagdo do aluno com a Iingua, levando-o a internalizar o “olhar corretivo do professor”. Diante disso, 0 autor destaca a importincia de se tentar compreender o conhecimento que s alunos constroem na sua relagéio com a linguagem e com a ativi- dade discursiva em sala de aula. Esta, por seu turno, deve ser entendida como lugar de pro- dugio / circulagao de sentidos. Caberia ao professor, entio: a) assumir-se como interlocutor dos alunos; b) encarar a fala dos alunos como resultante de visdes de mundo e saberes prévios; c) aceitar a provisoriedade e o ineditismo do discurso; intro- duzir a casualidade como categoria na produgao dos acontecimentos; d) desestabilizar automatismos jé estabelecidos em seus pro- cessos de leitura. Essas atitudes avaliativas nfo devem ser entendidas nem como receita, nem como objetificagao do professor: para além disso, elas informam, ao nosso ver, um posicionamento coerente com acon- cepgao de linguagem enquanto interagio. O espaco da sala de aula destina-se mais ao confronto e reelaboragao dos discursos af produ- Zidos € postos em circulagio, do que a um mero trabalho que permita apenas a sua emergéncia. Os textos dos alunos, ao invés de corrigidos, “higienizados” (JESUS, 1995), hao de ser expandidos, juntamente com seu conhecimento em geral, e sobre a lingua, particularmente* Com relagao a esse tiltimo aspecto, diz GERALDI (1995): * Maingueneau (1997) lembra a dualidade radical da linguagem, a um s6 82_Livia Suassuna va andlise lingiifstica a se praticar em sala de aula nao é simples corregtio gramatical de textos face a um modelo de variedade ¢ de suas convengoes: mais do que isso, ela per- mite aos sujeitos retomar suas intuigdes sobre a linguagem, aumenté-las, tornd-las conscientes e mesmo produzir, a partir delas, conhecimentos sobre a linguagem que o aluno usa e que outros usam. (p. 217) Tal procedimento exige que nds, professores, favorecamos © acesso aos (¢ a produgio dos) mais diferentes discursos, fazendo deles leituras ampliadas, redirecionando-os em fungdo de nossas re- feréncias, entre elas as profissionais, as quais implicam, obrigatoria- mente, recortes e intervencées de natureza didatica’. A escola, sugere ORLANDI (1998a), é lugar de se experimentar sentidos, de se expor 05 sujeitos as situagdes do dizer, com seus muitos efeitos As formu- lacdes “erradas” dos alunos, ao invés de nos assustarem ou causa- rem perplexidade e desalento, constituem-se em pistas e pontos de definigdo da atuagao do professor. Em suma, a aula de portugués 6 um momento de produgiio / constituigao de discursos e sujeitos, heterogéneos por definigao. E, se a escola (e, dentro dela, a avaliagio) niio é suficiente para isso, , no entanto, radicalmente necessaria. tempo integralmente formal ¢ integralmente atravessada por embates subjetivos e sociais. * Essa idéia de uma leitura ampliada também est em Maingueneau (1997): “... 0 texto nao é um estoque inerte que basta segmentar para dele extrair uma interpretacdo, mas inscreve-se em uma cena enunciativa cujos lugares de produgdo e de interpretagao estéo airavessados por antecipagdes, reconstrugdes de suas respectivas imagens, imagens estas impostas pelos limites da formagao discursiva.” (p. 9D) ail Bakhtin ¢ suas implicagoes..._ 83 REF RENCIAS BIBLIOGRAFICAS BAKHTIN, M. Esiética da criagao verbal. 2. ed. Sao Paulo: Martins Fontes, 1997. Marxismo e filosofia da linguagem. 3. ed. Sao Paulo: Hucitec, 1986. BARROS, D. L. P. Dialogismo, polifonia e enunciagao. In: BARROS. D. L. P. e FIORIN, J. L. (orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade, $40 Paulo: Editora da USP, 1999, p. 01-09. 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