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Quando j no havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu prprio sangue.

No dispondo de papel, ele escreveu no prprio corpo.


Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente.
Mia Couto

A nossa lngua comum foi construda por laos antigos, to antigos que por vezes lhes perdemos o rasto.
Mia Couto

O mar foi ontem


o que o idioma pode ser hoje,
basta vencer alguns Adamastores.
Mia Couto

dentidade
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou gro de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou plen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das rvores
Existo onde me desconheo
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperana do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto naso
(In "Raiz de Orvalho e Outros Poemas")
Mia Couto
Destino
ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
vou perdendo morada
na sbita lentido
de um destino
que me vai sendo escasso
conheo a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
agora
que mais
me poderei vencer?
Mia Couto

Horrio do Fim
morre-se nada
quando chega a vez
s um solavanco

na estrada por onde j no vamos


morre-se tudo
quando no o justo momento
e no nunca
esse momento
Mia Couto
Fui Sabendo de Mim
Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia
pedaos que saram de mim
com o mistrio de serem poucos
e valerem s quando os perdia
fui ficando
por umbrais
aqum do passo
que nunca ousei
eu vi
a rvore morta
e soube que mentia
Mia Couto
Solido
Aproximo-me da noite
o silncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por leo frio e espesso
Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solido
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mos
solto o meu delrio
ento que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranas nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou
Mas os rudos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna
Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
s rochas do tempo
Mia Couto

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