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O “Emílio” de Rousseau:

uma reflexão sobre a política educacional1

Helder José Freitas de Lima Ferreira*


Maria Aparecida Nascimento da Silva**
Maria da Conceição da Silva Cordeiro***

Resumo: O presente artigo condensa reflexões sobre a obra Emílio de Jean Jacques
Rousseau, em que se evidenciam as mudanças que podem ocorrer no processo edu-
cativo. Busca analisar o homem enquanto ser político livre, contrapondo-se às expe-
riências educativas dogmáticas que tendem a manipular o indivíduo. A educação,
para Rousseau, está associada à liberdade, à igualdade e à fraternidade e tem como
eixo norteador o desenvolvimento do aprendizado a partir da realidade e das expe-
riências dos indivíduos.

Palavras-chave: Educação. Políticas Públicas. Qualidade. Ensino-Aprendizado.

The “Emilie” of Rousseau:


a reflection on educational policy

Abstract: This article condenses reflections on the work Emilie of Jean Jacques
Rousseau, where it shows the changes that occur in the educational process, seeks
to analyze the man as a politically free being counteracting the dogmatic educational
experiences that tend to manipulate the individual. Education for Rousseau is
associated with freedom, equality and brotherhood and has as its guiding axis the
development of learning based on the reality and experience of individuals.

Key words: Education. Public Policy. Quality. Teaching-Learning.

1
Artigo apresentado ao professor Dr. Josênio Parente, como avaliação da disciplina: Teoria Política I, do Curso de
Mestrado Profissional em Planejamento em Políticas Públicas da UECE, em convênio com o Governo do Estado
do Amapá.
*Advogado, defensor geral do estado e acadêmico do curso de Mestrado Profissional em Planejamento e Políticas
Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.
**Pedagoga, professora de ensino superior, Mestre em Educação. Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em
Planejamento e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.
***Assistente Social, professora de ensino superior e Acadêmica do curso de Mestrado Profissional em Planejamento
e Políticas Públicas da Universidade Estadual do Ceará/UECE.

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Introdução
O presente artigo condensa algumas reflexões sobre a concepção de educa-
ção em Rousseau (1712-1778), tendo como referência uma de suas principais obras,
denominada Emílio. A obra retrata a experiência vivida no campo por um garoto
durante seu processo de formação, em que a educação, enquanto elemento básico
seria uma condição de possibilidades para a manutenção do direito coletivo, tendo
em seu caráter integral e homogêneo a essência de um aprendizado difuso e que
deveria estar ao alcance de todos.
Para Rousseau, a função da educação se caracterizava por uma concepção de
mundo baseada na igualdade, no respeito ao indivíduo, não impondo a este nenhum
padrão institucional de aprendizado que o moldasse ao ambiente social vigente. A
educação deveria ser desenvolvida no cotidiano dos afazeres laborais, sem restri-
ções ou métodos preestabelecidos. A liberdade e a igualdade, propostas no método
de Rousseau, evidenciavam o sonho de construir uma sociedade democrática que só
poderia ser concretizada com o desenvolvimento de uma educação plena.
No entanto, Rousseau estava ligado intimamente ao fenômeno do Iluminis-
mo que, por sua vez, estava ligado aos interesses da burguesia em ascensão. Tal
relação teve como consequência o surgimento da divisão de classes e sua evolução
nas diversas sociedades. Então a educação passou a ser organizada com o objetivo
de atender as classes dirigentes, tornando-se um instrumento com condições funda-
mentais para reafirmar a sua existência.
Nesse contexto, a educação passou a funcionar como um investimento privado
de uma determinada classe social, perdendo a sua importância como elemento de um
projeto que objetivava a defesa do interesse de todos numa sociedade. Porém, a divi-
são social do trabalho, provocada pelas diferenças entre as classes sociais, fez com que
as massas, por estarem cada vez mais excluídas dos meios de produção, buscassem o
acesso à educação, de forma a contraporem-se às ideologias de dominação às quais
estavam submetidas em todo o seu processo histórico. Ressalta-se que a luta proletária
pela educação foi um processo lento, sendo que foi expressivo em alguns contextos
históricos como os que marcaram as grandes revoluções, tendo como exemplo a Re-
volução Francesa e a Revolução Russa, inspiradas nas ideias de Rousseau.
As reflexões lançadas no presente artigo fazem menção às inovadoras pro-
postas de Rousseau sobre uma pedagogia democrática centrada na liberdade, na
igualdade e na fraternidade, ou seja, o processo de ensino-aprendizagem tem como
eixo norteador uma relação dialógica que permite desenvolver conteúdos vincula-
dos aos interesses reais dos alunos, métodos que proporcionem o desenvolvimento
das competências e habilidades do educador e do educando, diagnosticando seus
avanços e dificuldades, tendo em vista o processo pedagógico qualitativo.

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A concepção de educação de Rousseau
O Iluminismo não é o objeto de estudo deste trabalho, mas não tem sentido
refletir sobre Rousseau sem esclarecer que o maior movimento de massas do século
XVIII foi de caráter político, econômico e ideológico. Ele é a marca do moderno,
pois criticou várias concepções medievais em política (criando os Três Poderes),
direito (consolidação da propriedade privada), filosofia (racionalismo e empirismo)
e contestou boa parte do poder da Igreja ao questionar a monarquia, seu maior
braço político, ainda que até a ascensão e queda de Napoleão Bonaparte. A lâmina
da guilhotina caindo sobre a cabeça de Luís XVI e de Maria Antonieta foi o símbolo
da Revolução Francesa e da ascensão da burguesia ao poder na França.
De acordo com Gadotti,
Entre os iluministas destaca-se Jean-Jacques Rousseau que inau-
gurou uma nova era na história da educação. Ele se constitui no
marco que divide a velha e a nova escola. Suas obras com grande
atualidade são lidas até hoje. Entre elas citamos Sobre a desigualda-
de entre os homens, O contrato social e Emílio. Rousseau resgata pri-
mordialmente a relação entre a educação e a política. Centraliza,
pela primeira vez, o tema da infância na educação. A partir dele a
criança não será mais considerada um adulto em miniatura; ela
vive em um mundo próprio que é preciso compreender: o edu-
cador para educar deve fazer-se educando de seu educando; a
criança nasce boa, o adulto, com sua falsa concepção da vida, é
que perverte a criança (2005, p. 86).
Rousseau, filósofo, ligado ao Iluminismo francês, reivindicava os direitos in-
dividuais e, consequentemente civis, para a burguesia. Embora não estivesse preo-
cupado com as classes mais pobres, sua ideologia, de certa forma, também resultou
em benefícios a esta. Apesar de propor-se a viver pobre e tendo uma vida simples,
Rousseau esteve, quando adulto, ligado a pessoas ricas, sendo até mesmo secretário
da embaixada da França em Veneza. Foi este novo mundo que permitiu surgirem
pensadores como Rousseau. Em relação à didática, a proposta de Rousseau é inédi-
ta porque torna a criança o centro da educação, tal como nunca antes ela fora.
Não se conhece a infância; no caminho das falsas idéias que se
têm, quanto mais se anda, mais se fica perdido. Os mais sábios
prendem-se ao que aos homens importa saber, sem considerar o
que as crianças estão em condições de aprender. Procuram sem-
pre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser
criança (ROUSSEAU, 2004, p. 4).
Segundo o próprio autor na obra Emílio ou da Educação, “tudo está bem quan-
do sai das mãos do autor das coisas, tudo degenera entre as mãos do homem” (2004,
p. 7). Portanto a educação do aluno imaginário “Emílio”, rico e órfão, é inspirada na

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natureza (essa natureza não é somente o ambiente, mas também o próprio ser em
desenvolvimento). Logo, a realidade natural, o mundo como se apresenta, é a gran-
de escola para o homem, pelo menos dos 0 aos 12 anos de idade. Assim, Rousseau
inicia a transformação da sociedade medieval (que não permitia espaço para o indi-
víduo fora da comunidade, dos costumes, entendendo até que um modelo de ho-
mem autossuficiente era pecado, porque tal homem não precisaria de Deus nem da
Igreja para se orientar) para a sociedade moderna em que o Emílio tem o objetivo de:
“[...] formar um homem livre, capaz de se defender contra todos os constrangimentos.
E, para formar um homem livre, há apenas um meio: tratá-lo como um ser livre,
respeitar a liberdade da criança.” (LAUNAY, 2004, p. XX). Sendo assim,
A obra se apresentou de fato como um romance psicológico e
como um manifesto educativo [...], mas ao mesmo tempo é um
tratado de antropologia filosófica, enquanto expõe uma concep-
ção precisa do homem natural, racional e moral, além do itinerá-
rio da sua formação, e um texto político relevante. O tema fun-
damental do Emílio consiste na teorização de uma educação do
homem enquanto tal (e não do homem como cidadão) através
de seu “retorno à natureza”, ou seja, à centralidade das necessi-
dades mais profundas e essenciais da criança, ao respeito pelos
seus ritmos de crescimento e à valorização das características
específicas da idade infantil (CAMBI, 1999, p. 345).
Interessante é observar que o sentido da palavra natureza assume três possí-
veis significados ao longo de sua obra. O primeiro opõe-se àquilo que é social. O
segundo, como tudo o que é valorização das necessidades espontâneas das crian-
ças e dos processos livres de crescimento. O terceiro, como exigência de um con-
tínuo contato com um ambiente físico não urbano e, por isso, considerado mais
genuíno. Rousseau queria, com sua proposta, levar Emílio para fora dos ambien-
tes urbanos da época, para que ele não se deixasse influenciar por aquilo que o
autor chamava de corrupção, a saber, a forma como era praticada a religião, espe-
cialmente o cristianismo católico e a política, para ele tirânica, pré-revolucionária,
da corte de Luís XVI.
Com uma educação livre, no campo, sob os auspícios da natureza e, principal-
mente, sob suas condições adversas e sob intempéries, Rousseau esperava que sur-
gisse em Emílio a vontade pela educação, isto é, o personagem rousseauniano não
deveria ser ensinado de forma dogmática, como era na escola tradicional, por pre-
ceptores tradicionais que ensinavam lições com planos preestabelecidos. Para Rous-
seau, este tipo de aula era tediosa, especialmente para as crianças, mas sua didática
compreendia o ensino a partir da necessidade: “[...] vede que raramente cabe a vós
propor o que ele deve aprender; cabe a ele desejá-lo, procurá-lo, encontrá-lo; cabe a
vós colocá-lo ao seu alcance, fazer habilmente nascer esse desejo e fornecer-lhe os
meios de satisfazê-lo” (ROUSSEAU, 2004, p. 235-6).

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Rousseau era contra as aulas em forma de discurso, como aparece em seu Ter-
ceiro Livro (p. 236ss.), no Emílio, em que narra uma aula de geografia, analisando que,
durante as lições sobre os pontos cardeais, de repente, em meio à sua explicação, o
aluno poderá interrompê-lo perguntando: “Para que tudo isso?”. Ao que ele reflete:
De quantas coisas aproveitarei a oportunidade para instruí-lo
em resposta à sua pergunta, sobretudo se tivermos testemunhas
para nossa conversa. Falar-lhe-ei sobre a utilidade das viagens,
sobre as vantagens do comércio, [...] sobre os costumes dos di-
ferentes povos, sobre o cálculo do retorno das estações para a
agricultura, sobre a arte da navegação, sobre a maneira de se
guiar no mar seguindo exatamente a rota, quando não se sabe
onde se está [...] (Ibid., p. 236-7).
Neste trecho, o autor propõe sua didática. Quando o aluno está perdendo o
interesse pela aula, deve-se parar e refletir com ele se aquela aula não serve para
nada. Mas Rousseau não abandona simplesmente a lição, ele cria então uma situação
real em que Emílio precisará da geografia para se orientar, com esperanças de que
ele entenda o sentido dos estudos de orientação.
Observávamos a posição da floresta de Montmorency quando
ele me interrompeu com sua inoportuna pergunta: Para que ser-
ve isso? Tens razão, disse-lhe eu, precisamos pensar bastante nis-
so; e, se acharmos que este trabalho não serve para nada, não
voltaremos a ele [...] Ocupamo-nos com outra coisa e não se fala
mais de geografia pelo resto do dia (Ibid., p. 236).
Observa-se que Rousseau não obriga seu discípulo a continuar os estudos
quando não há interesse neles por parte do aluno, nem demonstra qualquer aborre-
cimento por causa disso. Ao contrário, traça estratégias para que o aluno se interesse
e que, enfim, ele possa construir seus próprios conceitos, neste caso, de geografia e
dos pontos cardeais.
Uma grande lição de vida, para o garoto Emílio, é quando seu mestre simula
que estão perdidos em plena floresta e lhe pergunta: “Meu caro Emílio, como fare-
mos para sair daqui? Emílio: Não sei, estou cansado; estou com fome; estou com
sede; não aguento mais” (Ibid., p. 237-9).
No desfecho da história, preceptor e mestre encontram com sucesso o caminho
de casa para o almoço. Portanto, a didática rousseauniana consiste em não propria-
mente ensinar ao aluno o que não lhe interessa aprender, mas criar condições para que
ele aprenda pela necessidade natural, de acordo com a realidade/dificuldade que se
apresenta diante dele, para, deste modo, aprender o valor das lições que os mestres
ensinam, sem que seja obrigado, sem que tenha que memorizar o conhecimento.

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Conclusão
Para Rousseau, importante era não confundir aprendizagem com aquisição de
conhecimentos (método natural), pois o conhecimento deve ser construído, e todos
possuem conhecimento. “Fazei com que o vosso pupilo esteja atento aos fenôme-
nos da natureza e, em breve, o tornareis curioso” (2004, p. 178).
Finalmente, o método natural consiste em que a criança “aprenda por si só,
que a razão dirija a própria experiência [...] Se o vosso educando não aprender nada
convosco, aprenderá com os outros [...] A falta da prática do pensar, durante a in-
fância, retira dela essa faculdade para o resto da vida” (2004, p. 114-5). O autor de
Emílio entende razão no mesmo sentido dos iluministas, a saber, que ela é o estabe-
lecimento do raciocínio lógico, considerado conhecimento inteligente, única facul-
dade que poderá, efetivamente, possibilitar a existência de um homem livre, que,
criado na liberdade e na igualdade, não suporte a tirania ou a injustiça, nem aqueles
que a pregam. Emílio é o modelo por excelência de homem moderno, um homem
que odeia a servidão sob todas as suas formas.
De acordo com os pressupostos de Rousseau, o homem deveria ser livre,
sendo protagonista de sua própria história, tendo o poder de criar, recriar e cons-
truir uma nova realidade social. Nesse prisma, verifica-se a necessidade, no contex-
to atual, de o homem pensar políticas públicas que garantam seus direitos e deveres,
para o pleno exercício de sua cidadania. Assim, faz-se necessário implantar políticas
públicas educacionais eficientes para a erradicação do analfabetismo e a redução da
reprovação e da evasão, na busca de transformar a sociedade. Nesse sentido, a esco-
la atual precisa vivenciar uma gestão democrática, que permita a todos, coletiva-
mente, participarem ativamente do processo de transmissão, assimilação e produ-
ção de conhecimentos que perpassam a realidade escolar, considerando que é atra-
vés da escola que o sujeito aprendiz se liberta da alienação e, assim, poderá tomar
uma nova atitude enquanto agente político, mudando a sua realidade social.

Referências

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.


GADOTTI, Moacir. História das Idéias Pedagógicas. 8. ed. São Paulo: Ática, 2005.
LAUNAY, Michel. Introdução ao Emílio ou da Educação. In: Emílio ou Da Educação.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da Educação. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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