Você está na página 1de 20
A violéncia nas prisGes ARMIDA BERGAMINI MioTTO Professors de Direito Penal e de Di- reito Penitenclario — Universidade ‘Federal de Golis. Preliminarmente, desejo fazer um esclarecimento. O meu tema é “A Violéncia nas Prisdes”. A palavra priséo tem um sentido muito am- plo, indicando qualquer edificacéio ou local aonde so recolhidas pessoas para ali permanecerem, privadas da sua liberdade, durante tempo breve ‘ou longo. No meu tema, a palavra, no plural, nao tem tanta ampli- tude. Com efeito, so me referirei as prises em que esto recolhidas pessoas & disposigéo da Justica, como presos provisérios, aguardando julgamento, ou sentenciados, em cumprimento de pena ou de medida de seguranca. Nao me referirei, pois, 4s prisdes da Policia, para cuja designaciio, na linguagem correnie, sio usadas palavras diversas, como, por exemplo, “xadrez”, “xilindré”, “carceragem”, “‘cdrcere”. Assim sera, porque a minha area nao é policial, mas penitencidria (isto é, do Di- reito Penitenciario e da Politica Penitenciaria), devendo eu ficar dentro dela. ‘Conferéncia proferida no dia 17-4-80, durante o Simpésio sobre “A Sociedade Violent realizado pela Universidade Metodista de Piracicaba — SP, de 14 @ 18 de abril de 1980. R. Inf, legist. Brasilio a. 17 n. 66 abr./jun. 1980 273 Isso posto, procurarei distinguir os fatores internos de uma priséo (em geral) que podem provocar violéncia, e os fatores externos a ela, que podem agir por si mesmos ou combinados com os internos. Na realidade pratica nem sempre é possivel essa distinedo, porque, com efeito, a interpenetracio de uns e outros é tal que nao se consegue individuar a forga causal destes ou daqueles. Quando digo “fatores que podem provocar” ou que “podem agir”, esté implicito, mas fica claramente entendido, que elimino o precon- ceito de que em todas as prisdes ha, fatalmente, violéncia. Comecemos com uma pequena digressio quanto A questéo da agressividade, ‘Numa personalidade equilibrada (esteja a pessoa presa ou nio, te- nha a situacdo vital que tiver, esteja ajustada ou nfo) a extro-agressi- vidade, a intro-agressividade e a indiferenga diante dos estimulos pro- vocadores ou frustrantes, sio proporcionais entre si. A ligeira predo- minancia de uma ou de outra ainda esta dentro da normalidade, contribuindo para um trago marcante da personalidade. Dentro dessa normalidade, haverd reacées agressivas que serao normais, tanto quanto, correspondendo aos estimulos, sao necessérias. O exagero da agressivi- dade, a sua desproporcio, a sua impetuosidade, 0 seu exercicio ilegi- timo e injusto consubstanciam a violéncia. Mesmo dentro daquela nor- malidade potencial, porém, o predominio da intro-agressividade pode Jevar & violéncia contra si mesmo — definida, manifesta, como tal, ou na forma de estado depressivo, com suas concomiténcias e conseqiién- cias — como o da extro-agressividade pode levar & violéncia contra as coisas e as pessoas. A possivel violéncia, num ou noutro sentido, é, em tese, relacionada com o predominio da agressividade num ou noutro sentido. Todavia, uma pessoa em cuja personalidade se verifica um predominio até mesmo muito grande de agressividade, pode saber us4- Ya e dominé-la de tal modo que jamais venha a praticar um ato sequer de violéncia. & de notar que o predominio da indiferenca, até certo limite ainda dentro da normalidade, além dele é negativo proporcio- nalmente & sua extens&o e 4 sua intensidade. Feita essa digressdo, tornemos a voltar a atencao para o que ocorre nas prisdes, sem deixar de ver também, quando seja 0 caso, o aspecto genérico de fendmenos que, verificando-se em ambiente prisional, néo sao porém, exclusivos deles, ademais da distingiio entre fatores internos e fatores externos, que podem conduzir 2 violéncia. © primeiro dos fatores internos é a propria situaco vital e juridica de preso, a qual, por si, estimula a agressividade. Com efeito, ao ser presa uma pessoa, por mais que seja justa a pri- so e seja efetuada sem deixar de respeitar a sua dignidade humana 6 os seus direitos humanos, impde-se uma mudanga radical na sua vida, mudanga essa que nao é desejada, que é temida, que representa uma 274 R. Inf, legisl, Brasilia a. 17 n. 66 abr./jun, 1980 complexidade de frustragées, iniciadas com o préprio ato de efetuagio da prisio. J& dentro da priséo, o preso tem de se adaptar (biologicamente) a restrig¢fic de movimentos, & alimentacdo, aos horarios de dormir e de acordar etc.; tem de se ajustar (psicolégica e socialmente) aos outros presos e ao pessoal do estabelecimento, ao convivio com uns e os outros, e respectivas interacdes. Tudo isso exige um grande esforgo fisico e psiquico, ac mesmo tempo que o preso, consciente ou inconscientemen- te, nfo quer se adaptar, nado quer se ajustar e nao quer se integrar nesse ambiente e nesse convivio, e nesse sentido oferece resisténcias di- versas. Tudo isso exigindo grande esforgo, concorre para a producao de tensdes emocionais, constituindo elementos de um somatério de trau- matismos e configurando um quadro de stress. O estado psicossomatico de stress (cuja descoberta, na década de 1930, se deve ao médico austriaco que se radiecou no Canadé, HANS SELYE) resulta do “grau de desgaste total causado pela vida”. Quem esta em estado de stress e tenha uma predominancia da intro-agressi- vidade, poderaé tender a reagir com violéncia clara ou camuflada, sobre si mesmo, embora a sua componente, menos intensa, de extro-agressi- vidade possa ser exacerbada, recaindo, pois, sobre o ambiente, pessoas e coisas; se a predominancia for de extro-agressividade, poder tender, como facilmente se entende, a descarreg4-la em forma de violéncia con- tra o ambiente e o que nele se contém, contra os outros. Procuremos considerar esse aspecto, em uma prisaéo de seguranca maxima, com o seu regime fechado, lembrando que essas prisées sio as mais severas, conforme a classificagéio atualmente adotada. Até nfo muitos anos atras, quando nao havia distingéo no que se refere A se- guranea da construcéo e ao regime de cumprimento da pena e vivéncia prisional, as prisées, de modo geral, correspondiam As que hoje se configuram como de seguranga maxima e regime fechado. Algumas ti- nham, até, certos requintes arquiteténicos que acrescentavam coercio fisica. Pelo isolamento celular continuo do chamado “sistema pensil~ vanico” e, a seguir, pelo isolamento celular noturno, com trabalho diur- no em comum, mas em siléncio e severa vigilancia, do chamado “sis- tema auburniano”, visava-se, em grande parte, impedir que qualquer preso praticasse algum ato de violéncia e que se, nado obstante, viesse a praticé-lo, nao se alastrasse. Entretanto, esses dois “sistemas”, que pretendiam ser uma solucdo humanizada, contra solucées anteriores cuja desumanidade ja nao po- dia ser suportada, comecaram a ser vistos como desumanos. Dai, se passou a, embora ainda insistindo no isolamento celular noturno, diminuir a rigidez durante o dia, o que possibilitava maior comunicacéo e mais contatos pessoais entre os presos. R. Inf. legis!. Brasilia a, 17 m, 66 abr./jun. 1980 275 Ao mesmo tempo, tendo sido diminuido o uso de certas formas de pena e abolidas outras (morte, acoites, mutilagées ete.), a prisiio ficou sendo a pena de modo geral cominada e aplicada para quaisquer cri- mes, de qualquer gravidade, enquanto que a priséio provisoria era de regra para os acusados em geral, Por isso, foi sentida a necessidade de construir prisées de grande porte, com capacidade para grande ntimero de presos — mil, mil ¢ quinhentos, dois mil... Prisdes assim, enormes, de seguranca maxima, foram construidas em uns e outros paises, também no Brasil. A sua construcao fortificada thes permitiu varar o tempo. Ainda existem exemplares delas em pleno funcionamento. Aumentando, porém, 0 ntimero de acusados e de condenados, fosse porque o numero de criminosos com seus crimes aumentava em nume- Tos absolutos, fosse porque aumentava proporcionalmente ao aumento da populacao, as prisdes, apesar de enormes, foram ficando lotadas @ superlotadas. E aqui chegamos ao segundo fator de violéncia nas prisdes: a su- perlotaciio. Sio diversos os aspectos a considerar na superlotacdo das prisées, interessando ao nosso presente tema. O primeiro deles é o de ela mesma, como tal, ser um agente stres- sante, com possiveis reagdes de violéncia. Os outros sio os problemas que fan gera, cada um dos quais pode, por sua vez, constituir fator de violéncia. Procuremos examinar a superlotacéo em si mesma. % facilmente verificével que em qualquer aglomeragio em am- pbiente limitado, a inquietagféo e a agressividade, com reagdes de vio- léneia, costumam se manifestar em relagdo inversa ao espaco ideal por pessoa. Quanto maior o numero de pessoas num ambiente dado, e, pois, menor 0 espaco ideal para cada uma delas, maior é a probabili- dade de inquietacdo, de despertar a agressividade, de reagdes de vio- léncia. Por outro lado, se em uma 4rea igual a X, existe um aglomerado tal de pessoas de que resulte o espaco ideal de, digamos, “0,5” para cada uma, e a ela se acrescenta outra drea igual, com igual nimero de pessoas, 0 que ocorre nao é duplicar a probabilidade de inquietagio, de agressividade, de reagdes de violéncia, mas, por causa da dindmica da interacdo, é praticamente incalculavel a multiplicacio. Dai se infere que numa priséo (de regime fechado e_seguranca maxima) com capacidade para mil presos, sem superlotagao embora, j& existe forte probabilidade daqueles fenémenos psicoldgicos que vao 276 R. Inf, legis!, Bras 17 n. 66 abr./jun. 1980 redundar em fatos de violéncia, porque ela é sempre um ambiente rigi- damente limitado, com o mesmo e constante espaco ideal limitado, por pessoa, o que serd agravado pela escassez de patios e outras areas ao ar livre. A medida em que aumenta a lotacio e se verifica superlotacdo e @ superlotagdo aumenta, o que se nota é uma soma de presos; a proba- bilidade de violéncia aumenta também — néo porém por soma, mas, por causa da dindmica da interacdo, por multiplicagdo praticamente incaleulavel. Analogamente, numa priséo com capacidade para dois mil presos, sem superlotacio, a probabilidade de violéncia, em relacio & de uma priséo com capacidade para mil presos, nao é simplesmente o dobro, no corresponde & soma de mil mais mil presos mas, devido & din&mica da interacdo, resulta de uma praticamente incalculdvel multiplicacdo. Analogamente também, mas com mais intensidade do que acontece em uma priséo com capacidade para mil presos, 4 medida em que au- menta a lotagao e se verifica a superlotacdo e a superlotacdo aumenta, © que se nota é uma soma de presos, enquanto que a probabilidade de violéncia resulta de uma multiplicagéio praticamente incalculdvel. A superlotaciio, fator que 6, em si mesma, de violéncia, gera frus- tragdes (insatisiacoes, deficiéncias, insuficiéncias etc.), cada uma das quais 6, por sua vez, um especifico fator de violéncia. Consideremos, pois, como terceiro fator genérico, esse conjunto de fatores especificos, focalizando expressamente: acomodacéo para dormir, higiene (asseio corporal e do ambiente, alimentacdo etc.), pos- sibilidades de trabalho e de outras atividades (escola, lazeres etc.) e ociosidade. As acomodagées para dormir vao ficando escassas, paralelamente ao aumento da superiotacéio. Numa cela, que deveria ser individual, substitui-se a cama (ou catre ou estrado) por um beliche e, aumentan- do a superlotacdo, di-se um jeito de acrescentar outro beliche, O re- sultado 6 uma angustia fisica, anguistia de espaco e de ar, como facil- mente se percebe, com sensacéo de opressao fisica e correspondents estado psicologico de aflicao, de ansiedade, de irritagao e outros seme- Thantes. Tudo isso constitui um complexo conjunto de estimulos (ou agentes) stressantes, que podem levar A violéncia, com intro-agressivi- dade ou com extro-agressividade. Na cela superlotada, a violéncia 6 freqiientemente de carter sexual. Se aquele que é vitima da agressao 6 predominantemente indiferente, do ponto de vista da agressividade, ou & intro-agressivo, provavelmente aceita ou, pelo menos, se submete, o que neutraliza a violéncia, podendo dar inicio a uma relacdo homosse- xual que se diria “pacifica”. Se, porém, ele for um extro-agressivo, pro- vavelmente vai repelir a tentativa de violéncia sexual do outro, com atos de violéncia de ordens diversas, podendo, desse encontro/desen- contro resultar les6es corporais de gravidade diversa, em um deles ou R. Inf, legisl, Brasilia a, 17 n. 66 abr./jun. 1980 27 em ambos e até a morte, nem sempre ficando os fatos adstritos Aquelas pessoas que estéo diretamente envolvidas, mas assumindo maiores pro- porgées. Esses fatos nem sempre se verificam por ocasiéo da primeira tentativa, mas tempos depois. Com efeito, mesmo que aquela tentativa tenha permanecido unica, a forcada companhia em que tém de estar agressor e agredido, durante o dia e, principalmente, durante 2. noite, estimula sentimentos e estados emocionais negativos, tais como raiva, ira, édio, vinganga, até chegar a um ponto de explosdo. Mesmo quando, porém, se tenha estabelecido uma relagdo que se diria “pacifica”, a violéncia nao est excluida. O citime, que se mani- festa com bastante freqiiéncia, pode levar a fatos de violéncia contra pessoas, de gravidade diversa, até ao homicfdio. Na variedade das personalidades, com umas ou outras carateris- ticas, com tracos marcantes, ha presos que tém capacidade de lideranca. No que se refere ao relacionamento sexual, presos que tenham essa capacidade, assumem 0 papel de rufides ou de protetores dos mais fra- cos... Podem assumir, isolada ou concomitantemente, o papel de for- necedores de drogas... Os “servicos” que eles prestam s&o remunerados com dinheiro ou na forma de troca-troca. Em tudo isso hé sempre uma gtente agressividade, pronta a se manifestar como atos e fatos de vio- Antes de passar aos outros fatores de violéncia, derivados da su- perlotagdo, deve ser acrescentado o seguinte: ‘Mesmo naquelas prisdes que foram construidas para serem celula- Tes, se encontram alojamentos (coletivos) para o repouso noturno, Em geral, ndo constavam da primitiva construgao mas resultaram de adap- tages de locais existentes, antes destinados a outras finalidades, ou de construcao acrescida. Se, inicialmente, ainda que com beliches, o ni- mero de presos ali recolhidos para dormir, correspondia as exigéncias de rea e de cubagem minimas por pessoa, 0 aumento da populacéo da pris&io terd ido impondo que, assim como nas celas, se acrescentassem. beliches nos alojamentos, e até mesmo colchées estendidos no chao, nos exiguos espagos que ainda sobrassem, no apertume dos beliches. Nessas. condigdes, a probabilidade de irritacées, provocacées, retorgdes, agres- sdes e atos e fatos de violéncia genérica ou especifica (sexual), com imprevisiveis seqiielas, é, sem divida, muito multiplicada em relagdo & cela superlotada. Passemos, agora, a considerar os demais fatores de violéncia, ine- rentes a superlotagdo ou derivados dela. A higiene, isto é, 0 conjunto de condigdes do e no ambiente, para que ser preservada a saiide das pessoas que ali vivem, depende da edificacéo (iluminacio e arejamento), mobiliério e aparelhagem, possibilidades de asseio ambiental e pessoal, quantidade e qualidade da comida, sem excluir outros fatores concorrentes. A propria concentracao de pessoas nas celas e nos alojamentos de que se acaba de falar re- 278 R. Inf. legisl. Brosilia a. 17 n. 66 abr./jun. 1980 presenta, também, falta de higiene, proporcional 4 falta de area (espa- go ideal) por pessoa, e escassez da cubagem de ar, bem como A precarie- dade das camas ou moveis similares, Qs lavatérios, chuveiros e vasos sanitérios se tornam insuficientes para o ntimero de pessoas. As dificuldades resultantes, para o uso dos lavatorios e dos chuveiros, podem gerar descontentamentos e irrita- gées que estimulam a agressividade, até atos e fatos de violéncia, Com mais Tazo isso pode acontecer quanto ao uso dos vasos sanitarios. Se, porém, quanto ao uso dos lavatérios e dos chuveiros, ha aqueles presos que, ou por terem maior intro-agressividade ou por serem indiferentes, preferem nao competir, deixando de se lavar e de tomar banho, dimi- nuindo, assim, as possibilidades de agressio e de violéncia, acontece que o acimulo de sujeira corporal, resultante dessa falta de asseio, pode, além de concorrer para doencas diversas, irritar 0 dnimo, exas- perando a componente da extro-agressividade, ndo s6 quando ela é a Ppredominante, como também quando é menos acentuada que qualquer uma ou as outras duas; assim sendo, qualquer coisa, em qualquer mo- mento, pode desencadear atos e fatos de violéncia. No que diz respeito 4 comida, quanto maior o numero de pessoas para quem tenha de ser preparada, mais sofrem a qualidade e o sabor. No que se refere especificamente as prisdes, além disso a superlotacdo influi (negativamente, é é6bvio) sobre a quantidade. Tendo presente que a populacao prisional é sempre flutuante, compreender-se-4 que nem sempre é possivel dominar a dinamica das verbas, de acordo com as necessidades de cada dia, como nem sempre os responstiveis pela cozi- nha podem fazer os cdlculos de quantidade acertadamente. Diga-se de passagem que, seja qual for o modo de servir a comida, os desperdi- clos sempre sdo grandes, mesmo quando pode ser considerada global- mente insuficiente para satisfazer as necessidades de alimentacdo de todos os presos. A fome mal saciada também pode exacerbar a compo- nente de extro-agressividade, seja ela predominante, seja ela menos acentuada que qualquer uma das outras ou de ambas. Quanto 4 possibilidade de trabalho e outras atividades, observa-se que, mesmo aquelas prisdes que, desde a construcdo original, ou em razao de acréscimos subseqlientes, dispdem de locais apropriados, néo so suficientes para o nimero de presos. Mesmo que exista uma equi- librada agenda didria, em decorréncia da qual hé, ao mesmo tempo, certo numero de presos trabalhando, outros na escola, outros em ativi- dades de lazer (jogando futebol, ouvindo radio, lendo, escrevendo car- tas etc.) ou participando de atividades religiosas (littrgicas ou para- littrgicas e outras) ou cuidando de assuntos pessoais (no servico so- cial, no servigo médico ou odontoldgico, no servigo juridico — supondo que as velhas prisoes estejam, nesse sentido, pelo menos rudimentar- mente aparelhadas), mesmo assim, sempre hd um ntimero, que &s vezes é consideravel, de presos em ociosidade. N&o é em vao que ja os antigos diziam que a ociosidade é a mae de todos os vicios. R. Inf. legisl. Brosifia a, 17 =, 66 abr./jun. 1980 279 A ociosidade incita a imaginac&o, excita os sentimentos e as sensa- des. Se induz uns a estados depressivos, provoca outros & agressividade. Quando predomina a intro-agressividade, pode ela, aliada a um estado depressivo, levar a autolesdes, até ao suicidio direta e claramente pro- vocado, ou @ inapeténcia e outras formas passivas de autodestruic&o, até & morte. Nao se exclui, porém, que mesmo nesses casos, a componen- te menos acentuada de extro-agressividade seja exasperada, traduzindo- se, na conduta, como atos e fatos de violéncia contra os outros e contra as coisas, que é, alias, sempre 0 caso quando essa componente é predo- minante. Esses fatores ambientais de que acabo de falar, podem ser deno- minados ffsicos ou materiais. H4 outro fator, no entanto, que é de den- tro das prisées, muito complexo, que pode ser sintetizado na expressio “falta de preparo do pessoal prisional”. Se o pessoal tem preparo mas inadequado, isso também configura falta. Ja houve, por certo, uma grande evolugdo desde quando os locais de recolhimento em privagao da liberdade eram deprimentes meros de- pésitos de presos, eram cArceres, enquanto que os guardides das pessoas ali recolhidas, encarceradas, eram humilhantemente simples carcerei- ros. Esses guardifes, carcereiros, costumavam ser pessoas broncas, gros- seiras, de duvidoso senso moral ou dele inteiramente destituida, de pou- ¢a ou nenhuma instrugdo. S6 pessoas assim aceitavam exercer 0 vexa- tério offcio. Depois, a partir das célebres penitencidrias de Pensilvania e de Auburn, sendo denominado “sistema” pensilvanico e auburniano, Tespectivamente, o cumprimento da pena nelas efetuado, a pessoa res- ponsével pelo estabelecimento e scu funcionamento passou a ser deno- tminada diretor (ou administrador). A mudanga de denominac&o trouxe consigo outras mudangas. Real- mente, ndo teria sentido entregar a uma pessoa bronca um estabeleci- mento como um daqueles, de construg&o cara e bem cuidada, onde os delinqiientes no ficariam encarcerados, mas estariam submetidos a um “sistema penitencirio”. J& nfio se tratava de ser um guardido de en- carcerados, mas de dirigir um estabelecimento respeitavel. Por isso, pessoas respeitaveis, pela sua posigdo social e pelo seu grau de instru- Gao — como, por exemplo, juizes aposentados e oficiais do Exército re- formados — passaram a aceitar o encargo de diretor de penitencidria, Semelhantes diretores eram pessoas de bem e tinham instrugdo e formagao que, na época e por muito tempo ainda, foram tidas como adequadas. Quanto ao pessoal inferior, embora nfo se exigisse uma formagao, talvez nem mesmo instrucdo, passou a haver pelo menos alguma me- Thora no exerefcio das suas fungées, em razio da disciplina imposta e da orientagdo exercida pelo direlor. Dentro daquela arquitetura que, por si, deveria aniquilar os pre- sos, a disciplina era ordenada de modo a conter os impulsos de agressi- 280 R. Inf. legis. Brasilia o. 17 m. 66 abr./jun. 1980 vidade, Era disciplina rigidamente imposta — constrangimento fisico, oriundo do préprio estilo arquiteténico, e coagdo fisica e moral advinda das normas disciplinares e presenca dos guardas que, no exercicio das fungdes, podiam dispor de armas. Os atos e fatos de violéncia que, nao obstante, viessem a se manifestar, eram dominados pela forga (come- dida ou nao, que, nesse caso, seria violéncia) dos guardas. Essa situagdo, porém, que, ao ser adotada, fora recebida como um grande progresso, em favor da humanizag&o da pena, veio a ser consi- derada muito desumana. Fosse, porém, por motivos empiricos, fosse por fundamentos cien- tificos ou, ainda, por causa da superlotacio, a disciplina interna, sem deixar de pretender ser rigida, foi sofrendo modificagdes que possibili- taram mais movimentaciio e mais expansio pessoal dos presos. Paralelamente, nunca deixaram de existir nuns e noutros paises, os carceres entregues a responsabilidade de pessoas inteiramente des- preparadas, tendo a denominacio de “carcereiro” ou outra embora, e dispondo de pessoal com as mesmas caracteristicas. Um ponto muito importante a considerar é que, em contato com os criminosos, sempre execrados como seres temiveis, os componentes do pessoal das prisées — principalmente os de niveis inferiores, que sio os que estdo mais junto aos presos — sentem inseguranca, sentem me- do; por isso, esto sempre em atitude (deliberada ou inconsciente) de defesa, enxergando em tudo que os presos fazem ou deixam de fazer, uma agressdo contra a qual tem de se defender, um ato ou fato de in- diseiplina que tém de reprimir. Quando, desse modo, usam a forca, sem que, pois, haja uma efetiva real necessidade, j4 nao é forca (legi- timamente usada), mas é violéncia. A imagem do criminoso, como a de um ser que mete medo, nao melhorou, mas 0 contrario se deu, com as elaboragoes doutrinarias pré- prias do séeulo XIX, da metade para o fim, e dos comecos do século XX. Segundo as elaboracGes dessa doutrina, os criminosos, em geral, seriam, em graus diversos, perigosos. Essa qualificacio de “perigoso” obviamente nao contribuiria para diminuir o medo do povo em geral e do pessoal das prisées especificamente, em relag&o aos criminosos. Assim sendo, a interagao dos sentimentos e estados emocionais dos presos e dos integrantes do pessoal se processa em espiral ascendente de agressividade, brutalidade, violéncia, até As mais sérias conseqiién- cias. Ainda que os presos tenham dado real motivo para uma reagéo de contencdo ou de repressdo do pessoal, a inseguranca do dito pessoal, resultante do seu despreparo ¢ inerente medo, leva a reacdes inadequa- das, despropositadas, abusivas, que deixam de ser forga para ser vio- léncia. R. Inf. legist. Brosilia a. 17 n. 66 cbr./ivn. 1980 281 Conforme o aforismo, “a violéncia gera violéncia”. Se, porém, 0 movimento iniciai de violéncia partiu dos presos, o pessoal adequada- mente preparado (e seguro de si) sabe domin4-la ou neutralizé-la com a forca estritamente necessaria, sem violéncia. Se o pessoal é despre- parado (e inseguro de si) respondera com violéncia, provavelmente, & violéncia dos presos, como também, induzido pela execracéo e o medo que tem deles, poderd ter a iniciativa de violéncia. Se os presos nao puderem reagir desde logo contra a violéncia do pessoal, a frustragio excitaré seus sentimentos de raiva, de revolta, de édio, de vinganga e outros similares, os quais, por sua vez, excitarao a agressividade, tanto mais naqueles presos cuja componente de extro-agressividade é mais acentuada. Quando a tensio emocional dos presos, alimentada por uns e outros fatores, vem a explodir, ocorrem atos e fatos de violéncia con- tra as coisas e contra as pessoas, que podem ser outros presos ou inte- grantes do pessoal, fatos e atos esses que podem ficar circunscrites ou podem assumir a configuragéo de motim. Observe-se que a “atmosfera” de um estabelecimento prisional de regime fechado em seguranga maxima (como, antes, eram todos, de modo geral, embora assim nao se classificassem nem denominassem) & sempre “carregada”, como resultado da interagao dos sentimentos e dos estados emocionais negativos, despertados e desenvolvidos por fatores diversos, desde o da vivéncia da situagdo vital e juridica de preso — dos quais falei inicialmente. O pessoal das prisées também respira, obviamente, essa “‘atmosfera carregada”; 0 pessoal despreparado é facilmente dominado por ela. Como se vé, o problema da violéncia nas prisdes esté longe de ser to simples como certas pessoas e entidades, por motivos escusos que @0s poucos véo se revelando, pretenderiam que fosse. Segundo essas pessoas e entidades, a violéncia seria a unica e permanente realidade das prisées, de todas as prisées; verificar-se-ia sempre e t&io-somente contra os presos, e se deveria 4 maldade e a crueldade deliberadas do pessoal . Até aqui procurei dar um toque analitico quanto aos fatores in- ternos de uma prisaio {em geral) que podem provocar violéncia; farei agora algumas consideragdes a respeito dos fatores externos & prisiio, que podem agir por si mesmos ou concorrer com os demais. A primeira coisa que ha de vir & mente é a violéncia que avassala 0 mundo todo. Se algum pais pode gabar-se de, em razdo de condigdes préprias peculiarissimas, estar livre dela, isso nao modifica o quadro geral de violéncia que aterroriza e oprime o mundo. A violéncia que esté mais préxima de nés e da qual nos é mais £6- cil tomar conhecimento, sendo, por isso, a que mais nos mete medo, 6 a do dia-a-dia nas cidades, com vitimas individualizadas e em geral identificadas, mesmo quando os autores da violéncia nao o sejam. As 282 legisl, Brasilia . 17 m. 66 abr./jun. 1980 vezes, nés conhecemos pessoalmente as vitimas, ou so pessoas que, pe- Jas suas qualificac6es, sio conhecidas do ptblico em geral; de qualquer modo, mesmo que desconhecidas, os meios de comunicacao falam delas e as descrevem, apresentam a sua fotografia, de sorte que deixam de ser abstracdes, para serem realidades concretas — cada uma delas é uma realidade humana, tanto quanto as que conheciamos pessoalmente ou que eram conhecidas do publico em geral; realidade humana igual a mim, a ti, a qualquer um de nos. O que aconteceu com qualquer uma delas, pode acontecer comigo, contigo, com qualquer um de nos. Isso mete medo. Mete medo e predispée a dinamizar e exteriorizar a agres- sividade, tanto mais intensa, pronta e amplamente, quanto mais acen- tuada for a componente de extro-agressividade, segundo as variagées de uma personalidade para outra. Diante de qualquer estimulo — real ou assim configurado pela “minha” imaginacdo impregnada de medo “eu” estou pronto para reagir, respondendo ao estimulo real ou imagi- nario, com a violéncia correspondente ao grau do “meu” componente de agressividade. O que se 1é e se ouve e se vé nos meios de comunica- cao, a respeito de violéncias cometidas e de violéncias sofridas, sé serve para aumentar o medo até ao panico. A luz da teoria das interacdes Ciclicas das emocées e correspondentes reagdes, devida ao psicélogo ita- liano SANTE DE SANTIS, pode-se dizer que o que vem a acontecer 6 0 seguinte: a noticia (ou o conhecimento) de violéncias ocorridas aumen- ta o medo de também vir a ser vitima deles; 0 medo aumentado pode excitar a agressividade, o que predispée a violéncia (ainda que para fins de defesa, real ou putativa); a violéncia, logo divulgada e conhe- cida, mais aumenta o medo, o que mais pode excitar a agressividade, o que mais predispée & violéncia... E assim sucessivamente. De vez que, conforme a observacaéo do psicélogo americano GOR- DON ALLPORT, o mesmo fogo que endurece o ovo, derrete a manteiga, 0s mesmos estimulos que tém como resposta o “meu” medo, o “teu”, o de qualquer um de nés, medo esse que pode excitar a agressividade, predispondo A violéncia, ainda que para fins de defesa — esses mesmos estimulos tém como resposta a ousadia ou audacia de outros, excitando a sua agressividade, predispondo a violéncia, j4 nao para fins de defesa, ainda que presumida ou putativa, mas para fins de ataque, como tal consciente e deliberadamente efetuado. Em qualquer dos dois casos, no se trata de simples circulo vicioso, pois que a cada repeticio do binémio “estimulo-resposta”, se verifica intensificacdo dos fatos e dos resultados. Essa violéncia, porém, que é a que esta perto de nés, estando ela ao nosso alcance e nés ao alcance dela, nfo é estanque nem isolada nem é um fendmeno independente. Ela faz parte da violéncia que asso- la o mundo e da qual talvez niio tomemos bem consciéncia, ou néo a identitiquemos como tal, porque se nos afigura remota, mais ou menos abstrata, fora do nosso alcance e nos fora do alcance dela. E também possivel, entretanto, nao identifiedla como tal. noraue aoueles aue a R, inf, legis!, Brasil 7 n. 66 abr./jun. 1980 283 ordenam ou a desencadeiam, nem sempre usam, para isso, de meios brutais. Os aperfeicoamentos da ciéncia e da técnica oferecem meios que podem ser utilizados em atividades até mesmo aparentemente lici- tas, quicd benéficas, que, no entanto, causam danos, perigos e destrui- cao e morte, em que nao ha uma vitima definida, pessoa conhecida ou dada a conhecer pelos meios de comunicacao, que também estampam ou exibem a sua fotografia; as vitimas dessas atividades de violéncia, ordenadas ou desencadeadas por pessoas e entidades detentoras de po- der — poder profissional, social, econédmico, politico etc. —, sem ex- cluir que sejam ou possam ser pessoas definidas, podem também ser grupos de pessoas e populagées inteiras, com ramificagdes transnacio- nals das atividades e dos resultados, com vitimas em regides e pafses liferentes. A par disso (ou como uma das faces da anomia em que esté mer- guihado o mundo moderno), tem sido estimulado, com idénticos meios e procedimentos, em uns e outros paises, um hipertrofiado e ao mesmo tempo distrofiado senso dos direitos, com total caso omisso dos deve- res; como incitagiéio luta e A violéncia, em defesa dos direitos assim hipertrofiados e distrofiados, e em defesa de interesses ainda que ilegi- timos, os quais, porém, para o caso, sio tomados como se direitos fos- sem. Essa é a apavorante realidade da violéncia no mundo atual. Nao teria sentido pensar que esse espirito de violéncia nao pene- trasse nas prisdes. Mesmo naquelas antigas cuja arquitetura as asse- melha a fortalezas, ele penetra e nao podia deixar de penetrar, por diversos meios. Cada delingiiente que entra, carrega consigo nfo so a catga da propria agressividade e da violéncia comelida, como o espirito da vio- léncia que impregna 0 mundo. As noticias a respeito das violéncias que continuam sendo cometi- das, das lutas, dos movimentos de pressiio, das agitacdes em favor de direitos ou supostos direitos, para fazer reivindicagdes e obter vanta- gens, legitimas ou nao, enttam nas prisdes, levadas pelos visitantes, por cartas, por jornais, pelo rddio, pela televisio. Tudo isso se acrescenta aos fatores internos, aumentando, é bem de ver, a complexidade da questo. Assim como as pessoas estéo em interag&o, de sentimentos e esta- dos emocionais, de pensamentos, de desejos, de atos de vontade, de di- reitos, deveres e interesses, assim também aqueles fatores que podem provocar a violéncia nas prisdes (j& que o tema é esse) estdo em inte- rac&o entre si; mais do que isso, eles se interpenetram, os de genese interna e os vindos de fora. 284 R. 17 9, 66 obr./jun. 1980 Se, para fins metodoldgicos ou expositivos, podemos distingui-los, identific-los e individud-los, na realidade pratica nao é assim. Na realidade pratica, o que aparece é a dindmica de todos eles, os de den- tro do recinto prisional e os que vém de fora, interagindo e se interpe- netrando, dindmica essa que aparece, que se afigura, una. De vez que, no entanto, para fins metodoldgicos os fatores podem ser distinguidos, identificados e individuados, é possivel agir sobre uns e sobre outros, de modo a, pelo menos, reduzir a sua forca causal, se n&o for possivel elimind-los. ‘A experiéncia tem ensinado que nao se deve ter o ilusdrio otimis- mo de eliminar a violéncia nem a criminalidade. Nos proprios documen- tos de trabalho das Nag6es Unidas, nao se fala em eliminar mas em controlar; fala-se em procurar reduzir a violéncia e a criminalidade, a taxas ou indices que é possivel tolerar. Eu diria que devemos nos es- forgar por eliminar os fatores que provocam ou podem provocar a vio- léncia, sem, entretanto, nos decepcionarmos pelo fato de nao conse- guirmos a eliminac&o mas somente uma redugao. No que tange especificamente as prisdes, algo j4 tem sido feito, no mundo e no Brasil também, e com satisfatorios resultados, apesar de circunscritos. Na impossibilidade de abordar todos os aspectos do que ja tem sido feito, referir-me-ei a alguns, tanto quanto possa ser suficiente para a clareza da informacao. Convém registrar que o que ja tem sido feito, em paises diversos, inclusive no Brasil, e jé consta de doutrina, de recomendagoes e de normas juridicas, ndo raro partiu de experiéncias empiricas, porém ‘boas, sensatas, ainda que & margem da lei. Vejamos, pois: Quanto a arquitetura penitencidria: — estabelecimentos de porte apropriado para uma capacidade de nao mais de quinhentos presos (sé muito excepcionalmente e por motivos muito ponderaveis, até seiscentos e poucos) ; — estilo em pavilhées, fisicamente auténomos, com amplas dreas livres, entre eles, nas quais & possivel 0 cultivo (pelos presos) de horta e jardim, criagio de pequenos animais, exercicio de esportes (principalmente o futebol) ; — distingao de seguranca da construgéo — maxima, média e mi- nima — cada uma destinada a um regime de execugao (ou de cumprimento) da pena, isto é, fechado, semi-aberto e aberlo; — locais para escola, praticas religiosas, visitas reservadas da fa- milia, assisténcia médica e odontolégica, social e juridiea, e para R. Inf. legisl. Brosilia a. 17 9. 66 abr./jun. 1980 285 trabalho (oficinas), ademais da gleba para trabalho agricola e pastoril, quanto as prisdes de regime semi-aberto e aberto; — acomodacées para dormir, parte em celas (individuais) e parte em alojamentos (coletivos), cada um com capacidade minima nunca inferior a trés presos, e mAxima nao muito elevada, va- tiando de pais para pais (no Brasil, segundo recomendacdes ministeriais, é de vinte e um presos). A experiéncia tem patenteado (inclusive no Brasil) que, tomadas essas precaucdes de ordem arquiteténica, elas, por si, favorecem a di- minuigio dos agentes stressantes e dos fatores que podem provocar vioténcia. Quanto ao funcionamento das prisdes e a0 processo (isto é, ma- neira de se operar) da execugéo (ou cumprimento) da pena e das me- didas de seguranca, trés sio os aspectos principais: — equilibrada agenda didria, com boa sucesso das atividades de trabalho, escola, lazeres, cuidados pessoais ete., de modo que néo se verifique ociosidade (notando-se que para os presos con- denados, o trabalho é obrigatério, enquanto que para os pro- visérios sio oferecidas oportunidades de trabalho); — ténica juridica, quer do cumprimento da prisao proviséria, quer da prisio em cumprimento de pena, quer da internacéo para cumprimento de medida de seguranga; essa ténica pede a pre+ senga constante, embora as vezes ela seja somente potencial, do juiz nas prisdes, e supde a jurisdicionalizacdio da execucéo das penas e das medidas de seguranca — o que implicitamente sig- nifica presenga também do promotor e do advogado; —~ a colaboracéo da comunidade com o pessoal das prisdes, com 0 Conselho Penitencidrio e com a autoridade judic ia, no que concerne @ problemas pessoais dos presos, seu relacionamento com a familia, e similares, e a questées acessérias das prisdes, que de um modo ou de outro podem se refletir sobre os presos pessoalmente. Cada um desses trés aspectos contribui, por si, para diminuir a quantidade e a intensidade dos agentes stressantes e dos fatores de violéncia . A equilibrada agenda didria, mantendo os presos em atividade, contribui, além de desvid-los dos males da ociosidade, para canalizar as suas tensdes e agressividade, e desgastar energias — tensdes, agres- sividade e energias essas que, se assim nao fosse, provavelmente se tra- duziriam em violéncia, inclusive no terreno sexual. A ténica juridica, intimamente relacionada com a jurisdicionali- zagdo da execugéio das penas e das medidas de seguranga, supondo a possibilidade de o preso, a qualquer momento, poder dirigir-se ao juiz 296 R. Inf. fegist, Brosilia a, 17 n, 66 abr./jun. 1980 (valendo-se de advogado ou assistente judiciario, ou, conforme o caso, diretamente), para salvaguardar seus direitos ou legitimos interesses, contribui para dar tranqitilidade aos presos de modo geral. Em outras palavras: 0 saber que pode dirigir-se ao juiz, em cujas palavras, de- cisdes e determinacdes de providéncias pode confiar, se nao elimina, diminui os agentes stressantes da incerteza, da inseguranca, dos falsos sentimentos e conceitos a respeito dos proprios direitos e interesses @ frustracg6es inerentes, e induz ao reconhecimento e & aceitacao dos de- veres. E de suma importancia esse aspecto, numa época como a atual, em que, como vimos no correr desta exposi¢éio, existe um hipertrofiado e distrofiado senso dos direitos, fazendo-se caso omisso dos deveres, 0 que, dentro e fora das prisdes, leva & permissividade e é fator de vio- léncia. A presenga, porém, constante, ainda que potencial, do juiz, na qual esta implicita também a do promotor e a do advogado, sendo, como é, ao mesmo tempo causa e efeito da referida ténica juridica, é ‘um tacito mas seguro alerta para o pessoal, a fim de que cada um dos seus integrantes exerca os direitos e cumpra os deveres préprios da sua funcdo, sem cometer abusos, sem praticar atos ou fatos configurativos de violéncia. Importante como é, segundo acabamos de ver, o papel de uma agen- da didria bem equilibrada, também o é o da presenea do juiz, para a diminuigao dos agentes stressantes e a inibigao dos fatores de violén- cia: semelhantemente, € valioso 0 papel da colaboracdo da comunidade. ‘A colaboragdo da comunidade, voltando-se para os problemas pes- soais dos presos, como foi dito, contribui para diminuir frustragées e, principalmente, para fazer desaparecer o sentimento que os presos tem, de nfo mais pertencerem & sociedade, sentimento esse que, em- bora latente, é um grande propulsor da violéncia. Dito o que acaba de ser dito, lembro que falei no despreparo do pessoal, como fator de violéncia. De tal modo esse aspecto é importan- te, que se pode dizer que um pessoal devidamente preparado ¢ capaz de, no sé evitar violéncia, como também, com equilibrada agenda dié- ria, manter boas disposigdes de Animo nos presos, mesmo que haja ca- réncias fisicas e que a construcio seja precaria; por outro lado, nas melhores condigées fisicas, de construgao e aparelhagem, pode-se che- gar & mais desordenada vivéncia, em que a violéncia esta sempre “no ar”, se o pessoal é despreparado. Quando se fala em pessoal prisional devidamente recrutado e pre- parado, nfo se quer dizer que tenha este ou aquele grau de instrucio, ou curso de pés-graduacio. A questao esta em ter adequada formagao. Na base dessa adequada formacfo esta a imagem que o funciondrio prisional deve ter do preso. Se o funcionario prisional tiver, do preso, a imagem de um ser pe- tigoso, abomin4vel, odioso, repelente, contra quem é preciso estar sem- R. Inf. legisl. Brasilia a. 17 n. 66 obr./jun. 1980 287 pre em atitude de defesa, com quaisquer meios, provavelmente come- tera ele violéncias diretamente ou, conforme o cargo que ocupe, per- mitiraé ou determinaré que sejam cometidas, por mais que tenha instru- cdo superior e até cursos de pos-graduacao. Assim provavelmente acon- tecerd, mesmo que ele relacione a periculosidade genericamente atri- bufda aos presos, com anomalias da personalidade ou estados patolé- gicos, & luz dos ensinamentos da Escola Positiva do Direito Penal. Com essas concep¢ées, 0 preso nao é visto como um ser humano, mas como uma forga bruta, pronta para se abater contra as coisas ¢ contra as pessoas. E entao a idéia é que contra uma forca bruta é licito reagir com qualquer forca, com outra forca bruta, com quaisquer meios apro- priados para destrui-la ou neutralizé-la, Perguntar-se-4; mas no foi dito que @ presenga do juiz é um alerta contra os abusos? % verdade. A presenga do juiz é, por si mesma, um alerta contra os abusos, contra a violéncia. Temos, entretanto, de admitir que, se o pessoal tem semelhante imagem do preso, pode acontecer que, na situagdo concreta, “ache” que esté dentro de justos limites do exercicio da fungao, quando, em reglidade, esteja cometendo abusos e violéncias. Alertado pela presen- ¢a do juiz, procuraré evitar 0 cometimento de abusos, e evita, tanto quanto a sua falta de adequado preparo permite que, em concreto, se dé conta de que a sua conduta seria abusiva e, por isso, a evita. Lembra-se, também, que um funcionério despreparado que, ade- mais, tenha essa visdo do preso, tem medo dele, e se sente inseguro, 0 que 0 leva a reagir em desproporeao A necessidade do momento e até a empregar u forga, quando néo ha nenhuma necessidade ou, mesmo, é inteiramente desaconselhavel . Quando assim acontece com o pessoal, verifica-se, dentro da prisio, como que dois campos opostos, inimigos — o dos presos e 0 do pessoal. Isso so pode aumentar as tensdes, mais “carregar” a “atmosfera” da prisio. Numa semelhante prisao, o papel que o juiz desempenha, com @ sua presenga e 0 exercicio das suas funcoes, nao é inutil, mas é mais dificil e menos proficuo. Nao nos esquecamos de que, na realidade pratica, todos os fatores interagem e se interpenetram, de sorte que, na causalidade de um re- sultado, ndo é facil e as vezes é impossivel distinguir uns e outros. Chega a ser embaracoso pretender distingui-los inclusive para fins tao- somente metodoldgicos e expositivos. De qualquer modo, uma coisa é certa: com o pessoal despreparado pode dar-se que, além de nao saber diminuir as tensdes e resolver os problemas, agrave a situagéo e crie novos problemas; pode ser que, com 0 intuito de manter ou restabelecer a disciplina e a ordem, cometa 288 a. 17 1, 66 obr./jun. 1980

Você também pode gostar