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Cidade Dos Sonhos
Cidade Dos Sonhos
Dirigido por David Lynch. Com: Naomi Watts, Laura Elena Harring, Justin
Theroux, Ann Miller, Mark Pellegrino, Robert Foster, Dan Hedaya, Katharine
Towne, Lee Grant, James Karen e Vincent Castellanos.
(Aviso: Este artigo se divide em duas partes: na primeira, abordarei os aspectos técnicos
e narrativos de Cidade dos Sonhos; e na segunda – que deve ser lida preferencialmente
apenas por quem já assistiu ao filme -, falarei um pouco sobre os mistérios apresentados
pela história.)
Por que as pessoas preferem condenar o que não entendem? Na época em que
Magnólia foi lançado, há cerca de três anos, lembro-me perfeitamente das intermináveis
discussões sobre a famosa 'chuva de sapos' que ocorria no terceiro ato da trama:
enquanto algumas pessoas tentavam ao menos decifrar o significado daquela aparente
insanidade, outras simplesmente rotulavam o filme de Paul Thomas Anderson como
'bobagem pretensiosa', negando a impecável lógica e a riqueza de simbolismos de seu
roteiro. Infelizmente, a mesma falta de compreensão vem cercando Cidade dos Sonhos,
provavelmente o melhor trabalho da carreira de David Lynch.
Pelo menos, é o que pude perceber quando assisti a este magnífico filme pela segunda
vez (a primeira fôra em uma sessão para críticos, que raramente se manifestam durante
a projeção): durante os vinte minutos finais da história, quando as coisas começam a
ficar um pouco menos claras, boa parte do público começou a rir e a tecer comentários
de desaprovação em voz alta – e quando as luzes finalmente se acenderam, até mesmo
vaias puderam ser ouvidas (algo que, pelo que me disseram, vem se repetindo em outras
sessões).
A pergunta é: por que isso tem acontecido? Cidade dos Sonhos é um filme complexo,
sim, mas não incompreensível. Então por que muitas pessoas não têm conseguido
perceber a mágica que Lynch realizou desta vez? A resposta é simples: porque não têm
paciência. Nos dias de hoje, a maior parte das produções cinematográficas
(especialmente quando produzidas por Hollywood) não exige muito do espectador: as
tramas são simples e auto-explicativas, excluindo o público da equação final. Não temos
que pensar; o filme pensa por nós. E quando algum projeto foge deste padrão (como
Magnólia, Clube da Luta ou Cidade dos Sonhos), normalmente é descartado com um
aceno de desprezo (não é à toa que os três títulos citados fracassaram nas bilheterias).
Pois bem: escrevi toda esta (imensa) introdução simplesmente para expressar minha
frustração com a falta de reconhecimento ao brilhantismo de Cidade dos Sonhos, uma
produção extremamente bem realizada e que traz uma protagonista trágica e comovente.
Na realidade, poucas vezes senti tamanha afeição (e pena) por determinado personagem
– e confesso que fiquei profundamente chateado ao perceber que sua angústia e seu
sofrimento foram recebidos com gargalhadas por parte de vários integrantes da platéia.
O filme tem seus momentos engraçados, é verdade, mas nenhum deles acontece no
terceiro ato da história.
O roteiro, escrito pelo próprio David Lynch, conta a história de Betty, uma aspirante a
atriz que chega a Los Angeles com a determinação de se tornar uma estrela de cinema.
Sem ter muitos recursos financeiros, ela hospeda-se na casa de sua tia, que está fora da
cidade, e tem uma surpresa ao encontrar uma intrusa no local: Rita, uma mulher
misteriosa que, depois de sofrer um grave acidente, perdeu a memória. Juntas, as duas
garotas tentam descobrir as verdadeiras circunstâncias em que o acidente ocorreu e a
origem do dinheiro que Rita traz em sua bolsa (cujo conteúdo também inclui uma
estranha chave azul). A história também aborda os problemas enfrentados por um
explosivo cineasta depois que este se recusa a escalar, como protagonista de seu novo
filme, uma atriz apadrinhada pela máfia.
É claro que, como estamos falando de um trabalho de David Lynch, tudo acaba se
revelando mais complexo do que o esperado, já que o cineasta utiliza vários recursos
narrativos para contar sua história: flashbacks (que aparecem sem aviso); sonhos;
delírios; e até mesmo cenas exibidas fora da ordem cronológica. Além disso, Lynch
brinca com a percepção do espectador sobre o que é real ou apenas uma ilusão (tema
recorrente no filme) em diversos momentos da projeção: em certa cena, por exemplo,
vemos alguém cantando em um estúdio de rádio - que acaba se revelando um cenário
construído à frente de uma bela paisagem (que, por sua vez, também se revela apenas
um painel localizado em um estúdio cinematográfico). Desta forma, o público é
obrigado a reorganizar mentalmente o que vê a fim de compreender exatamente o que
está acontecendo.
No entanto, ao contrário do que muitos podem pensar, Cidade dos Sonhos não é um
filme chato de se ver: a maior parte da trama se desenrola de maneira 'lógica',
funcionando (curiosamente) como um noir moderno. O 'problema', como eu disse
anteriormente, reside nos vinte minutos finais da projeção, quando Lynch parece dizer:
'Muito bem... Agora vamos ver o que realmente aconteceu!' (a ironia: até que isso
aconteça, o público não se dá conta de que há algo a se explicar, já que tudo parece tão
óbvio – e a explicação acaba soando mais confusa do que o mistério em si).
Embalado por uma excelente trilha sonora (composta por Angelo Badalamenti,
colaborador habitual de David Lynch), Cidade dos Sonhos ainda conta com uma
atuação magistral de Naomi Watts, que não apenas merecia ter sido indicada ao Oscar,
como deveria ter levado o prêmio. Infelizmente, não posso falar livremente sobre os
méritos de sua atuação, já que isso acabaria revelando o 'mistério' do filme, mas o fato é
que Watts consegue criar uma personagem que desperta nossa compaixão mesmo
depois que descobrimos a cruel natureza de alguns de seus atos (e a cena na qual ela
realiza um teste para participar de uma produção é fenomenal – principalmente porque,
minutos antes, ela havia ensaiado aquele mesmo texto de maneira apenas convencional).
Meu conselho: assista a Cidade dos Sonhos, mesmo que apenas como um exercício de
lógica. No mínimo, você viverá uma experiência bem diferente daquela que Hollywood
está acostumada a produzir. E se no final das contas você ficar perdido(a), discuta a
história com os amigos, pois isso é sempre um passatempo interessante.
(Aviso: o texto abaixo revelará todos os detalhes mais importantes de Cidade dos
Sonhos e deverá ser lido, de preferência, somente por quem já assistiu ao filme.)
Há um motivo muito claro para a falta de 'lógica' existente em determinados momentos
deste novo trabalho de David Lynch: a maior parte da história vista ao longo da
projeção se trata, na verdade, de um sonho. (É espantoso como a distribuidora brasileira
pôde traduzir o título desta forma. É o mesmo que traduzir The Sixth Sense como O
Garoto e o Fantasma.)
No entanto, a coisa não pára por aí, já que Lynch não se contenta em surpreender o
público ao revelar que, até então, testemunháramos apenas os sonhos de Betty: quando a
moça acorda, a narrativa assume um caráter episódico, incluindo delírios da
protagonista e outras cenas 'reais' situadas fora da ordem cronológica (algumas destas
cenas acontecem antes mesmo que Betty durma e tenha seu longo sonho). E o que é
mais interessante: na realidade, ela não se chama Betty, mas sim Diane – e a mesma
troca de nomes (e rostos) se aplica a vários outros personagens (algo que já é
simbolizado na primeira tomada do filme, quando vemos várias pessoas dançando ao
som do jitterbug e percebemos que há várias 'cópias' de cada um dos dançarinos).
Mas estou me adiantando. Antes de mais nada, creio que seria mais prudente analisar o
que é real em Cidade dos Sonhos: quem são, de fato, aqueles personagens? E de que
maneira eles se relacionam? A maior parte destas informações é fornecida por Lynch
em duas cenas: durante a festa na casa de Adam Kesher (o diretor) e ao longo da
conversa que Diane tem com o assassino que contrata para matar Camille.
Depois de receber uma herança deixada por sua tia Ruth, Diane viaja para Los Angeles
para tentar alavancar sua carreira de atriz. Certo dia, ela faz um teste para participar do
filme A História de Sylvia North, mas é rejeitada pelo diretor da produção, Bob Rooker,
que acaba escolhendo a bela Camilla Rhodes para o papel-título. Porém, Diane e
Camilla acabam se tornando amigas e, eventualmente, amantes - sendo que esta última,
agora uma atriz de sucesso, freqüentemente arruma pequenas pontas para a namorada
em seus filmes.
Infelizmente, nem tudo corre bem para as duas: durante as filmagens de seu novo
projeto, Camilla se envolve com Adam Kesher, o diretor responsável pela empreitada
(apesar de ser casado, ele logo se divorcia da esposa, alegando que ela o traíra com o
rapaz responsável por limpar a piscina, deixando-a sem direito a nada). Enciumada,
Diane passa a brigar com Camilla - até que, certa noite, é convidada para uma festa na
mansão de Kesher, sem saber que será obrigada a testemunhar o anúncio do casamento
de sua namorada e o cineasta.
Mas quais são, para início de conversa, os indícios de que a história envolvendo Betty e
Rita não passa mesmo de um sonho? A primeira 'pista' pode ser encontrada logo no
início da projeção, quando vemos a câmera mergulhar em um imenso travesseiro (algo
que é auto-explicativo: em câmera subjetiva, estamos vendo Diane/Betty ir se deitar).
Observe, também, como todas as fontes de luz vistas nesta primeira parte do filme
apresentam um caráter difuso, conferindo um formato peculiar (um 'X') aos faróis e
postes que aparecem na tela. Além disso, certos diálogos presentes no roteiro são uma
clara alusão ao caráter imaginário daquele universo, sendo que os exemplos mais óbvios
são:
Não é à toa que, em seus sonhos, Diane se imagina como a perfeita 'heroína' de
Hollywood: influenciada por uma cultura puramente cinematográfica (não se esqueçam
de que ela realmente é aspirante a atriz, embora fracassada), a moça estrutura seu sonho
de forma parecida ao roteiro de um filme noir, colocando-se no papel da 'mocinha' e
utilizando vários elementos clássicos do gênero: a misteriosa mulher em apuros (Rita); a
corrupção que domina a cidade; a visão cínica do mundo; os policiais com longas capas
de chuva; e assim por diante. Betty é, na verdade, tudo aquilo que Diane gostaria de ser
- e em seus sonhos, a pobre garota credita seu fracasso (no mundo real) a alguma
misteriosa conspiração arquitetada por figuras sinistras.
Mas não pára por aí: abandonada por Camilla, Diane transforma a ex-namorada em
Rita, uma mulher vulnerável, frágil e sem memória, e que depende de seus cuidados
para sobreviver (mesmo assim, em certo momento Betty declara seu amor a Rita, que
não responde, provando que até mesmo em seus sonhos ela se vê descartada pela outra).
Como se não bastasse, Diane aproveita o 'poder' de comandar seu próprio universo e
'vinga-se' de Adam, humilhando-o de todas as maneiras possíveis em seu sonho: ele
realmente é traído pela esposa (e ainda apanha do tal limpador de piscinas); é demitido;
perde todo o dinheiro; é ridicularizado por todos e ainda se vê obrigado a aceitar as
exigências da 'máfia'.
(Aliás, acredito que Adam Kesher também atua como um desabafo/protesto de David
Lynch contra os grandes estúdios, que freqüentemente massacram os impulsos artísticos
dos cineastas enquanto procuram alcançar maiores lucros. Não pode ser coincidência o
fato de que até mesmo o visual de Kesher nos faça lembrar de Lynch).
Porém, o mais fascinante de Cidade dos Sonhos é perceber como Diane insere os
elementos de sua vida real na 'narrativa' que cria em seu longo sonho/pesadelo: observe,
por exemplo, que Rita carrega, em sua bolsa, uma fortuna em dinheiro e uma chave azul
– justamente os símbolos de sua morte (o dinheiro pago ao assassino e a chave – menos
estilizada, claro – que este utiliza para avisar que o serviço foi feito). Além disso, o
início do sonho de Diane mostra a tentativa feita para se matar Rita, que escapa graças a
um acidente (ou melhor: é a forma que Diane – deus ex machina - encontrou para salvá-
la). E mais: os dois detetives que investigam a morte de Camilla (e que são
mencionados brevemente pela vizinha de Diane) aparecem no sonho como os policiais
que inspecionam o local do acidente, ou seja: continuam a investigar, de uma forma ou
de outra, o que aconteceu a Camilla/Rita.
Agora procure se lembrar do que acontece quando Rita abre a tal caixa: a câmera
mergulha no objeto, como se fosse sugada por ele. Como estamos vendo tudo pelo
ponto de vista da moça, podemos presumir que ela é sugada pela caixa, desaparecendo
em seguida. E o que foi utilizado para destrancar a caixa? A chave azul! Portanto, não
seria ilógico concluir que a caixa azul é uma representação da morte de Rita. (E
explicaria, também, porque tia Ruth aparece logo depois que a caixa é aberta, já que ela
também está morta.)
Em primeiro lugar, é sintomático observar que este é o instante em que vemos Rebekah
Del Rio cantar a belíssima Llorando, cuja letra gira em torno do sofrimento de uma
pessoa que perdeu seu grande amor (algo que, no sonho de Diane, serve como um
momento de maior comunhão entre Betty/Diane e Rita/Camilla, que se abraçam e
choram, comovidas). E mais: observe que o vestido que a cantora usa tem uma estampa
parecidíssima com a roupa que tia Ruth deixa de presente para Betty. Então... seria
Rebekah mais uma representação onírica da própria Diane? (Lembre-se de que a cantora
'morre' no final da canção.)
Mas não paramos por aí: é válido observar que o apresentador do Clube Silêncio tem
um aspecto assustadoramente diabólico, com seu cavanhaque e sobrancelhas arqueadas
– e seu monólogo faz Betty tremer incontrolavelmente. Por que? Creio que, pelo menos
desta vez, a resposta é simples: o apresentador é, de fato, uma representação do castigo
que será imposto a Diane por seus atos cruéis. Quer mais uma evidência disso? Quando
ele encerra seu discurso, o palco é tomado por uma intensa fumaça, e o sujeito
desaparece. Pois esta fumaça é idêntica àquela que toma conta do quarto de Diane
depois que esta se mata, indicando que a garota pode realmente ter ido para 'o inferno'
que tanto temia.
Para encerrar, faço uma última consideração: para tornar tudo ainda mais complexo,
David Lynch prega duas peças adicionais no espectador.
A primeira: ele inclui sonhos dentro dos sonhos de Diane. Repare, por exemplo, que
alguns dos momentos mais ilógicos da primeira parte do filme acontecem quando Rita
está adormecida (são eles: o incidente envolvendo o misterioso sujeito na cadeira de
rodas; e o encontro entre o mendigo e o rapaz da lanchonete). Assim, é possível que
estes 'picos de insanidade' sejam, de fato, os pequenos sonhos de Rita ao longo do sonho
maior de Diane.
A segunda: tenho a forte convicção de que, na segunda metade do filme, nem tudo o que
testemunhamos aconteceu realmente da forma vista na tela. As risadas de Adam e
Camilla durante o anúncio do noivado soam falsas demais – e o mesmo se aplica ao
beijo que Camilla dá em uma outra garota durante a festa. Assim, creio ser possível que
estejamos vendo não os fatos em si, mas as lembranças que Diane tem destes fatos. É
por isso que, em sua mente, ela visualiza as risadas e o intenso beijo: ela se sente
humilhada pelo que testemunhou e, assim, aumenta tudo em sua mente ao rememorar o
que aconteceu.
Como podem ver, Cidade dos Sonhos realmente despertou minha imaginação. Não é à
toa que, até agora, já gastei quase 4 mil palavras para falar sobre o filme (algo que
normalmente faço em menos de 900 palavras). E o mais irônico é que, ao contrário do
que você pode estar pensando, não tenho a menor ilusão de ter decifrado o enigma
proposto por David Lynch. Quando assisti a Cidade dos Sonhos pela primeira vez, saí
do cinema com a certeza de que desvendara o mistério e, assim, resolvi conferi-lo mais
uma vez apenas para 'preencher as lacunas'. Resultado: realmente encontrei respostas
para muitas de minhas perguntas, mas, em contrapartida, acabei me deparando com
outra dezena de indagações:
Quem é, exatamente, a vizinha de Diane? A princípio, pensei que ela pudesse ser a
própria Camilla (cuja aparência teria sido 'melhorada' no sonho), mas depois percebi
meu erro: quando a vizinha aparece, Camilla já está morta (a chave azul está sobre a
mesa) e, além disso, ela cita os dois detetives que investigam o assassinato. É possível
que a tal vizinha tenha se envolvido com Diane depois que esta terminou com Camilla?
(Neste caso, como o cinzeiro em forma de piano poderia estar presente na cena em que
Diane e Camilla transam no sofá?) Ou será que ela é apenas alguém que trocou de
apartamento com a garota (talvez Diane não tenha conseguido permanecer em seu velho
apartamento, em função das lembranças provocadas pela morte de sua ex-namorada).
Mas (e as perguntas não param) por que, durante o sonho, Rita/Camilla e a vizinha se
olham de forma tão embaraçada (Rita chega a desviar o olhar)?
E mais: durante a segunda vez em que assisti ao filme, percebi que as cores azul e
vermelha são empregadas de forma intensa ao longo da história (observe, por exemplo,
as cadeiras ao lado da piscina de Adam Kesher e também as roupas de Betty e Rita –
além, é claro, da caixa azul, do livro ao lado da pia de Betty e dos cabelos da mulher
sentada no balcão do Clube Silêncio).
Portanto, é só procurar.
13 de Maio de 2002