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ATIENZA
Os Sobreviventes
da Atlântida
Título original: Los supervivientes de la Atlántida
© 1978, Ediciones Martinez Roca, S. A.
Notas...................................................................................... 185
Prólogo: morte e exéquias por um humanismo
integral
Muitas vezes, a relação entre fatos que nada têm entre si, pelo
menos aparentemente, surge por acaso. Também por acaso, um dia dei
o primeiro passo pelo labirinto de um mundo que não está explicado
nos livros da história, mas que existe, latente, na névoa de um passado
que nos querem apresentar como diáfano e que está muito longe de sê-
lo. Este passo não o dei com uma intenção pré-concebida.
Foi a curiosidade o que me levou direito à surpresa e, a partir dela,
à convicção pela qual, desde então, me tenho certificado cada dia com
provas que parecem surgir dos pontos mais inesperados. Era o
primeiro elo de uma cadeia que se prolongava em ambos os sentidos,
até ao presente e num passado perdido na mais profunda ignorância.
Aconteceu (sim, quero contá-lo neste caso tal como foi, ainda que,
de um modo geral, sinta apreensão pelos processos na primeira
pessoa) que em determinado momento desejei conhecer alguma coisa
acerca dos movimentos peninsulares da ordem dos Templários. A
minha primeira surpresa ficou a dever-se à quase nula bibliografia que
existe no nosso pais sobre os templários: um estudo incompleto e
quase desconhecido .do século XVIII, escrito por Campomanes,
alguns livros baseados nos documentos conservados nos arquivos
históricos, e algumas alusões — escassíssimas — nos livros de
história mais minuciosos.
Contudo, desde que a ordem dos Templários se estabeleceu em
território peninsular, pouco depois da sua fundação em 1118, até que o
concilio de Vienne a condenou definitivamente em 1312, os cavaleiros
templários foram, de fato, elementos fundamentais na política e na
própria vida dos reinos hispânicos, e a sua influência manteve-se até
muito depois do seu desaparecimento. Vejamos alguns fatos que
tornarão ainda mais insólito o silêncio dos historiadores.
Pouco depois de fundada a Ordem, e mesmo antes de serem
aprovadas as suas normas no concilio de Troyes (1128), o reino de
Portugal, que começava então a ter personalidade política própria,
acolhia-os no seu território e concedia-lhes terras para bailias e
comendas.
Em 1134 — apenas seis anos depois do reconhecimento oficial dos
templários e das normas que para eles preparara Bernardo de Claraval
— Afonso I, o Batalhador, rei de Aragão e Navarra, nomeia-os no seu
testamento herdeiros dos seus reinos, com a condição de
compartilharem o governo com as ordens mais antigas do Hospital e
do Santo Sepulcro.
Só a reação imediata dos nobres aragoneses e navarros permitiu
que esse testamento não se chegasse a cumprir. Mesmo assim, os
templários cederam os seus direitos em troca do seu estabelecimento
definitivo nos dois reinos. Convém ainda esclarecer o seguinte: o
reino de Aragão foi entregue pela nobreza precisamente a Ramiro II, a
quem chamaram o Monge, porque, até ao momento de ser proclamado
rei, foi frade num convento beneditino, e não se pode esquecer que
nessa altura o mais qualificado representante da ordem beneditina
reformada era Bernardo de Claraval, artífice da reforma cistercense e
aparentado com dois dos fundadores dos Templários, para cuja ordem
mandou escrever o Regulamento que tinha sido aprovado no concilio
de Troyes. 2
Os monges templários, estabelecidos com toda a sua força política
e militar em Aragão e na Catalunha, foram em grande parte os árbitros
da Reconquista empreendida pelos seus reis até 1312, e
provavelmente influenciaram de modo decisivo esse fenômeno
histórico que se chamou «expansão mediterrânica da coroa de
Aragão». O mais popular daqueles reis — se não o mais ilustre —,
Jaime I, foi durante dois anos da sua infância pupilo dos templários do
castelo de Monzón que, sem dúvida alguma, influenciaram de modo
decisivo a sua política de expansão territorial. Posteriormente, a
Ordem dos Templários, através dos seus representantes nas Cortes,
influiria definitivamente na política catalã-aragonesa.
Se levarmos em conta alguns fatos que apenas passaram por ser
meros pormenores aparentes, comprovaremos que, por exemplo, os
templários pensavam já em fixar-se na ilha de Mallorca cem anos
antes da sua conquista, porque o nome desta ilha aparecia já na divisão
das províncias templárias fixada pelo primeiro Superior de França,
Payen de Montdinier, em 1130, por incumbência do Primeiro Grande
Mestre e fundador da ordem, Hugues de Payns.
Se provarmos — e tê-mo-lo como certo — que no seu
estabelecimento nos reinos de Leão, Portugal e Castela, os templários
seguiram uma política paralela, chegaremos a conclusão de que a idéia
de um estabelecimento em determinados lugares da Península Ibérica
era um fim para o qual apontavam, praticamente, desde o momento da
sua fundação. Nas suas intervenções junto dos monarcas pediam — e
obtinham, como podemos comprovar — possessões muito específicas
que lhes eram prometidas quando os territórios ainda não tinham sido
conquistados aos muçulmanos. E, se estudarmos um pouco a fundo
estes territórios solicitados pelos templários, veremos sem grande
dificuldade que a escolha dos monges brancos não era baseada em fins
estratégicos nem — na maioria das vezes — em interesses
econômicos diretos. Por que é que pediam precisamente aquelas
terras, que eles não podiam conhecer diretamente visto estarem na
possa do Islão?
A repetição destas circunstâncias tornaria mais apaixonante o
aprofundar do estudo da ordem dos templários na Península. Havia
ainda outros pontos que despertavam a curiosidade: em primeiro lugar
o já mencionado silêncio dos historiadores sobre estes fatos e o
trabalho geral dos templários. Apenas algumas referências, umas
alusões que parecem querer tirar significado à sua verdadeira
importância em benefício das outras ordens militares exclusivamente
ibéricas, mas nascidas ao abrigo — e inclusive como reação
nacionalista — da todo poderosa ordem multinacional dos
Templários. Mais ainda: o fato incontestável de que, enquanto em
França, seu país de origem, a ordem foi brutalmente destruída;
queimados publicamente os seus máximos representantes e
perseguidos, presos e mortos a maior parte dos seus membros, nos
reinos da Península tudo se resumiu a uns processos quase
circunstanciais em Salamanca e Tarragona uma discreta dissolução da
ordem, cumprindo o mandato de Roma, e a quase imediata
incorporação dos seus cavaleiros em novas ordens criadas
praticamente para eles — a ordem de Cristo em Portugal, a de
Montesa na Coroa de Aragão — ou, com prerrogativas e cargos, às
ordens já existentes de Santiago, Alcântara e, sobretudo Cala-trava.
Procurei por donde pude, acumulei todos os dados que me
chegaram às mãos e, com todas as referências obtidas marquei sobre
um mapa mudo da Península todos os lugares que, pelas referências
obtidas, tinham relação com os templários. As possessões templárias
espalhavam-se por todo o norte e ocidente da Península, chegavam
pelo lado do sudoeste aos limites das atuais províncias de Huelva e
Sevilha e, pela costa oriental, chegavam até enclave murciano de
Caravaca. Além disso, a partir do centro de Aragão, as cruzes
templárias deslocavam-se em direção à nascente do Douro, até
alcançar o coração da terra Soriana.
Umas cruzes sobre o mapa era tudo, por agora. Mas, porquê cruzes
precisamente naqueles lugares?
A comparação quase casual com outro mapa deu-me a resposta.
Era a resposta que, naquele momento, apenas significava um pouco
mais que uma constatação pouco explicável; mas era impossível
considerá-la como casual: os templários peninsulares tinham-se
expandido precisamente por toda a área da cultura megalítica pré-
histórica. E por aquelas comarcas de onde se encontrava o testemunho
mais importante da cultura do vaso campaniforme.
Para além de explicações circunstanciais que podemos obter dos
arqueólogos, a cultura megalítica é a manifestação religiosa cultural
mais estranha e inexplicável de toda a pré-história. Expande-se por
zonas bem determinadas da Terra ao longo dos séculos obscuros,
prolongando-se no passado até à Idade da Pedra Lascada — se me é
permitido usar ainda este nome —, projetando-se em plena época do
Bronze. O significado dos monumentos megalíticos — menhires,
dólmenes, cromlechs, alinhamentos ou pedras oscilantes, plataformas
e túmulos, navetas ou monumentos em T — suscita uma quantidade
de perguntas que não têm uma resposta racional sinceramente válida.
Diz-se, por.exemplo, — um exemplo entre muitos — que se trata na
sua maioria de monumentos funerários ou comemorativos. O fato é
que debaixo de muitos dólmenes foram encontradas sepulturas. Mas
se tomarmos em consideração que na maioria dos casos essas
sepulturas se referem a datas muito diferentes, que vão
ocasionalmente desde o neolítico até à dominação visigótica, poderia
pensar-se — e com fortes razões — que os dólmenes não eram
sagrados por servirem de sepulturas, mas que pelo contrário, as
pessoas desejavam ser enterradas neles pelo seu caráter de monumento
sagrado: de templo.
Cavemos um pouco mais fundo. Demos crédito aos arqueólogos
que estudaram minuciosamente a cultura megalítica, e veremos como,
por exemplo, Ferdinand Niel 4 constata, comparando estruturas
cranianas dos restos encontrados nas escavações megalíticas que os
homens que erigiram aqueles monumentos — os que os utilizaram —
não correspondiam a um povo determinado. E acrescenta: «É como se
uma espécie de missionários, portadores de uma idéia e de uma
técnica, originários de um centro desconhecido, tivessem percorrido o
mundo. A sua rota principal foram os mares. Estes propagandistas
teriam estabelecido contato com determinadas tribos e não com outras,
o que poderia explicar as zonas claras nas que não aparecem
megalitos... Isto explicaria também o como é o porquê dos
monumentos megalíticos se sobreporem à civilização neolítica. Ter-
se-ia também uma explicação de todas as lendas que atribuem a sua
construção a seres sobrenaturais. Saber-se-ia igualmente como
homens'capazes de pôr vertical' mente blocos de trezentas toneladas e
de levantar blocos de pedra de cem mil quilos não nos tenham deixado
mais vestígios do seu saber. Porque é bem claro que estes missionários
limitaram-se a tentar convencer (e a ensinar, diria eu) autóctones a
erigirem dólmenes e menhires».
Mais adiante teremos oportunidade de voltar a este tema dos
megalitos, mais pormenorizadamente. Poderemos constatar então,
possivelmente, as razões pelas quais o povo, ainda nos nossos dias,
lhes rende um culto incerto que transforma estes monumentos
misteriosos em pedras de Roldán ou em casas de fadas ou em covas de
mouros.
Referir-nos-emos às tradições que atribuem a sua construção a
anões ou a gigantes, às superstições ainda vigentes que lhes atribuem
virtudes curativas ou que os convertem em esconderijos de tesouros
fabulosos. Tradições que ocasionaram a triste conseqüência, repetida
até à saciedade, de que muitos destes monumentos tivessem sido já
profanados pelo povo quando os estudiosos chegaram para iniciar o
seu estudo.
Mas por agora vamos contentar-nos com a constatação, já
mencionada atrás de que os Monges Guerreiros da ordem
OS NÚCLEOS MÁGICOS
Fig. 7 — Não multo longe do último reduto templário da Andaluzia Villalba dei Alcor, está o
dólmen de Soto, um dos templos megalíticos mais Impressionantes da Península
4 A IDADE DE OURO
Fig. 9 — Este cervo pintado as grutas do Monte Castilho, encontra-se num dos lugares
mais inacessíveis da caverna. Para chegar até ele têm de se conhecer os sinais indicadores
Depois disse Yavé a Noé: «Entra na arca tu e toda a tua casa. pois
apenas tu foste considerado justo nesta geração» (Gênesis, 7, 1)
Dizíamos anteriormente, comentando as variações da lenda atlante
do lago de Sanabria, que as figuras do justo e do mestre vão sempre
unidas ao mito universal da Jauja desaparecida.
Já temos aqui essa figura, quase nas primeiras páginas das
Escrituras Sagradas do povo judeu.
Tais mestres dos mitos, por vezes, vêm ao encontro dos homens.
Outras vezes são os homens que se deslocam em longas e difíceis
peregrinações para procurá-los. Em ambos os casos, justos ou mestres,
eventualmente elevados à categoria de deuses nos mitos, ensinam aos.
homens as fontes originais de todo o saber: a agricultura, a
domesticação dos animais, a ai te da construção, a ciência de navegar.
Mas, antes de chegar ao seu destino, os vários Noés das
mitologias, sob os mais diversos — se bem que em ocasiões não tão
diferentes — nomes, tiveram de recorrer um longo caminho
escapando ao desastre que acabou com todos os seus.
Na Grécia, Noé chamou-se Deucalión. Foi filho de Prometeo e,
com sua esposa Pirra, o único homem salvo do dilúvio enviado por
Zeus para exterminar a raça corrompida.
Numa nave construída sob a orientação do seu próprio pai,
Deucalión e Pirra navegaram durante nove dias, até que a nave se
deteve no alto do monte Parnaso. O oráculo de Temis augurou-lhes
que seriam os regeneradores da raça humana e que, para isso,
deveriam tapar as suas cabeças e deitar para trás deles os ossos de sua
mãe. Os náufragos interpretaram o oráculo à sua maneira e,
concluindo que aquela mãe seria na realidade a mãe terra, deitaram
pedras para trás de si. Das que deitou Pirra nasceram deuses; das que
deitou Deucalión, homens. A história foi narrada por Ovídio
(Metamorfoses, 1, 260 e seguintes).
Na Índia, o náufrago divino chama-se Manú. O primeiro Manú —
pois de acordo com a mitologia hindu houve mais catorze,
personagens heróicas e cabeças de manwatara — 1 construiu uma nave
para se livrar do dilúvio ordenado por Brahma. A nave, acabado o
dilúvio, ficou também sobre um monte, enquanto as águas
regressavam aos seus caudais. Este primeiro Manú foi o pai do gênero
humano, segundo o Rig Veda.
O Noé das mitologias nórdicas chama-se Bergelmir. Conta o seu
mito que os filhos de Bör mataram Iotne Ymir, a personificação do
deus original. Das suas feridas correu tanto sangue que inundou o
mundo e apenas um homem se salvou, Bergelmir, montado com sua
esposa num odre — de vinho, claro —. Dele procede a raça dos
hrimthursars.
No México, Noé chamou-se Nala. No Peru, Viracocha. Na Pérsia,
Yima. Entre os Celtas, Dwifah. E entre os babilônios, Oanes. E Oanes
aparece-nos já, claramente, como o mestre — vindo-das-águas. Os
babilônicos, devido às suas condições de vida num território
continental como aquele que habitavam, dificilmente poderiam ter-se
convertido em homens do mar. Apenas tinham uma saída estreita para
o Eritreu. Contudo, chamavam ao mar «A mansão da sabedoria». E
isto porque em tempos remotos - remotos já para eles — surgiu de
Apsu (o vasto oceano) o homem-peixe Oanes, um ser de aparência
monstruosa e de inteligência privilegiada, de corpo escamoso, com
cabeça humana e fortes braços. Todas as manhãs, durante tempo
indefinido, Oanes saía da água e ensinava aos homens todo o seu
saber: a lei, a arte, a ciência, a matemática, a geometria, os segredos
da construção e a ciência do governo. Todas as noites, Oanes
desaparecia no meio das ondas até à manhã seguinte. E graças a ele —
continua a contar o mito — os babilônicos construíram estaleiros em
Ninive e em Turbar-Sip, trouxeram madeira da Armênia e recrutaram
carpinteiros das regiões mediterrânicas para construir uma poderosa
frota.
Abandonemos agora o mito e fixemos a atenção, por momentos,
na realidade histórica que a arqueologia nos possibilita entrever. Após
um longo período em que a raça humana primitiva caçou em
condições adversas de clima e devido às particularidades naturais —
raça de Neanderthal, paleolítico inferior —, sucedem-se quinze mil
anos aproximadamente com um povo muito mais evoluído de
caçadores — raça Cró-Magnon, paleolítico superior — e apenas cinco
mil anos do chamado marasmo mesolítico. Surge então um período
que começa uns quatro mil e quinhentos anos antes de Cristo e no
qual, súbita e prodigiosamente, se verificam circunstâncias evolutivas
singulares:
O homem aprende a arte da agricultura
Domestica animais
Descobre o segredo da cerâmica
Inventa a roda
Aplica novas técnicas para transformar a pedra num instrumento
realmente útil e funcional
Veste-se com tecidos Conhece técnicas cirúrgicas 2
Adquire, por fim, uma consciência religiosa definida
Procuremos mostrar-nos lúcidos e, mesmo com o risco de voltar a
referir o que há pouco se enumerou, sobrecarreguemos a nossa
inteligência com períodos de tempo que poderão pôr-nos os cabelos
em pé devido à sua extensão: 300 000 — ou talvez 500 000 - anos de
Neanderthal. 15 000 anos de Cró-Magnon. 4000 anos de mesolítico
obscuro E um mundo subitamente evoluído que anuncia diretamente a
passagem, sem solução de continuidade, às origens do mundo
moderno!
Se analisarmos o fenômeno, se bem que na análise não possamos
prescindir de um certo entusiasmo, teremos que chegar à conclusão de
que o homem de Cró-Magnon, com as chaves técnicas de que
dispunha, dificilmente poderia ter dado por si e em tão curto espaço de
tempo um passo tão grande na sua evolução.
Não temos qualquer motivo para negar a teoria de Gordon Childe,
pela qual a técnica da cultura dos cereais poderá ter surgido através da
observação direta do modo de como se desenvolviam na natureza os
cereais silvestres que foram os antecedentes próximos do trigo e da
cevada: a alforja e a escândea 3
O homem, nesse caso, pode ter interrompido o seu constante
caminhar num lugar apto para a cultura das sementes, e esperar que as
espigas dessem grão. Mas, que acontece no caso da videira, que foi
uma das primeiras culturas racionais do homem?
Pensemos um pouco: a videira — e a sua imediata aplicação, a
droga alcoólica produto da sua fermentação - necessita de vários anos
para que a cepa plantada dê os seus primeiros frutos; e mais anos
ainda para que o sumo desses frutos, convenientemente prensado,
fermente e produza vinho. Perguntemos sobre as dificuldades da sua
manutenção a qualquer agricultor das nossas regiões vinícolas.
Pois bem, apesar dessa circunstância e também de que as bebidas
que provêm da videira não são alimentos básicos da humanidade as
vinhas foram as primeiras culturas que a espécie humana empreendeu
neste período da sua evolução.
Noé, agricultor, começou a lavrar a terra e plantou uma vinha.
Bebeu do seu vinho, embriagou-se e ficou nú meio da sua tenda
(Gênesis, 9, 20-21).
A fermentação do sumo da uva implica um conhecimento — ou
uma intuição — da química. A arte da cerâmica implica também uma
ampliação, consciente ou inconsciente, de princípios químicos, posto
que, para a sua fabricação, é necessário expulsar, por meio de calor,
algumas moléculas de água do silicato alumínico hidratado que
constitui a componente básica da argila.' Tudo, em suma, nos conduz a
um determinado instante da pré-história em que o homem, devido a
qualquer fator externo que as descobertas arqueológicas não
revelaram, recebe certos conhecimentos que, por si só, não podia ter
adquirido em tão curto espaço de tempo.
Uns conhecimentos e umas técnicas que, se acreditamos nos mitos
— e os mitos são sempre uma fonte importante, quando escasseiam as
descobertas — foram ensinados pelos homens oriundos do mar. Seres
humanos transformados ocasionalmente em deuses; homens que
surgiram das águas ou chegaram às costas sobre naves desconhecidas.
Voltaremos de novo a esta questão, mas agora interessa-nos
determinar, se bem que de forma esquemática, até que ponto os
indícios Noé se encontram nas terras peninsulares.
Noé, o patriarca, o mestre, o homem que sobreviveu ao desastre do
Dilúvio Universal, está presente, e não apenas com topônimos, na
geografia ibérica.
Na Galiza fica a ria de Noya e a terra com o mesmo nome nas suas
margens, a menos de quarenta quilômetros de Santiago de
Compostela. Sobre o escudo de Noya vê-se a arca das Escrituras
Sagradas, e a tradição local afirma que a cidade foi fundada por uma
filha de Noé, chamada Noela, e que a arca ainda está enterrada,
contrariando o que diz a Bíblia, no monte Barbanza que domina a
cidade.
O MITO DE OSÍRIS
Nuit — a noite, o firmamento escuro — e Geb — a Terra —
tiveram três filhos: Osíris, Isis e Seth. Osíris casou com sua irmã Isis
e, depois de ter fundado Tebas, depois de ter escrito as leis para o
povo e de ter instituído os cultos e ensinado a agricultura, iniciou
expedições colonizadoras, deixando Isis como governadora dos seus
estados. Quando regressou, o seu irmão Seth, com a ajuda de setenta e
dois cúmplices governadores ou chefes de tribos do seu reino,
organizou um banquete em honra de Osíris e assassinou-o, metendo o
seu corpo numa arca e lançando-o ao Nilo. A arca contendo o corpo
de Osíris foi dar às proximidades de Tiro, a madeira de acácia de que
era feita deitou raízes1 e ali permaneceu durante muitos anos.
Isis, irmã e esposa, procurou sem descanso o cadáver de Osíris
durante todo aquele tempo, mas, quando por fim o encontrou, foi-lhe
arrebatado novamente por Seth, que o desmembrou em catorze
bocados e espalhou-os pelo mundo. Os catorze fragmentos do corpo
de Osiris foram parar a outras tantas cidades, até que Isis, após longa e
angustiante peregrinação, os reuniu todos e lhes deu vida efêmera,
mas suficientemente fecunda para que Osiris lhe desse um filho. O
filho chamou-se Horus e foi encarregado de vingar a morte do pai e de
unificar o Egito num só reino, depois de arrebatar a Seth a sua coroa.
Comecemos agora a explicar paralelismos que possam ter ficado
um tanto perdidos pela aparente diversificação dos mitos.
Em primeiro lugar, Cronos e Seth. Cronos é a divindade que
domina o tempo; Seth é o deus do tempo meteorológico. Cronos é
ajudado pelos titãs na luta contra seu irmão Urano; Seth recebe ajuda
de setenta e dois pequenos chefes que se tornaram seus sicários.
Continuemos com Osiris. Reparte a herança de Geb (a Terra) da
mesma maneira que os ciclopes deveriam ter distribuído a herança de
Gea com Cronos e os titãs. Os seus pais, por outro lado, são idênticos:
Urano é, decididamente, o mesmo personagem que Nuit; Gea e Geb
parecem-se inclusive na própria raiz do seu nome. Mas chega o
momento em que Osiris deixa de ser protagonista para tornar-se num
objeto destroçado. Não uma, mas duas vezes. Um sacrifício diferente,
mas paralelo, ao dos ciclopes, afundados pela primeira vez no Tártaro
por Urano e conservados na sua prisão por Cronos.
Isis, no centro destes mitos, aparece como uma divindade nova —
apesar dos seus evidentes paralelismos com Vênus e inclusive com as
Fúrias e as Mélias — para surgir como uma força apaixonada que,
como poderemos comprovar, faz do mito egípcio um espécime mais
evoluído do Mito Total, já que personifica, com as suas angústias e
incessante procura —e não apenas uma vez, mas duas — a vontade de
união que implica uma evidente evolução do pensamento.
Por seu lado, Horus e Zeus constituem o que poderíamos chamar
segunda geração teológica.
Se Horus é o fruto da união de Isis com os fragmentos de Osiris,
Zeus é o filho - único não devorado - da união de Cronos e Rea.
E se Horus é o vingador da morte de seu pai Osiris e o unificador
do Egito, Zeus é o libertador dos ciclopes do Tártaro e o unificador da
tradição religiosa helênica.
As duas vezes que Seth se apodera do corpo de Osíris, lançando-o
ao Nilo na primeira vez e despedaçando-o na segunda, correspondem
às duas ocasiões em que os ciclopes são primeiro lançados ao Tártaro
por Urano e depois mantidos na sua prisão por Cronos. Esses ciclopes
ajudaram Zeus, enquanto os bocados dispersos de Osíris unidos por
Isis, procriaram Horus.
Procuremos esquematizar os paralelismos nos seus principais
elementos comuns e teremos o seguinte quadro:
c) Tentativa de rebelião
Zeus inicia a luta contra Cronos e Horus é gerado pelos bocados de
os titãs, e nessa luta, a ajuda dos Osíris reunidos por Isis.
ciclopes é fundamental para a Posteriormente será o vingador de
unificação olímpica seu pai, o assassino de Seth e o
unificador do Egito.
Fig. 11 — Tineo, nas Astúrias, tem um nome semelhante ao da cidade egípcia de Thynis
donde provinham as dinastias tinitas.
Fig. 12— A aldeia do Mosteiro do Hermo recorda imediatamente o nome do deus egípcio
Hermes-Tot
Fig. 13 — O rio asturiano Nalón, cuja raiz é a mesma que originou o nome do rio Nilo
Por outro lado, pode ainda perguntar-se que aspeto teriam aqueles
homens que, fazendo parte de um mesmo povo — irmãos, em todos os
mitos já referidos —, se odiaram de morte e criaram com as suas lutas
o gérmen da civilização nacional. O mito grego classifica-o de
gigantes. Porque gigantes, como vimos, foram tanto os ciclopes como
os titães. E gigantes foram os homens que habitaram a terra antes do
Dilúvio, segundo as Escrituras Sagradas:
«Existiam, então, os gigantes na Terra. E também depois, quando
os filhos de Deus se juntaram às filhas dos homens e geraram filhos»
(Gênesis, 6, 4).
Os gigantes aparecer-nos-ão no solo peninsular em todos os seus
aspetos: como protagonistas — ou antagonistas — de contos
populares; como origem de famílias que ainda os ostentam — por
vezes, inclusive, com certo aspeto remoto de homens marinhos —
com os seus escudos nobiliários; como habitantes mitológicos do
território ibérico em lendas posteriores — e conseqüentes com — às
que temos narrado.
Porque, não foi o gigante Gerión, guardador das vacas vermelhas,
que Hércules roubou no seu décimo trabalho7 E não foi o caminho da
Península o que seguiu para chegar até ele e roubar-lhe o seu gado?
Quanto a Hércules, voltou a atravessar de ponta a ponta a
Península a caminho de Tingis para, no seu trabalho seguinte, roubar
ao gigante Anteo as três maças de ouro do Jardim das Hespérides. E se
o décimo trabalho — o de Gerión e da sua manada - constitui uma
clara alusão à aprendizagem da arte de ganadaria, este outro contém
um simbolismo indubitável da procura do saber na ciência agrícola.
Deste modo comprovamos como, através dos mitos se vai
contatando com um povo vindo do mar depois do Dilúvio Universal
ou do cataclismo cósmico; trata-se de um povo de gigantes — muito
grego —, de magos — mito irlandês —, e de sábios—mito egípcio—,
que ensinou aos homens da Europa Mediterrânica e do próximo
Oriente os primeiros fundamentos da civilização, mas com notáveis
diferenças.
Se observarmos atentamente, verificaremos que, enquanto o ramo
disperso destes povos — cíclopes/Osíris/Thuata-de Dannan — ensina
princípios «tecnológicos» aos outros povos com quem contata no
oriente mediterrânicos, o ramo sedentário ou não viajante—
titãs/Seth/Fir-Bolg — aparece como negativa não só em relação ao
protagonismo dos seus mitos, mas também quanto ao avanço aparente
— tecnológico, visível — que proporciona aos povos autóctones com
quem convive: os povos peninsulares, os irlandeses, os habitantes da
zona oriental da França..
Abandonemos por momentos os mitos e olhemos para o fato
aparente, o fato arqueológico. Ficará bem clara essa diferença técnica
e — aparentemente cultural:
1. Por volta do ano 3700 a.c. aparecem os primeiros instrumentos
de cobre na Assíria.
2. Por volta do ano 3200 a.c. inicia-se a contração como mosaicos,
no mediterrâneo oriental.
3. Por volta do ano 2950 a.c. fabricam-se já objetos de estanho e,
na mesma época aparecem barcos à vela sulcando as costas
mediterrânicas.
Contudo, os trabalhos em pedra continuam a dominar totalmente o
ocidente europeu — e particularmente a Península Ibérica — até cerca
de 2000 a.c, em que começaram a aparecer os primeiros objetos de
cobre nas jazidas arqueológicas da chamada cultura de El Argar
(Almeria).
Significam estes fatos um atraso cultural do ocidente europeu em
relação aos países do oriente mediterrânico? Pelo menos
aparentemente assim é; e os defensores da história tradicional aceitam
essa idéia. A arqueologia, realmente, nada mais pode fazer do que
contar o que vê.
É impossível analisar a alma ou a mente dos seres humanos, dos
que apenas se conhecem o esqueleto e os objetos que usavam,
desconhecendo-se mesmo o uso real que podiam fazer deles. Apesar
disso, uma série de indícios — em parte já vistos e outros ainda para
ver — poder-nos-ão levar a uma conclusão oposta: no ocidente
europeu — e particularmente na Península Ibérica — desenvolvia-se
paralelamente à cultura tecnológica do oriente mediterrânico, uma
cultura mental, superior, menos reconhecível que a outra porque,
como parece lógico pensar, não deixou vestígios que a possam definir.
Com esta premissa, teremos de chegar à conclusão de que
protagonismos e antagonismos nos mitos — personagens míticos
positivos e negativos — são apenas apreciações pessoais que variarão
segundo a fonte donde provêm.
Seres míticos e povos serão bons ou maus conforme sejam
interpretados e julgados por amigos ou inimigos. Mas a verdade da
história, a verdade do homem, continuará a estar onde o pensamento
objetivo possa ser capaz de conduzir-nos.
7
O MITO SERPENTÁRIO
Creio que, até ao momento em que Louis Charpentier lhe deu a sua
verdadeira importância, ¹ o nome de Lug significava bem pouco para
os estudiosos do fenômeno religioso. Historiadores das religiões e da
cultura ignoram esta divindade e muitos deles — como o próprio
Frazer — 2 citam derivações suas sem terem em conta a origem dos
ritos e as crenças que não são senão restos, já quase desnaturalizados
de um culto — e podíamos mesmo dizer, de uma devoção autêntica —
bem determinado que deixou infinitas marcas vivas, muitas mais que
todos os deuses juntos do panteão greco-romano.
Devo advertir, portanto, que em grande parte deste capítulo
tomarei por base os trabalhos de Charpentier, posto que foi ele quem,
com os seus estudos e intuições, me proporcionou a matéria-prima
para o desenvolvimento de uns indícios de Lug que — estou
convencido — são fundamentais para a compreensão desse processo
que poderíamos denominar mágico da Península Ibérica. E dou à
palavra magia o significado amplo de uma indagação sobre algo que,
não tendo na verdade características especificamente sobrenaturais,
ainda não deu provas suficientes para obter a entrada nos cânones
limitados das ciências racionalistas.
Em páginas anteriores, quando relatava a história quase mítica dos
Thuata-de-Dannan, apareceu pela primeira vez este misterioso
personagem chamado Lug. Ali — vamos recordá-lo uma vez mais —
aparecia como protetor dos Thuata-de-Dannan, como principal artífice
da sua vitória definitiva sobre os FirBog, após longos anos de exílio e
de ensino entre os povos que habitavam as costas orientais do
Mediterrâneo. Durante este período de tempo indefinido, os atlantes
dispersos — de acordo com o poema Leabhar Gabhala já citado —
refugiaram-se em cavernas, dentro das quais construíram as suas
vivendas e, conviveram com os autóctones de civilização primitiva e
lhes transmitiram o saber.
Observemos, contudo, que esta transmissão de saber através dos
documentos e dos restos estudados pela arqueologia, não foi de modo
nenhum uma transmissão esotérica reservada a iniciados que tivessem
jurado guardar o segredo do conhecimento. Era pura e simplesmente
um ensino que conduziu aqueles povos a um espetacular avanço da
civilização. Foi, em suma, um ensino a nível exotérico; ou pelo menos
foi-o para a generalidade dos homens, criadores reais e beneficiários
desse ensino.
Não há, no entanto, dúvida de que houve outro ensino, desta vez
secreto, que se transmitiu ao longo da história sempre nos meios
sacerdotais — ou de profissões, ou iniciáticos de qualquer tipo —
muito restritos.
Tenhamos bem presentes estes dados, porque, chegado o
momento, poderemos comprovar como, para além de qualquer mito e
de qualquer manifestação ritual, a luta profunda entre diferentes
estamentos da humanidade teve lugar, sobretudo, entre os que
pretenderam guardar a chave do saber — e, por reflexo e em
conseqüência, também a do poder — e aqueles que têm proclamado a
igualdade dos homens no seu inalienável direito ao conhecimento. É
nem mais nem menos o mesmo problema que após séculos e séculos
chegou até nós, como poderemos comprovar se nos preocupássemos
em analisar objetivamente — e não é mais que um exemplo entre mil
— os problemas criados pelo colonialismo e os mais recentes de
descolonização. Porque faríamos muito mal em avaliar a igualdade
dos seres humanos apenas no plano econômico, se bem que o
materialismo histórico tenha de ser uma consideração absolutamente
fundamental — senão a única — na altura de calibrar e interpretar a
história da humanidade. £ muito importante o fator econômico, mas
não o é menos a luta por uma igualdade que seja capaz de dar a todos
a possibilidade de alcançar as mais distantes metas do conhecimento;
isto é: a igualdade do homem a todos os níveis.
Mas prossigamos a história narrada pelo Leabhar Gabhala,
analisando conceitos que anteriormente tínhamos passado por alto.
Há um momento do poema mítico em que aparece este Lug sobre
que desejamos esclarecer tanto as origens como a natureza e as
funções. Aparece precisamente quando os Thua-ta-de-Dannan,
dispostos a conseguir uma nova terra depois do Dilúvio, estabelecem
um pato - mágico — com o povo dos Fomoré, descritos como
gigantes donos dos mares. Observemos como também nesta história,
na que até agora os gigantes pareciam brilhar pela sua ausência, fazem
uma aparição precisamente quando se tem de decidir um destino
fundamental; exatamente o mesmo que acontece com os ciclopes do
mito helênico. Mas a aliança dos Thuata-de-Dannan com os gigantes
Fomoré é de tipo diferente, quase diríamos genético. O seu rei, Balor,
dá a sua filha por esposa a um príncipe dos Thuata: Cian, e dessa
união nascerá Lug.
A partir desse momento da história mítica irlandesa, Lug aparecer-
nos-á como um condutor nato de povos, quase como um autêntico
Messias, podemos dizer. E Messias a todos os níveis, porque Lug é
mestre em todas as artes: carpinteiro, ferreiro, vencedor em todas as
provas de força e destreza, músico, construtor, poeta, feiticeiro e
muitas coisas mais. É em suma, o encarregado estratégico de dirigir a
última batalha de Mag-Tured e alcança a vitória dos seus valendo-se
de todos os seus poderes mágicos: os guerreiros mortos serão metidos
na caldeira de Dagda e sairão dela ressuscitados e sãos, perfeitamente
aptos para voltarem ao combate; uma espessa névoa, provocada por
Lug, ocultará p avanço dos Thuata e a sua situação no campo de
batalha, até que, chegado o momento, surgirão ante os seus inimigos
pelo flanco mais fraco.
O mesmo Lug intervém diretamente na batalha e, com um disparo
certeiro da sua funda mágica, cega o gigante de um só olho que
comanda os exércitos inimigos. A história bíblica de David e Golias
aproxima-se muito deste mito.
Após estas façanhas, com o estabelecimento definitivo dos
vencedores e a sujeição pacífica dos povos autóctones — que pouco
ou nada parecem ter participado nas lutas internas dos povos atlantes
— Lug converte-se no patrono originário de todo o saber e de toda a
ciência. Perde-se a sua origem e são-lhes dadas as mais diversas
genealogias consoante predominem nele, eventualmente, uns ou
outros atributos. Mas a sua importância é fundamental e a influência
do seu culto — ou da sua memória — aparece patente até aos nossos
dias, tanto através dos topônimos que procedem dele ou dos seus
símbolos, como através de povos e de grupos humanos que dele
tomaram o nome.
Louis Charpentier descobriu uma infinidade de topônimos Lug
sobre a geografia francesa.
Quando nos embrenhamos no dédalo geográfico da Península, os
nomes Lug surgem como cogumelos. Umas vezes com a raiz
inequívoca da sua origem diretamente refletida: em Lugo, em Luco,
em Lugones, no Lluch das Baleares. Outras vezes sob a capa do
princípio feminino paralelo que acompanhou o seu culto: Lusina. O
nome aparece em Lucena, em Luceni, em Leona. Noutras ocasiões a
recordação de Lug está meio disfarçada pelos animais que o
representaram ou que representaram o seu par: o lobo, o corvo e o
ganso. Finalmente os nomes de Lug e de Lusina patentar-se-ão de um
modo diáfano através de cristianizações tardias que aconteceriam
precisamente, nos mesmos enclaves donde, ao mesmo tempo vão
aparecendo referências diretas à antiga e todo-poderosa divindade pós-
atlante. Acontece que, à volta ou dentro das zonas em que se impôs o
nome de Lug — pelas razoes que iremos vendo — encontraremos
também, e não propriamente por acaso, cultos a S. Lourenço, a S.
Lucas, a Santa Lusia e, eventualmente, a S. Lúcio e à Virgem da Luz.
Fig. 17— Concentração dos topônimos LUG na Península Ibérica. Compare-se com os
mapas que delimitam as áreas da Cultura Megalítica e do Vaso Campaniforme.
Cultos sob a forma de santuários e ermidas, monumentos que
lembram povos, barrancos, montes, e sempre em lugares muito
definidos, em núcleos geográficos nos que domina, sob um ou outro
dos seus nomes, a herança de Lug.
Mas — tal como dizíamos — o nome de Lug não se limita a
batizar localizações geográficas, também os povos que beneficiarão do
seu saber e do seu culto adotaram o seu nome.
Contudo, não creio que este nome o tenham adotado os povos
atlantes que expandiram a sua cultura — a cultura de Lug —, mas sim
aqueles outros povos mais atrasados que eles, que receberam os
ligures. Porque, apesar de sempre termos descrito os supostos atlantes
como um povo, devemos pensar que, enquanto sobreviventes de um
desastre a nível cósmico, constituíram uma minoria de seres de
civilização superior, encarregados de transmitir a sua cultura — e as
suas crenças sob a forma de magia — aos povos que encontraram
onde acabaram por fixar-se.
Muito se tem falado dos povos Ligures. Tem havido até
historiadores que negaram rotundamente a sua existência, pelo menos
na Península Ibérica. Outros, como o próprio D. Ramón Menéndez
Pidal, têm-nos designado com o patronímico de ambrones, negando
parcialmente a defesa ousada que deles tinha feito anteriormente o
professor Schulten.
Outros historiadores chamam-lhes capsienses, e outros, por fim,
conservam e defendem o primitivo nome de oestrymnicos com que,
como Já vimos atrás, os denominava o poeta latino Rufo Festo
Avieno. Vamos agora ver o que há de comum em todos estes nomes e,
sobretudo, procurar vislumbrar onde está a realidade que aparece,
comparando e calibrando, na natureza de certos povos que podem
parecer diversos e sem a menor relação.
Detenhamo-nos primeiro sobre as fontes que provocaram tanta
confusão e leiamos Hesíodo no fragmento XXXII da sua Teogonia,
quando declara: «Citas, ligures e etíopes são hipomolgos».
Hipomolgos significa, em grego, ordenhadores de éguas. Mas
podemos imaginar sem grande esforço, que este epíteto não significa
exatamente o ato que a sua tradução literal parece indicar-nos. Nos
mitos de todo o mundo, e ainda mais nos contos populares, o cavalo
vai ter uma importância fundamental enquanto montada ou suporte da
sabedoria»
Os cavalos — ou seus filhos os centauros, metade homens e
metade cavalos — aparecerão muitas vezes como mestres e como-
dirigentes do saber. Se Hesíodo chama a estes povos «ordenhadores
de éguas», parece evidente a imagem de povos que, de certo modo,
ordenham saber; povos que extraem leite de sabedoria.
Mas há algo mais: estes povos de que fala Hesíodo, vivem juntos,
de acordo com ele, não no que hoje chamamos Etiópia — se bem que
Etiópia tiraria deles o nome —, mas sim no ocidente da Europa, tal
como confirma Homero no Canto I da Odisséia: «Os etíopes,
colocados no fim do mundo, estão divididos em duas nações: uma está
virada para o poente e outra para o nascente».
Os confins do mundo eram, para os escritores do mundo clássico,
o ocidente europeu, as terras que confinam com o Oceano Atlântico.
De acordo com isso, encontramo-nos perante uma identificação destes
três povos às quais muitos escritores chamam «as três raças atlantes»,
que se personificam nas três filhas de Atlas, nas hespérides
possuidoras do jardim das Maçãs de Ouro: possuidoras, pois, do
segredo da agricultura. Aretusa, a hespéride negra seria a
personificação mítica do povo etíope de Hesíodo e Homero; Eglé, a
hespéride branca, seria a raça branca dos citas; e Hespéria, a vermelha,
o símbolo ou a personificação dos poyos ghomara.
Houve, pois na Península Ibérica uma diversidade de povos com
diferentes traços étnicos e uma característica comum: estarem fixados
no solo que habitavam, pelo menos desde muito antes de qualquer
notícia conhecida - e, sobretudo, reconhecida — de invasões proto-
históricas. A diferença de traços étnicos fica confirmada, inclusive,
pelos historiadores que se convencionou chamar racionalistas ou
tradicionalistas. Tomemos um fragmento de um deles, mas não porque
a sua citação seja mais concreta que a dos outros e traduza com
claridade e em poucas palavras este conceito geralmente aceite: «A
população espanhola do mesolítico seria um tanto amorfa
racialmente.. Talvez se assemelhasse a uma população do Norte e Este
de África, na que se encontram caracteres negroides e também
bosquimanes misturados com tipos muito evoluídos de homo sapiens
relacionados com possíveis protótipos de raças posteriores
mediterrânicas e camitas»3.
Noutro passo, referindo-se aos mesmos capsienses do parágrafo
anterior: «mais tarde deixarão na Europa crânios de homens
dolicocéfalos e branquicéfalos, e entre eles, não faltarão os de
características negróides».
Temos, pois, a evidência arqueológica de uma multiplicidade de
povos autóctones habitando a Península proto-histórica anterior à
chegada das que chamamos invasões indo-européias. Porquê então o
nome de ligures dado a estes povos pelos escritores da antigüidade
clássica? Possivelmente porque, por alguma razão bem determinada
um desses povos predominou sobre os restantes, e porque sendo
dominador por causas dimanadas dos ensinamentos recebidos pelos
homens de Lug, tomou o seu nome como crença e expandiu-o. Talvez
por isso mesmo, retomando a épocas que estavam para além da sua
lembrança histórica, Eratóstenes, ainda no século III a.c, relaciona a
Península com os povos ligures: «Desde o norte estendem-se três
penínsulas: numa delas está o Peloponeso, na segunda a Itália, na
terceira Ligustiké».
Ligustiké, terra de ligures... ou de adoradores de Lug. Um povo
que, por qualquer razão, teve de permanecer durante muito tempo
escondido, tal como os seus mestres, tal como os oestrymnicos que
foram invadidos por serpentes conforme vimos na citação de Avieno
do capítulo anterior. O mesmo escritor é quem, falando depois dos
ligures, conta no seu poema algumas particularidades desta época
infeliz de perseguição e procura de esconderijos: «São freqüentes os
lugares escarpados donde as rochas são enormes e os picos dos
montes penetram até ao céu; e certamente este povo fugitivo passou
muito tempo atemorizado nesses limites, afastado das ondas dos
mares; porque o mar era temido por eles devido aos perigos passados.
Depois, o sossego e o repouso, reanimando a audácia pela
segurança persuadiu-os a abandonar os seus covis e a aproximarem-se
das costas» (versos 137-145).
Estas citações e muitas outras — muito diferentes e procedentes na
maior parte das vezes de autores da Antigüidade — asseguraram a
Schulten, sem qualquer dúvida, a implantação ligur em Espanha.
Essa existência autóctone foi mais ou menos discutida por
Menéndez Pidal e, depois dele, por. todos os arqueólogos e
historiadores da Península. Menéndez Pidal nega a importância dos
ligures e concede, por seu lado essa mesma importância aos que ele
chama ambrones, com os que, de certo modo, os identifica. E um dos
apoios mais firmes das suas hipóteses está baseado, precisamente, nas
toponímias de raiz AMBR —, nos sufixos toponímicos — GANDA
ou — KANTA, e nos nomes com base BORM - e BAD.
Nunca poderia negar-se a importância — e inclusive a relativa
abundância — deste tipo de topônimos no solo peninsular do mesmo
modo que não há que discutir a razão dos historiadores que chamam
oestrymnicos ou oestrymnios aos povoadores autóctones da proto-
história peninsular. É que não pode haver nem discussão nem negativa
por uma razão simples: porque, para além dos nomes que possam ter
recebido nas diferentes épocas da história, batizados pelos distintos
povos que chegaram à Península na que eles já estavam anteriormente,
acontece que, mesmo se deitarmos mão de algumas simples razões
etimológicas, poderemos concluir que todos esses nomes identificam
o mesmo povo, chame-lhe cada um como queira.
Façamos uma pirueta lingüística que, talvez, não resulte tão
perigosa como possa parecer à primeiro vista. Não poderia acontecer
que a palavra ÂMBAR, se bem que a sua raiz conhecida — perdão,
insisto, reconhecida — seja árabe, tenha a sua origem num povo
ambrón que se dedicasse, de algum modo, à importação deste
material? Se assim fosse, a raiz árabe seria imediata, mas teria que
existir uma raiz anterior da qual os árabes tinham formado o seu
vocábulo.
Pois bem, se esta hipótese pode resultar aceitável, que diríamos
perante o fato de que o âmbar, em grego, se chamava ligyrion?
Tenhamos em consideração que o valor do som «Y» é o de um «u»
francês ou de um «u» germânico. Ligyrion, então, teria algo que ver
com ligur, do mesmo modo que âmbar teria que ver com o povo
ambrón.
Continuemos com estas piruetas: Júlio César, nos seus
Comentários à guerra das Gálias, refere-se a um povo, chamado dos
Ambarri, que tinha a sua sede precisamente nos territórios da Gália
Lugdunenense, isto é, a zona que hoje tem por capital Lyon, a antiga
Lugdunum: fortaleza de Lug!, território de origem ligur, portanto.
E ainda mais. Rufo Festo Avieno situa a terra dos lucis na
desembocadura do rio Tejo, que em determinado momento se chamou
rio Lyssus, ainda em tempos romanos. Estes lucis de César seriam os
fundadores'de Lisboa, a antiga Olyssipo e centro da Lusitânia. E se
assim for, os lucis de Avieno, além de proclamarem a sua origem Lug,
seriam também uma denominação primitiva dos lusitanos. E os
lusitanos são extremenhos.
E eu, com o perdão de tão valiosas como repetidas conquistas
lingüísticas, que falam de origem medieval das Extremaduras como
extremos ou limites do domínio cristão, ou como baluartes extremos
do poderio castelhano, não posso evitar o sentimento da íntima relação
entre o extremenho e o oestrymnico. E, através dessa relação e das
piruetas anteriores, considerar que oestrymnicos e ambrones — um
mesmo povo — chamaram-se a si próprios — ou chamaram-nos os
outros — ligures, precisamente porque tinham por Deus e Mestre o
próprio Lug; porque, através dele, possuíam uns conhecimentos bem
determinados; porque, graças a ele, tinham adquirido um tipo bem
definido de civilização que provocaria apesar da tecnologia lítica no
meio da qual viviam, a peregrinação de povos indo-europeus que
chegariam até aos seus territórios à procura do seu saber e da sua
cultura que, para nós, e totalmente desconhecida, porque não era
tecnológica mas mental e não deixava sinais nos restos que nos
chegaram.
Os ambrones — aestrymnicos ou capsienses - chamar-se-iam em
tal caso, ligures. E isso não por uma razão etnológica, mas por
motivos religiosos, da mesma forma que hoje chamamos cristãos aos
povos que, seja qual for a sua etnia professam a religião dos
seguidores de Cristo, para além de qualquer outra razão etnológica ou
territorial.
Ainda uma última sugestão como possível prova complementar
das hipóteses anteriores. Recordemos por um instante as invasões
bárbaras que tiveram lugar na Península com a decadência do Império
Romano do Ocidente. Além dos povos visigodos entraram os suevos,
os alanos e os vândalos. Pois bem: um ramo dos vândalos, os
asdingos, chamam-se a si próprios lugios. Faziam parte da
confederação germânica implantada pelo caudilho Marbod e
apareciam como crentes arianos já no umbral do século V, em que
emigraram para a Península. O seu centro étnico e religioso era o
bosque de Haln. Foram já citados como lugios por Tácito e Ptolomeu,
e — estranha e significativa coincidência — quando entraram no
território da Península Ibérica foram fixar-se, com os suevos,
justamente na zona noroeste, o enclave mais especificamente Lug da
Península Ibérica.
Mas não o esqueçamos: indicamos anteriormente que Lug seria a
divindade mestra deste povo que nada obriga a que não chamemos
ligur. Seria o mesmo deus - mestre que Charpentier encontrou,
difusamente espalhado, pela toponímia francesa. Lug representaria,
para os seus seguidores, o bem e a felicidade dos seres humanos, para
além dos avanços tecnológicos de que eles não precisavam, porque a
sua civilização era especificamente mental.
Lug batizaria bosques que posteriormente os colonizadores
romanos adaptariam sem mudanças, como o bosque de Lugo de
Llanera, tradicionalmente sagrado, nas Astúrias. E batizaria fontes,
montes, cavernas ...
Lug, enquanto deus-mestre, precisa de uma matéria sagrada para a
trabalhar. Uma matéria feminina que, em contato com a masculinidade
sagrada, dê um fruto também sagrado. A necessidade dos dois aspetos
masculino e feminino, é constante na história e no desenvolvimento de
todos os fenômenos religiosos e de culto. Por isso, seja qual for o
sentimento do divino que adote o homem, terá de senti-lo desde o seu
duplo aspeto masculino-pensador e feminino-criador. O feminino-
divino será a obra e o resultado do masculino-divino e, detrás de cada
divindade teremos de procurar sempre os dois aspetos
complementares.
Lug tem também a sua parte feminina. Chama-se Lusina e é algo
assim como a sua patentização, o resultado sagrado da sua obra. Por
isso Lusina, nas suas manifestações externas, aparecerá como
condutora e realizadora dos ensinamentos de Lug, como sua
mensageira, como o contato entre o imenso Lug e os seres humanos,
como mediadora e patrona dos seus saberes. Se Lug é ar e fogo,
Lusina será terra e água, matéria trabalhada e divinizada. E se o corvo
é, como o cão, o símbolo de LUG, o símbolo que identificará Lusina
será o ganso ou a ave palmípede, e será um símbolo que os homens
tomarão para si declarando-se seguidores incondicionais dos seus
ensinamentos.
Lug e Lusina não têm uma representação direta porque também
não têm imagem nem forma para os seus crentes. Como divindades
superiores, é impossível representá-los por si próprios e apenas se
pode desenhar ou citar os símbolos que os classificam. Deste modo, o
corvo de Lug e o cão de Lug terão de ser a representação gráfica da
divindade mestra do saber. E, da mesma maneira, a ave de Lusina —
ganso — será, de certo modo, a bandeira dos que captaram e exercem
o ensino de Lug: os filhos de Lusina.
Mas tomemos atenção, porque estamos em presença de
ensinamentos' exotéricos.
Já o dissemos anteriormente e há que repeti-lo uma vez mais.
Encontramo-nos perante símbolos que fazem parte — se bem que com
o tempo se tenham esquecido — do acervo cultural ao que devem ter
acesso todos os homens. Estamos, pois, muito longe do esoterismo
serpentário, guardado por uns poucos que fazem parte — ou
pretendem fazer parte — da elite de iniciados que, com os seus
conhecimentos, procuram deter o poder sobre todos os outros
membros da comunidade humana. Lug não é, de modo nenhum, uma
divindade esotérica ou oculta, se bem que uma cristianização tardia o
tenha convertido em Lucifer, diabo maldito. Lug é uma divindade
mestra, benfeitora do gênero humano, sem distinção de elites nem de
iniciações. Só se ocultará quando, com o tempo, já embrenhado no
que chamamos história tenha de enfrentar-se com os poderes
repressivos exercidos por pretensos iniciados, tanto religiosos como
políticos.
Ora, este embate secular de ensinamentos e saberes, entre o
exotérico e o esotérico, provocará também e já desde o alvor das
civilizações conhecidas, o enfrentamento dos símbolos. Precisamente
por isso, a serpente e o pássaro — repitamo-lo: quase sempre
palmípede — serão inimigos irreconciliáveis. Teremos ocasião de
constatá-lo continuamente. Iremos ver disfarces serpentários
perseguindo inocentes palmípedes nas festas populares da meseta. E
comprovaremos que se a ave sagrada dos egípcios foi precisamente o
íbis — um palmípede - é porque o seu alimento, segundo a idéia
popular, eram as serpentes do Nilo.
Não esqueçamos o confronto desta dualidade. Poderemos constatá-
la sobre o terreno muito mais' vezes do que agora poderíamos
imaginar.
9
Fig. 20 — A torre de Idafe, na ilha de La Palma, foi altar sagrado dos guanches, como a
Caldeia de Taburiente, para o qual dá passagem.
Fig. 21 — Uma múmia guanche. Este povo canário assemelhava-se aos egípcios no
costume de embalsamar os seus mortos. Talvez os tenha mesmo precedido.
e aos números 1 a 5.
O segundo grupo, chamado do H, incluiria os fonemas
equivalentes a
e os números 6 a 10.
O terceiro grupo chamar-se-ia do M, e compreenderia os fonemas
correspondentes a
e os números 11 a 15.
O quarto grupo, chamado das vogais, estaria formado pelas
seguintes:
10
São rostos sem boca. Rostos de seres que não podem falar rostos,
pois, que mantêm o segredo do que sabem e não podem transmiti-lo
aos outros, porque são rostos de iniciados, de um mestre ou de um
adepto que deve manter em segredo os ensinamentos recebidos. O
mesmo — exatamente o mesmo — que o iniciado esculpido no capitel
do abside de San Pantaleón de Losa (Século XII), que mantém a boca
fechada e apresenta as mãos, mostrando o sentido secreto da arte
iniciática da construção.
A CABEÇA DE JANO
AS PEDRAS DE ROLDÁN
Fig. 28 — O dólmen burgalês de mazariegos, um «tos maiores e mais completos dos que
se encontram à altura do paralelo 42.
Megalitos de todos os tipos — excetuando talvez os alinhamentos
— multiplicam-se por estas zonas peninsulares que temos assinalado.
E estou certo de que houve na antigüidade — mesmo na menos
remota — muitos mais, hoje desaparecidos, se bem que se conserva a
sua lembrança nos topônimos de muitos lugares, em muitas terras:
Pedrozas, Piedrahitas, Tragoarri(8), Antas(9), Teriñuelos(10).
Se procuramos assimilar as explicações arqueológicas que se
deram a propósito da origem e desenvolvimento da cultura dolménica,
o único que teremos oportunidade de comprovar será infelizmente, a
absoluta falta de critério unitário de uma tal diversidade de teorias e de
explicações que dificilmente poderíamos resumir num esquema geral
que pudesse conduzir o estudioso ou o amante da história antiga por
um caminho claro e compreensível. Jaime Vicens Vives, que foi até à
sua morte um dos poucos historiadores lúcidos entre os espanhóis e
mais amante da verdade — por muitas dúvidas que levantasse — que
de teorias alicerçadas no ar, diz: «Nos meus bons tempos, o neófito
pré-historiador tinha de ser ocidentalista, sobretudo na questão dos
megalitos. Agora, pelo contrário, tudo provém do Oriente» (¹¹)
A seguir a este parágrafo, também ele expõe a sua convicção,
baseado na origem oriental da cultura megalítica. Não o analisaremos
nem o criticaremos agora; limitar-nos-emos a expor a realidade geral
tal como aparece na Península e é aceite pela maioria dos pré-
historiadores. Seguirei para isso a exposição do professor Alberto dei
Castillo(¹²), com a advertência — apresentada por ele próprio — de
que a grande maioria dos estudiosos espanhóis duvidam desde Bosch
Gimpera até Pericot, da existência de um autêntico neolítico
Peninsular. O próprio Luis Pericot, depois de um estudo minucioso
das grutas valencianas, comprova que unicamente a cerâmica aparece
como elemento próprio deste período, enquanto que os restantes
utensílios continuam a ser fabricados de pedra trabalhada. É
importante que assinalemos a existência desta dúvida insólita, posto
que precisamente a cultura dos dólmenes começa a verificar-se neste
momento da pré-história, a partir de uns 3000 anos antes de Cristo,
prolongando-se até depois do início da Idade do Bronze e inclusive -
afirmam-nos alguns —, em ocasiões isoladas, até à época da
dominação romana (¹³).
De acordo com a realidade aceite pelos arqueólogos, entre o fim do
período mesolítico e o começo da Idade do Bronze, aparecem na
Península Ibérica três culturas diferentes. A primeira seria, para eles, a
chamada Cultura das Grutas, a segunda a Cultura Megalítica, a
terceira a Cultura de Almeria. Vamos ocupar-nos das duas primeiras e
trataremos de vislumbrar até que ponto serão, efetivamente, duas
culturas diferentes.
CULTURA MEGALÍTICA
Seguindo sempre a exposição de Alberto dei Castillo, a cultura
dolménica aparece na Península com o princípio do chamado período
neolítico. Localiza-se em primeiro lugar - num primeiro estágio - nas
comarcas portuguesas da Beira e Trás-os-Montes, e estende-se
rapidamente pelas terras do Atlântico e até à Estremadura num
primeiro impulso expansivo; depois, pela zona peninsular que
descrevemos anteriormente: todo o norte do paralelo 42 e a quase
totalidade da Andaluzia, a sul. O material encontrado nos megalitos e
à sua volta caracteriza-se em linhas gerais por:
a) Abundância de sílex, sob a forma de microlitos e de pedras
talhadas em figuras geométricas: triângulos e trapézios. Encontram-se
igualmente raspadeiras e instrumentos pontiagudos.
b) Abundante material de pedra polida, fabricada em deorite e
basalto. Fundamentalmente o material consiste em machados de tipos
muito diferentes.
c) Aparição de uma cerâmica pobre, geralmente de pequeno
tamanho, sem asas que são substituídas por saliências com buracos,
como que para serem penduradas.
d) Adornos feitos à base de ossos de animais e de conchas
perfuradas.
e) Os megalitos situam-se em lugares de penetração: passagens,
desfiladeiros, vales.
f) Há abundância de armas.
A partir destas características, o professor Alberto de! Castillo
define este povo como «empreendedor e comerciante, hábil
guerreiro», sem ter em conta que precisamente muitas das
características anteriormente apontadas por ele próprio como
específicas desta cultura parecem querer desmentir uma afirmação tão
rotunda. Por exemplo poderíamos considerar como próprio de um
povo comerciante e empreendedor a fabricação de microlitos, que
exigiriam sem sombra de dúvida uma paciência bastante maior que a
fabricação de sílex de tamanho normal?
Poderíamos considerar comerciante e empreendedor um povo que
aplica o seu esforço na construção — aparentemente gratuita, ou pelo
menos pouco dinâmica — de monumentos para os quais, logicamente
haveria de ser necessário um esforço sobre-humano de grande parte
dos componentes da tribo que habitasse o enclave?
Examinemos os fatos anteriormente expostos de outro ponto de
vista e comprovaremos que se podem tirar outras conclusões. Não
digo que sejam certas e inamovíveis, mas podem resultar, pelo menos,
tão lógicas como as indicadas.
Consideraremos em primeiro lugar, que os enclaves da chamada
cultura das grutas estão, muitas vezes, nas proximidades de
construções dolmênicas.
Observemos em segundo lugar, que se as cerâmicas das grutas são
grandes e próprias para conter alguma coisa — poderíamos chamá-las,
utilitárias — as dos megalitos são pequenas e sem asas, como se
fossem feitas para serem penduradas.
Não indica isto que poderia tratar-se de uma mesma gente, que
construiu um outro tipo de vasilhas conforme as destina para conter
alimentos ou para um uso talvez ritual nos dólmenes?
Não será possível que os habitantes das grutas sejam os mesmos
construtores dos dólmenes? Não serão homens procedentes de outra
cultura — de uma origem hoje desconhecida —, que expressavam as
suas idéias em pinturas crípticas e que demonstravam os seus poderes
construindo monumentos incríveis que seriam venerados pelos
homens através de centenas de anos, como obra de seres sobrenaturais
dotados de poderes que as comunidades vizinhas consideravam como
mágicos?
Imperceptivelmente procuro ver estes homens como robinsons
herdeiros de uma cultura superior, da que ainda conservam uma parte,
lançados na necessidade de sobreviverem pelos seus próprios e
escassos meios numas condições a que não estavam acostumados- A
cerâmica tosca seria, portanto, produto de uns homens que sabiam
perfeitamente que existiam as vasilhas, mas que não eram
profissionais da sua construção. O calçado fá-lo-iam para proteger os
seus pés, que ao contrário dos pés dos vizinhos autóctones, não
estavam acostumados a caminhar descalços.
As grutas seriam habitadas porque, como herdeiros dos mestres —
deuses, tinham o direito adquirido de ocupá-las. Não tinham
necessidade de armas, porque os seus vizinhos respeitavam-nos como
deuses. E as armas encontradas nos dólmenes seriam fabricadas por
esses mesmos vizinhos, que as depositariam nos templos de
construção mágica como ex-votos e como demonstrações de respeito
mítico que ainda hoje se tem no País Basco pelos jentilla.
Recordemos novamente estes gentis: seres mágicos, protetores dos
homens, gigantescos, de força incrível, habitantes de cavernas e
construtores de megalitos. Seres aparte, seres de origem mítico,
desconhecidos, capazes de deslocarem prodigiosamente pedras
enormes: magos, enfim, dotados de poderes que não possuíam os seres
primitivos que viviam nas suas vizinhanças. Poderes que sem dúvida,
não se limitavam unicamente ao conhecimento da agricultura, se bem
que esta seja a característica mais concisa que nos mitos bascos se
atribui aos gentis. Por isso, as suas obras testemunhais — os megalitos
— foram objeto de culto, como obra realizada pelos deuses chegados
de um lugar desconhecido e cujos poderes os tornavam, sob todos os
aspetos, tão superiores que só como deuses ou mestres podiam ser
considerados.
Anteo, e Sertório fez abrir o seu sepulcro, não querendo dar crédito
àqueles bárbaros, devido à sua desmedida grandeza; mas à vista do
cadáver, que tinha de comprimento, conforme se conta, sessenta
braços, voltou a fechar a sepultura, tendo-lhe com isso dado maior
honra de fama(17).
Que os habitantes das grutas foram efetivamente gigantes ou que
tiveram a força e o poder que se podia atribuir aos gigantes é algo que,
pelo menos agora, é impossível de comprovar. Não há restos
humanos, mas apenas obras, templos megalíticos que só uma força
inconcebível..., ou poderes para-normais teriam sido capazes de erigir
e que, século após século e civilização após civilização, foram objetos
de culto e de peregrinação por parte daqueles que quiseram talvez
aprender nas suas fontes o poder dos que os tinham construído.
A sua obra em pedra bruta é o único vestígio visível e inamovível
da sua presença. Mas deixaram algo mais: os ensinamentos secretos de
uns conhecimentos que, ao longo do tempo, outros homens quiseram
aprender, procurando descobrir os mistérios que pudessem ter deixado
nos lugares que tinham habitado Um ensino que devia fazer parte da
própria natureza do homo sapiens e que o homo saber esqueceria ao
substituir as suas próprias possibilidades naturais pela técnica (18). Um
ensino que, possivelmente limitado a gerações de adeptos, se
conservou secreto e constante nas mãos de uma rigorosa minoria que
através dos séculos, continuou a possuir — ou tentando possuir — os
poderes e os conhecimentos dos primitivos mestres.
Fig. 31—Na pilastra que sustenta a ermida da Santa Cruz o relevo de uma cruz (feita de
espinhos) sobre uma lua contam em clave simbólica a existência do rito perdido no tempo.
Fig. 33.— Ao pó dos Mallos a povoação de Riglos acolhe-as às influências benéficas dos
enormes rochedos que, como menhires naturais, influem na terra que circundam.
Fig. 35 — A singular Pedra dos Cadrisses, em Muxial (Corunha). Dizem que quem passa
por debaixo dela se sentirá curado de qualquer dor nas costas.
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capitulo 5
1. Os manwatera do Rig Veda são períodos de tempo pelos que o
mundo passa entre as destruições cósmicas. Houve no planeta
catorze manwatara, e os catorze formam um Kalpa. Tão extenso
período de tempo — praticamente, a história inteira da Terra — não
significa, contudo, mais do que uma noite e um dia na existência
infinita de Brahma, e terminara com o aniquilamento da criação
inteira.
2. Descobriram-se crânios trepanados procedentes do período
neolítico e chegou-se à conclusão de que a trepanação foi praticada
em vida, pelos sinais evidentes de regeneração que apresenta o
tecido ósseo perfurado.
3. V. Gordon ChiIde, Men makes Himself (Trad. espanhola de
edições do Fundo de Cultura Econômica, com o título As Origens da
Civilização, Breviários, num. 92, México, 1965).
4. V. GORDON CHILDE, op. cít
5. De Ia antigua lengua, poblaciones, y comarcas de Ias
Españas, em que de paso se tocan algunas cosas de Ia Cantabria.
Compuesto por ei Licenciado Andrés de Poça, natural de Ia ciudad
de Orduña y auogado en ei muy noble y leal señorio de Vizcaya. Este
livro tão curioso, impresso em VIscava em 1587, é a primeira
tentativa histórica conhecida para unificar a origem da língua
castelhana através das suas eventuais origens bascas. Nem mais
nem menos que o que tentaria Humboldt muitos séculos depois. Mas
o livro, para além da sua curiosidade lingüística, tem muitos outros
dados curiosos, e demonstra uma sincera preocupação histórico-
filológica que merece ter-se em conta. Dele fizeram-se edições m
1901 (na Biblioteca Bascongada de Fermin Herrán, totalmente
esgotado) e em 1959 (Minotauro, Biblioteca Vasca, volume IV
Madrid).
6. ABU-ABD-ALLAH MOHAMMED-EL-IDRISI, «Descrição de
Espanha», publicada no T. I. das Viagens de estrangeiros por
Espanha e Portugal (Aguilar, Madrid, 1952). Esta descrição faz parte
de uma longa Diversão para quem deseja percorrer o mundo que o
geógrafo muçulmano terminou nos últimos dias de Xawal do ano
548» (Janeiro de 1154) por incumbência do rei normando da Sicília,
Rogério II. Para fazer o livro, o rei e o seu geógrafo escolheram
homens de olhos abertos que percorrem o mundo conhecido
acompanhados de hábeis desenhadores. El Idrisi compilou todos os
dados e deu forma coerente a todas as notas, «tomadas segundo
observações diretas e não segundo os livros», o que dá um valor
especial à sua obra.
Há um ponto que convém frisar desde já: é a freqüência com que
os normandos medievais apareceram em contato com fatos
históricos ou geográficos que poderíamos classificar de insólitos.
Agora basta-nos com a curiosidade geográfica deste Rogério H da
Sicília, mas teríamos motivos bastantes para falar de outros: dos
normandos que invadiram uma e outra vez as costas norocidentais
da Península, dos que assolaram as costas gaditanas e onubenses e
depois, atraídos por algo que se encontrava para o interior,
abandonaram os seus barcos e se integraram, misturando-se
misteriosamente, com os habitantes muçulmanos daquelas
comarcas. Poderíamos recordar igualmente aquele outro normando,
Juan de Bethencourt, que foi o conquistador oficial das ilhas
Canárias para a Coroa de Castela. Singularmente, os normando*
surgem sempre em tentativas de penetração de comarcas mágicas
ou à procura dessas comarcas.
7. Júlio CARLO BAROJA, Algunos mitos españoles y otros
ensayos (Editara Nacional de Madrid, 1944).
8. GEGORIO MARAÑON, Las ideas biológicas del padre Feijoo
(Espasa-Calpe, Madrid, 1941). O doutor Marañón, como médico, foi
fundamentalmente um especialista em endocrinologia. Quando
efetuou as suas investigações históricas, os caracteres endócrinos
dos personagens que tratava destacaram fundamenta Invente ao
estabelece' diagnósticos de caráter e comportamento, assim como
de eventuais anomalias que pudessem influenciar o processo
biográfico ou histórico.
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capitulo 12
Capítulo 13
Capitulo 14
Capítulo 15