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Apreseioco goa Apresentacdo geral Omaior expoente literério do Renascimento em Portugal foi Lufs de Camées, considerado ainda hoje, € ‘sem qualquer somibra de divida, um dos grandes vultos da lingua e da literatura portuguesas. Do conjunto das suas obras, apenas uma foi publicada em vida: o longo poema épico Os Lusfadas, no qual Camées glorifica os descendentes de Luso, verdadeiros herbis, no sentido cléssico da palavra. A produgao lirica de Luis de Camées, reunida apés a sua morte sob o titulo de Rimas, ainda que nao tenha essa aura glorificadora, néo é menos representativa do periodo em que o autor viveu, nem do seu génio criativo, Espelha a influéncia que a poesia dos seus antepassados exerceu (poesia cléssica, poesia tradicional), bem como a dos seus contemporaneos (por exemplo, a poesia italiana). Para além disso, & uma poesia muito rica em termos de construgSo e de expressao de sentimentos varios, que podem ser enquadrados em diferentes temiticas. ‘Assim, analisaremosa lirica camioniana, quer nas suas formas tradicionais ~as redondilhas -, quer nas suas formas renascentistas - 0 soneto -, tendo em linha de conta os seguintes aspetos elencados no Programa: D + Contestualizagohistreo teria + Arepresentagao da amada + Arepresentagao da Natureza + Aexperiéncia amorosa ea reflexao sobre o Amor + Areflexao sobre a vida pessoal + Otema do desconcerto + O tema da mudanga + Linguagem, estilo e estrutura usd Resende, cpa do etato de Cambes do Ferna Gomes, Nota + Qcestudo da lirica cemoniana poderé ser complementado com a inforragao telativa aos Recursos Expressivos (ep.274 165 Copii Educa tesa Contetdos essenciais a. Contextualizacao histérico-literaria Qualquer texto, seja ele literério ou nao, € produzido num determinado contexto politico, econdmico-3 -social e cultural, pelo que 0 contexto de produgio influencia a criacao textual. Nesse sentido, a lca? ‘camoniana, especificamente, é condicionada quer pelo percurso biogréfico de Camées quer pela época na qual o poeta viveu. ‘Antes, porém, de apresentarmos alguns factos sobre a vida e a obra de Camées (Lisboa?, c. 1524-1580), devemos ter presente desde jé que a sua vida nao é ainda intelramente conhecida. De facto, conforme re- fere Antbal Pinto de Castro no verbete da enciclopédia Biblos dedicado ao autor, “O pouco que, com base documental segura, se conhece da sua vida tem dado lugar a uma biografia onde a lenda tomou em grande parte o lugar da histéria." Ainda assim, 0 percurso biogréfico de Luts Vaz de Camées pode ser sintetizado nos seguintes termos: + Nasceu provavelmente em Lisboa, por volta de 1524, sendo oriundo de uma familia da pequena nobreza de origem galega. + Terd estudado em Coimbra, onde tinha parentes. + Entre 1542 € 1545, teré ido para Lisboa e contactado com a corte de D. Jodo Ill, onde rapidamente genhou a fama de poeta e de bos! + Seguiu para Ceuta por volta de 1549, al permanecendo até 1551. + J4 em Lisboa, envolveu-se numa rixa com Gongalo Borges, um moso do paco, sendo por isso preso na priséo do Tronco e vindo a ser libertado por carta régia de perdio, em marco de 1552, + A24 de marco de 1552, embarcou para a Indiana armada de Fernao Alvares Cabral, + Em 1556 partiu da India para Mogambique e, em 1569, de Mogambique para Lisboa (tendo sido os amigos a pagar a sua viagem, por falta de posses suas). Em 1572, oi publicada a primeita edicao da epopeia Os Lusiadas; D. Sebastido, reia quem foi dedicada a obra, concedeu a Camdes uma tenca de 15 000 réis anuais, pagos irregularmente. Faleceu a 10 de junho de 1580, pobre e miseravelmente. Mais tarde, foram publicadas edicdes péstumas das seguintes obras: ~ Auto dos Anfitrides (1587); ~ Auto do Filocemo (1587); = Rimas (1595); = Cartas (1598); — Auto de El-Rei Seleuco (1648). 166 1. lblos- Encclopécia Verbo das Literaturas de Lingua Portuguesa, Lisboa Eitri Verbo, 1995-2005 p. 884 |4-tulsde Comes, Kinos ‘Oconhecimento da biografia de Camées é, ainda hoje, lacunar, dando, por isso, origem a especulagées ea rmitos em tomno da vida do poeta. A este propésito, Maria Vitaliana Leal de Matos tece o seguinte comentatio: D. As incertezas e lacunas desta biografia,ligadas ao cardcter dramético de alguns episédios fa- ‘mosos (reais ou ficticios): amores impossivels, amadas ilustres, desterros, a miséria, 0 criado jau mendigando de noite para o seu senhor; e a outros acontecimentos cheios de valor simbélico: 0s Lustadas salvos a nado, no naufrégio; a morte em 1580 - tudo isto proporcionou a criagdo de um ambiente lendério & roda de Camoes que se torna bandeira de um pais humilhado. Mais tarde, o Romantismo divulgou uma imagem que salienta em Camoes 0 poeta-maldito, perseguido pelo infortiinio ¢ incompreendido pelos contemporineos, desterrado e errante por ditame de um fado inexorével, chorando os desgostos amorosos e morrendo na patria abando- nado e reduzido & miséria. Nao ha diivida de que os poucos dados conhecidos e muito do contetido autobiogréfico da obra autorizam essa imagem. Mas ela esquece em Camdes outras facetas no menos verdadetras, da personalidade riquissima, complexa, paradoxal que foi a sua: 0 humanista, 0 homem do “honesto estudo” e da imensa curiosidade intelectual aberta quer & cultura mais requintada do seu tempo, quer &s coisas tais como se Ihe davam e que a arguta observacao descobria, mesmo que contradissessem os preconceitos culturais vigentes; 0 pensador que infatigavelmente vai refletindo sobre os acontecimentos - sociais, politicos, culturais, individuais... - movido por uma séfrega necessidade de compreender, de “achar razdes": graves reflexdes sobre o destino da patria; meditagdes sobre o amor, o saber, o tempo, a salvacaio... Maria Vitalin Leal de Matos, Inrodugio d Poesia de Luts de Cams Lisboa, ICE, 1980 Na perspetiva de Maria Vitalina Leal de Matos, a obra de Camdes € condicionada pelo contexto cultural em que o poeta viveu. Segundo a autora, Canes nao é apenas “o poeta-maldito, perseguido pelo infortinioe incompreendido pelos contemporéneos, desterrado e errante por ditame de um fado inexordvel’ ele é também: + ‘o humanista, o homem do ‘honesto estudo' e da imensa curiosidade intelectual’; + "0 pensador que infatigavelmente vai refletindo sobre os acontecimentos ~ sociais, politicos, culturais, individuais.... Em suma, Camées nao é alheio nem as tradicées peninsulares nem aos movimentos culturais ¢ intelec- ‘uals da época (século XVI) - nomeadamente o Renascimento e 0 Humanismo; consequentemente, a sua poesia lirica apresentara quer caracteristicas tradicionais quer caracteristicas cléssicas. Relativamente a influéncia das tradigées peninsulares, podemos dizer que Camées deu continuidade a temas recorrentes da poesia trovadoresca, em especial das cantigas de amigo e de amor, como, por exemplo, 0 amor, 0 soffimento por amor, o desprezo da mulher amada, a relacéo com a Natureza, que se identifica com 0 estado de espirito do poeta. Camées contactou também com a poesia palaciana, cujas primeiras manifestacées datam, sensiveimente, de meados do século XIV, tendo sido posteriormente reunida no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516). Tratava-se de uma poesia produzida no paco, no palécio (dai o nomel, para entreter e divert Por isso, muitas destas composig6es revelavam a mestria dos poetas em usar habilmente os recursos da lingua, quer em termos de sonoridades, quer em termos de sentido. Os temas abordados, contudo, eram muito afins da poesia trovadoresca, como o amor, o soft mento causado por ele, a saudade da amada. No entanto, manifestavam-se jé na poesia palaciana alguns { aspetos clferenciadores: por exemplo, a relagSo entre 0 eu" poético e a Natureza era mals acentuada; a [saudade estava muitas vezes associada a partida para as viagens ultramarinas, fruto da época que, entio, Ese vivia. Camées aproveitou da poesia palaciana muitas das suas estruturas estréficas e versificatorias, emotonteayenteeione 167 Capito Edvoga0 tera Quanto aos movimentos culturais e intelectuais do século XVI, a sua influéncia foi decisiva na obr camoniana, Vejamos melhor em que consistiram esses movimentos e que mudancas trouxeram, Renascimento Em tracos gerais, o Renascimento pode definir-se como um movimento cultural dos séculos XV e XVI, que marca a transig3o da Idade Média para a Idade Moderna, com repercussées 20 nivel politico, social, econémico e cultural. No caso portugués, o Renascimento surgiu apenas na segunda metade do século XVI e apresentou a particularidade de estar ligado 8 expanséo ultramarina, Arenovacdo literéria e artistica manifestou-se de diferentes formas: (Esquema elaborado com base em fms, Luls de Comes, Porto, daas de Ler, 2015) No dominio das artes plisticas e da literatura, o Renascimento é indissociavel da difusio do Humanisme ~ corrente do pensamento que substituiu 0 teocentrismo, caracteristico da Idade Média, pelo antropocen- trismo ~ e da adogo do Classicismo como movimento estético. ip Humanismo No sentido lato, Humanismo significa a valorizacio de tudo 0 que é humano e implica a exaltagao do valor do Homem, colocando-o no centro do Universo (antropocentrismo), ¢ a crenga absoluta na sta capacidade de entender 0 mundo e os outros. A semelhanga do que tinham feito os gregos € 05 romanos, generaliza-se a valorizagao de tudo quanto possa elevar a vida do homem terreno. [..] Na arte, principalmente na pintura, as figuras humanas adquirem monumentalidade, movi- mento e vida. Na literatura, é Petrarca’ quem, comovido pelas ruinas de Roma e pela recordagao das suas instituicées, cria uma nova teoria da histéria que concebe a ideia de unidade histérica. Reconhe- cendo a idade romana como uma época de esplendor e de luz, por oposigao & idade crista mar- cada pela obscuridade e pelas trevas, Petrarca procura, nos classicos, provas para fundamentar a verdade crista — inicio de uma nova idade que restaurava a luz. © Humanismo propoe, assim, 0 Homem como centro de interesse, exaltando-o e apresen- tando-o como a obra mais perfeita da Natureza (0 corpo humano, até entao tabu, converte-se em modelo organico das proporcées) ope 1. Petar (Arezzo1504 ~ Arq Petrarca,1374)— intelectual, poeta e humanist italiano. 4 ede Cortes, Ainas D Classicismo ‘Associado ao Humanismo e 20 Renascimento, 0 Classicismo ¢ uma tendéncia estética que considera os valores clissicos greco-latinos, nas artes plasticas ¢ na literatura, como modelos imitar; preconiza a nogéo das proporcdes, o gosto das composigdes equilibradas, a busca da har- monia das formas e a idealizacao da realidade. Nalliteratura, estabelece-se um rigoroso sistema de regras proprio dos varios géneros literdrios: 0 €pico,o lirico e o dramatico. Op. lt Em Portugal, 0 inicio do século XVI fol caracterizado pela exploragao dos mares e pelas descobertas e conquistas ultramarinas, que levaram ao desenvolvimento da indéstria e do comércio, a ascensao da bur- uesia comercial a0 crescimento das cidades e ao aumento da riqueza. No entanto, a situagae politica e ‘econémico-social da segunda metade do século XVI alterou-se substancialmente, sendo marcada pelos seguintes aspetos: + progressiva decadéncia e inicio da ruina econ6mica; « perda da independéncia e do dominio e comércio maritimos (devide ao custo dos transportes, a0s naufragios e as excessivas despesas gerais civis e militares); + perda de influéncia na politica europeia; crises agricolas sucessivas; endividamento externo; + ostentagdo de luxo excessivo; + aumento do ntimero de servos e escravos (oriundos da india, Africa e Brasil + monopélio da Corea e inicio do exercicio do poder absoluto; + corrupgao e perda de valores morals; + parasitismo da nobreza « crescente interferéncia do cero em assuntos politicos e implantacso mais decisiva do Tribunal do Santo Oficio (1560). (Os seguintes versos de Sé de Miranda (poeta portugués que viveu nos séculos XV-XVI) ilustram outra caracteristica do ‘Nao me temo de Castela, contexto portugues de Quinhentos ~ 0 despovoamento do donde inda guerra nao soa; reino devido a ambicdo relativamente as riquezas orientais. mas temo-me de Lisboa, que, ao cheiro desta canela, Se, em termos socioecondmicos, a segunda metade do o Reino nos despovoa. século XVI em Portugal foi marcada pelo declinio e pela disst- pacéo de riquezas,a nivel cultural foi un momento de apo- .geu, na medica em que: Si de Miranda, Obras Completas Vol. If, LUshoa, Séda Cost, 1937 «+ se cultivou a literatura de expresséo déssica, traduzindo ideais humanistas; « houve manifestacées cientificas e culturals de grande valor; « se desenvolveuo gosto pelo novo e pelo exético (terras, gentes e costumes dos “novos mundos"} «se criow um estilo arquiteténico genuinamente portugues - estilo manuelino -, caracterizado pela introdugao de elementos decorativos ligados & expansio maritima (esfera armilar, cordas, motivos ‘maritimos, como corals ealgas) i i Topicoselaboradoscombaseem Op.ct. 169 opto m-fdveatoeroa b. Linguagem, estilo e estrutura ‘A poesia lirica de Camées abrange um vasto numero de poemas em estilos e géneros diversos que: foram compilados na obra Rimas, cuja primeira edicao data de 1595. Esta poesia foi influenciada por duas tendéncias estéticas, uma de cardcter tradicional, outra de cardcter cléssico. Daf que seja possivel encon-3 ‘rar na obra lirica camoniana: + redondithas - composigdes posticas de versos de cinco ou sete silabas métricas, ou seja, composicoes redigidas segundo a medida velha; podem assumir a forma de cantigas, vilancetes, esparsas, trovas; + sonetos - composic6es novas oriundas de ItSlia (por influéncia de Petrarca),fruto da valorizacao da cultura classica que af se fez sentir jé no século XIV; recortem ao verso decassilabico (dez sflabas), a chamada medida nova. ‘A distincao entre umas composicées ¢ outras assenta em varios aspetos, como veremos. De momento, chamamos a atencdo para um aspeto formal - a contagem das silabas métricas. Chama-se escansio 3 “contagem das silabas métricas de um verso de acordo com as emissoes de voz individualmente bem distintas, assinalando-se todas as slabas até ao tiltimo acento ténico.”* Podemos, assim, dizer que, em portugues, contamse as silabas métricas até & silaba ténica da titima palavra do verso. Em funcéo disso, os versos assumem diferentes designacées, consoante o nimero de silabas métricas que os compiem Wor comencBes:méticas,p. 176). A técnica de versejar usando a redendilha menor (versos de cinco silabas) ou a redondilha maior (versos de sete sflabas) deu-se 0 nome de medida velha, por oposicao 4 medida nova, que surge com ‘composicées como o soneto € a cangao, as quais recorrem ao verso de dez silabas métricas. Camees escreveu poemas quer em medida velha quer em medida nova, Mas, entre uns e outros, para além da convengao métrica, ha outras diferencas de linguagem, estilo, estrutura e até de conteido, Vejamos algumas. Alirica tradicional ‘As composicoes escritas & maneira tradicional seguem a estrutura mais comum da poesia palaciana do Cancioneiro Geral - urn mote deservolvido em voltas ou glosas: + mote — verso ou conjunto de versos que encabegam o poemae que servem para apresentar a dela, o pensamento central que seré desenvolvido nos versos seguintes (glosa ou volta); + glosas ou voltas ~ versos que surgem na sequéncia do mote, agrupados em estrofes de dois, trés, ‘quatro ou mais versos; ao recuperar o tema explicitado no mote, a glasa pode repetir um ou mais versos do mote que, assim, funcionam como uma espécie de refrdo. A forma de ‘encadear o mote e as voltas” determinava diferentes tipos de composicbes. > 4 exrtare mais uel da poesia placian - de inspraloeastlhan,e com raizes, ao que parece, no folclore castelhano - consiste na glosa, volta (ou desenvol- vimento) de um mote colocaco & cabeca da poesia e repetivel como refrao. Conforme a maneira de encadear 0 mote eas voltas, assim se distinguiam diver- sas formas métricas: o vilaneete compée-se de um mote de dois ou trés versos e de 1 In Catlos Cela, -Diciondrio de Termos Liters (wwedelcom, pt; consultado em 20-06-2015 4 us de camses, ine uma volta de sete [..; a eamtiga, de tom mals grave e convencional, consta de um ‘mote de quatro ou cinco versos e de uma glosa de oito, nove ou dez [..J; outro gé- nero corrente oferece, em lugar de uma s6 volta (ou uma s6 estrofe de glosa), vias voltas, no final das quais se repete o mote com mais ou menos variantes. [...] Sao cultivados outros géneros mais livres, como a esparsa, composigao de uma estrofe 36, que varia entre oito, nove e dez versos, ¢ as composigées sem ntimero determinado de estrofes, Este conjunto de formas versificatérias, com preferéncia pela redondilha, constitui aquilo que no século XVI se chamaré a “medida velha, contraposta ao “estilo novo’; de inspiracao italiana, que vird a ser consagrado entre 16s por Sé de Miranda. Anténio José Saraiva e Oscar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa 17° edicao, Porto, Porto Editor, 2001, p. 160 (adaptedo e com supressdes;destaques nostes) Assim, entre as varias composig6es camonianas em redondilha, podemos encontrar: + cantigas ~ composicées geralmente com um mote de quatro ou cinco versos e glosas (uma ou mais. estrofes) de oito, nove ou dez versos; + vilancetes - composicées geralmente com um mote de dois ou trés versos e voltas (uma ou mais es- trofes) de sete versos; + esparsas - composicdes sem mote, de apenas uma estrofe, que pode apresentar oito, nove, dez ou mais versos; + trovas ou endechas - composicdes sem mote, com um niimero varidvel de estrofes (normalmente de quatro ou oito versos). ‘Convém ainda referir que o mote podia ser da autoria de Camées ou no, jé que era frequente o mesmo mote ser usado por varios poetas ou até pelo mesmo poeta, que o glosava de diferentes formas. Por essa razao, nao séo de estranhar as indicagbes de “mote alheio’, “mote seu’, que acompanham, muitas vezes, os poemas camonianos. ‘Ao nivel temtico, a vertente tradicional tende a desenvolver temas jé abordados nos cancioneiros da poesia dos trovadores da Idade Média e da poesia palaciana do século XV - desde a apresentacao de qua- dros da vida diéria a0 rettato feminino, passando pela expressdo de sentimentos como o amor, a saudade, © sofrimento (por amor), a solido ou 0 desengano, e por uma atitude de critica social, associada, por ‘exemplo, ao desconcerto do mundo. Alguns poemas manifestam uma Intencao Iudica, apresentando breves episédios cheios de humor e até satiricos. Em termos discursivos,aliica influenciada pela tradicéo peninsular tende a ser abordada por meio de ‘um tom jocoso e de um discurso silogistico, De facto, Camdes revela o seu engenho através de jogos de palavras, trocadilhos, bem como de recursos expressivos, como imagens, hipérboles, paradoxos. O proprio verso curto favorecia esta manipulacdo da linguagem e 0 encadeamento de conceitos. , _ Acomposicao que se segue é um exemplo de um poema de circunstancia, isto é, um poema que apre- senta uma situacdo particular, mas comum: o facto de as juras de amor das mulheres ndo serem crediveis. 2 (’mas em jura de mulher /quem crerd, se elas ndo crém?. O sujeito postico reflete sobre esta circunstancia $ de forma humoristica ea partir de um mote de trés versos (terceto), desenwolvido em duas voltas de sete $ versos (sétima)’.Trata-se, pols, de um vilancete” em redondilha malor (versos de sete silabas métricas). 1 Consukarp. 176. 2 Para a cassicacio das composicBes posticas em medida vlha,seguimos 8s defnigBes propastas por Anténio José Saraiva e Oscar Lopes, op cl, p 160, 1 172 Copii -Educoo ties Mote Nao sei se me engana Helena, se Maria, se Joana; no sei qual delas me engana. Voltas Gadiz queme querbem, outta jura que mo quer; ‘mas em jura de mulher quem crerd, se elas nao crém? Nao posso nao crer a Helena, @ Maria, nem Joana; ‘mas nao sei qual mais m'engana. Ua faz-me juramentos que s6 meu amor estima; a outra diz.quese fina’; Joana que bebe os ventos*. Se cuido que mente Helena, também mintiré Joana; ‘mas quem mente nio engana. 1a de Camoes Likes Completa I, pretitoe nates ‘deMarla de Lourdes Saraiva, Lisboa, Imprense Nacional “Casa da Moeda, 1985, 9.47 1. Que morre de amor: 2. Que morre de amores por mim Nao / sei /se/ meen /ga/na He/le/ na, Deseo dene Sanh d ait se/Ma/ri/a/,se/Jo/a/na; 1a gh ap eee aly no/sei/ qual / de/ las / me en / ga / na. de Bier gh .43 go sgh a7 Vejamos um outro exemplo de uma composicao em medida velha, © poema “Verdes sdo 0s campos” é constituido por um mote de quatro versos (quadra) e por voltas de ito versos (oitavas), sendo, portanto, classificado como uma cantiga. O tema glosado € 0 dos olhos verdles, um tema abordado por Camées em varias composicdes. Nesta cantiga, 0 sujeito poético pretende mostrar que a verdura de que o gado se alimenta “ndo sao ervas, ndo / so gragas dos olhos / do meu cora- 0", ou seja, considerando que o verde dos olhos da amada se reflete nos campos onde o gado pasce, & como se o gado se alimentasse da verdura dos olhos da amada. A cantiga esta redigida em redondilha ‘menor (vers0s de cinco silabas métricas).. Mote alheio ‘Verdes sao os campos de cor do limao: gsi sao os olhos do meu coragao. ‘Voltas suas Campo, que te estendes com verdura bela; ovelhas, que nela ‘vosso pasto tendes: dervas vos mantendes que traz 0 verdo, eeu das lembrangas domeu coragao. & Ver / des / sito / 0s / cam / pos Direeaiengoreat og de / cor /do/ti/ mao: scans spot | a/sst/sto/os/0/ thos Jeez seas do/meu/co/ra/ ¢ao. 1a es aes |4- ls. decamoes, nas Gado, que paceis: co contentamento, vosso mantimento nao o entendeis. Isso que comeis nao sao ervas, nao: sao gragas dos olhos do meu coracio. 1s de Cartes - Lirica Completa I preticio nots de Maria de Lourdes Saraiva, Lisboa, Imprensa Nacional ‘Casa da Moe, 1986, p 164 A inspiragao classica Camées cultivou também o chamado “dolce stil nuovo", isto é, composigdes em decassilabo - versos de dez sflabas que podiam assumira forma de odes, éclogas, cancbes e sonetos, entre outras. D No século XIII consagrara-se em Itélia um novo tipo de verso e de composicaio poética, o chamadio ‘dolce stil nuovo! A partir de entiio impés-se o verso de dez.silabas, o decassilabo, por fim acentuado obrigatoriamente ou na 4‘e 8: silabas (verso séfico) ou na 6. (verso heroico) [..]. Sendo mais longo, admitindo maior variedade de acentos facultativos e de pausas, o decassflabo é mais flexivel, presta-se a maior ntimero de combinaces que a redondilha, e consente portanto maior liberdade ao poeta. Adapta-se a uma poesia mais individualizada, a uma maior variedade de tom e de temas. Quanto as combinagées de versos, as construgdes estréficas, Petrarca selecionow algumas jé cultivadas pelos Provengais: 0 soneto, com dois quartetos de rima geralmente abba e dois terce- tos sujeitos a combinagdes regulares de duas ou trés rimas; a cangao [..]; e outras. [..] ‘Além destas formas e géneros, os Italianos assimilaram géneros Iiricos caracteristicos das. literaturas grega e latina, como a écloga [..], a ode |. ‘Aforma nova, 0 novo estilo, corespondia alias a um novo conceito da poesia. O “poeta” quer distinguir-se do “trovador’ pretende ser mais que um simples artifice do verso. Arroga-se a voca- gio e o destino de revelar o mundo intimo do amor e de apontar o caminho glorioso por onde devem seguir, nao os homens vulgares, mas os grandes do mundo. Antnio José Saraiva e Oscar Lapes, Hist da Lteratura Portugese 17." eo, Porto, Porto Editors, 2001, pp. 243-244 (adaptado com supressoes dastaques nosss) Relativamente ao soneto, foi Francesco Petrarca (1304-1374), poeta e humanista italiano, quem o aper- feicoou € 0 transformou numa composicao postica equilibrada e perfeita, definida da seguinte forma: + soneto ~ composigao postica constituida por duas quadras dois tercetos decassilabicos ", com es- quemas rimaticos variavels (por exemplo: abba / abba /cde /cde — rima emparelhada ¢ interpolada nas quadras e interpolada nos tercetos; abab /abab /cde/ded ~rima cruzada nas quadras e nos tercetos)*. Os versos s80, como ja vimos, de dez silabas métricas, ou seja, decassilabicos, podendo ser acentuados Ena 62e 102 sflabas ou na 4¥,8.e 10. silabas. No primeiro caso, classificam-se como heroices, no segundo Ecomo saficos. 1 Pra além da vaiedsde de sonetos apresantad (aque se dé o nome de sonetoitliana),hé ainda o chamado sone inglés, constituido prtés quadrase um dsc final 2 Sobre as combinagSes derma, consultarp. 176 173 captso m Eden ter Outra caracteristica do soneto tem que ver com o desenvolvimento do tema. Considera-se que as qua- dias devem apresentar 0 assunto e desenvolvé-lo eos tercetos devem conclu. Por essa razlo, 0 assunto ¢ Costuuma ser exposto na 1.2 quadra, desenvolvide na 2 quadtae no 1.°terceto e concluido no tiltimo terceto. © final do soneto, correspondendo ao remate do assunto, deve provocar algum impacto (contendo, por? exemplo, um pensamento elevado). Quando isso se verifica, diz se que 0 soneto apresenta uma chave de ‘ouro. No entanto, nem todos os sonetos tém chave de ouro, Os sonetos camonianos abordam, entre outros temas, o do amor, associado muitas vezes aos tépicos da beleza feminina e da representacao da Natureza. A propésito deste tema, importa referir que Cares foi bastante influenciado por Petrarca e pelo seu estilo, podendo muitos dos seus poemas, sob alguns as- petos, ser considerados petrarquistas. Para percebermos melhor o que 0 petrarquismo, vejamos o texto abaixo. D Petrarqulsmo~ Movimento ites aliane que aparece no seul XV, tng ose apoge no século XVI e se prolonga até ao século XVI, influenciando toda a poesia europeia. Este movi- mento procura imitar a poesia amorosa de Petrarca, poeta que representa a transigao entre os trovadores provencais e os poetas do dolce stil nuovo e a poesia do Renascimento. 0 Petrarquismo caracteriza-se por uma retoma da temética amorosa, dos recursos estilisti- cos € do vocabulério utilizados por Petrarca. A obra que se torna referéncia da poesia lirica de Petrarca € Il Canzonibre.[..] Annivel temaitico, 0 amor 6 visto como um servigo que transporta o enamorado a um estado de elevacao, O amor pode nao s6 provocar, no joven apaixonado, o gosto na dor amorosa, como ‘também conduzi-lo a luta entre a razao ¢ 0 desejo ou & perturbacao emocional perante aamada. 0 amor pode ainda provocar uma andlise introspetiva sobretudo sobre os paradoxos do senti- mento amoroso, -nfopéia(adaptado e com supressbes conultado em 02-06-2018) Um outro aspeto importante do petrarquismo tem que ver com a caracterizacio da mulher. Nos seus Poemas, Petrarca apresenta a mulher como um ser inacessivel,intocével,reflexo de virtudes e de qualidades, como a gentileza, a sabedoria, a honestidade, a harmonia. Ela representa a perfeicSo fisica e espirtual.” Ora, em Camées, vamos encontrar este retrato idealizado da mulher, uma mulher cujo cabelo, olhos, boca, rosto nos séo apresentados em leves pinceladas, numa espécie de abstragio, pols ela nao é deste mundo, de mundo terreno. Nota-se, assim, e mais uma vez por influéncia da poesia de Petrarca, a presenca do platonismo. Segundo a doutrina filos6fica do platonismo, existem dois mundos: mundo sensivel das realidades defeituosas e efémeras e o mundo inteligivel das ideias puras e da suprema perfeicdo. O primeiro é uma sombra do segundo. Nessa perspetiva, a beleza da mulher e da Natureza so um reflexo da Suprema Beleza, da verdadeira beleza,’ Por sua vez, 0 amor pela amada é teflexo de um sentimento profundo. Ela representa aesséncia do verdadeiro amor, Estas nodes esto subjacentes em algumas composicées camonianas. ‘Mas a mulher amada pode também surgir como um ser cruel e quase demoniaco. E mesmo 0 amor idealizado, o amor-paixéo pode der lugar, por vezes, a um amor que vive de contradigdes, do sofrimento, do cansago, do remorso, do desespero até. E um “Amor fero, cruel’, um “Amor cego’ “associado com a Fortuna, 0 Fado, 0 Destino.”? 1 Seguimos de perto © que Antinio José Saraiva expie sobre Petrarcae a sua influéncia na ica camoniana na obra Lu de Camées, LUsboe, Publiagses Europa-America, 1959, p50 2 Esta breve definigdo aseia-se em Jacinto do Prado Coelho, Diciondio de Literatura, Porto, Mario igueitinhasElitor, 1994, 3 José Auguste Cardoso Bernardes, in ira Cita de Literatura, Val Humanismoe Renascimento, Lisboa Editorial Vetbo, 1999, p.413. 4 de Camées, mae D No poeta toscano (Petrarca] a representacao da amada tinica, 0 objeto mental, o ideal cons- tante e imoto, é 0 ponto de partida e 0 ponto de chegada [...]. H4 uma linha de tensao, digamos, pura e como que resguardada do mundo, alheta aos acontecimentos. © amor de Petrarca nao tem histéria, esté fora do tempo. ...] Ora, a poesia camoniana é constantemente perturbada pela interferéncia do caso, do aconte- ‘cimento, da fortuna, do tempo, isto é, do mundo empirico, da histéria [..]. Desta forma, a poesia camoniana conta uma hist6ria acidentada e dramética em que o acontecimento cru é constante- mente confrontado com 0 ideal herdado [...] Oacontecimento, 0 facto, o tempo penetram repetidamente, por vezes sob o aspeto mais cru, na poesia de Camoes. [...] Oembate do Poeta com o acontecimento reflete-se em gritos e acentos que so inteiramente desconhecidos de Petrarca. Nao sao ja meramente os suspiros e exclamagdes do amor insatis- feito, mas manifestaces de revolta desesperada e impotente[...]. Sao também manifestacdes de cansaco e sao ainda, curiosamente, expressdes de remors0[... Antéalo José Saraiva, Luis de Came, Lisboa, PublicagGes Europa-Armérica, 1959 (com supressbes © adaptado) ames nao se limitou simplesmente a seguir o modelo petrarquista. Ele superou esse modelo, isto é aproveitou-o, mas moldou-o, acrescentando muito da sua lavra, da sua experiéncia,respeitando, aids, o.con- Ceito de imitago da epoca. Para os humanistas, imitar os modelos greco-latinos nao significava copiar, mas sim recriar é precisamente ai, na diferenca, que reside a originalidade e modernidade de Camées. Analisemos 0 soneto abaixo que se enquadra na tematica do amor. No tempo que de amor viver sofa, E, se algum pouco tempo andava isento, nem sempre andava 2o remo ferrolhado; +» foi como quem co peso descansou, antes agora livre, agora atado, or tornar a cansar com mais alento. em varias flamas variamente ardia, Louvado seja Amor em meu tormento, Que ardesse num sé fogo nao queria pois para passatempo seu tomou ‘0 Céu, por que tivesse exprimentado este meu téo cansado sofrimento! que nem mudar as causas ao cuidado ‘mudanga na ventura me faria Luls de Camoes-Litiea Completa I, preficio e nots de Maria de Lourdes Saraiva, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994, . 215 Da leitura atenta desta composicéo, podemos retirar varias conclusdes: + anivel formal (estrutura) - 0s versos so de dez silabas e so acentuados com mais intensidade na 6. e nha 10,0 que quer dizer que séo decassilabos heroicos;rimam entre si segundo o esquema abba /abba /edc/ede,0 que significa que. rima é interpolada e emparelhada nas quadras e cruzada nos tercetos; + anivel temético - verificamos que na 1.* quadra 6 apresentado o tema da composicao ~ 0 sofrimento por ‘Amor;na 2? quadta 0 tema é desenvolvido — 0 sujeito poético indica em que consiste esse sofrimento ea desventura que ele raz consigo;no 1. terceto prossegue o desenvolvimento do tema—o sofrimento por ‘amor é comparado ao ato de carregar um peso; no 2° terceto é concluido o tema com chave de ouro. Relativamente ainda ao soneto, gostatiamos de salientar que tem sido um tipo de composi¢do muito util- ado a0 longo dos tempos pelos poetas, devido a sua estrutura fixa e 8 organizagao das estrofes, para transmiti- Jrem a reflexio sobre a realidade. Daf que em alguns sonetos Camées revele um discurso mais pessoal e emativo, letendo-se sobre o mundo que o rodeia, um mundo que esté em mudanca, um mundo que o surpreende € 2 desconcerta, Assim, as contradicGes entre real e ideal, espitito e natureza, mas também a melancolia ou uma § visio pessimista do mundo so vertentes que podemos reconhecer em alguns sonetos camonianos. Ws Copii cacti Lert D Métrica, rima e esquema rimatico (Os textos liticos obedecem a convenes formals especificas, ao nivel: + da estrofe agrupamento ritmico de versos que, em geral, se combinam pela rima; + da rima ~identidade ou semelhanca de sons, no interior ou no final dos versos; + da métrica - unidades silabicas contidas num verso. Convengées estréficas + Classficagdo das estrofes quanto ao miimero de versos - monéstico (verso); distico (2 versos); terceto (3 versos); quadra (4 versos); quintilha (5 versos);sextlha (6 versos);sétima ou estrofe de sete versos;oitava (8 versos); nona ou estrofe de nove versos; décima (10 versos). ‘Convengées rimaticas + Rima soante ou consoante - verifica-se a correspondéncia completa de sons. Ex.:sente /des- contente + Rima toante ou assonante -dé-se apenas a correspondéncia da vogal ténica ou das vogals a artir da vogal t6nica. Ex.: lima / bonita * Combinagoes de rlmas- ima emparelhada (os versos rimam dois a dois segundo o esquema ‘imitico aabbee);rima eruzada (os versos rimam altermadamente, segundo o esquema rimético abab);rima interpolads (0 primeiro verso rima com o quarto e assim sucessivamente, segundo ‘© esquema rimatico abba ou abca). + Verso branco - verso sem rima. Convencées métricas * Classificagao dos versos quanto & métriea (contagem até &tltima sflaba métrica) - monos- Sitabo (1 silaba métrica); dissilabo (2 silabas métricas); trisflabo (3 silabas métricas); tetrassi- {abo (4 sflabas métricas); pentass{labo ou redondilha menor (5 sflabas métricas); hexass{labo (Gsflabas métricas); heptasslabo ou redondilha maior (7sflabas métricas); octossflabo (6 labas métricas); eneassilabo (9 sflabas métricas); lecassilabo (10 silabes métricas); hendecas- sflabo (11 sflabas métricas); dodecassflabo (12 sflabas métricas), Nota: Para representar os tipos de rima num poema utilizam-se letras do allabeto. Os versos que tém amesma rima assumem a mesma letra do alfabeto. A esta representacao dé-se o nome de esquema rimatico. Fx: abba / abba / ede / ede. c. Tematicas estruturantes do lirismo camoniano Avasta producao lirica camoniana engloba varios temas, Um dos mais fecundos é, em davida,o amor. Como jé vimos, Camées revela uma concegdo de amor rica e, por vezes, contraditérla, Com efeito, se Imultos Poemas assentam claramente na doutrina neoplaténica e no petrarquismo, outros apresentam tuma concecao de amor tao diferente que pode mesmo ser considerada antineoplaténica Assocladas 20 amore & reflex sobre esse sentimento, manifestam-seouttas temticas comora repre- sentaséo da amada (expresséo de um ideal de beleza}; ou a representacao da Natureza (identificacSo da Natureza com os estados de alma do enamorado), Podemos ainda reconhecer outros temas sobre os quais 0 Poeta versou, como, por exemplo, a reflexso Sobre a vide pessoal numa atitude confessionalista 0 tema do desconcerto a desencanto, as contradicBes do mundo}; 0 tema da mudanca. Tendo em conta as influéncias que a Iica de Camées softeu, vamos agora anallsar alguns poemas que encalxam em cada uma destas tematicas, sejam eles composicées poéticas tradlcionais -redondilhas -ou composicées posticas renascentistas - soneto. 4-Luis d camees,eenas Aexperiéncia amorosa ea reflexao sobre o Amor Amor é um fogo que arde sem se ver Amor é um fogo que arde sem se ver, Género 6 ferida que doi, e nao se sente; 6um contentamento descontente, 6 dor que desatina sem doer. +Soneto ~ duas quadras e dois tercetos; ~ versos decassilabicos; + Bum nao querer mais que bem querer; = esquema rimético - abba/ abba /cdc /dcd um andar solitario entre a gente; ~ rima emparelhada e interpolada (quadtas); nunca contentar-se de contente; rima cruzada (tercetos). 6 um cuidar que ganha em se perder. Tema £ querer estar preso por vontade; ve €servir a quem vence o vencedor; + Reflexdio sobre o Amor. ter, com quem nos mata, lealdade. Assunto ‘Mas como causar pode seu favor nos coragdes humanos amizade, se tao contrdério a si é 0 mesmo Amor? + Osujeito poético tenta definiro amor, apresentando, para tal, uma série de expressbes que evidenciam a sua natureza Glossirio contraditéria. v.10 avencedor serve ovencido Luis de Garces - Lirica Completa Il, preficioenotas de Marla de Lourdes Saraiva Lisboa, IN-CM, 1994, p. 101 Desenvolvimento do tema/assunto + Apresentagdo de vérias definigSes de amor tn. F,recorrendo a uma mesma estrutura -sujeito (expresso no verso 1 e subentendido nos versos 2-11) + predicado (verbo copulativo + predicativo do sujeito);oamor aten- dendo a algumas das suas caracteristicas, é aproximado a realidades intensas como 0 fogo,aferida, a dor. + Coneluséo através de uma interrogacao retorica que chama a atengéo para o cardcter contraditério do amor (‘se td0 contrdrio a si éo mesmo Amor?”) e que serve também para o sujeito poético mostrar a sua perplexidade pelo facto de os “coragées humanos” continuarem a procurar 0 amor, mesmo sabendo que este provoca sofrimento, Linguagem e estilo + Recursos expressivos que reforcam a natureza contraditéria do amor e os seus efeitos contrérios: ~ anéfora - a repeticao da forma verbal ‘é”, do verso 2 a0 verso 11, assinala a introdugo de varias defi- nigdes, ou seja, de varias tentativas de “aprender” o que é 0 amor; ~ metafora - “é um fogo', “é frida’, “6 dor” ~ 0 amor & posto em paralelo com realidades dolorosas, evi- denciando-se desta forma o softimento que este sentimento acarreta; ~ antitese —‘contentamento descontente” a oposigéo de conceitos contrériosilustra ber a natureza do amor, ~ paradoxo - “arde sem se ver’ 461, endo se sente” - sendo a expressao possivel de uma realidade con- traditéria, é natural que encontremos paradoxos para definir 0 amor. + Circularidade do poema - 0 soneto comeca e termina com a mesma palavra, iniciada por maiiscula ~ “Amor”. ‘oque provaa dificuldade, se nao mesmo a impossibilidade, de definir este sentimento;o facto de a palavra estar com maitiscula confere ao sentimento que ela representa 0 estatuto de uma entidade (personificagao).. 7 pinto m-Edveogto Lerra Tanto de meu estado me acho incerto Tanto de meu estado me acho incerto Género literério ‘que, em vivo ardor, tremendo estou de frio; + Soneto sem causa, juntamente choro e rio; ~ duas quadras e dois tercetos; ‘o mundo todo abarco e nada aperto, — versos decadaliabiess ~ esquuema rimético - abba /abba /cde /ede; ~ rima emparelhada e interpolada (quadtas); rima interpolada (entte tercetos). Etudo quanto sinto um desconcerto; dalma um fogo me sai, da vista um agora espero, agora desconfio, agora desvario, agora acerto, Tema Estando em terra, chego ao Céu voando; num’hora acho mil anos, ¢ de jeito ‘que em mil anos nao posso achar um‘hora, + Aexperiéncia amorosa, Assunto. ‘Seme pergunta alguém porque assi ando, + Osujeito postico reflete sobre os efeitos respondo que néo sei; porém suspeito contraditérios que a contemplacao da mulher ue s6 porque vos vi, minha Senhora. ‘mada provoca nele, demonstrando, assim, ee (0 seu sofrimento amoroso. ¥.5 = descomcerto— contradic; .6~ alusdo i lgrimas 111 Jogo sobre a palavra hora que, no Verso 10, significa Lmidade de tempo eno verso 1 oportunidad favordve Op cits p.54 Desenvolvimento do tema/assunto + Descrigio do estado (“incerto") de alma do sujeito postico — incerteza do estado amoroso, insatisfacao, desconcerto tw. -m, + Identificagao da causa/origem da instabilidade emotiva e do sofrimento amoroso in. 2-4: a visio da mulher amada (0 t6pico do sofrimento por amor que advém do olhar fora jé abordado pelos poetas trovadorescos). Linguagem e estilo + Recursos expressivos e outros que realcam os sentimentos contradit6rios ea instabilidade emotiva do poeta: ~ antitese — “ardor” / ‘iio’, ‘choro" / “io, “abarco"/ “nada aperto’, “agora espero, agora descontio,/ agora desvatio, agora acerto” ~ mostra bem o “desconcerto" em que vive o sujeito poético; ~ Patadoxo ~“nunhora acho mil anos"~ 0 desejo de ver e de estar com aamada é tao forte €0 estado de per- ‘turbagdo do sujeito poético é tdo intenso que ele tem uma percegdo psicolégica e contraditéria do tempo; ~ enumeragio anaférica e paralelistica (‘agora espero, agora desconfio, /agora desvario, agora acerto”) ~ marcaa dualidade; ~ ritmo binatio (0 mundo todo abarco e nada aperto”); ~ metéfora — “d‘alma um fogo me sai, da vista um rio" ~ mais uma vez, 0 amor é aproximado a realidades intensas, neste caso, elementos da Natureza repletos de forca; ~ hipérbole ~‘ca vista {me sai] um rio’, "Estando em terra, chego ao Céu voando" - amplifica 0 sofrimento do sujeito postico; ~ apéstrofe (‘minha Senhora’) - em posicao de destaque (final do poema), remete para a noo de mu- ther inatingivel, a quem o sujeito poético presta vassalagem, Arepresentacao da amada Género literario + Vilancete = mote terceto (uma estrofe com trés versos); esquema rimatico abb (rima emparelhada); = voltas ~ sétima (estrofes de sete versos); esquema rimético addecbb /effeebb (rima interpolada e emparelhada); = redonditha maior (sete silabas métricas). Tema + Representacéo da amada. Assunto = O sujeito postico apresenta, num tom elo- {gi0s0, 0 retrato de uma mulher ~ Leonor ~ que, num ambiente campestre (“pela verdura’), vai 2 fonte (cenério do quotidiano). Desenvolvimento do tema/assunto +O tema é apresentado no mote, através do qual ficamos a conhecer 0 objeto da composicao, a figura feminina, o que faz e para onde val, e ainda dois tracos que a catacterizam:a sua formosura ea sua inseguranca; a repeticao do tltimo verso do mote, no final de cada ‘uma das voltas (como um refréo), reforga estes dois tracos de Leonor. 4- led Comins os Descalca vai pera a fonte Mote Descalga vai pera a fonte Leonor, pela verdura; vai fermosa e nao segura. Volta Leva na cabeca o pote, o testo nas maos de prata, cinta de fina escarlata, sainho de chamalote; traz a vasquinha de cote, ‘mais branca que a neve pura; vai fermosa e nao segura. Descobre a touca a garganta, cabelos de ouro otrancado, fita de cor de encarnado.. ‘Tio linda que o mundo espanta! Chove nela graca tanta que dé graca a fermosura; vai fermosa, e ndo segura. Giossrio 1.6 escarlta~tecido vermelho;v.7— sano -diinutvo te sla, expécie de capa que se vestia sobte «cms ‘hamalote~fazenda del, por vezesenretecida com sede {28 taaquinfia~a sta de todos os dias; . 12 rangada ~ Fede destinada a sequrar os cabelos. Luise Camoes Lirica Completa I, prefiio enotas de Maria de Lourdes Sarat, Lisboa, IN-CM, 198, pp. 09-04 = As voltas desenvolvem o tema, ou seja, concretizam o retrato desta figura feminina, feito de acordo com ideal de beleza renascentista/petrarquista: = pele branca ~ ‘méos de prata’s ~ cabelo loito ~ “cabelos de ouroo trancado", = beleza suprema - “Tao linda que o mundo espantat’; ~ graciosidade - “Chove nela graca tanta / que dé graca a fermosura’. Linguagem e estilo « Recursos expressivos ao servico do retrato petrarquista da figura feminina: ~ metafora ~ ‘maos de prata’, ‘cabelos de ouro o trangado" ~ a0 aproximar o tom da pele e do cabelo or, 0 brilho de dois metais preciosos, 0 sujelto poético mostra como esta mulher € especial, € Unica, tal comoa prata ¢ 0 ouro; ~ comparacao — ‘mais branca que a neve pura” - 20 comparar a cor da saia & da neve pura, saliente-se a pureza de Leonor (simbolismo da cor branca); i 4 — hipérbole ~*Tao linda que.o mundo espante!/Chovenela graca tanta /que dé gracaafermosura”- estas expressées acentuam a beleza e a graciosidade de Leonor; mais,a sua beleza ¢ tanta que é capaz de provocar sentimentos a uma realidade inanimada ("Téo linda que o mundo espanta!" ~ personificagao). 179 opie - Eduaza0 tna Género literario + Soneto — duas quadras e dois tercetos; — versos decassilébicos; = esquema rimatico - abba /abba /cde /cde; ~ rima emparelhada e interpolada (quadras); rima interpolada (entre tercetos) Tema + Representacao da amada, Assunto + Ossujeito poético descreve a mulher amada, concluindo que a sua beleza produznele um efeito alquimico e transforma o seu “pensamento’. Desenvolvimento do tema/assunto + Retrato feminino tw. ~ listagem de caracteristcas predominantemente Imorais e psicolégicas (convocadas por tracos fisicos): brandura/serenidade, piedade, bondade, docura, graciosidade, honestidade/ sinceridade, recato,timidez, modéstia, melancolia; Um mover d’olhos, brando e piadoso Um mover dolhos, brando e piadoso, sem ver de qué; um riso brando ¢ honesto, quase forcado; um doce e humilde gesto, de qualquer alegria duvidoso; ‘um despejo quieto e vergonhoso; um repouso gravissimo e modesto; iia pura bondade, manifesto indicio da alma, limpo e gracioso; ‘um encolhido ousar; da brandura; um medo sem ter culpa; um ar sereno; um longo ¢ obediente sofrimento: esta foi a celeste fermosura da minha Circe, e o magico veneno que pode transformar meu pensamento. Glossério 1.- gosto ~ rst, semblante: v5 ~despejo- desenvoltara naturalidade vergonhoso - que eausa vergonhs, modesto, 11 -sofimento~ paciénca, Luise Cums - Livia Completa I prefico enotas ‘de Maria de Lourdes Saraiv, Lisboa, IN-CM, 1994, p.95 ~ Ideal de beleza feminino de influéncia petrarquista; ~ descrigio vaga, marcada pela indefinicao/imprecisao e pelo mistério. + Sintese das caracteristicas da mulher amada fw. 12-14: ‘celeste fermosura";‘minha Circe") mulher como ser contraditério (ser celestial/feiticeira terrivel) + Efeito alquimico das caracteristicas da amada no sujeito postico: “magico veneno” (metéfora do fascinio/ encantamento) transformago do “pensamenito” do poeta, A amada é comparada a uma feiticeira (referéncia a Circe, figura da mitologia grega que aparece na Odisseia e que ficou conhecida por ter transformado os companheiros de Ulisses em porcos). Linguagem e estilo + Recursos expressivos e outros recursos que realcam as caracteristicas da figura feminina descrita eo fascinio por ela exercido no poeta: ~ enumeragao assindética (sem a presenca de uma conjuncao coordenativa) paralelistica, construida ‘com base em grupos nominais (determinante artigo indefinido + nome + modificador do nome) que assinalam aspetos exteriores da amada e qualidaces suas, mas de uma forma vaga e imprecisa; ~ anéfora ~ a repetico do artige indefinido contribui para a abstracéo e impreciséo do retrato (Um ‘mover’, “um (...Jousar"y ~ dupla adjetivacao - “brando e piadoso’, brando e honesto" ~ a utilizaco de dois adjetivos para qualifi- car um mesmo aspeto ou atitude sugere uma idela de completude, cle detalhe, que, porém, é"falsa’, como jé vimos; = oximoro — ‘um riso brando e honesto, / quase forcado’, “um medo sem terculpa"~ a associacao de dois termos contraditérios denota o caracter complexo da amada. Género literario + Soneto = duas quadras e dois tercetos: = versos decassilabicos (Le/da /se//re/ni /da/ de / de /lei/t0/s2 ~ esquema rimatico - abba /abba /ede fede: ~ tima emparelhada e interpolada (quacres) : rima interpolada (entre tercetos) Tema «+ Representacao da amada. Assunto + O sujeito postico presenta uma descrico da ‘amada, mostrando que as suas caracteristicas representam as armas através das quais 0 ‘Amor o aprisionou (“Estas as armas sGo com que me rende /e me cativa Amor, Desenvolvimento do tema/assunto «+ Descricéo da mulher amada, que comesa porser: — em tracos gerais,salientando-se o facto de ela representar o paraiso ~ “Leda serenidade deleitosa,/que representa em terraum parafso” {ec (influéncia do neoplatonismo) — depois, concretiza-se em tracos espe doce riso;/ debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa” ~ por fim, assume a forma de uma sintese ~ “Fala «+ Aptesentacao dos efeitos que as caracterist! (wa. Linguagem e estilo (‘mas nao que possa /despojar-me da gléria de rendido «Recursos expressivos ao servigo da idealizacéo da amada, na senda do pet | wie cde Cones, meas Leda serenidade deleitosa Leda serenidade deleitosa, que representa em terra um paraiso: entre rubis e perlas, doce riso; debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa. Presenga moderada e graciosa, onde ensinando estao despejo e siso que se pode por arte e por aviso, ‘como por natureza, ser fermosa. Fala de quem a morte ea vida pende, rara, suave; enfim, Senhora, vossa; repouso nea alegre e comedido. Estas as armas séio com que me rende eme cativa Amor; mas nao que posse despojar-me da gléria de rendido. Glossivio 1 Leda alege;deletasa—que causa delete, prazer 13> entre rable eperlasoslabios eos dentes Via debaixo de oura neve - os eabelos eas faces {i6- degre descontragao; sso gravidade = por arte € por iso ~ pelas qualidades do expito; ‘sentido do versa €o de que a beleza vem tanto das qual Alades sions como das da espirito. {10 sentido €talver: 56 v0ssa pet, pp. 93-94 scificos, apontando-se quer aspetos fisicos ~ “entre rubis e perlas, quer psicolégicos e morais ~ *Presenca moderada e transgressio do cédigo petrarquista; = retrato psicol6gico: graciosidade (‘Ua graca viva’), docura ("tdo doce a figura’), serenidade mansa (‘Leda mansidéo", sensatez (‘que 0 sisoacompanha’) > influéncia do cénone petrarquista. + Expresso de sentimentos gerados pela beleza da mulher exética no sujeito poético: fascinio, amor, tranquilidade, refreio da dor. Linguagem e estilo + Recursos expressivos e outros que realcam o fascinio exercido por “Barbora” no poet ~ aliteragao tw: +4; 27-401 e trocadilho ~‘eativa" /“cativors “vivo" | “viva"—a repeticdo das mesmas sonoridades através do uso de termos que so quase idénticos na forma, mas de sentido diferente, serve para assinalar a “Perdicdo” como resultado da influéncia da ago do Destino e do comportamento individual 4 wis de Camces, mas O dia em que eu naci moura e pereca (0 dia em que eu naci moura e pereca, no o queira jamais 0 tempo dar; nao torne mais ao mundo e, se tornar, eclipse nesse passo 0 Sol padeca eee s Aluzihe falte, 0 céu se the escureca, + Soneto. mostre o mundo sinais de se acabar; nagam-lhe monstros, sangue chova 0 ar, HI Tema amae ao préprio filho nao conheca. + Refiexdo sobre a vida pessoal - maldigéo do As pessoas pasmadas, de ignorantes, dia do nascimento. 1» as lagrimas no rostro, a cor perdida, cuidem que o mundo jé se destruiu, ‘Assunto O gente temerosa, nao te espantes, +0 sujeito postico amaldigoa o dia fatidico em que este dia deitou ao mundo a vida que nasceu, pois esse dia “deitou ao mundoa ‘mais desventurada que se viu! vida / mais desventurada que se vu!" Glossirio Op. et, p. 180 Desenvolvimento do tema/assunto' + Desejo de morte/desaparecimento (v. 1. «+ Expressdo de varias maldicbes ww. 2-8), que evocam fenémenos apocali escuridao, falta de luz; iminéncia do fim; aparecimento de monstros; ar chovendo sangue (violencia, morte, terror geral); cataclismos (estranheza entre mae e filho). + Existéncia de uma multidao que assiste aos fendmenos apocalipticos com pasmo e terror jw. 9-12 + Afirmagio excessiva do“euw.18-14, que realca a desmesura do sofrimento e o carécter excecional da desgraca do sujeito pottico. Discurso pessoal e marcas de subjetividade + Marcas de primeira pessoa ~“nac, “moura’, ‘pereca”; uso da 2. pessoa — 0 sujeito poético invoca o leitor ~"O gente temerosa, ndo te espantes" ~ apéstrofe).. + Adjetivacao disférica - ‘pasmadas", “temerosa’, “a[...] mais desventurada’ em consonancia com 0 tema do soneto. + Reforgo do tom tragico, com recurso & hipérbole jw. 5-8) ea redundancia ~"moura e pereca”. 5. Expresso do desejo, através do conjurtivo - “moura’, ‘pereca’, “queita’, ‘chova’. Dia desgracado/fatidico > nascimento desgracado/fatidico 1 Andis esquemie elaboraca com bate em Maria Vitalina Leal de Matos, Autorrevvato de Camoes:a Soneto'O dla em que eu nase!” Inder e Escrever- Ensaio, isbosIN-CM, si 187

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