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MITOLOGIA

GRECO-ROMANA

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Setembro/00
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Índice

I - Mito, Rito e Religião


II - Réia ou Cibele
2.1 - Ops
2.2 - Tártaro
2.3 - Hemera
2.4 - Nix
2.5 - Montes, montanhas
2.6 - Pontos
III - Apolo
3.1 - Nascimento de Apolo e Diana
3.2 - Latona e a serpente pitão
3.3 - Os camponeses carianos
3.4 - O tipo de Apolo
3.5 - Delfos, o centro do mundo
3.6 - A disputa do tripé
3.7 - O oráculo de Delfos
IV - Marte
4.1 - Tipo e atributos de Marte
4.2 - Marte na guerra dos gigantes
4.3 - Vênus e Marte
4.4 - Marte ferido por Diomedes
4.5 - Filomena e Progne
4.6 - Os sacerdotes Sálios
4.7 - Belona
4.8 - A discórdia
4.9 - Etéoclo e Polinice
4.10 - Anfiarau
4.11 - Arquemoro
4.12 - Combate dos dois irmãos
4.13 - Funerais de Etéolo e de Polinice
V - Vênus (Afrodite)
5.1 - Nascimento de Vênus
5.2 - Tipo e atributos de Vênus
5.3 - Vênus celeste e Vênus vulgar
5.4 - Pigmaleão e a sua estátua
5.5 - Vênus de Cnido
5.6 - Vênus genitrix
5.7 - Vênus vitoriosa
VI - Hércules
6.1 - Os doze trabalhos de Hércules
VII - Jasão e Medéia e o Velocino de ouro
VIII - Perseu e Medusa
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IX - Édipo
9.1 - Édipo e o ciclo tebano
9.2 - Caduso e a fundação de Tebas
9.3 - Penteu
9.4 - A casa de Édipo
X - Divindades do mar
10.1 - O oceano
10.2 - Tetis e as Oceânidas
10.3 - Netuno (Poseidon)
10.4 - Proteu
10.5 - As sereias
XI - Zeus
XII - O nascimento de Baco
12.1 - Cadmo e o oráculo
12.2 - Os companheiros de Cadmo
12.3 - O dragão de Marte
12.4 - Núpcias de Cadmo e Harmonia
12.5 - Júpiter e Semele
12.6 - A coxa de Júpiter
12.7 - A nutriz de Baco
12.8 - Ino e Palemon
12.9 - Baco na corte de Cibele
XIII - Baco
13.1 - A infância de Baco
13.2 - Baco e Ampelos
13.3 - A conquista da Índia
13.4 - Baco em Tebas
13.5 - Baco e Licurgo
13.6 - Baco e Perseu
13.7 - Baco e Erígone
XIV - Psique
14.1 - Beleza e psique
14.2 - Ciúme de Vênus
14.3 - O oráculo de Apolo
14.4 - Psique raptada por Zéfiro
14.5 - O palácio de Psique
14.6 - As irmãs de Psique
14.7 - A gota de azeite
14.8 - Cólera de Vênus
14.9 - As núpcias de Psique
14.10 - A alma humana
XV - A primeira geração divina
15.1 - De Urano a Crono
15.2 - Titãs
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15.2.1 - Oceano
15.3 - Ciclope
XVI - A Segunda geração divina
16.1 - Crono e sua descendência
16.2 - Héstia
16.3 - Hera
XVII - Deuses gregos e romanos
17.1 - Zeus
17.2 - Pales Atena ou Atenéia
17.3 - Apolo
17.4 - Artemis
17.5 - Afrodite
17.6 - Hera
17.7 - Démeter
17.8 - Hermes
17.9 - Poseidon
17.10 - Dionísio
17.11 - Ares
17.12 - Hefaistos ou Hefeso
XVIII - A Grécia e a chegada dos indo-europeus
XIX - As origens - o caos
19.1 - A noite
19.2 - O Érebo
19.3 - Eros e Anteros
19.4 - Destino
19.5 - A Terra (Gaia)
19.6 - Telus
19.7 - Urano e Coelo (Ouranos)
19.8 - Titéia
19.9 - Saturno (Cronos)
XX - Monstros modernos
20.1 - A Fênix
20.2 - O Basilisco
20.3 - O Unicórnio
20.4 - A Salamandra
XXI - Minerva
21.1 - Nascimento de Minerva
21.2 - Nascimento de Erecteu
21.3 - Pandrosa
21.4 - Disputa de Minerva e Netuno
21.5 - Tipo e atributo de Minerva
21.6 - Minerva e Encélades
21.7 - Minerva e Tirésias
21.8 - Minerva e Márcias
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21.9 - Minerva e Higéia


21.10 - Minerva Obreira ou Ergane
21.11 - Minerva e Aracne
21.12 - A festa das Panatenéias
XXII - Cupido
22.1 - Nascimento de Cupido
22.2 - Educação de Cupido
22.3 - Tipo e atributos de Cupido
22.4 - Esaco
22.5 - Pico e Circe
22.6 - O cabelo de Niso
XXIII - Ulisses
23.1 - A estória de Ulisses
23.2 - O Cíclope
23.3 - Eólia
23.4 - Circe
23.5 - O mundo inferior
23.6 - As sereias, Cila e Caribde
23.7 - O rebanho do Sol
23.8 - Calipso
23.9 - Ulisses em Feácia
23.10 - Ulisses em Ítaca
XXIV - A guerra de Tróia
24.1 - A expedição parte
24.2 - A ira de Aquilles
24.3 - O saque de Tróia
24.4 - O retorno de Agamenon
XXV - Pã, deus da Arcádia
25.1 - Nascimento de Pã
25.2 - Pã e Syrinx
25.3 - Pítis metamorfoseada em pinheiro
25.4 - Pã e a ninfa Eco
25.5 - Pã, filho de Mercúrio
25.6 - Pã, divindade pastoril
25.7 - Pã, deus universal
25.8 - Um pouco mais de Pã
XXVI - Prometeu e Pandora
26.1 - A criação do mundo
26.2 - A caixa de Pandora
26.3 - As idades do mundo
26.4 - Prometeu forma o homem
26.5 - As duas partes de Prometeu
26.6 - O fogo arrebatado aos homens
26.7 - Suplício e libertação de Prometeu
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XXVII - Mercúrio
27.1 - Mercúrio (Hermes)
27.2 - Tipo e atributos de Mercúrio
27.3 - Mercúrio inventor da lira
27.4 - Mercúrio, rei dos ladrões
27.5 - Mercúrio, deus do comércio
27.6 - Mercúrio pedagogo
27.7 - Mercúrio crióforo
27.8 - Mercúrio, guarda das estradas
27.9 - Mercúrio, deus da eloqüência
27.10 - Mercúrio, mensageiro dos deuses
27.11 - Mercúrio, condutor de almas
27.12 - Queixas de Mercúrio
XXVIII - Vulcano (Hefoestros)
28.1 - Nascimento de Vulcano
28.2 - Tipo e atributos de Vulcano
28.3 - Vingança de Vulcano
28.4 - Os fios de Vulcano
28.5 - Os Cíclopes
XXIX - Referências bibliográficas
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I - Mito, Rito e Religião

É necessário deixar bem claro, nesta tentativa de conceituar o mito, que o mesmo
não tem aqui a conotação usual de fábula, lenda, invenção, ficção, mas a acepção
que lhe atribuíam e ainda atribuem as sociedades arcaicas, as impropriamente
denominadas culturas primitivas, onde mito é o relato de um acontecimento
ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Em
outros termos, mito, é o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos
dos princípios, quando com a interferência de entes sobrenaturais, uma realidade
passou a existir, seja uma realidade total, o cosmo, ou tão-somente um
fragmento, um monte, uma pedra, uma ilha, uma espécie animal ou vegetal, um
comportamento humano. Mito é, pois, a narrativa de uma criação: conta-nos de
que modo algo, que não era, começou a ser.
De outro lado, o mito é sempre uma representação coletiva, transmitida através de
várias gerações e que relata uma explicação do mundo. Mito é, por conseguinte, a
parole, a palavra "revelada", o dito. E, desse modo, se o mito pode se exprimir ao
nível da linguagem, "ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um
acontecimento". "O mito é sentido e vivido antes de ser inteligido e formulado.
Mito é a palavra, a imagem, o gesto, que circunscreve o acontecimento no coração
do homem, emotivo como uma criança, antes de fixar-se como narrativa".
O mito expressa o mundo e a realidade humana, mas cuja essência é efetivamente
uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações. E, na
medida em que pretende explicar o mundo e o homem, isto é, a complexidade do
real, o mito não pode ser lógico: ao revés, é ilógico e irracional. Abre-se como uma
janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. Decifrar o mito é,
pois, decifrar-se. E, como afirma Roland Barthes, o mito não pode,
conseqüentemente, "ser um objeto, um conceito ou uma idéia: ele é um modo de
significação, uma forma". Assim, não se há de definir o mito "pelo objeto de sua
mensagem, mas pelo modo como a profere".
É bem verdade que a sociedade industrial usa o mito como expressão de fantasia,
de mentiras, daí mitomania, mas não é este o sentido que hodiernamente se lhe
atribui.
O mesmo Roland Barthes, aliás, procurou reduzir, embora significativamente, o
conceito de mito, apresentando-o como qualquer forma substituível de uma
verdade. Uma verdade que esconde outra verdade. Talvez fosse mais exato defini-
lo como uma verdade profunda de nossa mente. É que poucos se dão ao trabalho
de verificar a verdade que existe no mito, buscando apenas a ilusão que o mesmo
contém. Muitos vêem no mito tão-somente os significantes, isto é, a parte
concreta do signo. É mister ir além das aparências e buscar-lhe os significados,
quer dizer, a parte abstrata, o sentido profundo.
Talvez se pudesse definir mito, dentro do conceito de Carl Gustav Jung, como a
conscientização de arquétipos do inconsciente coletivo, quer dizer, um elo entre o
consciente e o inconsciente coletivo, bem como as formas através das quais o
inconsciente se manifesta.
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Compreende-se por inconsciente coletivo a herança das vivências das gerações


anteriores. Desse modo, o inconsciente coletivo expressaria a identidade de todos
os homens, seja qual for a época e o lugar onde tenham vivido.
Arquétipo, do grego "arkhétypos", etimologicamente, significa modelo primitivo,
idéias inatas. Como conteúdo do inconsciente coletivo foi empregado pela primeira
vez por Yung. No mito, esses conteúdos remontam a uma tradição, cuja idade é
impossível determinar. Pertencem a um mundo do passado, primitivo, cujas
exigências espirituais são semelhantes às que se observam entre culturas
primitivas ainda existentes. Normalmente, ou didaticamente, se distinguem dois
tipos de imagens:
a) imagens (incluídos os sonhos) de caráter pessoal, que remontam a experiências
pessoais esquecidas ou reprimidas, que podem ser explicadas pela anamnese
individual;
b) imagens (incluídos os sonhos) de caráter impessoal, que não podem ser
incorporados à história individual. Correspondem a certos elementos coletivos: são
hereditárias.
A palavra textual de Jung ilustra melhor o que expôs: "Os conteúdos do
inconsciente pessoal são aquisições da existência individual, ao passo que os
conteúdos do inconsciente coletivo são arquétipos que existem sempre a priori.
Embora se tenha que admitir a importância da tradição e da dispersão por
migrações, casos há e muito numerosos em que essas imagens pressupõem uma
camada psíquica coletiva: é o inconsciente coletivo. Mas, como este não é verbal,
quer dizer, não podendo o inconsciente se manifestar de forma conceitual, verbal,
ele o faz através de símbolos. Atente-se para a etimologia de símbolo, do grego
"sýmbolon", do verbo "symbállein", "lançar com", arremessar ao mesmo tempo,
"com-jogar". De início, símbolo era um sinal de reconhecimento: um objeto
dividido em duas partes, cujo ajuste e confronto permitiam aos portadores de cada
uma das partes se reconhecerem. O símbolo é, pois, a expressão de um conceito
de eqüivalência. Assim, para se atingir o mito, que se expressa por símbolos, é
preciso fazer uma eqüivalência, uma "con-jugação", uma "re-união", porque, se o
signo é sempre menor do que o conceito que representa, o símbolo representa
sempre mais do que seu significado evidente e imediato.
Em síntese, os mitos são a linguagem imagística dos princípios. "Traduzem" a
origem de uma instituição, de um hábito, a lógica de uma gesta, a economia de
um encontro.
Na expressão de Goethe, os mitos são as relações permanentes da vida.
Se mito é, pois, uma representação coletiva, transmitida através de várias
gerações e que relata uma explicação do mundo, então o que é mitologia?
Se mitologema é a soma dos elementos antigos transmitidos pela tradição e
mitema as unidades constitutivas desses elementos, mitologia é o "movimento"
desse material: algo de estável e mutável simultaneamente, sujeito, portanto, a
transformações. Do ponto de vista etimológico, mitologia é o estufo dos mitos,
concebidos como história verdadeira.
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Quanto à religião, do latim "religione", a palavra possivelmente se prende ao verbo


"religare", ação de ligar.
Religião pode, assim, ser definida como o conjunto das atitudes e atos pelos quais
o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a
seres invisíveis tidos como sobrenaturais. Tomando-se o vocábulo num sentido
mais estrito, pode-se dizer que a religião para os antigos é a reatualização e a
ritualização do mito. O rito possui, "o poder de suscitar ou, ao menos, de reafirmar
o mito".
Através do rito, o homem se incorpora ao mito, beneficiando-se de todas as forças
e energias que jorraram nas origens. A ação ritual realiza no imediato uma
transcendência vivida. O rito toma, nesse caso, "o sentido de uma ação essencial e
primordial através da referência que se estabelece do profano ao sagrado". Em
resumo: o rito é a praxis do mito. É o mito em ação. O mito rememora, o rito
comemora.
Rememorando os mitos, reatualizando-os, renovando-os por meio de certos
rituais, o homem torna-se apto a repetir o que os deuses e os heróis fizeram "nas
origens", porque conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. "E
o rito pelo qual se exprime (o mito) reatualiza aquilo que é ritualizado: re-criação,
queda, redenção". E conhecer a origem das coisas - de um objeto, de um nome,
de um animal ou planta - "eqüivale a adquirir sobre as mesmas um poder mágico,
graças ao qual é possível dominá-las, multiplicá-las ou reproduzí-las à vontade".
Esse retorno às origens, por meio do rito, é de suma importância, porque "voltar
às origens é readquirir as forças que jorraram nessas mesmas origens". Não é em
vão que na Idade Média muitos cronistas começavam suas histórias com a origem
do mundo. A finalidade era recuperar o tempo forte, o tempo primordial e as
bênçãos que jorraram illo tempore.
Além do mais, o rito, reiterando o mito, aponta o caminho, oferece um modelo
exemplar, colocando o homem na contemporaneidade do sagrado. É o que nos
diz, com sua autoridade, Mircea Eliade: "Um objeto ou um ato não se tornam
reais, a não ser na medida em que repetem um arquétipo. Assim a realidade se
adquire exclusivamente pela repetição ou participação; tudo que não possui um
modelo exemplar é vazio de sentido, isto é, carece de realidade".
O rito, que é o aspecto litúrgico do mito, transforma a palavra em verbo, sem o
que ela é apenas lenda, "legenda", o que deve ser lido e não mais proferido.
À idéia de reiteração prende-se a idéia de tempo. O mundo transcendente dos
deuses e heróis é religiosamente acessível e reatualizável, exatamente porque o
homem das culturas primitivas não aceita a irreversibilidade do tempo: o rito abole
o tempo profano, cronológico, é linear e, por isso mesmo, irreversível (pode-se
"comemorar" uma data histórica, mas não fazê-la voltar no tempo), o tempo
mítico, ritualizado, é circular, voltando sempre sobre si mesmo. É precisamente
essa reversibilidade que liberta o homem do peso do tempo morto, dando-lhe a
segurança de que ele é capaz de abolir o passado, de recomeçar sua vida e recriar
seu mundo. O profano é tempo da vida; o sagrado, o "tempo" da eternidade.
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A "consciência mítica", embora rejeitada no mundo moderno, ainda está viva e


atuante nas civilizações denominadas primitivas: "O mito, quando estudado ao
vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer a uma curiosidade científica, mas
uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz as profundas
necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem
social e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito
desempenha uma função indispensável: ele exprime, exalta e codifica a crença;
salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece
regras práticas para a orientação do homem. O mito é um ingrediente vital da
civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é, ao contrário, uma
realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é, absolutamente, uma
teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da
religião primitiva e da sabedoria prática".

II - Réia ou Cibele

Saturno, se bem que pai dos três principais deuses, Júpiter, Netuno e Plutão, não
teve entre os poetas o título de Pai dos Deuses, talvez devido à crueldade que
exerceu sobre os filhos, enquanto que Réia, sua esposa, era chamada a Mãe dos
Deuses, a Grande Mãe, e era venerada com esse nome.
Os diferentes nomes com que é designada a mãe de Júpiter exprimiam sem dúvida
atribuições diversas da mesma pessoa. Realmente essa deusa, sob qualquer dos
seus muitos nomes, é sempre a Terra, mãe comum de todos os seres. Réia ou
Cibele, que nas cerimônias dos cultos e crenças religiosas dos povos, parece ter
sido o mais honrado. Eis o que se contava de Cibele:
Filha do Céu e da Terra, por conseguinte a própria Terra, Cibele, mulher de
Saturno, era chamada a Boa Deusa, a Mãe dos Deuses, por ser mãe de Júpiter, de
Juno, de Netuno, de Plutão e da maior parte dos deuses de primeira ordem. Logo
depois de nascer, sua mãe expô-la em uma floresta, e os animais ferozes tomaram
conta dela e alimentaram-na. Enamorou-se de Atis, jovem e formoso frígio, a
quem confiou o cuidado do seu culto, sob a condição de que ele não violaria o seu
voto de castidade. Atis esqueceu o juramento desposando a ninfa Sangarida, e
Cibele puniu-o matando a rival. Atis ficou profundamente magoado; num acesso
de delírio e desgraçado se mutilou; e ia enforcar-se, quando Cibele, com uma
compaixão tardia, mudou-o em pinheiro.
O culto de Cibele tornou-se célebre em Frígia, de onde foi levado a Creta. Foi
introduzido em Roma na época da segunda guerra púnica. O simulacro da Boa
Deusa, uma grande pedra muito tempo conservada em Pessino, foi colocada no
templo da Vitória, no monte Palatino. Foi um dos penhores da estabilidade do
império, e se instituiu uma festa, com combates simulados, em honra de Cibele.
Os seus mistérios, tão dissolutos como os de Baco, eram celebrados com um
confuso ruído de oboés e címbalos; os sacrificadores davam uivos.
Sacrificavam-lhe uma porca, pela sua fertilidade, um touro ou uma cabra, e os
padres, durante esses sacrifícios, sentados, batiam palmas no chão. O buxo e o
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pinheiro eram-lhe consagrados; o primeiro por ser a madeira de que se faziam as


flautas, instrumentos empregados nas festas, e o segundo por causa do
desgraçado Atis a quem Cibele tanto amara. Os seus sacerdotes eram os Cabiros,
os Coribantes, os Curetes, os Dáctilos do monte Ida, os Galos, os Semíviros e os
Telquinos, quase todos geralmente eunucos, em memória de Atis.
Representava-se Cibele com os traços e o garbo de uma mulher robusta, com uma
coroa de carvalho, árvore que havia alimentado os primeiros homens. As torres
sobre a sua cabeça representam as cidades que estão sob a sua proteção, e a
chave que está em sua mão indica os tesouros que o seio da terra esconde no
inverno e oferece no estio. É conduzida num carro tirado por leões. O carro é o
símbolo da Terra que se balança e rola no espaço; os leões demonstram que nada,
por mais feroz, deixará de ser domado pela ternura maternal, ou por outra, - que
não há solo rebelde à indústria fecunda. As suas vestes são matizadas, geralmente
verdes, alusão aos ornatos da natureza. O tambor que está a seu lado é o globo
terrestre; os címbalos, os gestos violentos dos seus sacerdotes indicam a atividade
dos lavradores e o ruído dos instrumentos da agricultura.
Alguns poetas supuseram que Cibele era a filha de Meon e Dindimo, rei e rainha
da Frígia. Seu pai, tendo percebido que ela amava Atis, fez que este morresse com
suas mulheres, e atirou os seus corpos em um montouro. Cibele ficou inconsolável.

2.1 - Ops

Ops, o mesmo que Cibele e Réia ou a Terra, é representada como uma venerável
matrona que estende a mão direita oferecendo socorro, e que com a esquerda dá
pão ao pobre. Era também considerada com a deusa das riquezas. O seu nome
quer dizer socorro, auxílio, assistência.
Não há que admirar de ver-se a Terra, tantas vezes personificada sob
denominações diferentes. Fonte inesgotável de riquezas, mãe fecunda de todos os
bens, ela se oferecia à adoração dos povos sob vários aspectos, conforme o clima
e a região; daí, as múltiplas lendas e os seus inumeráveis símbolos.

2.2 - Tártaro

De etimologia desconhecida, até o momento, é o local mais profundo das


entranhas da terra, localizado muito abaixo do próprio Hades. A distância que
separa o Hades do Tártaro é a mesma que existe entre Géia, a Terra, e Úrano, o
Céu. Um pouco mais tarde, quando o Hades foi dividido em três compartimentos,
Campos Elísios, local onde ficavam por algum tempo os que pouco tinham o
purgar, Érebo, residência também temporária dos que muito tinham a sofrer, o
Tártaro se tornou o local de suplício permanente dos grandes criminosos, mortais
e imortais. Quando Zeus proíbe os Imortais de se imiscuírem nas batalhas entre
aqueus e troianos, e ameaça lançar os recalcitrantes nas profundezas do Tártaro,
observa-se que este é perfeito sinônimo de Hades, aonde iam ter, para todo o
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sempre, sem prêmio nem castigo, todas as almas. A divisão do Hades em


compartimentos é pós-homérica.
Em Hesíodo a idéia de permanência eterna na outra vida já parece também existir,
pelo menos para alguns deuses e mortais: lá foram lançados os Titãs e as almas
dos homens da Idade de Bronze. Os Ciclopes tiveram mais sorte: duas vezes
lançados no Tártaro, duas vezes de lá foram libertados, o que demonstra que para
algumas divindades o Tártaro podia funcionar apenas como prisão temporária, ao
menos até Hesíodo. Seja como for, é no Tártaro que as diferentes gerações divinas
lançam sucessivamente seus inimigos, como os Ciclopes e depois os Titãs.

2.3 - Hemera

Hemera, (Heméra), cuja base é o ino-europeu, "claridade". Hemera é a


personificação do Dia, concebido como divindade feminina, formando com Éter um
par, enquanto Érebo e Nix formam o outro.

2.4 - Nix

Nix, é a personificação e a deusa da noite, cuja raiz é o indo-europeu -


"escuridão". Habita o extremo Oeste, além do país de Atlas. Enquanto Érebo
personifica as trevas subterrâneas, inferiores, Nix personifica as trevas superiores,
de cima.
Percorre o céu, coberta por um manto sombrio, sobre um carro puxado por quatro
cavalos negros e sempre acompanhada das Queres. À Noite só se podem imolar
ovelhas negras. Nix simboliza o tempo das gestações, das germinações e das
conspirações, que vão surgir à luz do dia em manifestações de vida. É muito rica
em todas as potencialidades de existência, mas entrar na noite é regressar ao
indeterminado, onde se misturam pesadelos, íncubos, súcubos e monstros.
Símbolo do inconsciente, é no sono da noite que aquele se libera.

2.5 - Montes, Montanhas

No grego hesiódico (Úrea), do verbo (óresthai), "elevar-se", personificados como


filhos de Géia, são em Hesíodo a "agradável habitação das Ninfas". Por sua altura
e por ser um centro, a montanha tem um simbolismo preciso. Na medida em que
ela é alta, vertical, aproximando-se do céu, é símbolo de transcendência; enquanto
centro de hierofanias (manifestações do sagrado) e de teofanias (manifestações
dos deuses), participa do simbolismo da manifestação. Como ponto de encontro
entre o céu e a terra, é a residência dos deuses e o termo da ascensão humana.
Expressão da estabilidade e da imutabilidade, a montanha, segundo os sumérios, é
a massa primordial não diferenciada, o Ovo do mundo. Residência dos deuses,
escalar a montanha sagrada é caminhar em direção ao Céu, como meio de se
entrar em contato com o divino, e uma espécie de retorno ao Princípio.
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Todas as culturas têm sua montanha sagrada. Moisés recebeu as Tábuas da Lei no
Monte Sinai; Garizim foi e continua a ser um cume sagrado nas montanhas de
Efraim; o sacrifício de Isaac foi sobre a montanha; Elias obtém o milagre da chuva
nos píncaros do monte Carmelo; uma das mais belas pregações de Cristo foi o
Sermão da Montanha; a transfiguração de Jesus foi sobre uma alta montanha e
sua ascensão, sobre o monte das Oliveiras...
Os exemplos poderiam multiplicar-se. Acrescentemos, apenas, que o monte
Olimpo era a morada dos deuses gregos; Dioniso foi criado no monte Nisa e Zeus
o foi no Monte Ida. Montesalvat do Graal está situado no meio das ilhas
inacessíveis.
Na realidade, Deus está sempre mais perto quando se escala a montanha.

2.6 - Pontos

Em grego (Póntos), talvez da raiz * pent, ação de caminhar, o sânscrito tem,


caminho, e o latim pons, ponte, passarela. Pontos é, pois, a marcha, o caminho,
"os caminhos do mar". Personificado, passou a figurar como representação
masculina do mar. Não possuindo um mito próprio, aparece apenas nas
genealogias teogônicas e cosmogônicas. O mar simboliza a dinâmica da vida. Tudo
sai do mar e a ele retorna, tornando-se o mesmo, o lugar de nascimentos,
transformações e renascimentos. Águas em movimento, o mar simboliza um
estado transitório entre as possíveis realidades ainda informais e as realidades
formais, uma situação de ambivalência, que é a da incerteza, da dúvida e da
indecisão, que se pode concluir bem ou mal. Daí ser o mar simultaneamente a
imagem da vida e da morte. Cretenses, gregos e romanos sacrificavam ao mar
cavalos e touros, ambos símbolos de fecundidade. Símbolo também de hostilidade
ao divino, o mar acabou por ser vencido e dominado por um deus. Segundo as
cosmogonias babilônicas, Tiamat (O Mar), após contribuir para dar nascimento aos
deuses, foi por um deles vencido. Javé, tinha domínio total sobre o mar e seus
monstros, como diz Jó 7,12:
"Acaso sou eu o mar ou baleia, para me teres encerrado como num cárcere?"
Criação de Deus (GN 1,9-10), o mar tem que lhe estar sujeito (Jr 31,35). Cristo dá
ordens aos ventos e ao mar, e as tempestades se transformam em bonança (Mt 8,
24-27).
João (Ap 21,1) canta o mundo novo, em que o mar não mais existirá.

III - Apolo

3.1 - Nascimento de Apolo e Diana

Apolo e Diana são filhos de Júpiter e de Latona, personificação da Noite, divindade


poderosa cuja união com Júpiter produziu o Universo. Segundo a tradição, Latona
vê-se, em seguida, relegada ao segundo lugar e quase não aparece na mitologia a
não ser como vítima de Juno. A Terra, por instigação de Juno, quis impedi-la de
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achar lugar onde pudesse dar à luz os filhos que trazia no seio. Entretanto,
Netuno, vendo que a infeliz deusa não encontrava abrigo onde quer que fosse,
comoveu-se e fez sair do mar a ilha de Delos. Sendo essa ilha, a princípio,
flutuante, não pertencia à Terra, que assim não pôde nela exercer a sua funesta
ação.
Delos, diz o hino homérico, rejubilou-se com o nascimento do deus que atira os
seus dardos para longe. Durante nove dias e nove noites, foi Latona dilacerada
pelas cruéis dores do parto. Todas as deusas, as mais ilustres, reúnem-se-lhe em
torno. Dionéia, Réa, Têmis que persegue os culpados, a gemedora Anfitrite, todas,
exceto Juno dos braços de alabastro, que ficou no palácio do formidando Júpiter.
Entretanto, somente Ilitia, deusa dos partos, é que ignorava a nova; achava-se
sentada no topo do Olimpo, numa nuvem de ouro, retida pelos conselhos de Juno,
que sofria um ciúme furioso, porque Latona dos cabelos formosos iria certamente
dar à luz um filho poderoso e perfeito.
Então, a fim de levarem Ilitia, as demais deusas enviaram de Delos a ligeira Íris,
prometendo-lhe um colar de fios de ouro, com nove cúbitos de comprimento.
Recomendam-lhe sobretudo que a advirta, à revelia de Juno, de medo que esta a
detenha com as suas palavras. Íris, rápida como os ventos, mal recebe a ordem,
parte e cruza o espaço num instante.
Chegada à mansão dos deuses no topo do Olimpo, Íris persuadiu Ilitia, e ambas
voam como tímidas pombas. Quando a deusa que preside aos partos chegou a
Delos, Latona experimentava as mais vivas dores. Prestes a dar à luz, abraçava
uma palmeira e os joelhos apertavam a relva mole. Em breve nasce o deus; todas
as deusas dão um grito religioso. Imediatamente, divino Febo, elas te lavam
castamente, purificam-te em límpida água e te envolvem num véu branco, tecido
delicado, que elas cingem com um cinto de ouro. Latona não aleitou Apolo de
gládio resplendente. Têmis, com as suas imortais mãos, oferece-lhe o néctar e a
divina ambrósia. Latona alegrou-se enormemente por ter gerado o valoroso filho
que empunha um temível arco.
Apolo e Diana nasceram, pois, em Delos, e é por isso que Apolo se chama,
freqüentemente, o deus de Delos.

3.2 - Latona e a Serpente Pitão

Entretanto Juno, não conseguindo perdoar à rival ter sido amada por Júpiter,
instigou contra ela um monstruoso dragão, filho da Terra, chamado Delfíneo ou
Pitão, que fora incumbido da guarda dos oráculos da Terra, perto da fonte de
Castalia. Obedecendo às sugestões de Juno, Pitão perseguia sem cessar a infeliz
deusa, que escapava da sua presença apertando entre os braços os filhos. Num
vaso antigo, vemo-lo sob a forma de uma longa serpente que ergue a cabeça,
desenrolando o corpo, e persegue Latona. A deusa teme, enquanto os filhos, que
não percebem o perigo, estendem os bracinhos para o monstro.

3.3 - Os Camponeses Carianos


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Quando Latona, perseguida pela implacável Juno, fugia com os dois filhos ao colo,
chegou à Caria. Num dia de intenso calor, deteve-se aniquilada pela sede e pelo
cansaço às margens de um tanque do qual não ousava aproximar-se. Mas alguns
camponeses ocupados em arrancar caniços impediram-na de beber, expulsando-a
brutalmente. A infeliz Latona rogou-lhes, em nome dos filhinhos, que lhe
permitissem sorver umas gotas de água, mas eles a ameaçaram se não afastasse
quanto antes, e turvaram as águas com os pés e as mãos, a fim de que a lama
revolvida aparecesse à tona. A cólera de que Latona se sentiu possuída fez com
que se esquecesse da sede, e lembrando-se de que era deusa: "Pois bem, disse-
lhes, erguendo as mãos ao céu, ficareis para sempre neste tanque". O efeito
seguiu de perto a ameaça, e aqueles desalmados se viram transformados em rãs.
Desde então, não cessam de coaxar com voz rouca e de chafurdar na lama. Alguns
lobos, mais humanos que os camponeses, conduziram-na às margens do Xanto, e
Latona pôde fazer as suas abluções nesse rio, que foi consagrado a Apolo. Rubens,
no museu de Munich e Albane no Louvre possuem quadros em que vemos Latona
e os filhos na presença dos camponeses de Caria, que a repelem e se transformam
em rãs. Na fonte de Latona, em Versalhes, Balthazar Marsy representou a deusa,
com os dois meninos, implorando a vingança do céu contra os insultos dos
camponeses. Cá e lá, rãs, lagartos, tartarugas, camponeses e camponesas cuja
metamorfose se inicia, lançam contra Latona jatos de água que se cruzam em
todos os sentidos.

3.4 - O Tipo de Apolo

Esplendente é o epíteto que se dá a Apolo, considerado deus solar. Apolo atira ao


longe as suas setas, porque o sol dardeja ao longe os seus raios. É o deus profeta,
porque o sol ilumina na sua frente e vê, por conseguinte, o que vai suceder; é o
condutor das Musas e o deus da inspiração, porque o sol preside às harmonias da
natureza; é o deus da medicina, porque o sol cura os doentes com o seu benéfico
calor.
Apolo, o Sol, o mais belo dos poderes celestes, o vencedor das trevas e das forças
maléficas, tem sido representado pela arte sob vários aspectos. Nos tempos
primitivos, um pilar cônico, colocado nas grandes estradas, bastava para lembrar o
poder tutelar do deus. Quando nele se pendem as armas, é o deus vingador que
premia e castiga; quando nele se pendura uma cítara, torna-se o deus cujos
harmoniosos acordes devolvem a calma à alma agitada.
O Apolo de Amicleu, reproduzido em medalhas, pode dar uma idéia do que eram,
na época arcaica, as primeiras imagens do deus, sensivelmente afastadas do tipo
que a arte adotou mais tarde. Em bronzes de data menos antiga, mas ainda
anteriores à grande época. Apolo está representado com formas mais vigorosas do
que elegantes, e os anéis achatados da sua cabeleira o aproximam um pouco das
figuras de Mercúrio.
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No tipo que tem dominado, Apolo usa cabelos longuíssimos, separados por uma
risca no meio da cabeça e afastados de cada lado da testa. Às vezes, eles se
prendem atrás, na nuca, mas, outras, flutuam. Vários bustos e moedas nos
mostram tais diferentes aspectos.
Apolo é sempre representado jovem e emberbe, porque o sol não envelhece.
Algumas das suas estátuas o mostram até com os caracteres da adolescência, por
exemplo o Apollino de Florença. No Apolo Sauróctone, o jovem deus está
acompanhado de um lagarto, que ele sem dúvida acaba de excitar com a flecha
para o arrancar ao torpor e obrigá-lo a caminhar. Apolo, sem caráter, é
considerado o sol nascente, ou o sol da primavera, porque a presença do lagarto
coincide com os seus primeiros raios.
O grifo é um animal fantástico, que vemos freqüentemente perto da imagem do
deus ou atrelado ao seu carro. Tem a cabeça e as asas de águia, com corpo, patas
e cauda de leão. Os grifos têm por missão guardar os tesouros que as entranhas
da terra ocultam, e é para obter o ouro de que são detentores, que os Arimaspes
lutam constantemente contra eles. Os combates constituem o tema de
grandíssimo número de representações, principalmente em terracotas ou em
vasos. Os Arimaspes são guerreiros fabulosos, que usam vestes análogas às das
amazonas.

3.5 - Delfos, Centro do Mundo

O sol vê antes dos homens porque produz a luz com os seus raios; é por isso que
prevê o futuro e pode revelá-lo aos homens. Esse caráter profético é um dos
atributos essenciais de Apolo; dá os seus oráculos no templo de Delfos, situado no
centro do mundo. Ninguém duvida de tal fato, porque tendo Júpiter soltado duas
pombas nas duas extremidades da terra, elas voltaram a encontrar-se justamente
no ponto em que está o altar de Apolo. Assim, em vários vasos, vemos Apolo
sentado no omphalos (o umbigo da terra), de onde dá os oráculos.
Delfos chama-se também às vezes Pito, do nome da serpente Pitão, que ali foi
morta por Apolo.
Apolo, provido de temíveis setas, quis experimentá-las ferindo o perseguidor da
sua mãe. Mal o monstro se sente atingido, é presa das mais vivas dores e,
respirando com esforço, rola sobre a areia, assobia espantosamente, torce-se em
todas as direções, atira-se ao meio da floresta e morre exalando o hálito
empestado.
Apolo contentíssimo com o triunfo, exclama: "Que o teu corpo seco apodreça
nesta terra fértil; não serás mais o flagelo dos mortais que se nutrem dos
frutos da terra fecunda, e eles virão imolar-me aqui magníficas
hecatombes; nem Tifeu, nem a odiosa Quimera poderão arrancar-te à
morte; a terra e o sol no seu curso celeste farão apodrecer aqui o teu
cadáver." (Hino homérico).
Aquecidos pelos raios do sol, o monstro começa a apodrecer. Foi assim que aquela
região tomou o nome de Pito: os habitantes deram ao deus o nome de Pítio,
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porque em tais lugares o sol, os seus raios devoradores, decompôs o terrível


monstro.
Segundo as narrações dos poetas, o fato deve ter-se verificado quando Apolo era
ainda adolescente, mas o crescimento dos deuses não está submetido às mesmas
leis que o dos homens, e quando os escultores representam a vitória de Apolo,
mostram o deus com as feições de um jovem que já atingiu a plenitude da força. É
o que se nos depara numa das maiores obras-primas da escultura antiga, o Apolo
do Belvedere. Essa estátua, de mármore de Luni, foi descoberta no fim do século
quinze, perto de Capo d'Anzo, outrora Antium, e, adquirida pelo papa Júlio II,
então cardeal em vésperas de ser eleito para o pontificado, mandou ele a
colocassem nos jardins do Belvedere.
Todas as fórmulas da admiração foram esgotadas diante do Apolo do Belvedere, e
a estátua, desde que se tornou conhecida, não deixou de provocar o entusiasmo
dos artistas.

3.6 - A Disputa do Tripé

Apolo, após matar a serpente Pitão, envolveu o tripé com a pele do monstro que,
antes dele, possuía o oráculo. Uma medalha de Crotona nos mostra o tripé entre
Apolo e a serpente: o deus dispara a seta contra o inimigo. Foi por ocasião dessa
vitória que Apolo institui os jogos pítios.
Uma vivíssima disputa, freqüentemente representada nos baixos-relevos da época
arcaica, verificou-se entre Apolo e Hércules em torno do famoso tripé. Hércules
consulta Pítia em circunstância na qual esta se recusara a responder. O herói,
enfurecido, apoderou-se do tripé, que Apolo resolveu imediatamente reconquistar.
Foi tão viva a luta entre os dois combatentes que Júpiter se viu obrigado a intervir
mediante o raio.
O tripé de Apolo foi freqüentemente representado na arte antiga, e restam-nos
monumentos em que vemos até que ponto se unia o bom gosto à riqueza na
escultura ornamental dos antigos.

3.7 - O Oráculo de Delfos

O oráculo de Apolo, em Delfos, era o mais famoso da Grécia. Foi o acaso que
levou ao descobrimento do lugar em que deveria erguer-se o santuário. Umas
cabras errantes nos rochedos do Parnaso, aproximando-se de um buraco do qual
saíam exalações malignas, foram tomadas de convulsões. Acorrendo à notícia
daquele prodígio, os habitantes da vizinhança quiseram respirar as mesmas
exalações e experimentar os mesmos efeitos, uma espécie de loucura misto de
contorções e brados, e seguida de dom de profecia. Tendo-se alguns frenéticos
atirado ao abismo de onde proviam os vapores proféticos, colocou-se sobre o
buraco uma máquina chamada tripé, por três pés sobre os quais pousava, e
escolheu-se uma mulher para a ele subir e poder, sem risco, receber a
embriagadora exalação.
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Na origem, a resposta do deus, tal qual a davam os sacerdotes, era sempre


formulada em versos; mas tendo tido um filósofo a idéia de perguntar porque o
deus da poesia se exprimia em maus versos, a ironia foi repetida por todos, e o
deus passou a falar somente em prosa, o que lhe aumentou o prestígio.
A crença de que o futuro pudesse ser predito de maneira certa pelos oráculos,
desenvolveu singularmente na antigüidade a idéia da fatalidade, que em nenhuma
parte transparece tão nitidamente como na lenda de Édipo; os seus esforços não
conseguem livrá-lo à sentença que lhe foi anunciada pelo oráculo, e tudo quanto
ele faz para evitar o destino só lhe acelera os inclementes decretos.

IV - Marte

4.1 - Tipo e Atributos de Marte

Marte (Ares), deus sangüinário e detestado pelos imortais, nunca teve grande
importância entre as populações helênicas. Em numerosas localidades, parece até
haver sido inteiramente desconhecido, e se o seu culto conservou na Lacônia
importância maior que alhures, deve-se à rudeza dos habitantes de tal país. Foi
somente entre os romanos que Marte adquiriu importância verdadeira e
permanente; o tipo de Palas conformava-se muito mais ao gênio grego. Com
efeito, Palas é a inteligência guerreira, ao passo que Marte nada mais é do que a
personificação da carnificina. Ávido de matar, pouco lhe importa saber de que lado
está a justiça e cuida apenas de tornar mais furiosa a luta.
O deus da guerra e da violência aparece-nos sempre em atitude de repouso. Tem,
por vezes, numa das mãos a Vitória, como Júpiter ou Minerva. Vemo-lo com tal
aspecto numa famosa estátua da Villa Albani. Uma linda pedra gravada mostra
Marte segurando com uma das mãos a Vitória e com a outra a oliveira, símbolo da
paz proporcionada pela vitória.
A maioria das vezes usa um capacete e empunha uma lança ou gládio. Aparece,
assim, em várias medalhas, mas as estátuas que o representam isoladamente não
são demasiadamente comuns entre os gregos. Entretanto, a bela estátua do
Louvre, conhecida pelo nome de Aquiles Borghese passa hoje por ser um Marte.
Explica-se o elo que usa num dos pés pelo hábito de certos povos, e notadamente
os lacedemônios, de agrilhoarem o deus da guerra.
Parece ter sido o escultor Alcameno de Atenas quem fixou o tipo de Marte, tal qual
surge habitualmente nos monumentos artísticos. Os atributos habituais do deus
são o lobo, o escudo e a lança com alguns troféus. Uma medalha cunhada na
época de Seotímio Severo nos mostra Marte com uma lança, um escudo e uma
escada para o ataque. Sob tal aspecto, Marte recebe o epíteto de Teichosipletes
(que sacode as muralhas). Em geral, porém, não tem real importância na arte a
não ser pela sua ligação com Vênus.
Num célebre quadro da galeria de Florença, Rubens representou Marte, que Vênus
e Cupido se esforçam inutilmente por reter, e que, de gládio empunhado, segue a
Discórdia precedida do Temor e do Espanto. As Artes chorosas, a Música, a
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Arquitetura e a Pintura, são pisadas pelo feroz deus: o comércio está destruído e
os campos prestes a ser incendiados. Noutro quadro do mesmo pintor, vemos, ao
contrário, Marte repelido por Minerva, enquanto a Terra oferece o seio fecundo do
qual o leite jorra ao lado de um grupo de crianças que acorrem a ver uma
cornucópia que lhes oferece Pã, o deus da agricultura.

4.2 - Marte na Guerra dos Gigantes

Claudiano descreveu o papel de Marte na guerra dos Gigantes. "O deus impele os
seus furiosos corcéis contra a horda formidável e, imprimindo ao gládio um
movimento irresistível, o monstruoso Peloro é atingido no ponto em que, por um
estranho acoplamento, duas serpentes se lhe unem ao corpo que elas sustentam.
Marte vendo-o tombar, faz passar as rodas do carro sobre o inimigo vencido, e o
sangue que jorra desse corpo enorme avermelha as montanhas vizinhas.
"Entretanto, Peloro tinha um irmão, o gigante Mimas, que, ocupado em lutar
noutra região, viu Peloro cair. Mimas pensa exclusivamente na vingança e,
curvando-se para o mar, quer dele arrancar a ilha de Lemnos para atirá-la contra o
deus. Marte evita o choque e com um golpe de lança fura a cabeça de Mimas, cujo
cérebro se esparrama à direita e à esquerda.
Marte foi menos feliz com outros Gigantes. Fora aprisionado por Oto e Efialtes que
o haviam mantido agrilhoado durante treze meses. O escultor Flaxman nos mostra
o deus da guerra em posição humilhante. Oto e Efialtes tinham tentado escalar o
céu colocando o monte Ossa sobre o Olimpo e o Pélion sobre o Ossa. Diana, para
evitar-lhes a perseguição, viu-se obrigada a transformar-se em corça, e estando a
fugir precipitadamente, os dois irmãos Gigantes, que vinham um em cada direção,
atiraram contra ela, ao mesmo tempo, os seus dardos, e dessa maneira mataram
um ao outro. (Apolodoro).

4.3 - Vênus e Marte

A aliança entre a guerra e o amor, entre a força e a beleza, é uma idéia


inteiramente conforme ao espírito grego. Apesar de brutalíssimo, não pôde Marte
resistir a Vênus que o subjuga e domina com um sinal: da união de Marte e Vênus
nasceu Harmonia. Vários monumentos antigos, notadamente o famoso grupo do
museu de Florença e o do museu Capitolino, reproduzem essa ligação que também
se vê em pedras gravadas.
Os romanos gostavam de fazer-se representar com suas mulheres, e usando os
atributos de Marte e Vênus; era uma alusão à coragem do homem e à beleza da
mulher. Aliás, os romanos consideravam Marte e Vênus autores da sua raça, e
durante a época imperial, dava-se freqüentemente aos deuses a feição dos
imperadores. Assim é que temos no Louvre um grupo, cuja personagem masculina
parece ser Adriano ou Marco Aurélio, e que representa Marte ao lado de Vênus.
Mas a imperatriz está vestida. Vários arqueólogos pensam que a Vênus de Milo
estava ao lado da estátua de Marte. A arte dos últimos séculos ligou igualmente as
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duas divindades e, num encantador quadro do Louvre, le Poussin nos mostra o


deus da guerra, esquecido dos seus atributos e do seu papel, sorrindo para a
deusa, enquanto os cupidos brincam tranqüilamente com as armas, no meio de
risonha paisagem.

4.4 - Marte Ferido por Diomedes

Marte, na guerra de Tróia acirrado inimigo dos gregos, foi ferido por Diomedes e
deu um grito semelhante ao clamor de dez mil combatentes numa furiosa batalha.
Subiu ao Olimpo para dar vazão às suas queixas contra o herói grego e sobretudo
contra Minerva que dirigira o golpe. "Tens por tua filha, diz a Júpiter, uma indigna
fraqueza, porque tu sozinho foste quem gerou tão funesta divindade. Ei-la agora
que excita contra os deuses o insensato furor de Diomedes. Ousado! Em primeiro
lugar feriu Vênus na mão, depois atirou-se a mim, e se os meus pés velozes não
me houvessem subtraído à sua cólera, lá teria ficado eu estendido sem força aos
golpes do ferro."
Júpiter acolhe mal as queixas de Marte: "Divindade inconstante, exclama, cessa de
importunar-me com os teus lamentos! De todos os habitantes do Olimpo, tu és o
que eu mais odeio, pois só amas a discórdia, a guerra, a carnificina. Tens, sem
dúvida, o intratável caráter de tua mãe Juno, que as minhas ordens soberanas mal
conseguem domar. Os males que suportas hoje são o fruto dos seus conselhos.
Mas não quero que sofras por mais tempo, visto que sou teu pai." O rei dos
deuses manda, então, que se cure o filho e um bálsamo salutar lhe acalma as
dores, porque os deuses não podem morrer.
Um interessante quadro da mocidade de Davi, que obteve o segundo prêmio em
1771, mostra Diomedes no momento em que acaba de lançar contra Marte o
dardo dirigido por Minerva. Marte, ferido, está caído. O quadrinho é valioso,
porque nos dá a conhecer Davi numa época em que o jovem artista não pensava
absolutamente na reforma que, posteriormente, introduziu na pintura, e em que
todo o seu talento estava impregnado do estilo dominante então na escola
francesa.

4.5 - Filomela e Progne

O caráter feroz das lendas concernentes a Marte mais ainda se exagera, quando
elas se aplicam a seus filhos. Tivera ele de uma ninfa um filho chamado Tereu, rei
da Trácia, que desposou Progne, filha do rei de Atenas Pandião. Tinha este outra
filha chamada Filomela. Progne exprimiu ao marido o desejo de rever a irmã da
qual se achava separada havia cinco anos. Tereu foi, então, a Atenas procurar
Filomela, mas no caminho abusou dela, e, após lhe arrancar a língua para obrigá-
la ao silêncio, encerrou-a numa torre. Disse, em seguida, a Progne que sua irmã
morrera; mas Filomela, do fundo da masmorra, descobriu um modo de mandar à
irmã, num pedaço de tela, a narração das suas aventuras.
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Progne, com o auxílio das festas de Baco, conseguiu libertar Filomela, e ocultou-a
num canto do palácio. Juntas, meditam clamorosa vingança. Tereu tinha um filho
muito moço, chamado Ítis; chamam-no, matam-no, e cozem-lhe os membros que,
de noite, Progne oferece ao marido. Tereu pergunta porque o filho não está à
mesa, mas só quando termina o repasto é que Filomela, saindo subitamente do
esconderijo, lhe anuncia que comeu a carne do próprio filho e, ao mesmo tempo,
para que ele não duvide do que lhe afirma, lhe atira ao rosto a cabeça do infeliz
rapaz. Tereu, não se contendo, quer levantar-se para estrangular as duas irmãs,
mas os deuses, desejosos de pôr cobro a tão horrível família, metamorfoseiam
Progne em andorinha, Filomela em rouxinol, Ítis em pintassilgo e Tereu em
pomba. A bárbara história ministrou a Rubens tema para um quadro que está na
Espanha; vemos Progne e Filomela mostrando a Tereu a cabeça do filho, cuja
carne ele acaba de comer.

4.6 - Os Sacerdotes Sálios

O culto de Marte tinha grande importância em Roma. Era exercido pelos


sacerdotes sálios, instituídos por Numa para guardarem os ancilos. Os ancilos
tinham sido feitos em Roma sobre o modelo de um escudo caído do céu, durante
uma peste que dizimava a cidade, e eram considerados o palácio romano. Durante
certas festas os sacerdotes sálios percorriam a cidade levando a passeio os ancilos
cuja forma nos foi conservada num denário de prata cunhado sob Augusto. O
barrete que está no meio é o ápex do flâmine.

4.7 - Belona

A companheira habitual de Marte é Belona (Enio), personificação da chacina. Tinha


ela por missão especial conduzir o carro do deus da guerra e excitar-lhe os cavalos
com a ponta de uma lança. As figuras antigas de Belona são extremamente raras.
Plínio narra que Apeles pintara um quadro representando Belona, de mãos atadas
atrás das costas e presa ao carro triunfante de Alexandre: o quadro fora levado
para Roma como troféu.

4.8 - A Discórdia

Nos poetas, Belona é escoltada pelo Espanto, pela Fuga e pela Discórdia,
divindades às quais a arte não destinou tipo particular. Contudo, tem a Discórdia
grande importância na mitologia, pois foi ela que causou a ruína de Tróia, atirando
a maça de ouro entre as deusas. Homero faz da Discórdia o retrato seguinte:
"Deusa que, fraca no nascimento, cresce e em breve oculta a cabeça no céu,
enquanto os pés lhe permanecem na Terra; é ela que, atravessando a multidão
dos guerreiros, derrama em todos os corações o ódio fatal, precursor da
carnificina. Faz retumbar a voz, dá gritos alucinantes, terríveis, e lança no coração
de todos os guerreiros impressionante coragem. Apraz-se em ouvir os gemidos do
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soldado que morre e, quando todos os deuses se retiram do combate, é a única


que permanece no campo de batalha para dar, como pasto aos olhos, o espetáculo
dos mortos e dos moribundos."

4.9 - Etéoclo e Polinice

A Discórdia preside às disputas que dividem os povos e as famílias. A Fábula de


Etéoclo e Polinice nos mostra a sua ação. Os dois filhos de Édipo haviam expulsado
o pai, que cobriu de maldições e lhes predisse que se matariam um ao outro. Os
dois irmãos, temendo que a maldição paterna fosse ratificada pelos deuses, se
continuassem a viver juntos, decidiram, de comum acordo, que Polinice seria o
primeiro em se exilar voluntariamente da pátria, que deixaria o cetro a Etéoclo, e
voltaria depois, para que cada um pudesse reinar, alternadamente, um ano. Mas
Etéoclo, uma vez no trono, recusou-se a descer e proibiu ao irmão o regresso à
pátria. Polinice, então, tratou de procurar aliados para a defesa dos seus direitos.

4.10 - Anfiarau

Adrasto, rei de Argos, acolheu Polinice, e prometeu-lhe repô-lo no trono de Tebas.


Buscou, por conseguinte, aliados para empreender a luta, mas um poderoso chefe,
Anfiaraus, tratou de dissuadir ambos, por ser adivinho e por lhe haver a ciência
mostrado que a guerra seria fatal aos que a começassem, e que todos morreriam,
com exceção apenas de Adrasto. Anfiaraus tinha uma mulher chamada Erifila, e
por um velho juramento que fizera a Adrasto, comprometera-se, no caso de
divergências entre eles, a submeter-se inteiramente à decisão de Erifila. Quando
Polinice soube disso, empregou um ardil para forçar Anfiaraus a combater. Tinha
em suas mãos o famoso colar que Vênus dera, noutros tempos, à Harmonia, no
dia de suas núpcias com Cadmo. Deu-o de presente a Erifila, que, assim, se deixou
corromper, e Anfiaraus, apesar da certeza que tinha de mau êxito do negócio, foi
obrigado a combater com Adrasto e Polinice.
Um poderoso exército se reuniu em breve para marchar contra Tebas.
Comandavam-no sete chefes: Adrasto, Polinice, Capaneu, Partenopeu, Anfiaraus,
Hipomedonte e Tideu. Juraram todos que iriam combater sob as suas ordens.

4.11 - Arquemoro

Durante o caminho, faltou-lhes água, e o exército começou a sofrer devoradora


sede. Encontraram, então, uma criatura que tinha um filhinho, e perguntaram-lhe
se não havia no país uma fonte. Chamava-se o menino Ofeltes e era filho do rei
Neméia. A mulher era Hipsipila, outrora rainha de Lemnos, mas que, tendo sido
vendida posteriormente como escrava, estava ao serviço do rei de Neméia, que lhe
confiara a tutela do filho. Hipsipila pousou a criança sobre umas folhas de aipo e
conduziu os sete chefes a uma fonte das proximidades. Durante a curta ausência,
porém, uma serpente envolveu nas espiras a criança abandonada e sufocou-a. Ao
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regressarem, os chefes apressaram-se em matar a serpente e tomaram aos seus


cuidados Hipsipila, para livrá-la da ira do rei de Neméia. Deram à criança o nome
de Arquemoro, realizaram-lhe um magnífico funeral e instituíram em sua honra os
jogos de Neméia, nos quais os vencedores se cobriam de luto e se coroavam de
aipo.

4.12 - Combate dos Dois Irmãos

Anfiaraus viu naquilo péssimo presságio. Mas era preciso partir, e assim chegaram
todos a Tebas. Uma terrível batalha se feriu sob os muros da cidade, que Etéoclo
não pretendia entregar. Como o sangue escorresse por toda parte, Etéoclo subiu a
uma torre, mandou que se fizesse silêncio, e disse aos exércitos: "Generais da
Grécia, chefes dos argivos que a guerra atrai para estes páramos, e vós, povo de
Cadmo, não arrisqueis mais a vida nem por Polinice, nem por mim. Quero eu,
sozinho, enfrentar o perigo, e desejo lutar contra meu irmão, de homem para
homem. Se o matar, governarei sozinho; se for vencido, entregar-lhe-ei a cidade.
Vós, portanto, abandonai o combate, voltai para Argos, não venhais mais aqui
perder a vida; o povo tebano não deseja outras mortes." (Eurípedes).
Feriu-se, então, entre os dois irmãos um combate singular no qual foram mortos
ambos. Os deuses haviam ouvido as derradeiras imprecações de Édipo. Esse
combate figura num grandíssimo número de baixos-relevos antigos.
O exército sitiante foi vencido, e todos os chefes pereceram com exceção de
Adrasto, que deveu a vida à rapidez do seu cavalo. Assim, realizou-se a profecia de
Anfiaraus.

4.13 - Funerais de Etéoclo e de Polinice

O senado de Tebas, que tomara partido pelos sitiados, decidiu que Etéoclo seria
sepultado com honra, mas que seu irmão Polinice seria, em virtude da traição,
deixado sem sepultura, para que o devorassem os cães e os abutres. Antígona
quis enterrar o irmão, apesar das ordens dadas e, decidida a desobedecer, disse
aos chefes do povo: "Pois bem! Eis o que respondo eu aos chefes dos de Cadmos.
Se não há quem queira, comigo, enterrá-lo, hei de conseguir sozinha, e assumirei
toda a responsabilidade. Não vejo vergonha nenhuma em sepultar meu irmão,
nem que para isso devesse, rebelada, ir de encontro aos desejos da cidade. É
coisa grave termos caído das mesmas entranhas, termos tido a mesma mãe, uma
infeliz, o mesmo pai, outro infeliz. Sim, deliberadamente, hei de continuar irmã
deste morto. Ah, não se fartarão da sua carne os lobos de ventre faminto. Hei de
sozinha, apesar de mulher, incumbir-me de remover a terra e preparar uma cova.
Trarei o pó nas dobras desta tela, e eu própria a recobrirei com ele o cadáver.
Ninguém objetará! Terei essa coragem, e, o que é mais, terei ao meu lado todos
os recursos de uma alma que quer conseguir." (Ésquilo).
Pausânias, na narração das suas viagens, diz que viu o túmulo dos filhos de Édipo.
"Não assisti aos sacrifícios que ali se realizam, mas pessoas dignas de fé me
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asseguraram que nas ocasiões em que se assam as vítimas imoladas aos dois
irmãos irreconciliáveis, a chama e a fumaça se dividem visivelmente por eles."
Creonte, rei de Tebas, sabendo que, não obstante a proibição, Antígona sepultara
o irmão, pergunta-lhe se conhecia o decreto. A jovem não nega: "Não pensei,
responde, que as leis dos mortais tivessem bastante força para superar as leis não
escritas, obra imutável dos deuses. Para mim, o traspasse não tem nada de
doloroso; mas se tivesse deixado sem sepultura o filho de minha mãe, teria sido
infeliz; quanto à morte que me aguarda, em nada me assusta." Creonte,
conformando-se à lei, ordenou a morte de Antígona e as suas ordens foram
executadas; ao mesmo tempo, porém, soube da morte de seu filho único Hemon,
que amava Antígona, e que se ferira mortalmente. Sua mulher morreu também ao
saber da morte do filho, e Creonte ficou sozinho com toda a amargura. Assim
terminou a família de Laio.

V - Vênus

5.1 - Nascimento de Vênus

Da espuma do mar, fecundada pelo sangue de Urano (o Céu) nasceu uma jovem
levada em primeiro lugar para a ilha de Cítera e em seguida a Chipre. Deusa
encantadora, não tardou percorrer a costa, e as flores nasciam sob os seus pés
delicados. Chama-se Afrodite (Vênus), ou Citeréia, do nome da ilha a que aportou,
ou ainda Cipris, do nome da ilha em que é honrada. Pelo menos, é essa a tradição
mais difundida, pois algumas lendas diferentes vieram confundir-se em Vênus que,
às vezes, surge como filha de Júpiter e de Dionéia. É também a que devemos
adotar, pois os artistas que representaram o nascimento de Vênus mostram
sempre a deusa no momento em que sai das vagas.
Nas pinturas antigas, Vênus é freqüentemente representada deitada sobre uma
simples concha; nas moedas, vemo-la num carro puxado pelos Tritões e pelas
Tritônidas. Finalmente, numerosos baixos-relevos no-la apresentam seguida de
hipocampos ou centauros marinhos. No século dezoito, os pintores franceses, e
notadamente Boucher, viram no nascimento de Vênus um tema infinitamente
gracioso e útil à decoração. Uma multidão de pequenos cupidos paira nos ares ou
escolta a deusa. Aliás, os pintores franceses seguiram, nesse ponto, as tradições
bebidas da Itália.
Conformando-se à narração dos poetas, Albane colocou a deusa num carro puxado
por cavalos marinhos. Assim é que ela vai ter a Cítera, onde a aguarda Peitho (a
Persuasão), que, na margem, estende os braços à jovem viajante. Cupido está
sentado perto do mar; as Nereidas e os Amores montados em delfins formam o
cortejo da deusa. Alegres Amores festejam a chegada de Vênus, e outros
esvoaçam no ar semeando flores na passagem.
Num quadro dotado de grande frescor e brilho, que faz parte do museu de Viena,
Rubens pintou a festa de Vênus em Cítera. Ninfas, sátiros e faunos dançam em
torno da sua estátua, enquanto os Amores entrelaçam guirlandas de flores e
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enchem os ares de alegres cadências. Ao fundo, mostrou o pintor o templo da


deusa.
O atavio de Vênus é um tema que a arte e a poesia fixaram bem. Enquanto as
Horas estavam incumbidas da educação da deusa, as Graças presidiam aos
cuidados do seu atavio. Uma multidão de quadros reproduziu tão encantadora
cena, e os pintores não deixaram de acrescentar todos os pormenores que lhes
sugeriu a imaginação. Quando Boucher faleceu, tinha sobre o cavalete um quadro
representando o atavio de Vênus. Prudhon pintou Vênus estendida num leito
antigo e servida pelos Amores que lhe perfumam os cabelos, lhe estendem um
espelho, queimam perfumes em tôrno da deusa, trazem-lhe jóias e lhe entrelaçam
guirlandas de flores. Rubens também faz intervir Cupido que segura um espelho
no qual a mãe se fita; infelizmente, é uma velha que lhe arranja os cabelos. A
velhice lenta e enrugada jamais deve aproximar-se de Vênus.
Albane, que está longe de ser artista de primeira ordem, é, no entanto, o que mais
lembra, pela natureza de suas composições, as graciosas ficções da antigüidade
sobre Vênus. O Atavio de Vênus, quadro que infelizmente escureceu, é talvez, a
sua obra-prima como concepção mitológica. Num terraço, à beira-mar, Vênus
contempla-se num espelho que o Cupido lhe apresenta, enquanto as Graças lhe
perfumam a linda cabeleira, e lhe arranjam os atavios. Diante dela está uma fonte
onde o Amor faz que matem a sede duas pombas. Um palácio aéreo, como
convém a Vênus, aparece no fundo de um tanque, ao passo que, nas nuvens,
Amores alados atrelam cisnes brancos ao carro de ouro que vai conduzir o passeio
a deusa, e enchem os ares dos seus melodiosos concertos.

5.2 - Tipo e Atributos de Vênus

"O culto sírio de Astarte, diz Ottfried Mueller, parece, encontrando na Grécia
alguns inícios indígenas, ter dado nascimento ao culto célebre e difundido por toda
parte de Vênus afrodite. A idéia fundamental da grande deusa Natureza, sobre a
qual ela repousava, nunca se perdeu inteiramente; o elemento úmido que formava
no Oriente o império reservado a essa divindade continuou a ser submetido ao
poder de Vênus afrodite nas costas e nos portos em que era venerada; sobretudo
o mar, o mar tranqüilo e calmo, refletindo o céu no espelho úmido das suas ondas,
parecia, aos olhos dos gregos, uma expressão de sua divinal natureza. Quando a
arte, no ciclo de Afrodite, deixou para trás as pedras grosseiras e os ídolos
informes do culto primitivo, a idéia de uma deusa cujo poder se estende por toda
parte e à qual ninguém pode resistir, animou as suas criações; gostava-se de a
representar sentada num trono, segurando nas mãos os sinais simbólicos de uma
natureza repleta de mocidade e esplendor, de uma luxuriante abundância; a deusa
estava inteiramente envolta nas dobras das suas vestes (a túnica mal lhe deixava à
mostra uma parte do seio esquerdo) que se distinguiam pela elegância, pois
precisamente nas imagens de Vênus, a graça rebuscada das vestes e dos
movimentos parecia pertencer ao caráter da deusa. Nas obras saídas da escola de
Fídias, ou produzidas sob a influência dessa escola, a arte representa em Afrodite
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o princípio feminino e a união dos sexos em toda a sua santidade e grandeza. Vê-
se ali, antes, uma união durável formada com o fito do bem geral, e não uma
aproximação efêmera que deve terminar com os prazeres sensuais que ele
proporciona. A nova arte ática foi a primeira que tratou do tema de Afrodite com
um entusiasmo puramente sensual, e que divinizou, nas representações figuradas
da deusa, já não mais apenas um poder ao qual o mundo inteiro obedecia, mas
antes a individualidade da beleza feminina."
Vênus dá leis ao céu, à terra, às ondas e a todas as criaturas vivas. "Foi ela que
deu o germe das plantas e das árvores, foi ela que reuniu nos laços da sociedade
os primeiros homens, espíritos ferozes e bárbaros, foi ela que ensinou a cada ser a
unir-se a uma companheira. Foi ela que nos proporcionou as inúmeras espécies de
aves e a multiplicação dos rebanhos. O carneiro furioso luta, às chifradas, com o
carneiro. Mas teme ferir a ovelha. O touro cujos longos mugidos faziam ecoar os
vales e os bosques abandona a ferocidade, quando vê a novilha. O mesmo poder
sustenta tudo quanto vive sob os amplos mares e povoa as águas de peixes sem
conta. Vênus foi a primeira em despojar os homens do aspecto feroz que lhes era
peculiar. Dela foi que nos vieram o atavio e o cuidado do próprio corpo." (Ovídio).

5.3 - Vênus Celeste e Vênus Vulgar

Pausânias, na sua descrição de Tebas, assinala várias estátuas de Vênus, da mais


alta antigüidade, pois haviam sido feitas com o lenho dos navios de Cadmo e
consagradas pela própria Harmonia. "A primeira, diz ele, é Vênus celeste, a
segunda Vênus vulgar, e a terceira é chamada preservadora. Foi a própria
Harmonia que lhes impôs tais nomes para distinguir essas três espécies de
Amores: um celeste, ou seja, casto, outro vulgar, ou seja, preso ao corpo, o
terceiro desordenado, que leva os homens às uniões incestuosas e detestáveis. Era
à Vênus preservadora que se dirigiam as preces para a preservação dos desejos
culposos." (Pausânias).
Temos interessante exemplo desse último aspecto de Vênus, numa decisão do
senado romano, o qual, segundo os livros sibilinos consultados pelos decênviros,
ordenara a dedicação de uma estátua de Vênus vesticordia (convertedora), como
meio de reconduzir as moças devassas ao pudor do sexo. (Valério Máximo).
A tartaruga, emblema da castidade das mulheres, era consagrada a Vênus celeste,
e o bode, símbolo contrário, consagrado à Vênus vulgar. As imagens da deusa,
que se encontravam em todas as casas, eram, além de tudo, acompanhadas de
inscrições que indicavam o seu caráter. Eis aqui uma que chegou até nós: "Esta
Vênus não é a Vênus popular, é a Vênus urânia. A casta Crisógona colocou-a na
casa de Amphicles, a quem deu vários filhos, comoventes penhores da sua ternura
e fidelidade. Todos os anos, o primeiro cuidado desses felizes esposos é de vos
invocar, poderosa deusa, e em prêmio da sua piedade, todos os anos lhes
aumentais a ventura. Prosperam sempre os mortais que honram os deuses."
(Teócrito).
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Vênus celeste está caracterizada pela veste estrelada. Vemo-la figurada numa
pintura de Pompéia onde está representada de pé com um diadema na cabeça e
um cetro na mão. O famoso escultor Scopas fizera para a cidade de Élis uma
Vênus vulgar que pusera sentada sobre um bode; figura análoga se encontra em
outra pedra gravada antiga. No século XIX, o pintor Gleyre compôs um belíssimo
quadro sobre o mesmo tema. Essa Vênus era sobretudo honrada em Corinto,
cidade marítima que sempre se celebrizou pelas cortesãs. Ali é que vivia a famosa
Laís, em torno da qual se lê o seguinte epigrama na Antologia: "Eu, altiva Laís, de
quem a Grécia era joguete, eu que tinha à porta um enxame de jovens amantes,
consagro a Vênus este espelho, pois não desejo ver-me tal qual sou, e já não
posso ver-me tal qual era."
Encontra-se na mesma coletânea outro trecho ainda mais interessante: "Minarete,
que há pouco estendia os fios da trama e sem cessar fazia ressoar a lançadeira de
Minerva, acaba de consagrar a Vênus o seu cesto de trabalho, as suas lãs e os
seus fusos, todos instrumentos seus de labor, queimando-os no altar:
"Desaparecerei, exclamou, instrumentos que deixais morrer de fome as pobres
mulheres e murchais a beleza das jovens!" Depois, pegou coroas, um alaúde e
pôs-se a levar vida alegre nas festas e nos banquetes. "Ó Vênus, diz ela à deusa,
hei de trazer-te o dízimo dos meus benefícios; proporciona-me trabalho no teu
interesse e no meu." (Antologia).

5.4 - Pigmaleão e a sua Estátua

A ilha de Chipre era particularmente renomada pelas cortesãs. O escultor


Pigmaleão que ali vivia sentiu-se de tal modo impressionado com a desfaçatez das
mulheres do país, que resolver viver no celibato. Mas como a sua imaginação
sonhasse constantemente com uma formosura de caráter diferente, esculpiu uma
estátua de marfim, representando uma mulher que à castidade de expressão unia
a pureza das formas. A imagem lhe agradou tanto, que por ela se apaixonou;
infelizmente faltava a vida àquela pudica beleza, e quando Pigmaleão contemplava
as mulheres vivas via nelas a beleza mas nunca o pudor. Ao chegar o dia da festa
de Vênus, dia que com tamanha magnificência se celebra na ilha de Chipre,
Pigmaleão dirigiu-se ao templo da deusa, que encontrou perfumado com incenso,
e rodeado de novilhas brancas, cujas pontas haviam sido douradas e que seriam
imoladas. "Grande deusa, exclamou abraçando o altar, faze com que me torne
marido de mulher perfeita como a estátua que esculpi!"
Parece que não estava em poder da deusa descobrir em Chipre mulher provida da
casta beleza sonhada pelo artista, pois Vênus, para lhe ser agradável, preferiu
recorrer ao milagre. Com efeito, quando o escultor voltou, foi abraçar a estátua, e
viu-lhe as faces corar: o marfim amoleceu-se e a estátua animou-se. Pigmaleão,
encantado, agradeceu à deusa, que desejou pessoalmente assistir ao himeneu.
A história de Pigmaleão constitui o tema do último quadro pintado por Girondet, e
que figurou no salão de 1819. Não se imagina a quantidade de brochuras
aparecidas desde então para louvar ou criticar o pintor. O mais interessante foi
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que os médicos houveram por bem mesclar-se à discussão, e examinar, com


ridícula seriedade, a questão de saber se o artista tivera razão em animar,
primeiramente, a cabeça da estátua, cujas pernas continuam ainda de marfim, e
se teria sido mais conveniente fazer recomeçar a vida pelo peito, que encerra o
coração e os pulmões.
A estátua animada por Pigmaleão deu-lhe um filho que foi fundador de Pafos,
cidade de Chipre, célebre pelo culto ali prestado a Vênus.

5.5 - Vênus de Cnido

Na origem, não se tinha o hábito de representar Vênus, no instante em que sai da


espuma do mar, ou seja, inteiramente nua. Assim, foi a obra de Praxíteles
considerada novidade, e a própria deusa testemunha, pela boca de um antigo
autor, o espanto por se ver assim desprovida de vestes. "Mostrei-me a Páris,
Anquises e Adônis é verdade; mas onde foi que Praxíteles me viu?" (Antologia).
Narra Plínio que Praxíteles, a quem os habitantes de Cos haviam encomendado
uma Vênus, lhes deu a escolher entre duas estátuas, uma das quais estava
vestida, ao passo que a outra estava nua. Preferiram eles a primeira, e Praxíteles
vendeu a segunda aos habitantes de Cnido que se congratularam com a compra,
pois ela granjeou reputação e fortuna ao país. A Vênus de Cnido parece ter sido o
tipo da maioria das estátuas da deusa, quando se representava no momento do
nascimento. O Júpiter de Fídias e a Vênus de Cnido por Praxíteles eram
considerados, nos diferentes gêneros, dois produtos dos mais perfeitos da
escultura. Dizia Plínio: "De todas as partes da terra, navega-se em direção a Cnido,
para contemplar a estátua de Vênus." O rei Nicomedes ofereceu aos cnidianos, em
troca da estátua, a totalidade das dívidas deles, que eram importantes. Recusaram
a oferta, e com razão, acrescenta Plínio, pois a obra-prima constitui o esplendor da
cidade. Uma multidão de escritores da antigüidade nos legou sinais da admiração
que lhes inspirava a obra-prima para a qual se fizera a seguinte inscrição: "Ao
verem a Vênus de Cnido, Minerva e Juno disseram uma à outra: Não acusemos
mais Páris."
Entre as numerosíssimas estátuas que podem prender-se à mesma série, a mais
famosa é a Vênus de Médicis, situada na tribuna da Galeria de Florença. Eis a
descrição que dela fazia o catálogo do Louvre, onde figurou durante quinze anos:
"A deusa dos Amores acaba de sair da espuma do mar, onde nasceu; a beleza
virginal aparece, na margem encantada de Cítera, sem outro véu que a atitude de
pudor. Se a cabeleira lhe não flutua sobre os divinos ombros, é por que as Horas,
com as suas mãos celestiais, acabam de lha arranjar (Hino homérico). Um delfim e
uma concha estão aos seus pés: são os símbolos do mar, elemento natal de
Vênus. Os dois Amores que o encimam não são os filhos da deusa. Um deles é o
Amor primitivo (Eros) que desemaranhou o Caos; o outro é o Desejo (Himeros)
que aparecera no mundo ao mesmo tempo que o primeiro ser sensível. Ambos a
viram nascer e jamais se lhe afastaram dos passos (teogonia de Hesíodo). A Vênus
de Médicis tem as orelhas furadas, como já se observou em outras estátuas da
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mesma deusa; sem dúvida pendiam delas esplêndidos brincos. O braço esquerdo
conserva no alto o sinal evidente do bracelete chamado spinther, representado em
escultura em várias das suas imagens. Uma inscrição colocada sobre o plinto nos
diz que o autor da Vênus de Médicis é Cleômenes, ateniense, filho de Apolodoro."
Vênus nem sempre está de pé quando sai das águas, e uma numerosa série de
estátuas, ordinariamente designadas com o nome de Vênus agachadas, apresenta-
nos a deusa apoiando um dos joelhos ao chão para tornar a erguer-se. O nome da
Vênus no banho também lhe é atribuído. Quando a deusa aperta a cabeleira
úmida, chamam-lhe de Vênus anadiomene. Apeles fizera uma Vênus anadiomene
da qual os antigos elogiavam bastante a beleza. Os habitantes de Cos exigiram
outra Vênus semelhante, do mesmo artista, mas ele morreu deixando a obra
incompleta.
A Vênus de Apeles foi celebrada várias vezes na Antologia: "Esta Vênus, que sai do
seio materno das águas, é obra do pincel de Apeles. Vê como, pegando com a
mão a cabeleira molhada, espreme a água! Agora as próprias Juno e Minerva
dirão: "Não queremos mais disputar-lhe o prêmio da beleza." (Antologia).

5.6 - Vênus Genitrix

Considerada como geradora do gênero humano, Vênus está sempre vestida. Nas
estátuas, as dobras da sua veste indicam freqüentemente que está molhada, e às
vezes traz um dos seios descobertos, por ser a nutriz universal. As medalhas a
mostram vestida e com os dois seios cobertos, mas ela está freqüentemente
acompanhada de um menino: a deusa, nesse caso, recebe o nome de Vênus
genitrix. Temos no Louvre uma bela estátua de Vênus genitrix com um seio
descoberto; de resto, o mesmo tipo se encontra quase idêntico em vários museus.

5.7 - Vênus Vitoriosa

Dá-se este nome a Vênus quando ela usa as armas de Marte. Com efeito, vemos,
em várias pedras gravadas, uma figura de Vênus segurando na mão um capacete.
Às vezes está ainda acompanhada de um escudo ou de troféus de armas. Outras,
segura numa das mãos o capacete, e na outra uma palma. Essas figuras nos
mostram sempre Vênus triunfante contra Marte, como conseqüência da mesma
idéia que deu nascimento à lenda de Hércules fiando aos pés de Onfales. É sempre
a beleza a dominar a força.
A associação de Marte e Vênus está igualmente fixada em duas pinturas de
Herculanum, onde se nos deparam Amores preparando o trono das duas
divindades. Um capacete está representado no trono de Marte e uma pomba no de
Vênus. A pomba é, com efeito, o atributo especial de Vênus, como o capacete é o
atributo de Marte.
Colocam-se, outrossim, entre as Vênus vitoriosas uma série de estátuas que só
têm vestes para cobrir os membros inferiores, e que têm por caráter determinante
a colocação de um dos pés sobre uma pequena elevação. Tal postura implica a
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idéia da dominação sobre Marte, quando é um capacete que suporta o pé, e sobre
o mundo, quando ele se apoia simplesmente num rochedo. Neste caráter, não tem
a deusa a graça que se lhe dá como Vênus nascente; pelo contrário, assume as
atitudes de heroína. As formas do corpo estão repletas de vigor e força, e as
feições possuem uma expressão de brutalidade desdenhosa muito distante do
sorriso. A Vênus de Milo é considerada o tipo mais completo dessa classe de
estátuas. A beleza grave e sem afetação de tal figura nada tem do agradável
coquetismo que a maioria dos artistas dos últimos séculos considera apanágio
essencial da mulher. Foi no mês de fevereiro de 1820 que um pobre camponês
grego a descobriu, remexendo as terras do seu jardim. A estátua, feita de
mármore de Paros, está constituída por dois blocos cuja união se oculta mediante
as dobras da túnica.

VI - Hércules

6.1 - Os Trabalhos de Hércules

Hércules (ou Héracles), o maior de todos os heróis gregos, era filho de Zeus e
Alcmena. Alcmena era a virtuosa esposa de Anfitrião e, para seduzi-la, Zeus
assumiu a forma de Anfitrião enquanto este estava ausente de casa. Quando seu
marido retornou e descobriu o que tinha acontecido, ficou tão irado que construiu
uma grande pira e teria queimado Alcmena viva, se Zeus não tivesse mandado
nuvens para apagar o fogo, forçando assim Anfitrião a aceitar a situação. Nascido,
o jovem Hércules rapidamente revelou seu potencial heróico. Enquanto ainda no
berço, ele estrangulou duas serpentes que a ciumenta Hera, esposa de Zeus, tinha
mandado para atacá-lo ao seu meio-irmão Íflico; enquanto ainda um menino, ele
matou um leão selvagem no Monte Citéron. Na vida adulta, as aventuras de
Hércules foram maiores e mais espetaculares do que as de qualquer outro herói.
Por toda a antigüidade ele foi muito popular, o assunto de numerosas estórias e
incontáveis obras de arte. Apesar das mais coerentes fontes literárias sobre suas
façanhas datarem apenas do século III a.C., citações espalhadas por vários locais
e a evidência de fontes artísticas deixam muito claro o fato que a maioria, se não
todas, de suas aventuras era bem conhecida em tempos mais antigos.
Hércules realizou seus famosos doze trabalhos sob o comando de Euristeu, Rei de
Argos de Micenas. Existem várias explicações da razão pela qual Hércules se sentiu
obrigado a realizar os pedidos cansativos e aparentemente impossíveis de Euristeu.
Uma fonte sugere que os trabalhos eram uma penitência imposta ao herói pelo
Oráculo de Delfos quando, num acesso de loucura, matou todos os filhos de seu
primeiro casamento. Enquanto os seis primeiros trabalhos se passam no
Peloponeso, os últimos levaram Hércules a vários lugares na orla do mundo grego
e além. Durante os trabalhos, Hércules foi perseguido pelo ódio da deusa Hera,
que tinha ciúmes dos filhos de Zeus com outras mulheres. A deusa Atena, por
outro lado, era uma defensora entusiasta de Hércules; ele também desfrutou da
companhia e ajuda ocasional de seu sobrinho, Iolau.
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O primeiro trabalho de Hércules era matar o leão de Neméia. Como esta enorme
fera era invulnerável a qualquer arma, Hércules lutou com ele e acabou
estrangulando-o apenas com suas mãos. A seguir, ele removeu a pele utilizando
uma de suas garras, e passou a utilizá-la como uma capa, com as patas amarradas
ao redor de seu pescoço, as presas surgindo sobre sua cabeça, e a cauda
balançando em suas costas. O segundo trabalho exigiu a destruição da Hidra de
Lerna, uma cobra aquática com várias cabeças, que estava flagelando os pântanos
perto de Lerna. Sempre que Hércules decepava uma cabeça, duas cresciam em
seu lugar, e, como se isso não fosse um problema suficiente, Hera enviou um
caranguejo gigante para morder o pé de Hércules. Este truque desleal foi demais
para o herói, que decidiu pedir ajuda a Iolau; enquanto Hércules cortava as
cabeças, Iolau cauterizava os locais com uma tocha flamejante, de modo que
novas cabeças não pudessem crescer, e finalmente dando cabo do monstro. A
seguir, Hércules embebeu a ponta de suas flechas no sangue ou veneno da Hidra,
tornando-as venenosas.
No Monte Erimanto, um feroz javali estava se portando violentamente e causando
prejuízos. Euristeu rispidamente ordenou a Hércules que trouxesse este animal
vivo à sua presença, mas as antigas ilustrações deste episódio, as quais mostram
principalmente Euristeu acovardado refugiando-se num grande jarro, sugerem que
ele veio a se arrepender desta ordem. Hércules levou um ano para realizar o
trabalho a seguir, que era capturar a Corça do Monte Carineu. Este animal parecia
ser mais tímido do que perigoso. Este animal era sagrado para a deusa Ártemis e,
apesar de ser fêmea, possuía lindas aspas. De acordo com a lenda, Hércules
finalmente aprisionou a Corça e a estava levando para Euristeu, encontrou-se com
Ártemis, que estava muito zangada e ameaçou matar Hércules pelo atrevimento
em capturar seu animal; mas quando ficou sabendo sobre os trabalhos, ela
concordou em deixar Hércules levar o animal, com a condição que Euristeu o
libertasse logo que o tivesse visto.
Os Pássaros Estinfalos eram tão numerosos que estavam destruindo todas as
plantações nas vizinhanças do Lago Estinfalo em Arcádia; várias fontes dizem que
eles eram comedores de homens, ou pelo menos podiam atirar suas penas como
se fossem flechas. Não está muito claro como Hércules enfrentou este desafio:
uma pintura de um vaso mostra Hércules atacando-os com um tipo de estilingue,
mas outras fontes sugerem que ele os abateu com arco e flecha, ou os espantou
para longe utilizando um címbalo de bronze feito especialmente para a tarefa pelo
deus Hefesto. O último dos seis trabalhos do Peloponeso foi a limpeza dos currais
Augianos. O Rei Áugias de Élida possuía grandes rebanhos de gado, cujos currais
nunca tinham sido limpos, assim o estrume tinha vários metros de profundidade.
Euristeu deve Ter pensado que a tarefa de limpar os estábulos num único dia seria
impossível, mas Hércules uma vez mais conseguiu resolver a situação, desviando o
curso de um rio e as águas fizeram todo o trabalho por ele.
Euristeu pede agora que Hércules capture o selvagem e fez touro de Creta, o
primeiro trabalho fora de Peloponeso. Assim que Euristeu viu o animal, Hércules o
soltou, este sobrevivendo até ser morto por Teseu em Maratona. A seguir, Euristeu
32

enviou Hércules à Trácia para trazer os cavalos devoradores de homens de


Diomedes. Hércules amansou estes animais alimentando-os com seu brutal
senhor, e os trouxe de maneira segura a Euristeu. A seguir, ele foi imediatamente
mandado, desta vez para as margens do Mar Negro, para buscar a cinta da rainha
das Amazonas. Hércules levou um exército junto consigo nesta ocasião, mas nunca
precisaria dele se Hera não tivesse criado problemas. Quando chegou à cidade das
Amazonas de Temisquira, a rainha das Amazonas estava até feliz que ele levasse
sua cinta; Hera, sentindo que estava sendo fácil demais, espalhou um boato que
Hércules pretendia levar a própria rainha, iniciando-se uma sangrenta batalha.
Hércules, é claro, conseguiu escapar com a cinta, mas após apenas duros
combates e muitas mortes.
Para realizar seus três últimos trabalhos, Hércules foi completamente fora das
fronteiras do mundo grego. Primeiro foi mandado além da borda do Oceano para a
distante Eritéia no extremo ocidente, para buscar o Rebanho de Gérião.
Gérião era um formidável desafio; não apenas tinha um corpo triplo, mas para
ajudá-lo a tomar conta de seu maravilhoso rebanho vermelho também utilizava um
feroz pastor chamado Euritão e um cachorro de duas cabeças e rabo de serpente
chamado Orto. Orto era o irmão de Cérbero, o cão que guardava a entrada do
Mundo Inferior, e o encontro de Hércules com Gérião é algumas vezes
interpretado como seu primeiro encontro com a morte. Apesar de Hércules Ter se
livrado de Euritão e Orto sem muito dificuldade, Gérião, com seus três corpos
pesadamente armados, provou ser um adversário mais formidável, e apenas após
uma terrível luta Hércules conseguiu matá-lo. Quando retornou à Grécia, Euristeu
enviou para uma jornada ainda mais desesperadora, descer ao Mundo Inferior e
trazer Cérbero, o próprio cão do Inferno. Guiado pelo deus mensageiro Hermes,
Hércules desceu ao lúgubre reino dos mortos, e com o consentimento de Hades e
Perséfone tomou emprestado o monstro assustador e de três cabeças para
mostrá-lo ao aterrorizado Euristeu; isto feito, devolveu o cachorro a seus donos de
direito.
Mesmo assim, Euristeu solicitou um último trabalho: que Hércules lhe trouxesse os
Pomos do Ouro de Hespérides. Estes pomos, a fonte da eterna juventude dos
deuses, cresciam em um jardim nos confins da terra; foram um presente de
casamento de Géia, a Terra, a Zeus e Hera. A árvore que dava as frutas douradas
era cuidada pelas ninfas chamadas Hespérides e guardada por uma serpente. Os
relatos variam sobre como Hércules resolveu este trabalho final. As fontes que
localizam o jardim abaixo das montanhas Atlas, onde o poderoso Atlas sustenta os
céus em suas costas, dizem que Hércules convenceu Atlas a pegar as maças por
ele; enquanto fazia esta jornada Hércules sustentou, ele mesmo, o céu; quando
Atlas retornou, Hércules teve algumas dificuldades em persuadi-lo a reassumir o
seu fardo. Outra versão da estória sugere que o próprio Hércules foi ao jardim
lutando e matando a serpente ou conseguindo convencer as Hespérides a lhe
entregar as maças. As maças de Hespérides simbolizavam a imortalidade, e este
trabalho final significaria que Hércules deveria ascender ao Olimpo, tomando seu
lugar entre os deuses.
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Além dos doze trabalhos, muitos outros feitos heróicos e aventuras foram
atribuídos a Hércules. Na sua busca do jardim das Hespérides, teve que lutar com
o deus marinho Nereu para compelir o deus a dar-lhe as informações que
necessitava; em outra ocasião enfrentou outra deidade marinha, Tritão.
Tradicionalmente foi na Líbia que Hércules encontrou o gigante Anteu: Anteu era
filho de Géia, a Terra, e ele era invulnerável enquanto mantivesse contato físico
com sua mãe. Hércules lutou com ele e ergueu-o do solo; desprovido da ajuda de
sua mãe, ficou indefeso nos braços poderosos do herói. No Egito Hércules escapou
por pouco de ser sacrificado pelas mãos do Rei Busíris. Um advinho tinha dito a
Busíris que o sacrifício de estrangeiros era um método infalível de se lidar com as
secas. Como o advinho era Cipriota, tornou-se a primeira vítima de seu próprio
conselho; quando o método se mostrou efetivo, Busíris ordenou que todo o
estrangeiro temerário o suficiente a entrar em seu reino seria sacrificado. Na vez
de Hércules, deixou-se ser aprisionado e levado ao local do sacrifício antes de se
voltar contra seus agressores e matar uma grande quantidade deles.
Hércules não raramente se envolvia em conflito com os deuses. Em uma ocasião,
quando não recebeu uma resposta que estava esperando da sacerdotisa do
Oráculo de Delfos, tentou fugir com o trípode sagrado, dizendo que iria criar um
oráculo melhor por sua própria conta. Quando Apolo tentou detê-lo, ocorreu uma
violenta discussão, que foi resolvida apenas quando Zeus arremessou um
relâmpago entre eles.
Hércules era muito leal aos seus amigos; mais do que uma vez ele arriscou sua
vida para ajudá-los, sendo o caso mais espetacular o de Alceste. Admeto, Rei de
Feres na Tessália, tinha feito um acordo com Apolo que, quando chegasse a hora
de sua morte, poderia continuar a viver se encontrasse alguém que quisesse
morrer em seu lugar. Entretanto, quando Admeto estava se aproximando da hora
da sua morte, mostrou-se ser mais difícil do que tinha calculado arranjar um
substituto; após seus parentes mais velhos terem egoisticamente se recusado ao
sacrifício, sua esposa Alceste insistiu para que fosse a sacrificada. Quando
Hércules chegou, ela já tinha descido ao Mundo Inferior, indo ele imediatamente
atrás dela. Então lutou com a morte e venceu, trazendo-a de volta em triunfo ao
mundo dos vivos.
Hércules era o super-homem grego, sendo muitas das estórias de seus feitos
interessantes contos de realizações sobre-humanas e monstros fabulosos. Ao
mesmo tempo Hércules, assim como Ulisses, também atua como se fosse um
homem comum, sendo suas aventuras como parábolas exageradas da experiência
humana. Irritadiço, não extremamente inteligente, apreciador do vinho e das
mulheres (suas aventuras amorosas são muito numerosas), era uma figura
eminentemente simpática; e no geral seu exemplo deveria ser seguido, pois
destruía o mal e defendia o bem, superando todos os obstáculos que o destino lhe
colocou. Além de tudo, ofereceu alguma esperança para a derrota da ameaça
última e crucial do homem, a morte.
O fim de Hércules foi caracteristicamente dramático. Uma vez, quando ele e sua
nova noiva Dejanira estavam atravessando um rio, o centauro Nesso ofereceu-se
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para transportar Dejanira, e no meio da correnteza tentou raptá-la. Hércules


matou-o com uma de suas flechas envenenadas, e ao morrer, Nesso, simulando
arrependimento, incentivou Dejanira a pegar um pouco de sangue do seu
ferimento e guardá-lo; se Hércules algum dia parecesse cansado dela, deveria
embeber um traje no sangue e dá-lo para que ele o vestisse; após isso, ele nunca
mais olharia para outra mulher. Anos mais tarde Dejanira lembrou-se deste
conselho quando Hércules, voltando de uma distante campanha, mandou à frente
uma linda princesa aprisionada pela qual estava evidentemente apaixonado.
Dejanira mandou a seu marido um robe tingido pelo sangue; ao vestir a roupa, o
veneno da Hidra penetrou na sua pele e ele tombou em terrível agonia. Seu filho
mais velho, Hilo, levou-o ao Monte Eta e depositou seu corpo, retorcido porém
ainda respirando, numa pira funerária, a qual acabou sendo acesa pelo herói
Filoctetes. Entretanto, os trabalhos de Hércules asseguraram-lhe a imortalidade,
assim ele subiu ao Olimpo e assumiu seu lugar entre os deuses que vivem
eternamente.

VII - Jasão, Medéia e o Velocino de Ouro

O Velocino de Ouro pertencia originalmente ao carneiro que tinha salvo os filhos


de Atamante, Frixo e Hele, de serem sacrificados a Zeus sob as ordens de sua
malvada madrasta Ino. De acordo com a lenda, o carneiro pegou as crianças em
sua casa em Orcomenos e então voou para leste, com elas montadas em suas
costas. Ao cruzarem o estreito canal que separa a Europa da Ásia, Hele caiu das
costas do carneiro, dando seu nome ao mar abaixo, o Helesponto. Mas Frixo
continuou o vôo até o Mar Negro, até que o carneiro desceu em Cólquida, na corte
do rei Eestes. Eestes recebeu Frixo de maneira gentil, e, quando o menino
sacrificou o carneiro a Zeus, entregou o maravilhoso velocino ao rei. Eestes
dedicou o velocino a Ares e o depositou num bosque sagrado ao deus da guerra,
sendo guardado por uma temível serpente.
Por que Jasão queria o Velocino de Ouro? Não era para apenas possuí-lo; assim
como outros heróis, foi mandado a tentar o que se achava ser um feito impossível,
para satisfazer as ordens de um feitor de coração empedernido, neste caso, Pélias,
rei do Iolco. Jasão era filho de Éson, o legítimo rei de Iolco; Pélias era meio-irmão
de Éson, e em algumas versões da estória Pélias deveria governar apenas até
quando Jasão tivesse idade suficiente para assumir. Nestas circunstâncias, seria
dificilmente surpreendente que, quando Jasão crescesse e exigisse sua herança de
direito, Pélias o mandasse procurar e trazer o Velocino de Ouro. A busca do
Velocino é a estória de viagem do Argo e as aventuras de sua tripulação, os
Argonautas. A lenda é provavelmente mais antiga do que a Ilíada e a Odisséia,
mas chega até nós principalmente através do poema épico muito posterior, o
Argonáutica do alexandrino Apolônio de Rodes.
Os Argonautas eram em número aproximado de cinqüenta, e, apesar das fontes
diferirem com respeito a seus nomes, os principais personagens estão claros. Além
do próprio Jasão, havia Argo, construtor de Argo; Tífis, o timoteiro; o músico
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Orfeu; Zeto e Cálais, filhos do Vento Norte; os irmãos de Helena, Cástor e Pólux;
Peleu, pai de Aquiles; Meléagro da Caledônia, famoso caçador de javalis; Laerte e
Autólico, pai e avô de Ulisses; Admeto, que mais tarde deixaria sua esposa morrer
em seu lugar; o profeta Anfiarau e, para a primeira parte da jornada, o próprio
Hércules; ao lado destes nomes famosos, havia uma hoste de outros heróis. O
navio, o Argo, cujo nome significa "Rápido", era o mais veloz já construído. Ele foi
construído no porto de Pagasse na Tessália, sendo feito inteiramente de madeira
do Monte Pélion, com exceção da proa, que era uma parte de um carvalho
sagrado trazido pela deusa Atena do santuário de Zeus em Dodona. Esta peça de
carvalho era profética, e poderia falar em determinadas ocasiões.
O Argo zarpou com augúrios favoráveis e se dirigiu ao norte, em direção ao Mar
Negro. Na sua jornada para Cólquida, a sua tripulação encontrou muitas
aventuras. Em Mísia perderam Aquiles, quando outro membro da tripulação, um
belo jovem chamado Hilas, foi à procura de água fresca para uma festa e não
voltou ao navio. As ninfas da fonte que tinha encontrado, apaixonou-se por sua
beleza, o tinham seqüestrado e afogado; mas Hércules se recusou a interromper a
procura, assim o Argo teve que partir sem ele.
Na margem grega do Bósforo os Argonautas encontraram Fineu, um visionário
cego e filho de Posídon, sobre quem os deuses tinham lançado uma terrível
maldição. Sempre que se sentava para comer, era visitado por uma praga de
Harpias, terríveis criaturas, parte mulher e parte ave, que pegavam parte do
alimento com seus bicos e garras e estragavam o restante com seu excremento.
Os Argonautas armaram uma armadilha para estes monstros. Convidaram Fineu a
partilhar de sua mesa, e, quando as Harpias surgiram, os filhos alados do Vento
Norte sacaram suas espadas e as perseguiram até que, exaustas, prometeram
desistir. Fineu revelou-lhes, então, o tanto que sabia com relação à viagem: o
perigo principal que enfrentariam seriam as rochas movediças; quando chegassem
ali, deveriam enviar primeiramente uma pomba. Se a pomba encontrasse a
passagem entre as rochas, então o Argo também conseguiria, mas se a pomba
falhasse, deveriam desviar o barco, pois a missão estaria condenada ao fracasso.
A pomba enviada conseguiu passar a salvo pelas rochas, deixando apenas sua
pena mais longa da cauda nas rochas; o Argo também atravessou pêlo estreito
canal, sofrendo apenas leves estragos nos costados da popa, e sem outras
aventuras significativas os Argonautas chegaram a salvo em Cólquida.
Quando Jasão explicou a razão de sua vinda, o rei Eestes estipulou que antes que
pudesse remover o Velocino de Ouro, deveria atrelar dois touros de cascos de
bronze e que respiravam fogo, um presente do deus Hefesto, a um arado; a seguir
deveria semear alguns dentes do dragão que Cadmo tinha morto em Tebas (Atena
tinha dado estes dentes a Eestes), e quando homens armados surgissem, devia
destruí-los. Jasão teve que concordar com todas estas condições, mas teve a sorte
de receber a ajuda da filha do rei, Medéia, que era feiticeira. Medéia, que
primeiramente fez Jasão prometer que a levaria para Iolco como sua esposa, deu-
lhe uma poção mágica para passar sobre o corpo e sobre o escudo; isto o tornou
invulnerável a qualquer ataque, fosse com fogo ou com ferro. Também o orientou
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sobre o que fazer com a safra de homens armados: deveria atirar pedras no meio
deles, de modo que se atacassem entre si e não a Jasão. Assim armado e
orientado, Jasão foi bem sucedido em todas as tarefas.
E estes, de alguma forma surpreso pelas façanhas de seu hóspede, ainda estava
relutante em entregar o Velocino, e tentou mesmo atear fogo no Argo e matar a
tripulação. Então, enquanto Medéia dava uma droga a serpente guardiã, Jasão
rapidamente removeu o Velocino de Ouro do bosque sagrado, e juntamente com o
restante dos Argonautas saíram silenciosamente para o mar. Quando Eestes
percebeu a ausência tanto da sua filha como do Velocino, efetuou uma
perseguição em outro barco, mas mesmo isto tinha sido previsto por Medéia.
Tinha trazido junto seu jovem irmão Absirto, então o matou e o cortou em
pequenos pedaços, os quais jogou no mar. Como tinha antecipado, Eestes parou
para recolher os pedaços, e o Argo conseguiu fugir.
A rota da jornada de volta do Argo tem desconcertado muitos estudiosos. Ao invés
de retornar através do Helesponto, Jasão deixou o Mar Negro através do Danúbio,
o qual miraculosamente permitiu-lhe emergir no Adriático; não satisfeito com esta
realização, o Argo continuou a velejar subindo o rio Pó e o Reno antes de alguma
maneira encontrar sua rota mais familiar nas águas do Mediterrâneo. E em
qualquer lugar que fossem, os Argonautas se defrontavam com fantásticas
aventuras. Em Creta, por exemplo, encontraram o gigante de bronze Talo, uma
criatura feita por Hefesto para atuar como uma espécie de sistema mecânico de
defesa costeira para Minos, rei de Creta. Talo deveria caminhar ao redor de Creta
três vezes por dia, mantendo os navios afastados, isto sendo feito com a retirada
de pedaços de penhascos e atirando-os em qualquer navio que tentasse se
aproximar. Era completamente invulnerável, exceto por uma veia em seu pé; se
fosse danificada, sua força vital acabaria se exaurindo. Medéia conseguiu drogá-lo
para que ficasse insano e se atirasse contra as rochas, acabando por danificar a
veia causando sua morte.
Quando Jasão finalmente retornou a Iolco, casou-se com Medéia e entregou o
Velocino de Ouro a Pélias. Existem várias versões sobre o que aconteceu a seguir.
Uma versão de estória diz que Medéia enganou as filhas de Pélias para que
matassem seu pai. Primeiro demonstrou seus poderes de rejuvenescimento
misturando várias substâncias num caldeirão com água fervente e a seguir matou
e picou um velho carneiro, jogando-o no caldeirão: imediatamente um jovem
carneiro emergiu. Entusiasmadas e com a melhor das intenções, as filhas de Pélias
apressaram-se em cortá-lo em pedaços e jogá-lo no caldeirão; infelizmente apenas
conseguiram apressar seu fim.
Com o escândalo resultante, Jasão e Medéia fugiram para Corinto, onde viveram
felizes por pelo menos dez anos e tiveram dois filhos. Porém, Jasão acabou se
cansando de sua esposa e tentou deixá-la por Gláucia, a jovem filha do rei de
Corinto. Medéia, furiosa com os ciúmes, mandou um vestido de presente a
Gláucia; quando o vestiu, este grudou em sua pele e a rasgou; quando seu pai
tentou ajudar sua torturada filha, ficou também aprisionado e ambos acabaram
morrendo num terrível sofrimento. Para punir Jasão ainda mais, Medéia matou
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seus próprios filhos, antes de escapar para o céu numa carruagem flamejante.
Jasão acabou retornando para governar Iolco.

VIII - Perseu e Medusa

De acordo com o estudioso alexandrino Apolodoro, Perseu, o lendário fundador de


Micenas, nunca teria nascido se seu avô tivesse conseguido seu intento. Acrísio, rei
de Argos, era pai de uma linda filha, Dânae, mas estava desapontado por não ter
um filho. Quando consultou o oráculo sobre a ausência de um herdeiro homem,
recebeu a informação que não geraria um filho, mas com o passar do tempo teria
um neto, cujo destino era matar o avô. Acrísio tomou medidas extremas para fugir
deste destino. Trancou Dânae no topo de uma torre de bronze, e lá permaneceu
numa total reclusão até o dia em que foi visitada por Zeus na forma de uma chuva
de ouro; assim deu à luz a Perseu. Acrísio ficou furioso, mas ainda achava que seu
destino poderia ser evitado. Fez seu carpinteiro construir uma grande arca, dentro
da qual Dânae foi forçada a entrar com seu bebê, sendo levados para o mar.
Entretanto, conseguiram sobreviver às ondas, e após uma cansativa jornada a arca
foi jogada nas praias de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades. Dânae e Perseu foram
encontrados e cuidados por um honesto pescador, Dictis, irmão do menos
escrupuloso rei de Sérifo, Polidectes.
Com o passar do tempo, Polidectes apaixonou-se por Dânae, mas enquanto crescia
Perseu protegeu ciumentamente sua mãe dos indesejados avanços do rei. Um dia,
durante um banquete, Polidectes perguntou a seus convidados que presente cada
um estava preparado a oferecer-lhe. Todos os outros prometeram cavalos, mas
Perseu ofereceu-se a trazer a cabeça da górgone. Quando Polidectes o fez cumprir
sua palavra, Perseu foi forçado a honrar sua oferta. As górgones eram em número
de três, monstruosas criaturas aladas com cabelos de serpentes; duas eram
imortais mas a terceira, Medusa, era mortal e assim potencialmente vulnerável; a
dificuldade era que qualquer um que a olhasse se transformaria em pedra.
Felizmente, Hermes veio em sua ajuda, e mostrou a Perseu o caminho das Gréias,
três velhas irmãs que compartilhavam um olho e um dente entre si. Instruído por
Hermes, Perseu conseguiu se apoderar do olho e do dente, recusando-se a
devolvê-los até que as Gréias mostrassem o caminho até as Ninfas, que lhe
forneceriam os equipamentos que necessitava para lidar com Medusa. As Ninfas
prestimosamente forneceram uma capa de escuridão que permitiria a Perseu
pegar a Medusa de surpresa, botas aladas para facilitar sua fuga e uma bolsa
especial para colocar a cabeça imediatamente após a ter decepado. Hermes sacou
uma faca em forma de foice, e assim Perseu seguiu completamente equipado para
encontrar Medusa. Com a ajuda de Atena, que segurou um espelho de bronze no
qual podia ver a imagem da górgone, ao invés de olhar diretamente para sua
terrível face, conseguiu finalmente despachá-la. Acomodando a cabeça de modo
seguro na sua bolsa, retornou rapidamente a Sérifo, auxiliado por suas botas
aladas.
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Ao sobrevoar a costa da Etiópia, Perseu viu abaixo uma linda princesa atada numa
rocha. Esta era Andrômeda, cuja fútil mãe Cassiopéia tinha incorrido na ira de
Posídon ao espalhar que era mais bonita do que as filhas do deus do mar Nereu.
Para puni-la, Posídon enviou um monstro marinho para devastar o reino; apenas
poderia ser parado se recebesse a oferenda da filha da rainha, Andrômeda, que foi
assim colocada na orla marítima para esperar o terrível destino. Perseu apaixonou-
se imediatamente, matou o monstro marinho e libertou a princesa. Os pais dela,
em júbilo, ofereceram Andrômeda como esposa a Perseu, e os dois seguiram na
jornada para Sérifo. Polidectes não acreditava que Perseu pudesse retornar, e
deve ter sido bastante gratificante para Perseu observar o tirano ficar lentamente
petrificado sob o olhar da cabeça da górgone. Perseu deu então a cabeça a Atena,
que a fixou como um emblema no centro de seu protetor peitoral.
Perseu, Dânae e Andrômeda seguiram então juntos para Argos, onde esperavam
se reconciliar com o velho rei Acrísio. Mas quando Acrísio soube desta vinda, fugiu
da presença ameaçadora de seu neto, indo para a Tessália, onde, não conhecendo
um ao outro, Acrísio e Perseu acabaram se encontrando nos jogos fúnebres do rei
de Larissa. Aqui a previsão do oráculo que Acrísio temia se realizou, pois Perseu
atirou um disco, o qual se desviou do curso e atingiu Acrísio enquanto estava entre
os espectadores, matando-o instantaneamente.
Perseu com sensibilidade decidiu que não seria muito popular voltar a Argos e
reivindicar o trono de Acrísio logo após tê-lo morto; assim, ao invés, fez uma troca
de reinos com seu primo Megapentes. Megapentes se dirigiu a Argos enquanto
Perseu governou Tirinto, onde é considerado como responsável pelas fortificações
de Midéia e Micenas.

IX - Édipo

9.1 - Édipo e o Ciclo Tebano

O ciclo de mitos que tratam das sortes da cidade de Tebas e sua família real é
certamente tão antigo quanto as estórias que compõem a Ilíada e a Odisséia, mas
chega até nós através de fontes muito posteriores. Enquanto a fundação de Tebas
é principalmente conhecida a partir de autores romanos como o poeta Ovidio, as
estórias de Penteu e Édipo são contadas pelos dramaturgos atenienses, Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes.

9.2 - Cadmo e a Fundação de Tebas

Cadmo era um dos três filhos de Agenor, rei de Tiro, na margem oriental do
Mediterrâneo. A irmã deles, a linda Europa, estava brincando na praia quando foi
levada através do mar por Zeus, na forma de um touro, até Creta. Agenor disse a
seus filhos que encontrassem a irmã e que não voltassem sem ela. No decorrer de
suas perambulações, Cadmo chegou em Delfos, onde o oráculo o avisou que uma
vaca o encontraria ao deixar o santuário; foi instruído a fundar uma cidade onde a
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vaca finalmente parasse. O animal o levou ao local da futura Tebas. Quando a


vaca se deitou para repousar, Cadmo percebeu que este era o local para a sua
cidade e decidiu sacrificá-la aos deuses. Precisando de água, mandou seus
ajudantes buscá-la em uma fonte próxima, a Fonte de Ares. A lagoa da fonte,
entretanto, estava guardada por uma ameaçadora serpente, que atacou e matou
todos os homens de Cadmo. Quando Cadmo veio a procura destes, encontrou
apenas fragmentos de membros e o grande monstro saciado. Mesmo estando só e
levemente armado, conseguiu subjugar a serpente e, a seguir, aconselhado por
Atena, semeou os dentes do animal no solo. Deles surgiu um grupo de guerreiros,
armados com espadas e lanças. Teriam atacado Cadmo, se este não tivesse tido a
idéia de lançar uma grande pedra no meio deles; assim, começaram a atacar uns
aos outros, parando apenas quando restavam apenas cinco deles; estes cinco se
juntaram a Cadmo e se tornaram os fundadores das cinco grandes famílias de
Tebas.
A cidade de Cadmo rapidamente tornou-se rica e poderosa, e seu fundador
prosperou com ela. Casou-se com Harmonia, a filha de Ares e Afrodite, e tiveram
quatro filhas, Ino, Autônoe, Agave e Sêmele, e um filho, Polidoro. Estes por sua
vez também tiveram seus filhos. Autônoe era a mãe de Actéon, o grande caçador
morto pelos seus próprios cães de caça quando Ártemis o transformou em veado
como punição por tê-la visto nua. A linda Sêmele foi seduzida por Zeus e ficou
grávida de seu filho, o deus do vinho Dionisio. A esposa divina de Zeus, Hera,
estava com ciúmes e astutamente sugeriu a Sêmele que pedisse a Zeus que
surgisse para ela na forma que tinha aparecido para Hera. Como Sêmele tinha
feito Zeus prometer cumprir qualquer pedido que fizesse, foi obrigado a se revelar
como um relâmpago, o que a queimou viva. Zeus retirou a criança do útero de
Sêmele e a implantou em sua própria coxa, da qual a criança acabou nascendo no
tempo devido.
A família de Sêmele se recusava a acreditar que Zeus fosse o responsável pela
condição dela, ou sua morte. À medida que o culto de Dionisio espalhou-se pela
Grécia, ocorreu com muito entusiasmo e pouca resistência, salvo em Tebas, onde
o primo de Dionisio, Penteu, filho de Agave, recusava-se a aceitá-lo.

9.3 - Penteu

A característica principal do culto de Dionisio nos tempos clássicos era a formação


de grupos de mulheres conhecidas como Mênades; vagavam por dias a fio pelas
áreas das montanhas, num transe ou frenesi, bebendo vinho, alimentando filhotes
de animais, ou despedaçando-os e comendo-os, encantando serpentes e de uma
maneira geral se portando de maneira selvagem. Devido a estes aspectos
semelhantes a orgias e também pelos principais seguidores serem mulheres, a
adoração de Dionisio era vista com desconfiança pelas autoridades masculinas,
que gostavam de manter as mulheres em casa e sob o seu controle. A tragédia de
Eurípedes, As Bacantes, mostram um caso extremo de festividade de Dionisio e
suspeitas masculinas. Nesta peça, o próprio Dionisio vem a Tebas, determinado a
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punir a família de sua mãe por sua falta de fé, tanto nas suas irmãs como nele
próprio. As mulheres de Tebas, incluindo as irmãs de Sêmele, seguem
entusiasmadas o deus; no correr da festa, altos brados erguem-se do Monte
Citéron devido as brincadeiras. Penteu, o senhor de Tebas, considera seu primo de
longos cabelos e modos afeminados com razoável desconfiança, mas, como deus
gradualmente o acaba deixando maluco, confessa seu desejo de ir à montanha e
espionar as Mênades. Então, Dionisio o leva lá, e quando se aproximam das
mulheres, os deuses curvam um alto pinheiro para que Penteu se alojasse no topo
e pudesse ver tudo que desejasse. Como seria previsível, torna-se um alvo fácil
para as Mênades, que derrubaram as árvores e o despedaçaram com as próprias
mãos. Entre elas está, principalmente, Agave, a própria mãe de Penteu, que
retorna triunfalmente a Tebas ostentando a cabeça do próprio filho, acreditando
ser esta a cabeça de um jovem leão. Ao final da peça, acaba por perceber o que
tinha feito, e todas admitem o poder do deus.

9.4 - A Casa de Édipo

Édipo, o trineto de Cadmo, é hoje talvez o herói grego mais famoso depois de
Hércules; ele é famoso por ter resolvido o enigma da Esfinge, mas ainda mais
notório por sua relação incestuosa com sua mãe. Na antiga Grécia era famoso por
ambos os episódios, mas o maior significado era como o modelo do herói trágico,
cuja estória incluía os sofrimentos universais da ignorância humana - a falta da
compreensão da pessoa sobre quem ela é sua cegueira em face do destino.
Édipo nasceu em Tebas, filho de Laio, o rei, e sua esposa Jocasta. Devido ao
oráculo ter predito que Laio encontraria a morte nas mãos de seu próprio filho, o
jovem Édipo foi entregue a um pastor do Monte Citéron, com os tornozelos
perfurados de modo que não pudesse se mover. Esta foi a origem de seu nome
que significa "pé inchado". Entretanto, o bom pastor não conseguia abandonar a
criança, entregando-a então a outro pastor do lado oposto da montanha. Este
pastor, por sua vez, levou a criança a Pólibo, rei de Corinto, o qual não tendo
filhos, ficou feliz em criar o menino como sendo seu filho. Enquanto Édipo crescia,
era ameaçado com comentários sobre não ser filho legítimo de Pólibo; apesar de
Pólibo ter lhe assegurado que o era, Édipo decidiu-se finalmente a viajar para
Delfos e consultar o oráculo. O oráculo não revelou quem eram seus pais
verdadeiros, mas contou-lhe que estava destinado a matar seu pai e casar com
sua mãe. Horrorizado, e tão chocado que esqueceu completamente suas próprias
dúvidas sobre seus pais, deixou Delfos resolvido a nunca mais retornar a Corinto,
onde viviam Pólibo e sua esposa.
Desconhecido para Édipo, seu pai verdadeiro Laio estava também viajando nas
redondezas de Delfos. Num local onde três estradas se encontravam, Édipo se viu
ao lado da carruagem de Laio; um membro da escolta de Laio ordenou rudemente
que Édipo saísse do caminho, e este, sem disposição para obedecer, vociferou de
volta. Ao passar a carruagem, o próprio Laio golpeou Édipo com um bastão e este
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respondeu derrubando Laio do veículo e o matando. Esqueceu, então, o incidente


e continuou o seu caminho.
Voltando as costas a Corinto, acabou chegando em Tebas, a cidade de Laio, a qual
estava sendo aterrorizada pela Esfinge, um monstro parte leão alado, parte
mulher, que fazia uma pergunta que confundia: "O que é que anda com quatro
pernas, duas pernas e três pernas?" Aqueles que tentaram e falharam em
solucionar a charada eram jogados pela Esfinge num precipício, cujo fundo estava
literalmente tomado por ossos das vítimas. Quando a morte de Laio se tornou
conhecida em Tebas, o trono e a mão da rainha de Laio foram oferecidos ao
homem que pudesse solucionar a charada e livrar a região da terrível Esfinge. Para
Édipo a charada não ofereceu problema; rapidamente identificou seu sujeito como
um "homem, que como um bebe engatinha de quatro, acaba crescendo e
andando em duas pernas e com a idade necessita do suporte de uma
terceira perna, uma bengala". Quando a Esfinge escutou esta resposta, ficou
tão enraivecida e mortificada que se jogou no precipício causando sua morte.
Os cidadãos de Tebas receberam Édipo com deferência e o fizeram seu rei; casou-
se com Jocasta e por muitos anos viveram em perfeita felicidade e harmonia.
Édipo mostrou-se um governante sábio e benevolente, Jocasta deu-lhe dois filhos,
Etéocles e Polínece, e duas filhas, Antígona e Ismênia. Eventualmente, entretanto,
outra praga se abateu sobre a região de Tebas, e é neste ponto que começa a
grande tragédia de Sófocles, Édipo Rei. A colheita estava morrendo nos campos e
hortas, os animais estavam improdutivos, as crianças doentes e os bebês em
gestação definhavam, enquanto os deuses estavam surdos a todos os apelos.
Creonte, irmão de Jocasta, retornou de sua consulta ao Oráculo de Delfos, que
ordenava que a maldição seria levantada apenas quando o assassino de Laio fosse
trazido a justiça. Édipo, imediatamente e de maneira enérgica, tomou a tarefa de
encontrá-lo, e como primeiro passo consultou o profeta cego Tirésias. Tirésias
reluta em revelar a identidade do assassino, mas é levado gradualmente a se
enfurecer pelas insinuações de Édipo sobre ter algo a ver com a morte. Acaba
revelando que o próprio Édipo é o pecador que trouxe a maldição sobre a cidade;
também profetiza que Édipo, que se considera tão inteligente e de visão larga, se
recusará a aceitar a verdade de suas palavras, se recusará a reconhecer quem
realmente é e o que tinha feito.
Édipo, enraivecido, suspeita que seu cunhado Creonte está mancomunado com
Tirésias para assumir o trono; Creonte também nada pode dizer para acalmá-lo.
Jocasta tenta acalmar a situação: é impossível que Édipo tenha morto Laio, diz ela,
pois este foi morto numa encruzilhada de três estradas. Subitamente Édipo lembra
seu encontro casual com um homem velho perto de Delfos; questionando Jocasta
sobre a aparência de Laio (estranhamente, se parecia com o próprio Édipo) e o
número de elementos na sua escolta, percebe que Laio foi provavelmente a sua
vítima. Enquanto espera pela confirmação de um elemento da escolta que
retornava a Tebas, um mensageiro chega de Corinto com a notícia que Pólibo
tinha morrido de morte natural; Édipo, ainda não suspeitando de toda a extensão
de seu crime, fica feliz por aparentemente ter se livrado de pelo menos uma parte
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da profecia do oráculo, mas resolve ter cautela antes que acabe se casando com
sua mãe.
O mensageiro bem intencionado, ansioso em confortá-lo, assegura a Édipo que
Pólibo e sua esposa não eram seus pais; o próprio mensageiro tinha recebido
Édipo, então um bebê, das mãos de outro pastor do Monte Citéron e o entregou a
Pólibo. Mesmo agora Édipo não consegue fazer a correta conexão, e enquanto a
aterrorizada Jocasta tenta em vão persuadi-lo a parar a investigação, persiste nos
seus esforços para chegar ao fundo do mistério e ordena que o pastor de Laio,
agora um velho, seja trazido a sua presença. Por uma casualidade do destino, este
homem é também a única testemunha ainda viva da morte de Laio. Quando
finalmente aparece, o completo horror da situação finalmente chega a Édipo; o
homem admite que tomou o filho de Laio e com pena o entregou ao pastor de
Pólibo, ao invés de o deixar morrer. Esta criança era Édipo, que agora tinha
sucedido seu pai no trono e no leito.
Jocasta não esperou pelo desfecho; tinha ido antes de Édipo para o palácio, e
quando a seguiu, com o que parecia uma intenção assassina, descobriu que tinha
se enforcado. Arrancando os broches de ouro do vestido dela, golpeia
seguidamente seus olhos com eles, até que o sangue corra pela sua face. Como
pode olhar para o mundo, agora que consegue ver a verdade? O coro da peça
mostra a moral da estória: por mais seguro que um homem possa se sentir,
mesmo sendo rico, poderoso e afortunado, ninguém pode se sentir seguro de
escapar de um desastre; não é seguro chamar qualquer pessoa de feliz deste lado
do túmulo.
Apesar de Ter solicitado a Creonte um banimento imediato, não foi permitido a
Édipo partir de Tebas por vários anos, até que sua punição tivesse sido confirmada
por um oráculo. Na ocasião em que foi mandado embora, estava muito menos
ansioso para partir. Agora já um velho, estava condenado a vagar de lugar em
lugar, pedindo comida e abrigo, suas passadas cegas guiadas por suas filhas
Antígona e Ismênia. Apesar de elas trazerem algum conforto e alegria para ele,
seus filhos, Polínice e Etéocles, estavam cada vez mais afastados dele, de seu tio
Creonte e um do outro. Tinha sido combinado que se alternariam no governo, um
ano para cada um, mas, quando o primeiro ano de Etéocles terminou, este se
recusou a entregar o trono a seu irmão. Polínice se refugiou em Argos, onde
agrupou a sua volta uma equipe de seis outros campeões, com os quais se propôs
a sitiar sua cidade natal. É esta a situação no início da obra Édipo em Colona, de
Sófocles, quando Édipo, chegando ao fim de sua vida, chega aos olivais de Colona,
um distrito nos arredores de Atenas.
Ajudado por Antígona, Édipo se refugia num altar para aguardar a chegada de
Teseu, rei de Atenas, quando Ismênia chega com notícias de Tebas. As facções
rivais dos irmãos ficam a cada dia mais nervosas, e um oráculo se pronunciou
dizendo que o lado que conseguisse o apoio de Édipo seria o vencedor. Édipo,
igualmente irritado com Creonte e com seus dois filhos, está seguro que não
apoiará qualquer um dos lados; podem lutar entre si, esperando que destruam um
ao outro no processo. Quando Teseu chega, portanto, Édipo solicita que lhe seja
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permitido terminar seus dias em Atenas. Teseu escuta com atenção seu pedido e
oferece a Édipo um local mais confortável, mas Édipo deseja permanecer no local
onde está. Surge então Creonte, determinado a fazer Édipo acompanhá-lo de volta
a Tebas, mas apenas à fronteira da cidade, de modo a ainda evitar a maldição de
ter Édipo realmente no solo Tebano, para manter sua facção protegida de sua
proximidade. Quando Édipo recusa a pretensão de amizade e rejeita a oferta
imediatamente, Creonte se torna violento e ameaça levar Édipo a força; já tinha
capturado Ismênia, e agora seus soldados tinham levado Antígona para muito
longe de seu indefeso pai.
Teseu, retornando bem a tempo de evitar que Édipo seja retirado de seu altar,
critica asperamente as ações de Creonte e promete devolver as filhas a Édipo;
ordena que Creonte volte a Tebas. Chega então Polínice, juntamente com uma
razão política para desejar a proteção de seu pai, o qual tinha ajudado a expulsar
de Tebas; também é rejeitado, e Édipo anuncia sua intenção de permanecer em
Colona até o fim de seus dias. A peça termina de maneira dramática: após Édipo
desaparecer no arvoredo sagrado, um mensageiro emerge para contar seu fim
miraculoso, testemunhado apenas por Teseu. Édipo, anuncia-se, tinha transferido
as bênçãos que poderia ter dado a Creonte ou Polínice para Atenas, a qual seria
daí em diante protegida por sua presença.
O ataque a Tebas feito por Polínice e seus aliados é o assunto da peça Sete contra
Tebas, de Ésquilo. Sete campeões lideraram o ataque nos sete portões de Tebas,
calhando a Polínice tomar o portão defendido por seu irmão Etéocles. Apesar dos
tebanos finalmente repelirem o ataque sobre sua cidade, os dois irmãos morrem
pelas espadas um do outro, cumprindo assim a praga de seu pai e prosseguindo a
triste saga da casa de Édipo.
A ação dramática de Antígona de Sófocles começa neste ponto da estória. Com os
dois herdeiros masculinos de Édipo mortos, Creonte assume o título de rei de
Tebas. Decreta que, enquanto Etéocles devesse ser sepultado com toda a
cerimônia, o traidor Polínice deveria ser deixado no local onde tombou, para ter
seu corpo destruído pelos cães e pássaros predadores. Creonte mandou montar
guarda ao lado do corpo para certificar-se que seu édito seria cumprido; logo seus
soldados retornariam com Antígona, que tinha sido apanhada atirando punhados
de terra sobre os restos desfigurados de seu irmão, num esforço de fornecer-lhe
um sepultamento simbólico. Quando desafiada quanto a sua desobediência,
replicou que as leis dos deuses, que dizem que os parentes sejam sepultados, são
irrevogáveis e imutáveis, devendo ter precedência sobre a lei dos homens. Na sua
Antígona, Sófocles utiliza o mito para explorar este conflito entre a lei humana e a
divina: o que uma pessoa comum deve fazer quando duas destas leis entram em
conflito? Apesar de, por fim, a resposta parecer ser que a lei divina deve ser
obedecida a qualquer custo, esta conclusão não é de nenhuma forma evidente no
início. Enquanto Antígona é mostrada como uma mulher forte e pouco feminina
que não está feliz me permanecer no reino feminino tradicional do lar, mas
aventura-se desafiando as leis de seu guardião masculino, Creonte aparece
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inicialmente como um homem que tenta fazer o máximo para governar a cidade
pela regra do rei.
Quando Antígona não mostra qualquer remorso por seu crime, Creonte ordena que
seja sepultada viva, um método cruel de execução calculado para absolvê-lo de
responsabilidade direta pela morte. Neste ponto o noivo de Antígona, Hêmon filho
de Creonte, vem a Creonte pedir pela sua vida, argumentando que a punição é
bárbara e politicamente ruim, pois Antígona tem grande possibilidade de tornar-se
heroína entre o povo de Tebas. Creonte, entretanto, permanece inflexível, como as
árvores que não se curvarão frente corrente nas margens de um rio alagado, ou o
marinheiro que não retirará suas velas antes da borrasca; assim, dá instruções
para que a punição prossiga. Apenas quando aparece o profeta Tirésias, e revela a
zanga dos deuses e a terrível punição que se abaterá sobre Creonte se persistir
nesta ação, é que Creonte finalmente aceita o conselho e liberta Antígona da
prisão. Nesciamente, como resultante, detém-se enquanto ia ao sepultamento de
Etéocles e apenas chega ao túmulo para encontrar Hêmon segurando o corpo de
Antígona - tinha se enforcado em sua cinta. Hêmon então volta sua espada contra
seu próprio peito. Creonte retorna a sua casa recebendo a notícia que sua esposa
Eurídice tinha se suicidado, amaldiçoando seu marido no seu leito de morte.
Esmagado pela tragédia que o tinha atingido de maneira tão súbita, Creonte é
conduzido para longe, deixando o coro refletindo sobre o fato da maior parte da
felicidade ser a sabedoria, em conjunto com a devida reverência aos deuses.

X - Divindades do Mar e das Águas

10.1 - O Oceano

Para os antigos o Oceano primitivamente é um rio imenso que envolve o mundo


terrestre. Na Mitologia é o primeiro deus das águas, filho de Urano ou do Céu e de
Gaia, a Terra; é o pai de todos os seres. Homero diz que os deuses eram
originários do Oceano e de Tétis. Conta o mesmo poeta que os deuses iam muitas
vezes à Etiópia visitar o Oceano e tomar parte nas festas e sacrifícios que ali se
celebravam. Conta-se enfim que Juno, desde o seu nascimento, foi por sua mãe
Réia confiada aos cuidados de Oceano e de Tétis, para livrá-la da cruel voracidade
de Saturno.
O Oceano é pois tão antigo como o mundo. Por isso representam-no sob a forma
de um velho, sentado sobre as ondas, com uma lança na mão e um monstro
marinho ao seu lado. Esse velho segura uma urna e despeja água, símbolo do
mar, dos rios e das fontes.
Como sacrifício ofereciam-lhe geralmente grandes vítimas, e antes das expedições
difíceis, faziam-se-lhe libações. Era não somente venerado pelos homens, mas
também pelos deuses. Nas Geórgicas de Virgílio, a ninfa Cirene, ao palácio do
Peneu, na fonte desse rio, oferece um sacrifício ao Oceano; três vezes seguidas,
ela deita o vinho sobre o fogo do altar, e três vezes a chama ressalta até a
abóbada do palácio, presságio tranqüilizador para a ninfa e seu filho Aristeu.
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10.2 - Tetis e as Oceânidas

Tetis, filha do Céu e da Terra, casou com o Oceano, seu irmão, e foi mãe de três
mil ninfas chamadas Oceânidas. Dão-lhe ainda como filhos, não somente os rios e
as fontes, mas também Proteu, Etra, mãe de Atlas, Persa, mãe de Circeu, etc.
Conta-se que Júpiter, tendo sido amarrado e preso pelos outros deuses, Tetis pô-lo
em liberdade, com auxílio do gigante Egeon.
Ela se chamava Tetis, palavra que em grego significa "ama, nutriz", sem dúvida
porque é a deusa da água, matéria-prima que, segundo uma crença antiga, entra
na formação de todos os corpos.
O carro dessa deusa é uma concha de maravilhosa forma e de uma brancura de
marfim nacarado. Quando percorre o seu império, esse carro, tirado por cavalos-
marinhos mais brancos do que a neve, parece voar, à superfície das águas. Ao
redor dela, os delfins, brincando, saltam no mar; Tetis é acompanhada pelos
Tritões que tocam trombeta com as suas conchas recurvas, e pelas Oceânidas
coroadas de flores, e cuja cabeleira esvoaça pelas espáduas, ao capricho dos
ventos.
Tetis, deusa do mar, esposa de Oceano, não deve ser confundida com Tetis, filha
de Nereu e mãe de Aquiles.

10.3 - Netuno (Poseidon)

Netuno ou Poseidon, filho de Saturno e de Réia, era irmão de Júpiter e de Plutão.


Logo que nasceu, Réia o escondeu em um aprisco da Arcádia, e fez Saturno
acreditar ter ela dado à luz a um potro que lhe deu para devorar. Na partilha que
os três irmãos fizeram do Universo ele teve por quinhão o mar, as ilhas, e todas as
ribeiras.
Quando Júpiter, seu irmão, a quem sempre serviu com toda a fidelidade, venceu
os Titãs, seus terríveis competidores, Netuno encarcerou-os no Inferno,
impedindo-os de tentar novas empresas. Ele os mantém por trás do recinto
inexpugnável formado por suas ondas e rochedos.
Netuno governa o seu império com uma calma imperturbável. Do fundo do mar
em que está sua tranqüila morada, sabe tudo quanto se passa na superfície das
ondas. Se por acaso os ventos impetuosos espalham inconsideradamente as vagas
sobre as praias, causando injustos naufrágios, Netuno aparece, e com a sua nobre
serenidade faz reentrar as águas no seu leito, abre canais através dos baixios,
levanta com o tridente os navios presos nos rochedos ou encalhados nos bancos
de areia,  em uma palavra, restabelece toda a desordem das tempestades.
Teve como mulher Anfitrite, filha de Doris e de Nereu. Essa ninfa recusara antes
desposar Netuno, e se escondeu para esquivar-se às suas perseguições. Mas um
delfim, encarregado dos interesses de Netuno, encontrou-a ao pé do monte Atlas,
e persuadiu-a que devia aceitar o pedido do deus; como recompensa foi colocada
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entre os astros. De Netuno ela teve um filho chamado Tritão, e muitas ninfas
marinhas; diz-se também que foi a mãe dos Ciclopes.
O ruído do mar, a sua profundidade misteriosa, o seu poder, a severidade de
Netuno que abala o mundo, quando com o tridente ergue os enormes rochedos,
inspiram à humanidade um sentimento mais de receio do que de simpatia e amor.
O deus parecia dar por isso, todas as vezes que se apaixonava de uma divindade
ou de um simples mortal. Recorria então à metamorfose; mas mesmo assim, na
maior parte das vezes, conservava o seu caráter de força e impetuosidade.
Representam-no mudado em touro, nos seus amores com a filha de Éolo; sob a
forma de rio Enipeu, quando fazia Ifiomédia mãe de Ifialto e de Oto; sob a de um
carneiro, para seduzir Bisaltis, como cavalo para enganar Ceres, enfim, como um
grande pássaro nos amores com Medusa, e como um delfim quando se apaixonou
por Melanto.
A sua famosa discórdia com Minerva, por causa da posse de Ática, é uma alegoria
transparente em que os doze grandes deuses, tomados como árbitros, indicam a
Atenas os seus destinos. Esse deus teve ainda uma desavença com Juno por causa
de Micenas e com o Sol por causa de Corinto.
Quer a fábula de Netuno, expulso do céu com Apolo, por haver conspirado contra
Júpiter, tenha construído as muralhas de Tróia, e que defraudado no seu salário,
se tenha vingado da perfídia de Laomedonte destruindo os muros da cidade.
Netuno era um dos deuses mais venerados na Grécia e na Itália, onde possuía
grande número de templos, sobretudo nas vizinhanças do mar; tinha também as
suas festas e os seus espetáculos solenes, sendo que os do istmo de Corinto e os
do Circo de Roma eram-lhe especialmente consagrados sob o nome de Hípio.
Independente das Saturnais, festas que se celebravam no mês de julho, os
romanos consagravam a Netuno todo o mês de fevereiro.
Perto do istmo de Corinto, Netuno e Anfitrite tinham as suas estátuas no mesmo
templo, não longe uma da outra; a de Netuno era de bronze e media doze pés e
meio de altura. Na ilha de Tenos, uma das Ciclades, tinha Anfitrite uma estátua
colossal da altura de nove cúbitos. O deus do mar tinha sob a sua proteção os
cavalos e os navegantes. Além das vítimas ordinárias e das libações em sua honra,
os arúspices ofereciam-lhe particularmente o fel da vítima porque o amargor
convinha às águas do mar.
Netuno é geralmente representado nu, com uma longa barba, e o tridente na mão,
ora sentado, ora em pé sobre as ondas; muitas vezes; em um carro tirado por dois
ou quatro cavalos, comuns ou marinhos, cuja parte inferior do corpo termina em
cauda de peixe.

10.4 - Proteu

Proteu, deus marinho, era filho de Oceano e de Tetis ou, segundo uma outra
tradição, de Netuno e de Fênice. Segundo os gregos, a sua pátria é Palene, cidade
da Macedônia. Dois dos seus filhos, Tmolos e Telégono, eram gigantes, monstros
de crueldade. Não tendo podido chamá-los ao sentimento da humanidade, tomou
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o partido de retirar-se para o Egito, com o socorro de Netuno, que lhe abriu uma
passagem sob o mar. Também teve filhas, entre as quais as ninfas Eidotéia, que
apareceu a Menelau, quando voltando de Tróia esse herói foi levado por ventos
contrários aobre a costa do Egito, e lhe ensinou o que devia fazer para saber de
Proteu os meios de regressar à pátria.
Proteu guardava os rebanhos de Netuno, isto é, grandes peixes e focas. Para o
recompensar dos trabalhos que com isso tinha. Netuno deu-lhe o conhecimento do
passado, do presente e do futuro. Mas não era fácil abordá-lo, e ele se recusava a
todos que vinham consultá-lo.
Eidotéia disse a Menelau que, para decidi-lo a falar, era preciso surpreendê-lo
durante o sono, e amarrá-lo de maneira que não pudesse escapar, pois ele tomava
todas as formas para espantar os que se aproximavam: a de leão, dragão,
leopardo, javali; algumas vezes se metamorfoseava em árvore, em água e mesmo
em fogo; mas se se perseverava em conservá-lo bem ligado, retomava a primitiva
forma e respondia a todas as perguntas que se lhe fizessem.
Menelau seguiu ponto por ponto as instruções da ninfa. Com três dos seus
companheiros, entrou de manhã, nas grutas em que Proteu costumava ir ao meio-
dia descansar, juntamente com os rebanhos. Apenas Proteu fechou os olhos e
tomou uma posição cômoda para dormir. Menelau e os seus três companheiros se
atiraram sobre ele e o apertaram fortemente entre os braços. Era inútil
metamorfosear-se: a cada forma que tomava, apertavam-no com mais força.
Quando enfim esgotou todas as suas astúcias Proteu voltou à forma ordinária, e
deu a Menelau os esclarecimentos que este pedia.
No quarto livro das Geórgicas, Virgílio, imitando Homero, conta que o pastor
Aristeu, depois de haver perdido todas as suas abelhas, foi a conselho de Cirene,
sua mãe, consultar Proteu sobre os meios de reparar os enxames, e para lhe falar,
recorreu aos mesmos artifícios.

10.5 - As Sereias

Quando, por uma noite calma de primavera ou de outono, o marinheiro deixa


vogar docemente o barco perto das margens, nas paragens semeadas de rochedos
ou de escolhos, ouve ao longe, no marulho das ondas, o gorjeio das aves
marinhas. Esse gorjeio, entrecortado, às vezes, por gritos estridentes e
zombeteiros, sobe aos ares e passa invisível com um estranho síbilo de asas, por
cima da cabeça do marinheiro atento, dando-lhe a ilusão de um concerto de vozes
humanas. A sua imaginação então lhe representa grupos de mulheres ou de
raparigas que se divertem e procuram desviá-lo do seu caminho. Desgraçado dele
se se aproxima do lugar em que a voz parece mais clara, isto é, dos rochedos à
flor d'água onde, para as aves marinhas, a pesca é frutuosa; infalivelmente o seu
barco se quebrará e se perderá entre os escolhos.
Tal é, sem dúvida, a origem da fábula das Sereias; mas a imaginação dos poetas
criou-lhes uma lenda maravilhosa.
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Elas eram filhas do rio Aqueló e da musa Calíope. Ordinariamente contam-se três:
Parténope, Leucósia e Lígea, nomes gregos que evocam as idéias de candura, de
brancura e de harmonia. Outros dão-lhes os nomes de Aglaufone, Telxieme e
Pisinoe, denominações que exprimem a doçura da sua voz e o encanto das suas
palavras.
Conta-se que no tempo do rapto de Prosérpina, as Sereias foram à terra de Apolo,
isto é, a Sicília, e que Ceres, para puni-las por não haverem socorrido a sua filha,
mudou-as em aves.
Ovídio, ao contrário, diz que as Sereias, desoladas com o rapto de Prosérpina,
pediram aos deuses que lhes dessem asas para que fossem procurar a sua jovem
companheira por toda a terra. Habitavam rochedos escarpados sobre as margens
do mar, entre a ilha de Capri e a costa de Itália.
O oráculo predissera às Sereias que elas viveriam tanto tempo quanto pudessem
deter os navegantes à sua passagem; mas desde que um só passasse sem para
sempre ficar preso ao encanto das suas vozes e das suas palavras, elas morreriam.
Por isso essas feiticeiras, sempre em vigília, não deixavam de deter pela sua
harmonia todos os que chegavam perto delas e que cometiam a imprudência de
escutar os seus cantos. Elas tão bem os encantavam e os seduziam que eles não
pensavam mais no seu país, na sua família, em si mesmos; esqueciam de beber e
de comer, e morriam por falta de alimento. A costa vizinha estava toda branca dos
ossos daqueles que assim haviam perecido.
Entretanto, quando os Argonautas passaram nas suas paragens, elas fizeram vãos
esforços para atraí-los. Orfeu, que estava embarcado no navio, tomou a sua lira e
as encantou a tal ponto que elas emudeceram e atiraram os instrumentos ao mar.
Ulisses, obrigado a passar com o seu navio adiante das Sereias, mas advertido por
Circe, tapou com cera as orelhas de todos os seus companheiros, e se fez amarrar,
de pés e mãos, a um mastro. Além disso, proibiu que o desligassem se, por acaso,
ouvindo a voz da Sereias, ele exprimisse o desejo de parar. Não foram inúteis
essas precauções. Ulisses, mal ouviu as suas doces palavras e as suas promessas
sedutoras, apesar do aviso que recebera e da certeza de morrer, deu ordem aos
companheiros que o soltassem, o que felizmente eles não fizeram. As Sereias, não
tendo podido deter Ulisses, precipitaram-se no mar, e as pequenas ilhas rochosas
que habitavam, defronte do promontório da Lucárnia foram chamadas Sirenusas.
As Sereias são representadas ora com cabeça de mulher e corpo de pássaro, ora
com todo o busto feminino e a forma de ave, da cintura até os pés. Nas mãos têm
instrumentos: uma empunha uma lira, outra duas flautas, e a terceira gaitas
campestres ou um rolo de música, como para cantar. Também pintam-nas com
um espelho. Não há nem um autor antigo que nos tenha representado as Sereias
como mulheres-peixe. Como muita gente atualmente as representam.
Pausânias conta ainda uma fábula sobre as Sereias: "As filhas de Aqueló, diz ele,
encorajadas por Juno, pretenderam a glória de cantar melhor do que as Musas, e
ousaram fazer-lhes um desafio, mas as Musas, tendo-as vencido, arrancaram-lhes
as penas das asas, e com elas fizeram coroas." Com efeito, existem antigos
monumentos que representam as Musas com uma pena na cabeça. Apesar de
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temíveis ou perigosas, as Sereias não deixaram de participar das honras divinas;


tinham um templo perto de Sorrento.

XI - Zeus

Júpiter, dizem os poetas, é o pai, o rei dos deuses e dos homens; reina no Olimpo,
e, com um movimento de sua cabeça, agita o universo. Ele era o filho de Réia e de
Saturno que devorava a descendência à proporção que nascia. Já Vesta, sua filha
mais velha, Ceres, Plutão e Netuno tinham sido devorados, quando Réia, querendo
salvar o seu filho, refugiou-se em Creta, no antro de Dite, onde deu à luz, ao
mesmo tempo, a Júpiter e Juno. Esta foi devorada por Saturno. O jovem Júpiter,
porém, foi alimentado por Adrastéia e Ida, duas ninfas de Creta, que eram
chamadas as Melissas; além disso Réia recomendou-o aos curetes, antigos
habitantes do país. Entretanto, para enganar seu marido, Réia fê-lo devorar uma
pedra enfaixada. As duas Melissas alimentaram Júpiter com o leite da cabra
Amaltéia e com o mel do monte Ida de Creta.
Adolescente, ele se associou à deusa Metis, isto é, a Prudência. Foi por conselho
de Metis que ele fez com que Saturno tomasse uma beberagem cujo efeito foi
fazê-lo vomitar, em primeiro lugar a pedra e depois os filhos que estavam no seu
seio.
Antes de tudo, com o auxílio de seus irmãos Netuno e Plutão, - Júpiter resolveu
destronar seu pai e banir os Titãs, ramo rival que punha obstáculo à sua realeza.
Predisse-lhe a Terra uma vitória completa, se conseguisse libertar alguns dos Titãs
encarcerados por seu pai no Tártaro e os persuadir a combater por ele, coisa que
empreendeu e conseguiu depois de haver matado Campe, a carcereira a quem
estava confiada a guarda dos Titãs nos Infernos.
Foi então que os Ciclopes deram a Júpiter o trovão, o relâmpago e o raio, um
capacete a Plutão, e a Netuno um tridente. Com essas armas, os três irmãos
venceram Saturno, expulsaram-no do trono e da sociedade dos deuses, depois de
o haverem feito sofrer cruéis torturas. Os Titãs que haviam auxiliado Saturno
foram precipitados nas profundidades do Tártaro, sob a guarda dos Gigantes.
Depois dessa vitória, os três irmãos, vendo-se senhores do mundo, partilharam-no
entre si: Júpiter teve o céu, Netuno o mar e Plutão os infernos. Mas à guerra dos
Titãs sucedeu a revolta dos Gigantes, filhos do Céu e da Terra. De um tamanho
monstruoso e de uma força proporcionada, eles tinham as pernas e os pés em
forma de serpente, e alguns com braços e cinqüenta cabeças. Resolvidos a
destronar Júpiter amontoaram o Ossa sobre o Pelion, e o Olimpo sobre o Ossa,
desde onde tentaram escalar o céu. Lançavam contra os deuses rochedos, dos
quais os que caíam no mar formavam ilhas, e montanhas os que rolavam em terra.
Júpiter estava muito inquieto, porque um antigo oráculo dizia que os Gigantes
seriam invencíveis, a não ser que os deuses pedissem o socorro de um mortal.
Tendo proibido à Aurora, à Lua e ao Sol de descobrir os seus desígnios, ele
antecipou-se à Terra que procurava proteger seus filhos; e pelo conselho de Palas,
ou Minerva, fez vir Hércules que, de acordo com os outros deuses, o ajudou a
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exterminar os Gigantes Encelado, Polibetes, Alcioneu, Forfirion, os dois Aloidas,


Efialtes e Oeto, Eurito, Clito, Titio, Palas, Hipólito, Ágrio, Taon e o terrível Tifon
que, ele só, deu mais trabalho aos deuses do que todos os outros.
Depois de os haver derrotado, Júpiter precipitou-os no fundo do Tártaro, ou,
segundo outros poetas, enterrou-os vivos em países diferentes. Encelado foi
enterrado sob o monte Etna. É ele cujo hálito abrasado, diz Virgílio, exala os fogos
do vulcão; quando tenta voltar-se, faz tremer a Sicília, e um espesso fumo
obscurece a atmosfera. Polibetes foi sepultado sob a ilha de Lango, Oeto na de
Cândia, e Tifon na de Isquia.
Segundo Hesíodo, Júpiter foi casado sete vezes; desposou sucessivamente Metis,
Temis, Eurinome, Ceres, Mnemosine, Latona e Juno, sua irmã, que foi a última das
suas mulheres.
Tomou-se também de amor por um grande número de simples mortais, que umas
e outras lhe deram muitos filhos, colocados entre os deuses e semideuses.
A sua autoridade suprema, reconhecida por todos os habitantes do céu e da terra
foi, no entanto, mais de uma vez contrariada por Juno, sua esposa. Ela ousou
mesmo urdir contra ele uma conspiração dos deuses. Graças ao concurso de Tetis
e a intervenção do terrível gigante Briareu, essa conspiração foi prontamente
sufocada, e reentrou o Olimpo na eterna obediência.
Entre as divindades, Júpiter ocupava sempre o primeiro lugar, e o seu culto era o
mais solene e o mais universalmente espalhado. Os seus três mais famosos
oráculos eram os de Dodona, Líbia e de Trofônio. As vítimas que mais comumente
se lhe imolavam eram a cabra, a ovelha e o touro branco com os cornos dourados.
Não se lhe sacrificavam vítimas humanas; muitas vezes as populações se
contentavam em lhe oferecer farinha, sal e incenso. A águia, que paira no alto dos
céus e fende como o raio sobre a presa, era a sua ave favorita.
A Quinta-feira (jeudi, em francês), dia da semana, era-lhe consagrada (Jovis dies).
Na fábula, o nome de Júpiter precede ao de muitos outros deuses, mesmo reis:
Júpiter-Amon na Líbia, Júpiter-Serapis no Egito, Júpiter-Bel na Assíria, Júpiter-Apis,
rei de Argos, Júpiter-Astério, rei de Creta, etc.
Júpiter é geralmente representado sob a figura de um homem majestoso, com
barba, abundante cabeleira, e sentado sobre um trono. Com a destra segura o raio
que é representado ou por um tição flamejante de duas pontas ou por uma
máquina pontiaguda dos dois lados e armada de duas flechas; com a mão
esquerda sustém uma Vitória; a seus pés, com as asas desdobradas, descansa a
águia raptora de Ganimedes. A parte superior do seu corpo está nua, e a inferior
coberta.
Esta maneira de representá-lo não era contudo uniforme. A imaginação dos
artistas modificava o seu símbolo ou a sua estátua, conforme as circunstâncias e a
região em que Júpiter era venerado. Os cretenses representavam-no sem orelhas,
para mostrar a sua imparcialidade; em compensação, os lacedemônios davam-lhe
quatro para provar que ele ouvia todas as preces. Ao lado de Júpiter vêem-se
muitas vezes a Justiça, as Graças e as Horas.
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A estátua de Júpiter, por Fídias, era de ouro e marfim: o deus aparecia sentado em
um trono, tendo na cabeça uma coroa de oliveira, segurando com a mão esquerda
uma Vitória também de ouro e marfim, ornada de faixas e coroada. Com a outra
mão empunhava um cetro, sobre cuja extremidade repousava uma águia
resplandecendo ao fulgor de toda espécie de metais. O salão do deus era
incrustrado de ouro e pedrarias: o marfim e o ébano davam-lhe, pelo seu
contraste, uma agradável variedade. Aos quatro cantos havia quatro Vitórias que
parecia se darem as mãos para dançar, e outras duas estavam aos pés de Júpiter.
No ponto mais elevado do trono, sobre a cabeça do deus, estavam de um lado as
Graças, do outro as Horas, uma e outras filhas de Júpiter.

XII - O Nascimento de Baco

12.1 - Cadmo e o Oráculo

O rei de Tiro, Agenor, não encontrando sua filha Europa, que Júpiter mandara
fosse levada para Creta, ordenou ao filho Cadmo que percorresse a terra até
descobrir o paradeiro da irmã, e proibiu-lhe voltar à Fenícia sem ela. Cadmo, após
buscá-la em vão, foi consultar o oráculo de Apolo para saber o que devia fazer, e
dele recebeu a seguinte resposta: "Encontrarás num campo deserto uma novilha
que ainda não suportou jugo nem puxou arado; segue-a, e ergue uma cidade no
pasto em que ela se detiver. Darás ao lugar o nome de Beócia." Mal Cadmo saiu
do antro de Apolo, viu uma vaca que ninguém vigiava e que caminhava
lentamente; não lhe notou no cangote sinal nenhum de jugo; por conseguinte,
seguiu-a, adorando em respeitoso silêncio o deus que lhe servia de guia. Passara o
rio Cefisa e atravessara os campos de Panope, quando a novilha se deteve e,
erguendo a cabeça, mugiu. Em seguida, olhou para os que a tinham seguido, e
deitou-se sobre a relva.

12.2 - Os Companheiros de Cadmo

Cadmo, após beijar a terra estrangeira e dirigir votos às montanhas e às planícies


do país, resolveu oferecer um sacrifício a Júpiter, e ordenou aos companheiros que
fossem buscar água. Havia nas proximidades uma antiga floresta que o ferro
jamais tocara, no meio da qual existia uma gruta coberta de espinheiros; a entrada
era baixíssima; e dela jorrava água em abundância. Tratava-se do retiro do dragão
de Marte: o monstro era horrível, tinha a cabeça coberta de escamas amarelas,
que brilhavam como ouro, dos olhos saia-lhe fogo e o corpo parecia inchado pelo
veneno que continha. Exibia três fileiras de aguçadíssimos dentes e três línguas
dotadas de movimentos incrivelmente rápidos.
Mal os companheiros de Cadmo entraram no antro do dragão, com a intenção de
tirar água, o ruído que fizeram despertou o monstro, o qual começou a salivar; os
infelizes fenícios foram todos mortos pelo dragão que a uns dilacerava com os
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dentes, a outros sufocava, enrodilhando-se-lhes em torno, ou envenenava com o


hálito.

12.3 - O Dragão de Marte

Entretanto Cadmo, espantado por notar que os companheiros não regressavam,


tratou de procurá-los. Cobrindo-se da pele de um leão, empunhou a lança e o
dardo, e entrou na floresta onde imediatamente percebeu o dragão de Marte,
deitado sobre o corpo dos fiéis companheiros, sugando-lhes o sangue. Pegou,
então, uma pedra de enorme tamanho, e atirou-a contra o monstro com tal
impetuosidade que até as mais fortes muralhas e torres houveram estremecido.
Enquanto o herói contemplava o enorme tamanho do dragão abatido, ouve a voz
de Palas que lhe ordenava semeasse os dentes do animal nos sulcos que trataria
de abrir na terra. Cadmo obedece à ordem da deusa; imediatamente os torrões
começaram a mover-se, e deles saiu uma safra de combatentes. Em primeiro lugar
saíram lanças, depois os capacetes ornados de penas; em seguida perceberam-se
os ombros, o peito e os braços armados dos novos homens, que começaram a
lutar uns contra os outros, mal viram a luz. Igual fúria animou o bando inteiro; os
infortunados irmãos encharcaram com o sangue a terra que os formara, e
mataram-se a ponto de só restarem cinco. Estes passaram a ser companheiros de
Cadmo, que os empregou na construção da cidade de Tebas, ordenada pelo
oráculo. (Ovídio).

12.4 - Núpcias de Cadmo e Harmonia

Harmonia, filha de Vênus e de Marte, foi a esposa que Júpiter destinava a Cadmo,
e todos os deuses quiseram assistir às suas núpcias, realizadas na cidade recém-
fundada. Cada um deles levou um presente a Harmonia, e Vênus entregou-lhe,
entre outras coisas, um colar que se tornou famoso nas lendas tebanas. Segundo
certas tradições, Júpiter teria dado Harmonia a Cadmo, para recompensar o herói
pelos serviços recebidos na luta contra Tifão, que descobrira o raio do rei dos
deuses e conseguira apoderar-se dele.

12.5 - Júpiter e Semele

Cadmo teve do seu casamento com Harmonia um filho, Polidoro, e quatro filhas,
Autonoe, Ino, Semele e Agave. Semele foi amada de Júpiter e tornou-se mãe de
Baco; mas a nova paixão do senhor dos deuses não podia ficar por muito tempo
oculta a Juno, que resolveu vingar-se antes do nascimento da criança trazida por
Semele no seio. "A implacável deusa, resolvida a perder a rival, revestiu-se do
aspecto de Beroé, a velha nutriz de Semele, e indo visitar a jovem, fez habilmente
com que a conversação recaísse sobre Júpiter. Prouvera ao céu, disse à filha de
Cadmo que seja o próprio Júpiter quem te ama! Mas eu temo por ti: quantas
moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! Se
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aquele de quem me falas for verdadeiramente Júpiter, ele saberá dar-te provas
certas, vindo visitar-te com a majestade que o acompanha, quando se aproxima
de Juno." Enganada por tão artificiosas palavras, a filha de Cadmo pediu a Júpiter
que lhe concedesse uma graça, sem especificar qual, e o pai dos deuses e dos
homens jurou pelo Estige que a concederia. Descontente e inquieto com o que ela
lhe pedira, mas não podendo retirar um juramento pelo Estige, reuniu os trovões e
os raios e foi visitar Semele. Mas a habitação de um mortal não poderia resistir
àquilo, e mal o deus se aproximou do palácio de Semele o incêndio se generalizou.
A filha de Cadmo ficou reduzida a cinzas, e Júpiter mal teve tempo para retirar-lhe
do seio o menino que ela ia dar à luz e encerrá-lo na sua coxa, onde ficou até o
dia designado para o nascimento". (Ovídio).
Esse menino foi Dionísos, chamado pelos latinos Baco, ou Líber, que assim nasceu
duas vezes e foi educado pelas ninfas de Nisa.

12.6 - A Coxa de Júpiter

O poeta Nonnos assim narra o nascimento de Baco, ao sair da coxa de Júpiter:


"Entretanto, ao vê-lo sair de Semele já queimada, Júpiter acolheu Baco
semiformado, fruto de tal nascimento produzido pelo raio, encerrou-o na coxa, e
aguardou o curso da lua que traria a maturidade. Dali a pouco a rotundidade
amoleceu sob as dores do parto, e o menino, que passara do regaço feminino ao
regaço masculino, nasceu sem deixar uma mãe, pois a mão do filho de Saturno,
presidindo pessoalmente o parto, destruiu os obstáculos e soltou os fios que
cosiam a coxa geradora. Mal se livrou do divino parto, as Horas, que lhe haviam
estipulado o tempo, coroaram Baco de grinaldas de hera como presságio do
futuro. Cingiram-lhe a cabeça carregada de flores e ornada dos chifres de touro
(alusão a Baco-Hébon). Depois, tirando-o da colina da Dracônia que o vira nascer,
Mercúrio, filho de Maia, voou, segurando-o, e foi o primeiro em chamá-lo de
Dionisos, como lembrança de sua origem paterna. Com efeito, na língua de
Siracusa, Niso quer dizer coxo, e Júpiter caminhava coxeando quando trazia na
coxa o peso do filho. Chamaram-no igualmente Erafriotes, deus cosido, por ter
estado cosido na coxa do próprio pai. (Nonnos).
Cita Diodoro de Sicília algumas das explicações dadas no seu tempo sobre o
segundo nascimento ou encarnação de Baco. Segundo uns, tendo a vinha
desaparecido pelo dilúvio de Deucalião, reapareceu na terra, quando as chuvas
cessaram. Ora, a vinha nada mais é do que Baco que se mostrou aos homens pela
segunda vez, após ter sido conservado por algum tempo na coxa de Júpiter,
segundo a fórmula mitológica. Diziam outros que Baco nascia realmente duas
vezes, contando como primeiro nascimento a germinação da planta, e como
segundo a época em que a vinha dá uvas. Enfim, os que acreditavam na realidade
histórica da personagem sustentavam que havia vários Bacos, reunidos pela
credulidade popular num único.
É assim, diz Nonnos, que em conseqüência desses partos sobrenaturais, Mercúrio,
seu aliado, leva nos braços o menino já semelhante à lua e que não verte uma
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lágrima. Incumbiu ele as ninfas, filhas do rio Lamos, de cuidar do enjeitado de


Júpiter, de cabeleira ornada de cachos de uvas. Elas o acolheram nos braços e
cada uma ofereceu o leite do seu seio. Deitado nos joelhos delas, e jamais
dormitando, o deus lançava constantemente o olhar para o céu, e divertia-se
batendo o ar com os pés. À vista do pólo, novo para ele, observava com
estupefação a rotundidade dos astros da pátria, e sorria.

12.7 - A Nutriz de Baco

"Mas em breve, diz Nonnos, a esposa de Júpiter notou o filho divino, e zangou-se.
Por efeito da sua terrível cólera, as filhas de Lamos enfureceram-se sob a vergasta
da péssima divindade. Em suas casas, precipitavam-se contra os que as
seguissem; nas encruzilhadas, degolavam os viajantes. Lançavam gritos horríveis,
e no meio de violentas convulsões, os seus esgares lhes desfiguravam o rosto;
corriam de um lado a outro, entregues ao frenesi, umas vezes girando e saltando,
outras fazendo esvoaçar ao vento a cabeleira. Os véus açafroados do peito
tornavam-se brancos sob a espuma que lhes caía da boca. Na sua demência,
teriam despedaçado o próprio Baco, ainda menino, se Mercúrio, deslizando passo a
passo e em silêncio, não o tivesse raptado segunda vez para depô-lo na casa de
Ino, que havia pouco dera à luz. Acabava ela de dar à luz o filho Melicerte, e
estava a acalentá-lo; o seio regurgitava-lhe de leite. O deus falou-lhe com voz
afetuosa: "Mulher, eis aqui um menino; recebe-o. É o filho de tua irmã Semele. Os
raios do quarto nupcial não o atingiram, e as faíscas que perderam sua mãe o
pouparam. Deixa-o ficar ao pé de ti, oculto, e cuida de que nem o olho do Sol,
durante o dia, nem o da Lua, durante a noite, o vejam fora do teu palácio. Senão,
Juno será capaz de o descobrir." Assim falando, Mercúrio, agitando nos ares as
ágeis asas talares, voa e desaparece nos céus. Ino obedece; e ternamente abraça
Baco, privado de mãe, e oferece o seio a ele e ao filho."
"Ino confiou Baco à particular vigilância da ninfa Místis, a de luxuosa cabeleira, que
Cadmo criara, desde a infância, para o serviço íntimo de Ino. Ela é que tirava o
menino do seio onde se alimentava, e o encerrava em tenebroso esconderijo. Mas
a resplendente luz da testa anunciava, por si, o enjeitado de Júpiter: os muros
mais sombrios do palácio se iluminavam, e o esplendor do invisível Baco dissipava
todas as trevas. Ino, durante toda a noite, assistia aos folguedos do menino; e
muitas vezes Melicerte, inseguro, engatinhava em direção a Baco, que balbuciava
o grito de Evoé, e ia sugar com os lábios rivais o seio vizinho. Após o leite da ama,
Místis dava ao jovem deus os demais alimentos e vigiava-o sem nunca adormecer.
Hábil no seu inteligente zelo, e exercitada na arte mística cujo nome trazia, foi ela
que instituiu as festas noturnas de Baco; foi ela que, para expulsar das iniciações o
sono, inventou o tamborim, o guizos ruidosos e o duplo bronze dos
ensurdecedores címbalos. Foi a primeira em acender os archotes para iluminar as
danças da noite, e fez ressoar Evoé em honra de Baco amigo da insônia. Foi
também a primeira, curvando as hastes das flores em grinalda, a cingir a cabeleira
de uma faixa de pâmpanos, e teceu a hera em torno do tirso; depois, ocultou-lhe a
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ponta de ferro sob as folhas, para que o deus se não ferisse. Quis que os falos de
bronze fossem presos aos seios nus das mulheres, e aos seus quadris as peles de
cervos; inventou o rito do cesto místico, todo repleto dos instrumentos da divina
iniciação, brinquedos da infância de Baco, e foi a primeira em prender em volta do
corpo essas correias entrelaçadas, de répteis." (Nonnos).
"Foi ali, sob a guarda e sob os numerosos ferrolhos da discreta Místis, num canto
do palácio, que os olhares infalíveis da desconfiadíssima Juno descobriram Baco.
Jurou ela, então, pela onda infernal e vingadora do Estige, que inundaria de
desventuras a casa de Ino; e sem dúvida teria exterminado o próprio filho de
Júpiter, se Mercúrio, prevenido, o não tivesse imediatamente levado às alturas da
floresta de Cíbele; Juno para lá correu com toda a velocidade dos seus pés. Mas
Mercúrio chegou antes, e levou o deus chifrudo à deusa." (Nonnos).

12.8 - Ino e Palemon

Entretanto Juno, que não conseguira atingir Baco, perseguiu com a sua cólera so
que estavam ligados ao deus.
A morte de Semele, mãe de Baco, não lhe bastava. Quis ela ainda golpear Ino,
irmã de Semele, que servira de nutriz a Baco. Ino orgulhava-se de ser filha de
Cadmo e mulher de Atamas, rei de Tebas, a quem dera vários filhos. Juno desceu
aos infernos em busca de Tisífona, uma das Fúrias, e ordenou-lhe que afligisse de
loucura furiosa Atamas e Ino. A serva de Juno mal entra no palácio faz com que,
tanto o rei como a rainha, sintam os terríveis efeitos da sua presença. Atamas,
acometido de súbita fúria, corre pelo palácio, gritando: "Coragem, companheiros,
estendei as redes nesta floresta; acabo de perceber uma leoa com dois
leõezinhos." Põe-se, então, a perseguir a rainha que ele supõe ser um animal
feroz, arranca-lhe dos braços o jovem Learco, seu filho, o qual, divertindo-se com
o arrebatamento do pai, lhe estendia os braços, e, fazendo-o girar duas ou três
vezes, atira-o contra uma parede, esmagando-o. Depois, ateia fogo ao palácio.
Ino, tomada de semelhante furor, por efeito da dor que lhe causara a morte do
filhinho, ou pelo fatal veneno espalhado sobre ela por Tisífona, dá gritos horríveis,
trazendo ao colo Melicerte, e dizendo: Evoé, Baco! Juno sorri quando ouve
pronunciar o nome desse deus. "Que teu filho, diz-lhe ela, te auxilie a passar o
tempo nesse fúria que te possui."
À margem do mar, encontra-se um rochedo escarpado, cujo fundo serve de
refúgio às águas que o cavaram; o alto está eriçado de pontas e avança bastante
para o mar; Ino, a quem o furor dava novas forças, monta sobre esse rochedo e
se precipita com Melicerte: as ondas que a recebem se cobrem de espuma e a
sorvem. (Ovídio).
Vênus, que era aliada da família de Cadmo por sua filha Harmonia, foi ao encontro
de Netuno e, mediante os cuidados de ambos, Ino e Melicerte, perdendo o que
tinham de mortal, tornaram-se divindades marinhas. Ino tomou, então, o nome de
Leucotéia e Melicerte o de Palemon.
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Mal a notícia de tais fatos se espalhou pela cidade, as damas tebanas correram à
margem do mar em busca da rainha e, seguindo-lhe as pegadas, chegaram ao
rochedo de onde ela se havia atirado. Na aflição que lhes causa tão trágico
desfecho, rasgam as vestes, arrancam os cabelos, e deploram as desventuras da
infeliz casa de Cadmo, zangam-se com Juno, e censuram-lhe a injustiça e
crueldade.
A deusa, ofendida com as suas queixas, diz-lhes: "Ides ser vós outras os mais
terríveis exemplos dessa crueldade que tanto me censurais." O efeito segue-se à
ameaça. A que mais afeiçoada fora a Ino, prestes a lançar-se ao mar, imobiliza-se
e vê-se presa ao rochedo. Outra, enquanto fere o próprio seio, sente os braços
tornarem-se duros e inflexíveis. Outra, com os braços estendidos para o mar, não
mais consegue movê-los. E mais outra, que estava arrancando os cabelos com as
mãos, sente que estas, e os cabelos se transformaram em pedra. A maioria sofre
mudanças análoga e fica na mesma atitude em que estavam no momento da
metamorfose. As demais companheiras da rainha, transformadas em aves, desde
então esvoaçam no mesmo lugar e roçam as ondas com a ponta das asas.
(Ovídio).

12.9 - Baco na Corte de Cíbele

Vimos que o jovem deus, após inúmeras peripécias, acabou por ser conduzido a
Cíbele.
Segundo outra tradição, Baco teria ido procurar Cíbele sem outro auxílio, a não ser
o dele próprio. Juno, que não conseguia perdoar-lhe ser filho de Júpiter, feriu-o de
loucura na infância, e o jovem deus quis, para curar-se, ir consultar o oráculo de
Dodona, mas um lago formado subitamente lhe obstaculou a passagem. Logrou,
contudo, atravessar, graças ao burro no qual estava montado, e em breve soube
que Cíbele lhe devolveria a saúde, iniciando-o nos seus mistérios. Após errar por
algum tempo presa ao delírio, chegou à Frígia, onde Cíbele o curou realmente,
ensinando-lhe o seu culto. O uso dos címbalos, dos archotes, dos animais ferozes
para conduzir o deus, provém com efeito dos cultos orientais.

XIII - Baco

13.1 - A Infância de Baco

Nonnos, a quem é preciso sempre recorrer, quando se trata de Baco, assim narra
a maneira pela qual se passaram os anos da sua infância: "A deusa criou-o, e, bem
mocinho ainda, o fez montar no carro puxado por ferozes leões... Aos nove anos,
já possuído da paixão da caça, ultrapassa na corrida as lebres; com a sua
mãozinha, dominava o vigor dos veados malhados; trazia sobre o ombro o tigre
intrépido de pele malhada, livre de qualquer laço, e mostrava a Réa nas mãos os
filhotes que acabara de arrancar ao leite abundante da mãe; depois, arrastava
terríveis leões vivos; e, fechando-lhes entre os punhos os pés reunidos, dava-os de
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presente à mãe dos deuses, a fim de que ela os mandasse atrelar ao seu carro.
Réa observava sorrindo e admirava tal coragem e tais feitos do jovem deus, ao
passo que à vista do filho vencedor de formidáveis leões, os olhos paternais de
Júpiter irradiavam maior alegria ainda. Baco, mal ultrapassou o limite da infância,
revestiu-se de suaves peles, e ornou os ombros com o envoltório malhado de um
veado, imitando as variadas manchas da esfera celeste. Reuniu linces nos seus
estábulos da planície da Frígia, e atrelou ao seu carro panteras, honrando a
imagem cintilante da morada dos seus maiores. Foi assim que, desde cedo,
desenvolveu o gosto montanhês ao pé de Réa, amiga das elevadas colinas; nos
picos, os pãs rodeiam nos seus giros o jovem deus, também hábil dançarino;
atravessam barrancos com os seus pés peludos, e, celebrando Baco nos seus
tremendos saltos, fazem ressoar o chão debaixo dos seus pés de bode." (Nonnos).

13.2 - Baco e Ampelos

Quando Baco estava na Ásia Menor, banhando-se com os sátiros nas águas do
Pactolo e brincando com eles nas costas da Frígia, ligou-se da mais estreita
amizade com um jovem sátiro chamado Ampelos. Em breve, tornaram-se
inseparáveis; mas um touro furioso matou um dia o infeliz Ampelos, e Baco, não
podendo consolar-se, derramou ambrósia nos ferimentos do amigo que foi
metamorfoseado em vinha, e é precisamente esse divino suco que deu à uva a
qualidade embriagadora. (Nonnos).
Baco, realmente, colheu um cacho de uvas e, espremendo o suco, disse: "Amigo, a
partir deste instante serás o remédio mais poderoso contra as dores humanas."
Foi então que Baco começou a percorrer o Oriente: no Egito, vemo-lo em relação a
Proteu; na Síria, luta contra Damasco, que se opõe à introdução da cultura da
vinha. Vencedor, continua a viagem, atravessa os rios sobre um tigre, lança uma
ponte sobre o Eufrates, e empreende a gigantesca expedição contra os indianos.

13.3 - A Conquista da Índia

A lenda heróica de Baco parece ser apenas a história da plantação da vinha, e a


narração dos efeitos produzidos pela embriaguez, desde que o vinho se tornou
conhecido. O temor desses terríveis efeitos explica naturalmente a oposição que se
lhe depara por toda parte, quando ensina aos homens o uso do vinho por ele
personificado.
O culto de Baco apresenta grandes relações com o de Cibele, e o caráter ruidoso
das suas orgias relembra a algazarra que se fazia em homenagem à deusa. Mas a
história da conquista da Índia dá às tradições em torno de Baco um caráter
especialíssimo. Segundo vários mitólogos, as narrações que a isso se prendem só
se teriam popularizado após a conquista de Alexandre. Creuzer considera, pelo
contrário, essa história bastante antiga.
Nessa expedição memorável, as ninfas, os rios e Sileno, sempre montado no seu
burro, formavam o cortejo particular do deus, mas o cortejo era engrossado por
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numeroso bando de pãs, de faunos, de sátiros, de Curetes e de seres estranhos,


dos quais nos dá Nonnos uma nomenclatura pormenorizada no seu poema das
Dionisíacas. Toda essa narração apresenta caráter fantástico e maravilhoso.
Quando o rei da Índia, Deríades, quis atirar-se contra Baco, uns pâmpanos que
brotavam da terra lhe enlaçaram subitamente os membros e lhe paralisaram os
esforços: quando o exército do deus se encontra nas margens de um rio, o rio se
transforma em vinho, a um sinal do deus, e os indianos sedentos que pretendem
beber são imediatamente tomados por um delírio desconhecido.
"A voz do indiano, diz Nonnos, os seus negros compatriotas acorrem em multidão
às margens do rio de suave perfume. Um, firmando ambos os pés no limo,
mergulhado até o umbigo nas vagas que o banham por toda parte, se mostra
semi-inclinado, peito recurvado sobre a corrente, e dali sorve, no oco das mãos, a
água que destila o mel. Outro, perto da embocadura, possuído de ardente sede,
mergulha a longa barba nas ondas purpurinas, e, estendendo-se sobre o chão da
margem, aspira profundamente o orvalho de Baco. Este, debruçado, aproxima-se
da fonte tão vizinha, apoia os braços na areia úmida, e recebe nos lábios sedentos
o fluxo do licor que mais sede ainda lhe dá. Os que só tem à mão o fundo do pote
quebrado, retiram o vinho com uma concha. Grande número bebe na torrente
vermelha, e enche as taças rústicas dos pastores dos campos. Após assim
sorverem o vinho à vontade, vêem as pedras duplicar-se, e julgam que a água se
escoa por dois lados; entretanto, o rio continua a murmurar no seu curso e a fazer
ferver uma à outra as vagas da deliciosa bebida. Uma torrente de embriaguez
inunda o inimigo. Este extermina a raça dos bois, como se estivesse ceifando a
geração dos sátiros. Aquele persegue os bandos de veados de cabeças alongadas,
e julga-os, em virtude da sua pele simetricamente manchada, o bando dos
bacantes, enganado pelas nébridas elegantes com que elas se adornam. Um
guerreiro, dando altos brados, agarra-se a uma árvore que ele golpeia de todos os
lados, e, percebendo que os ramos ondulam movidos pelo vento, abate as pontas
dos ramos mais tenros, e fende assim a folhagem de copado carvalho, julgando
estar a cortar com o gládio a intacta cabeleira de Baco. Luta contra a folhagem e
não contra os sátiros; e na sua alegria imbecil, conquista contra a sombra uma
sombra de vitória. Outros indianos, irresistivelmente transportados pelos vapores
que entontecem o espírito, imitam com os gládios, as lanças e os capacetes, os
júbilos guerreiros dos Coribantes, e na sua dança das armas batem em torno os
escudos. Um se deixa levar pelos cantos da musa báquica, e salta como nos coros
dos sátiros; outro se enternece com o som do tamborim, e no seu gosto impelido
ao delírio pelo sonoro ruído, atira ao vento a aljava inútil."

13.4 - Baco em Tebas

Após percorrer a Ásia, Baco, que nascera em Tebas, quis também que esta cidade
fosse a primeira da Grécia e conhecer-lhe o culto: disso é que lhe provém o nome
de Baco tebano.
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No começo da tragédia das bacantes, de Eurípedes, Baco dá a conhecer a sua


encarnação e a sua chegada a Tebas. "Eis-me nesta terra dos tebanos, eu, Baco,
gerado pela filha de Cadmo, Semele, após ser visitada pelo fogo dos raios; deixei a
forma divina por outra mortal e venho visitar a fonte de Dirce e as águas de
Ismenos. Vejo perto deste palácio o túmulo de minha mãe atingida pelo raio, e as
ruínas fumegantes de sua morada, e a chama do fogo celeste ainda viva, eterna
vingança de Juno contra minha mãe. Aprovo a piedade de Cadmo, que, tornando
este lugar inacessível aos pés dos profanos, o consagrou à filha; e eu o sombreei
por toda parte de pâmpanos verdejantes. Deixei os vales da Lídia, onde abunda o
ouro, e os campos dos frígios; atravessei as planícies ardentes da Pérsia e as
cidades da Bactriana, a Média coberta de pedras e a feliz Arábia, e a Ásia inteira,
cujo mar salgado banha as margens cobertas de cidades florescentes, povoadas
simultaneamente por uma mistura de gregos e de bárbaros, e é essa a primeira
cidade grega em que entrei após ter conduzido para lá as danças sagradas e
celebrado os meus mistérios, para manifestar a minha divindade aos mortais.
Tebas é a primeira cidade da Grécia em que fiz ouvir os brados das bacantes
cobertas de nébrida e armadas do tirso envolto em hera."

13.5 - Baco e Licurgo

Baco, tendo levado o seu culto à Trácia, foi perseguido pelo rei do país, chamado
Licurgo., o qual muito provavelmente assustado pelos efeitos da embriaguez,
mandara fossem arrancadas todas as vinhas. Baco viu-se obrigado, para salvar-se,
a atirar-se ao mar, onde foi acolhido por Tétis, a quem deu, como recompensa
pela hospitalidade, uma taça de ouro feita por Vulcano. Todas as bacantes e os
sátiros que o haviam acompanhado foram lançados à prisão. Foi por castigo a tal
feito que a região se viu atingida de esterilidade, e Licurgo, enlouquecido, matou
pessoalmente seu próprio filho Drias. Tendo o oráculo declarado que o país só
recobraria a fertilidade, depois de morto o rei ímpio, os súditos o encadearam ao
monte Pangeu, e ali o pisaram com os cavalos. As bacantes livres, ensinaram os
mistérios do novo deus à Trácia. A luta entre Baco e Licurgo está representada
com diversas variantes nos monumentos antigos.

13.6 - Baco e Perseu

A lenda de Baco, atirado ao mar e recolhido por Tétis a quem oferece uma taça de
ouro, prende-se, segundo Ateneu, ao fabrico do vinho e traduz mitologicamente o
hábito existente em certas regiões de se servir da água do mar para acelerar a
fermentação da uva.
Em Argos, onde Juno era especialmente honrada, o culto de Baco encontrou
graves dificuldades para se estabelecer. Os habitantes recusaram-se a honrá-lo, e
mataram as bacantes que o acompanhavam. O deus feriu de loucura furiosa as
mães, que começaram a dilacerar os próprios filhos. O herói Perseu, protetor de
Argos, decidiu então combater Baco, e segundo um vaso grego, em que a cena
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está figurada, não parece ter tido vantagem. Entretanto, segundo outras tradições,
teria sido vencedor e teria até lançado Baco ao lago de Lerna. Pausânias diz
simplesmente que, quando a disputa terminou, Baco foi honrado em Argos, onde
se lhe ergueu um templo.
Cita Creuzer uma vaso cujo tema consagra a introdução da vinha na Etólia.
"Vemos ali, diz ele, Altéia, mulher rei de Calidon, conversando com Dionisos por
ela apaixonado, do alto de uma janela, onde também no-la mostra uma pintura
que completa esta, e que oferece o deus adormecido diante da porta, cujo limiar
acaba de ser cruzado pelo marido que lhe cede o lugar. Sabe-se que, como preço
de tal complacência, recebeu o presente da vinha, e que Altéia teve de Baco a
famosa Dejanira, esposa de Hércules, como teve de Marte o herói Meleagro."

13.7 -Baco e Erígone

Foi no reinado de Padião, filho de Erecteu, rei de Atenas, que Baco, acompanhado
de Ceres, visitou pela primeira vez a Ática. Esse incidente mitológico tem certa
importância na história, para mostrar que na opinião dos atenienses o cultivo da
vinha e do trigo foi precedido no país pelo da oliveira, que Minerva lhes ensinara
no mesmo instante da fundação da cidade.
Baco, chegado, foi à casa de um ateniense chamado Icário, que o recebeu muito
bem; como recompensa pela hospitalidade Baco lhe ensinou a maneira de fazer
vinho. Icário, fazendo-o, quis que o provassem os camponeses da redondeza, que
o acharam delicioso. Mas embriagaram-se completamente, e, julgando que Icário
os havia envenenado, atiraram-no a um poço. A visita de Baco a Icário está
figurada em vários baixos-relevos.
Tinha Icário uma filha de extrema beleza, chamada Erígone, por quem Baco se
apaixonou. A fim de unir-se a ela, metamorfoseou-se em cachos de uvas, e
quando a jovem o percebeu sob tal forma, apressou-se em colhê-lo e comê-lo; foi
assim que se tornou esposa do deus, de quem teve um filho chamado Estáfilos,
cujo nome significa uva. Foi ele que, mais tarde, ensinou aos homens que,
misturando-se água ao divino licor, este não mais produzia a embriaguez.
Quando Icário foi morto, Erígone nada sabia do que se passara, mas inquieta por
não o ver regressar, tratou de procurá-lo e não tardou em ser atraída pelos uivos
da pequenina cachorra Moera, que chorava ao pé do poço a que Icário fora
atirado. Quando Erígone soube o que sucedera ao infeliz pai, foi tal o seu
desespero que se enforcou. Baco, encolerizado, enviou aos atenienses um delírio
furioso que os levou a se enforcarem no mesmo lugar em que haviam morrido
Icário e a filha. O oráculo, consultado, consultado, respondeu que o mal cessaria
quando tivessem sido punidos os culpados e prestadas homenagens às vítimas.
Júpiter colocou Icário entre os astros e dele fez a constelação de Bootes. Erígone
tornou-se a da Virgem, e a cachorra Moera passou a ser a da Canícula. Todas
essas tradições se prendem à introdução do cultivo da vinha na Ática, e aos efeitos
imprevistos da embriaguez. O sono de Erígone foi freqüentemente representado;
Girodet fez dele o tema de uma das suas composições mais graciosas.
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XIV - Psique

14.1 - Beleza de Psique

Tinha um rei três filhas belíssimas. Mas, por mais encantadoras que fossem as
duas mais velhas, era possível encontrar na linguagem humana elogios
proporcionados ao seu mérito, ao passo que a menor era de perfeição tão rara,
tão maravilhosa, que não havia termos que a exprimissem. Os habitantes do país,
os forasteiros, enfim todos acorriam, atraídos pela reputação de semelhante
prodígio; e depois de contemplarem tal beleza de que nada se aproximava,
ficavam confusos de admiração, e, prosternando-se, a adoravam com religioso
respeito, como se se tratasse da própria Vênus.
Em breve, espalhou-se a nova de que era a própria Vênus que vinha habitar a
terra sob a aparência de simples mortal, e o prestígio da verdadeira deusa ficou
abalado. Ninguém mais ia a Cnido, ninguém mais ia a Pafos, ninguém mais
navegava para a risonha ilha de Cítera. Os antigos templos de Vênus estavam
vazios, as cerimônias negligenciadas, os sacrifícios suspensos, e os seus altares
solitários só apresentavam uma cinza fria no lugar do fogo onde antes ardiam
incensos. Mas quando Psique passava, o povo, apinhado, tomando-a por Vênus,
lhe apresentava grinaldas, atirava-lhe flores, dirigia-lhe votos e preces. De todas as
partes do mundo vinham peregrinos oferecer-lhe vítimas.

14.2 - Ciúme de Vênus

Vênus, que do alto do céu via tudo, não pôde refrear a indignação. "Como? Dizia
ela. Eu, Vênus, a primeira alma da natureza, origem e germe de todos os
elementos, eu que fecundo o universo inteiro, devo partilhar com uma simples
mortal as honras devidas à minha posição suprema! Deverá o meu nome, que é
consagrado no céu, ser profanado na terra, terei eu de ver os meus altares
descuidados por uma criatura destinada a morrer? Ah, a que assim usurpa os
meus direitos vai arrepender-se da sua insolente beleza!"
Imediatamente chama o filho, o menino de asas, tão audaz, o qual, na sua
perversidade, desafia a moral pública, arma-se de archotes e setas, cometendo
com impunidade as maiores desordens e jamais fazendo o menor bem. Excita-o
com as suas palavras, e diante dele dá vazão a todo o seu enorme despeito. "Meu
filho, em nome da ternura que te une a mim, vinga tua mãe ultrajada; mas vinga-
a plenamente. Só te peço uma coisa: faze que a jovem se inflame da mais violenta
paixão pelo último dos homens, por um infeliz condenado pela sorte a não ter nem
posição social, nem patrimônio, nem segurança de vida; enfim, por um ser de tal
modo ignóbil que no mundo inteiro não se encontre outro igual!" Assim falando,
beijava o filhinho amado.

14.3 - O Oráculo de Apolo


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Vênus, por sua vez, extravasava sua cólera, cujos efeitos já se faziam sentir,
porque, enquanto as duas irmãs de Psique desposavam reis, a infeliz jovem,
culpada de excesso de beleza, encontra por toda parte adoradores, mas não
marido, e seu pai, desconfiado de que uma divindade qualquer obstaculasse o
himeneu da filha, vai consultar o oráculo de Apolo que lhe ordena expor a filha
num rochedo para um himeneu de morte. Seu marido não será um mortal: traz
asas como as aves de rapina cuja crueldade ele possui, e escraviza os homens e os
próprios deuses. Sempre é necessário obedecer, quando um deus fala. Após vários
dias consagrados ao pranto e à tristeza, prepara-se a pompa do fúnebre himeneu.
O archote nupcial é representado por archotes cor de fuligem e cinza. Os cantos
jubilosos de himeneu se transformam em uivos lúgubres, e a jovem noiva enxuga
as lágrimas com o próprio véu de casamento.

14.4 - Psique Raptada por Zéfiro

Uma vez terminado o cerimonial de morte, conduziram a infeliz Psique ao rochedo


em que deveria aguardar o esposo. Era uma montanha alcantilada. Quando ali
chegou, apagaram-se os archotes nupciais que haviam iluminado a festa fúnebre
do triste himeneu, e cada um voltou para casa. Os pais de Psique, encerrados no
palácio, recusaram-se a sair, condenando-se às trevas eternas. Tremendo de
espanto, Psique afogava-se nas lágrimas no pico da montanha, quando de súbito o
delicado sopro do Zéfiro, agitando amorosamente os ares, faz ondular dos dois
lados a veste que a protegia, cujas dobras se enchem invisivelmente. Soerguida
se, violência, Psique reconhece que um sopro tranqüilo a transporta suavemente.
Mais leves que as nuvens, os graciosos meninos alados se elevam docemente no
ar e arrebatam Psique sem lhe perturbarem o sono tranqüilo. Daí a pouco Psique
desliza por um declive insensível até um profundo vale situado abaixo dela, e vê-se
sentada no meio de uma relva coalhada de flores.
Deposta sobre espessa e tenra relva que formava um fresco tapete de verdura, ela
olha em volta de si e percebe uma fonte transparente como cristal, no meio de
árvores altas e copadas. Perto das margens, ergue-se uma morada real não
construída por mãos mortais senão mediante arte que só pode ser divina. Os
muros estão recobertos de baixos-relevos de prata e os soalhos são de mosaico de
pedras preciosas cortadas em mil pedacinhos e combinadas em variadas pinturas.

14.5 - O Palácio de Psique

Comovida pelo encanto de tão lindo lugar, Psique cria ânimo a ponto de
ultrapassar o limiar, e, cedendo à atração de tão grande número de maravilhas,
lança cá e lá olhares de admiração. Mas o que ao mesmo tempo a impressiona é a
solidão absoluta em que se encontra. Uma voz saída de um corpo invisível lhe fere,
subitamente, os ouvidos: "Por que, soberana minha, vos admirais de tão grande
opulência? Tudo quanto vedes é vosso. Entrai nestes aposentos, aguarda-vos um
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banho, para refazerdes as forças, e o banquete real que vos é destinado não se
fará esperar. Nós, cuja voz estais ouvindo, estamos às vossas ordens, e
executaremos atentamente as vossas ordens."
Psique viu realmente um repasto magnificamente preparado. Sentou-se, então, à
mesa, e diante dela se sucediam os vinhos mais deliciosos, as iguarias mais
incomuns, mas aparentemente trazidas por um sopro, pois não distinguia nenhum
ser humano. Um delicioso concerto a alegrou, mas os cantores eram invisíveis.
Admirada, e ao mesmo tempo, assustada, pensando no esposo que aguardava,
cedeu, no entanto, à fadiga e adormeceu sem que ninguém lhe perturbasse o
repouso. Quando desperta, ouve as mesmas vozes misteriosas que na véspera, e
recebe os mesmos cuidados de seres que não consegue distinguir. Vários dias
transcorrem sem que lhe seja dado ver alma viva. Se o esposo invisível a visitou
foi com certeza quando estava adormecida, pois ela nada enxergou, e o amo do
palácio em que está lhe é tão desconhecido como os criados que a servem.
A borboleta, símbolo da alma, esvoaça sobre a cabeça da jovem sentada num
cabeço de relva; o seu aspecto ingênuo e algo espantado se explica pela presença
de Cupido que, invisível para ela, lhe dá um beijo na testa.
No entanto, o esposo existia, pois embora ela o não visse, lhe ouvia a doce voz a
preveni-la de um perigo que correria. "Psique, minha doce amiga, dizia a voz,
minha companheira adorada, a sorte cruel te ameaça de um terrível perigo; tuas
irmãs, já turbadas com a idéia da tua morte, procuram-te, e não tardarão em
chegar a este rochedo. Não te comovas com os seus falsos queixumes, e não
cedas aos perniciosos conselhos que elas te derem para levar-te a me ver. E
acrescentou que a sacrílega curiosidade os separaria para sempre e a mergulharia
num abismo de males. Psique agradeceu ao marido os conselhos. Aliás, o tom
daquela voz era tão penetrante que se sentia atraída a ele por uma força
desconhecida. Assim, prometeu-lhe que obedeceria.

14.6 - As Irmãs de Psique

Entretanto, Psique, lembrando-se do oráculo de Apolo, tremia de espanto,


pensando que, apesar da voz tão doce, fosse o esposo sem dúvida um horrível
monstro, visto que o temiam homens e deuses. Estando a devanear, ouviu de
súbito, ao longe, vozes de mulheres, de mistura com gemidos e soluços, e, pouco
depois, escutando, reconheceu-as pelas de suas irmãs que a choravam. Comoveu-
se, apesar de tudo, e, desejando tranqüilizar a família, pediu mentalmente ao
invisível marido permissão para dispor de Zéfiro.
As duas irmãs foram então arrebatadas como o fora Psique e transportadas para o
palácio. Após os primeiros abraços e beijos, Psique, com insistência de criança,
mostrou-lhes os magníficos móveis, os deliciosos jardins, os terraços de onde se
descortinavam horizontes sem fim. Tantas maravilhas só lograram aumentar o
ciúme nutrido pelas duas irmãs havia tempo, e elas a cobriram de perguntas
embaraçadoras sobre o esposo que tanta riqueza lhe proporcionava. A pobre
Psique, que ainda não o vira, não pôde satisfazer-lhes a indiscreta curiosidade.
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Todos os dias elas lhe pintavam o marido como horrível dragão repulsivo. A infeliz
não resistiu.

14.7 - A Gota de Azeite

Chegada a noite, espera que todos estejam dormindo na casa. Acende, então, a
sua lâmpada, aproxima-se do leito e reconhece o filho de Vênus, perto de quem
estão o arco, a aljava e as setas. Psique pega uma e fere levemente um dos
dedos, inoculando, assim, em si própria e em elevada dose de amor ao próprio
Cupido. Mas enquanto contempla com arrebatamento o deus que lhe é esposo, cai
sobre o ombro de Cupido uma gota de azeite. A partir de então, já Psique não tem
mais esposo, pois Cupido desaparece, deixando-a no seu palácio solitário.
Psique, desesperada, corre à doida pelos campos e se precipita a um rio de águas
revoltas. Mas o rio não a quer, e as ondas a devolvem sã e salva à margem. O
deus Pã, que lá se encontrava, lhe revela as impiedosas ordens que Cupido
recebera de Vênus.
As irmãs de Psique, desejosas de saber se o conselho fora seguido, vão ao
rochedo do qual Zéfiro as arrebatara. Quando o vento começa a soprar, julgam
que é o mensageiro que vai conduzi-las ao pé da irmã e, entregandose-lhe sem
desconfiança, tombam ao pé do rochedo onde foram encontradas no dia seguinte,
mortas. Zéfiro, com efeito, não pôde receber ordens de Cupido, pois Cupido está
doente, e, vigiado no leito, ouve as censuras de sua mãe ultrajada: "Que lindo pai
de família não seríeis! Dizia-lhe Vênus. E eu, por minha vez, não tenho idade e
dignidade para que me chamem de vovó?

14.8 - Cólera de Vênus

Vênus manda procurar Psique por toda a terra, e, na sua cólera cheia de ciúme,
pergunta a si própria que suplício lhe deve infligir. Não contente de mandar que a
vergastem, quer impor-lhe trabalhos superiores às suas forças, e ordena-lhe que
vá aos infernos pedir a Prosérpina uma caixa de beleza de que necessita para o
seu atavio. Psique parte, certa de que nunca mais voltará; mas no caminho
encontra uma velha torre que sabe falar e lhe ensina como deve proceder,
recomendando-lhe bem, quando estiver de posse da caixa, que não ceda à
tentação de uma curiosidade que já lhe foi funesta uma vez.
Esclarecida pela torre, Psique atravessa o rio das mortes na barca de Caronte, faz
calar Cérbero atirando-lhe um bolo com mel e chega à presença de Prosérpina que
lhe entrega a caixa de beleza exigida por Vênus. Quando volta à terra, Psique,
sozinha, e de posse da caixa cujo conteúdo conhece, começa a refletir. Por que
não há de servir à própria Psique essa beleza que o seu odioso tirano a mandou
procurar no meio de mil perigos? E se roubasse uma partezinha, quem sabe se
não conseguiria reconquistar o marido desaparecido? Após muita hesitação, a
caixa cede finalmente ao esforço por ela feito, mas em vez de beleza o que sai é
um vapor sonífero e Psique, desmaiada, tomba com a face voltada para o chão.
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Perto dela, todavia, está um amigo, o próprio Cupido, que, vigiado de perto no
palácio de sua mãe, conseguiu, não obstante, escapar pela janela. Desperta Psique
com a ponta de uma das suas setas e pede-lhe que vá à casa de sua mãe, que ele
se incumbirá do resto.

14.9 - As Núpcias de Psique

Cupido voa ao pé do trono de Júpiter que, enternecido pelas suas lágrimas, dá a


imortalidade a Psique e convida todos os deuses para o banquete de núpcias.
Psique, admitida ao seio dos imortais, torna-se inseparável do marido. O sentido
da alegoria é fácil de compreender. Psique é o símbolo da alma: uma indiscreta
curiosidade a impeliu e ela sofreu espantosas torturas. Mas, purificada por uma
série de provas de que saiu vitoriosa, encontra a felicidade com a imortalidade.
"A ficção do Amor e de Psique, reúne em maravilhosa aliança o gênio da forma,
que lisonjeia os sentidos, e o do fundo que mergulha a alma num devaneio sem
fim. Eros, segurando uma borboleta suspensa acima de um archote é, encarado
poeticamente, um perfeito emblema dos tormentos do amor; encarado no sentido
dos mistérios, esse emblema contém a idéia profunda e salutar das manchas da
matéria e dos sofrimentos da alma purificada pelo fogo do impuro contato."

14.10 - A Alma Humana

Segundo as crenças admitidas pelos filósofos, e que, de acordo com alguns


escritores, teriam sido objeto de ensino especial nos mistérios, as almas existem
anteriormente ao nascimento terreno, e são atraídas para a vida pela volúpia, ou
se assim quisermos, por Vênus. Giram em torno da terra, como as borboletas em
torno da luz, e, quando chegam bem perto, não podem mais afastar-se e são
condenadas à vida, cuja imagem sedutora vêem num espelho místico, tão
freqüentemente representado nas urnas fúnebres. Sofrem a tentação de beber na
taça da vida, na taça de Baco, e, mal tocam com os lábios o licor sagrado, se
encarnam num corpo. "A união das almas com os corpos mortais, diz Creuzer, se
deve a várias causas: diversos motivos as impelem para as esferas inferiores.
Algumas ali descem, porque ainda não tinham descido e são necessárias à
manutenção da economia do mundo. São as almas novas ou noviças. Outras
voltam aos corpos para expiarem culpas anteriores. Outras, enfim, cedem
voluntariamente à sua inclinação pela terra. Tal inclinação provém de haverem elas
contemplado o espelho, o mesmo espelho em que se vira Dionísio, antes de criar
as existências individuais. Mal vêem a própria imagem, um desejo violento se
apodera de todas elas, e o que almejam é descer e viver individualmente. As
almas, na sua sede de existência individual, abandonam a morada celestial e
partem em busca de novos destinos. Uma vez que tenham bebido na taça de
Liber-Pater, embriagadas, apaixonadas pela matéria, perdem pouco a pouco a
recordação da origem. E é tal esquecimento que as impele a unir-se aos corpos. As
melhores dentre elas, temendo o nascimento, evitam a fatal beberagem cuja
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sedução as conduzirá à terra. Até entre as que não sabem resistir, há uma
diferença. As mais nobres bebem comedidamente, prendem-se fortemente ao
Gênio tutelar que lhes é destinado para acompanhá-las na Terra, têm os olhos
fitos nele e obedecem-lhe à voz. Outras, porém, não são assim. Bebem a largos
sorvos, e este mundo, que não passa de tenebrosa caverna, lhes parece belo.
Acabam, pois, de esquecer-se, fascinadas pelos atrativos, pelas delícias da gruta
de Dionísio, símbolo do mundo sensível e das suas voluptuosidades." (Creuzer).
"O que chamamos vida, diz Cícero, é uma verdadeira morte. A nossa alma só
começa a viver quando, livres dos entraves do corpo, participa da eternidade e, de
fato, as antigas tradições nos ensinam que a morte foi concedida pelos deuses
imortais, como recompensa aos que eles amavam." (Cícero).
"Os que choramos não nos foram tirados para sempre, e não estão perdidos para
nós; estão apenas distantes da nossa vista e do nosso contato por determinado
tempo. Assim, quando nós também chegarmos ao termo que a natureza nos
prescreveu, voltaremos a privar com eles." (Cícero).

XV - A Primeira Geração Divina

15.1 - De Urano a Crono

À primeira fase do Cosmo segue-se o que se poderia chamar estágio intermediário,


em que Úrano (Céu) se une a Géia (Terra), de que procede numerosa
descendência: Titãs, Titânidas, Ciclopes, Hecatonquiros, além dos que nasceram
do sangue de Úrano e de todos os filhos destes e daqueles.
A união de Úrano e Géia é o que se denomina hierogamia, um casamento sagrado,
cujo objetivo precípuo é a fertilidade da mulher, dos animais e da terra. É que, o
casamento sagrado, "atualiza a comunhão entre os deuses e os homens;
comunhão, por certo passageira, mas com significativas conseqüências. Pois a
energia divina convergia diretamente sobre a cidade - em outras palavras, sobre a
"Terra" - santificava-a e lhe garantia a prosperidade e a felicidade para o ano que
começava". Essas hierogamias se encontram em quase todas as tradições
religiosas. Simbolizam não apenas as possibilidades de união com os deuses, mas
também uniões de princípios divinos que provocam certas hipóstases. Uma das
mais célebres dessas uniões é a de Zeus (o poder, a autoridade) e Têmis (a
justiça, a ordem eterna) que deu nascimento a Eunomia (a disciplina), Irene (a
paz) e Dique (a justiça).
Curioso que o casamento, instituição que preside à transmissão da vida, aparece é
muitas aureolado de um culto que exalta e exige a virgindade, simbolizando, vezes
assim, a divina da vida, de que as uniões do homem e da mulher são apenas
origem projeções, receptáculos, instrumentos e canais transitórios. No Egito havia
as esposas de Amondeus da fecundidade. Eram normalmente princesas,
consagradas ao deus e , que dedicavam sua virgindade a essa teogamia. Em
Roma, as Vestais, sacerdotisas de Vesta, deusa da lareira doméstica, depois deusa
da Terra, a Deusa Mãe, se caracterizavam por uma extrema exigência de pureza.
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Retornando à primeira geração divina, temos, inicialmente, o seguinte quadro:


Úrano Géia
Titãs: Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto, Crono
Titânidas: Téia, Réia, Têmis, Mnemósina, Febe, Tétis
Ciclopes: Arges, Estérope, Brontes
Hecatonquiros: Coto, Briaréu, Gias

15.2 - Titãs

Em grego (Titán), é aproximado, em etimologia popular, de (títaks), rei, e (titéne),


rainha, termos possivelmente de procedência oriental: nesse caso, Titã significaria
"soberano, rei". Carnoy prefere admitir que os Titãs tenham sido primitivamente
deuses solares e seu nome se explicaria pelo "pelágico" tita, brilho, luz. A primeira
hipótese parece mais clara e adequada às funções dos violentos Titãs no mito
grego. Os Titãs simbolizam, "as forças brutas da terra e, por conseguinte, os
desejos terrestres em atitude de revolta contra o espírito", isto é, contra Zeus.
Juntamente com os Ciclopes, os Gigantes e os Hecatonquiros representam eles as
manifestações elementares, as forças selvagens e insubmissão da natureza
nascente, prefigurando a primeira etapa da gestação evolutiva. Ambiciosos,
revoltados e indomáveis, adversários tenazes do espírito consciente, patenteado
em Zeus, não simbolizam apenas as forças brutas da natureza, mas, lutando
contra o espírito, exprimem a oposição à espiritualização harmonizante. Sua meta
é a dominação, o despotismo.

15.2.1 - Oceano

Em grego (Okeanós), sem etimologia ainda bem definida. É possível que se trate
de palavra oriental com o sentido de "circular, envolver". Parece que Oceano era
concebido, a princípio, como um rio-serpente, que cercava e envolvia a terra. Pelo
menos esta é a idéia que do mesmo faziam os sumérios, segundo os quais a Terra
estava sentada sobre o Oceano, o rio-serpente. No mito grego, Oceano é a
personificação da água que rodeia o mundo: é representado como um rio, o Rio-
Oceano, que corre em torno da esfera achatada da terra, como diz Ésquilo em
Prometeu Acorrentado: Oceano, cujo curso, sem jamais dormir, gira ao redor da
Terra imensa.
Quando, mais tarde, os conhecimentos geográficos se tornaram mais precisos,
Oceano passou a designar o Oceano Atlântico, o limite ocidental do mundo antigo.
Representa o poder masculino, assim como Tétis, sua irmã e esposa, simboliza o
poder e a fecundidade feminina do mar. Como deus, Oceano é o pai de todos os
rios, que, segundo a Teogonia, são mais de três mil, bem como das quarenta e
uma Oceânidas, que personificam os riachos, as fontes e as nascentes. Unidas a
deuses e, por vezes, a simples mortais, são responsáveis por numerosa
descendência.
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O em razão mesmo de sua vastidão, aparentemente sem limites, é a imagem


Oceano, da indistinção e da indeterminação primordial.
De outro lado, o simbolismo do Oceano se une ao da água, considerada como
origem da vida. Na mitologia egípcia, o nascimento da Terra e da vida era
concebido como uma emergência do Oceano, à imagem e semelhança dos
montículos lodosos que cobrem o Nilo, quando de sua baixa. Assim, a criação,
inclusive a dos deuses, emergiu das águas primordiais. O deus primevo era
chamado a Terra que emerge. Afinal, as águas, "simbolizam a soma de todas as
virtualidades: são a fonte, a origem e o reservatório de todas as possibilidades de
existência. Precedem a todas as formas e suportam toda a criação".
Oceano e suas filhas, as Oceânidas, surgem na literatura grega como personagens
da gigantesca tragédia de Ésquilo, Prometeu Acorrentado. Oceano, apesar de
personagem secundária na peça, um mero tritagonista, é finalmente marcado por
Ésquilo: tímido, medroso e conciliador, está sempre disposto a ceder diante do
poderio e da arrogância de Zeus. Com o caráter fraco de seu pai contrastam as
Oceânidas, que formam o coro da peça: preferem ser sepultadas com Prometeu a
sujeitar-se à prepotência do pai dos deuses e dos homens.
Mesmo quando os Titãs, após a mutilação de Úrano, se apossaram do mundo,
Oceano resolveu não participar das lutas que se seguiram, permanecendo sempre
à parte como observador atento dos fatos...
Dada a pouca ou nenhuma importância dos Titãs Ceos, Crio e Hiperíon no mito
grego, a não ser por seus casamentos, filhos e descendentes, vamos diretamente
a Crono.

15.3 - Ciclope

Em grego (Kýklops), "olho redondo", pois os Ciclopes eram concebidos como seres
monstruosos com um olho só no meio da fronte. Demônios das tempestades, os
três mais antigos são chamados, por isso mesmo, Brontes, o trovão, Estéropes, o
relâmpago, e Arges, o raio.
Os mitógrafos distinguem três espécies de Ciclopes: os Urânios (filhos de Úrano e
Géia), os Sicilianos, companheiros de Polifemo, como aparece na Odisséia de
Homero e os Construtores. Os primeiros, Brontes, Estéropes e Arges são os
urânios. Encadeados pelo pai, foram, a pedido de Géia, libertados por Crono, mas
por pouco tempo. Temendo-os, este os lançou novamente no Tártaro, até que,
advertido por um oráculo de Géia de que não poderia vencer os Titãs sem o
concurso dos Ciclopes, Zeus os libertou definitivamente. Estes, agradecidos,
deram-lhe o trovão, o relâmpago e o raio. A Plutão ou Hades ofereceram um
capacete que podia torná-lo invisível e a Posídon, o tridente. Foi assim, que os
Olímpicos conseguiram derrotar os Titãs.
A partir de então tornaram-se eles os artífices dos raios de Zeus.
Como o médico Asclépio, filho de Apolo, fizesse tais progressos em sua arte, que
chegou mesmo a ressuscitar vários mortos, Zeus, temendo que a ordem do mundo
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fosse transtornada, fulminou-o. Apolo, não podendo vingar-se de Zeus, matou os


Ciclopes, fabricantes do raio, que eliminaria o deus da medicina.
O segundo de Ciclopes, impropriamente denominados sicilianos, tendem a
confundir-se com aqueles de que fala Homero na Odisséia. Estes eram selvagens,
gigantescos, dotados de uma força descomunal e antropófagos. Viviam perto de
Nápoles, nos chamados campos de Flegra. Moravam em cavernas e os únicos bens
que possuíam eram seus rebanhos de carneiros. Dentre esses Ciclopes destaca-se
Polifemo, imortalizado pelo cantor de Ulisses e depois, na época clássica, pelo
drama satírico de Eurípedes, o Ciclope, o único que chegou completo até nós.
Na época alexandrina, os Ciclopes "homéricos" transformaram-se em demônios
subalternos, ferreiros e artífices de todas as armas dos deuses, mas sempre sob a
direção de Efesto, o deus por excelência das forjas. Habitavam a Sicília, onde
possuíam uma oficina subterrânea. De antropófagos se transmutaram na erudita
poesia alexandrina em frágeis seres humanos, mordidos por Eros.
A terceira leva de Ciclopes proviria da Lícia. A eles era atribuída a construção de
grandes monumentos da época pré-histórica, formados de gigantescos blocos de
pedra, cujo transporte desafiava as forças humanas. Ciclopes pacíficos, esses
Gigantes se colocaram a serviço de heróis lendários, como Preto, na fortificação de
Tirinto, e Perseu, na construção da fortaleza de Micenas.

XVI - A Segunda Geração Divina

16.1 - Crono e sua descendência

Consumada a mutilação de Úrano e seu afastamento do governo do mundo,


Crono, tendo lançado no Tártaro os Ciclopes e os Hecatonquiros, apoderou-se do
poder, casando-se com sua Irmã Réia. Desse enlace nasceram Héstia, Hera,
Deméter, Hades, Posídon e Zeus.

16.2 - Héstia

Héstia, deusa da lareira. Da mesma família etimológica que o latim Vesta (Vesta),
cuja fonte é o indo-europeu wes, "queimar", "passar pelo fogo, consumir". Héstia
é a lareira em sentido estritamente religioso ou, mais precisamente, é a
personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da
lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia;
da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. E, embora
Homero lhe ignore o nome, Héstia certamente prolonga um culto pré-helênico do
lar.
Se bem que muito cortejada por Apolo e Posídon, obteve de Zeus a prerrogativa
de guardar para sempre a virgindade. Foi ininterruptamente cumulada de honras
excepcionais, não só por parte de seu irmão caçula, mas de todas as divindades,
tornando-se a única deusa a receber um culto em todas as casas dos homens e
nos templos de todos os deuses. Enquanto os outros Imortais viviam num vaivém
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constante, Héstia manteve-se sedentária, imóvel no Olimpo. Assim como o fogo


doméstico é o centro religioso do lar dos homens, Héstia é o centro religioso do lar
dos deuses. Essa imobilidade, todavia, fez que a deusa da lareira não
desempenhasse papel algum no mito. Héstia permaneceu sempre mais como um
princípio abstrato, a Idéia da lareira, do que como uma divindade pessoal, o que
explica não ser a grande deusa necessariamente representada por imagem, uma
vez que o fogo era suficiente para simbolizá-la.
Personificação do fogo sagrado, a deusa preside à conclusão de qualquer ato ou
acontecimento. Ávida de pureza, ela assegura a vida nutriente, sem ser ela própria
fecundante. É preciso observar, além do mais, que toda realização, toda
prosperidade, toda vitória são colocadas sob o signo desta pureza absoluta. Héstia,
como Vesta e suas dez Vestais, talvez simbolizem o sacrifício permanente, através
do qual uma perpétua inocência serve de elemento substitutivo ou até mesmo de
respaldo às faltas perpétuas dos homens, granjeando-lhes êxito e proteção.
Quanto ao fogo propriamente dito, a maior parte dos aspectos de seu simbolismo
será sintetizada no hinduísmo, que lhe confere uma importância fundamental.
Agni, Indra e Sûrya são as "chamas" do nível telúrico, do intermediário e celestial,
quer dizer, o fogo comum, o raio e o sol. Existem ainda dois outros: o fogo da
penetração ou absorção (Vaishvanara) e o da destruição, que é um outro aspecto
do próprio Agni.
Consoante o I Ching, o fogo correspondente ao sul, à cor vermelha, ao verão, ao
coração, uma vez que ele, sob este último aspecto, ora simboliza as paixões,
particularmente o amor e o ódio, ora configura o espírito ou o conhecimento
intuitivo. A significação sobrenatural se estende das almas errantes, o fogo-fátuo,
até o Espírito divino: Brahma é idêntico ao fogo (Gîtâ, 4,25).
O simbolismo das chamas purificadoras e regeneradoras se desdobra do Ocidente
aos confins do Oriente. A liturgia católica do fogo novo é celebrada na noite de
Páscoa. O divino Espírito Santo desceu sobre os Apóstolos sob a forma de línguas
de fogo. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, o fogo é elemento que
purifica e limpa, tornando-se, destarte, o veículo que separa o puro do impuro,
destruindo eventualmente este último. Por isso mesmo, o fogo é apresentado
como instrumento de punição e juízo de Deus (Sl 50,3; Mc 9,49; Tg 5,3; Ap 8,9).
Cristo fala de um fogo que não se apagará (Mt 5,32; 18,8; 25,41). Deus será como
um fogo distinguindo o bom do menos bom (Sl 17,3; 1Cor 3,15). Sua força, que
tudo penetra, purifica também: nesse sentido é que o batismo de Jesus havia de
agir como fogo (Mt 3,11).
Os taoístas penetram nas chamas para se liberar do condicionamento humano,
uma verdadeira apoteose, como a de Héracles, que, para se despir do invólucro
mortal, subiu a uma fogueira no monte Eta. Mas há os que, como os mesmos
taoístas, entram nas chamas sem se queimar, o que faz lembrar o fogo que não
queima do hermetismo ocidental, ablução, purificação alquímica, fogo este que é
simbolizado pela Salamandra.
O fogo sacrificial do hinduísmo é substituído por Buda pelo fogo interior, que é
simultaneamente conhecimento penetrante, iluminação e destruição do invólucro
71

carnal. O aspecto destruidor do fogo comporta igualmente uma relação negativa e


o domínio do fogo é também uma função diabólica. Observe-se, a propósito, a
forja: seu fogo é, ao mesmo tempo, celeste e subterrâneo, instrumento de
demiurgo e de demônio. A grande queda de nível é a de Lúcifer, "o que leva a luz
celeste", precipitado nas fornalhas do inferno: um fogo que brilha sem consumir,
mas exclui para sempre toda e qualquer possibilidade de regeneração.
Em muitas culturas primitivas, os inumeráveis ritos de purificação, as mais das
vezes, ritos de passagem, são característicos de culturas agrárias. Configuram
certamente os incêndios dos campos, que se revestem, em seguida, de um tapete
verde de natureza viva. Entre os gauleses, os sacerdotes druidas faziam grandes
fogaréus e por eles faziam passar o rebanho para preservá-lo de epidemias. O
grande político e excepcional escritor Caio Júlio César (100-44 a.C.) nos fala, no B.
Gal., 6, 16, 9, de gigantescos manequins, confeccionados de vime, que os mesmos
druidas enchiam de homens e animais e transformavam em fogueira.
O Fogo, nos ritos iniciáticos de morte e renascimento, associa-se a seu princípio
contrário, a Água. Os chamados Gêmeos de Popol-Vuh do mito maia, após sua
incineração, renascem de um rio, onde suas cinzas foram lançadas.
Mais tarde, os dois heróis tornam-se o novo Sol e a nova Lua, Maia-Quiché,
efetuando uma nova diferenciação dos princípios antagônicos, fogo e água, que
lhes presidiram à morte e ao renascimento. Desse modo, a purificação pelo fogo é
complementar da purificação pela água, tanto num plano microcósmico (ritos
iniciáticos), quanto num aspecto macrocósmico (mitos alternados de dilúvios,
grandes secas ou incêndios). Para os astecas, o fogo terrestre, ctônio, representa
a força profunda que permite a complexio oppositorum, a união dos contrários, a
ascensão, a sublimação da água em nuvens, isto é, a transformação da água
terrestre, água impura, em água celestial, água pura e divina. O fogo é, pois, o
motor, o grande responsável pela regeneração periódica. Para os bambaras o fogo
ctônio configura a sabedoria humana e o urânico, a sabedoria divina.
Quanto à significação sexual do fogo, é preciso observar que ela está intimamente
ligada à primeira técnica de obtenção do mesmo pela fricção, pelo atrito, pelo
vaivém, imagem do ato sexual, enquanto a espiritualização do fogo estaria ligada à
aquisição do mesmo pela percussão. Mircea Eliade chega à mesma conclusão e
opina que a obtenção do fogo pelo atrito é tida como o resultado, a "progenitura"
de uma união sexual, mas acentua, de qualquer forma, o caráter ambivalente do
fogo: pode ser tanto de origem divina quanto demoníaca, porque, segundo certas
crenças arcaicas, o fogo tem origem nos órgãos genitais das feiticeiras e das
bruxas.
Em síntese, o fogo que queima e consome é um símbolo de purificação e
regeneração, mas o é igualmente de destruição. Temos aí nova inversão do
símbolo. Purificadora e regeneradora a água também o é. Mas o fogo se distingue
da água na medida em que ele configura a purificação pela compreensão, até sua
forma mais espiritual, pela luz da verdade; a água simboliza a purificação do
desejo até sua forma mais sublime, a bondade.
72

16.3 - Hera

Hera, nome de etimologia controvertida. Talvez seja da mesma família etimológica


que (Héros), herói, como designativo dos mortos divinizados e protetores e, nesse
caso, Hera significaria a protetora, a guardiã. A base seria o indo-europeu serua,
da raiz ser-, "guardar", donde o latim seruare, "conservar, velar sobre".
Como todas as suas irmãs e irmãos, exceto Zeus, foi engolida por Crono, mas
salva pelo embuste de Métis e os combates vitoriosos de seu futuro esposo.
Durante todo o tempo em que Zeus lutava contra os Titãs, Réia entregou-a aos
cuidados de Oceano e Tétis, que a criaram nas extremidades do mundo, o que irá
provocar para sempre a gratidão da filha de Crono. Existem outras tradições que
lhe atribuem a educação às Horas, ao herói Têmeno, filho de Pelasgo, ou ainda às
filhas de Astérion, rei de Creta. Após seu triunfo definitivo, Zeus a desposou, em
núpcias soleníssimas. Era, na expressão de Hesíodo, a terceira esposa (a primeira
foi Métis e a segunda, Têmis), à qual o deus se uniu em "justas núpcias". Conta-
se, todavia, que Zeus e Hera se amavam há muito tempo e que se haviam unido
secretamente, quando o deus Crono ainda reinava sobre os Titãs. O local, onde se
realizaram essas "justas núpcias" varia muito, consoante as tradições. A mais
antiga e a mais "canônica" dessas variantes coloca-as no Jardim das Hespérides,
que é, em si mesmo, o símbolo mítico da fecundidade, no seio de uma eterna
primavera. Os mitógrafos sempre acentuaram, aliás, que os pomos de ouro do
Jardim das Hespérides foram o presente de núpcias que Géia ofereceu a Hera e
esta os achou tão belos, que os plantou em "seu Jardim", nas extremidades do
Oceano. Homero, na Ilíada, desloca o casamento divino do Jardim das Hespérides
para os píncaros do monte Ida, na Frígia. Outras tradições fazem-no realizar-se na
Eubéia, por onde o casal passou, quando veio de Creta. Em diversas regiões da
Grécia, além disso, celebravam-se festas para comemorar as bodas sagradas do
par divino do Olimpo. Ornamentava-se a estátua da deusa com a indumentária de
uma jovem noiva e conduziam-na em procissão pela cidade até um santuário,
onde era preparado um leito nupcial. O idealizador de tal cerimônia teria sido o
herói beócio Alalcômenes (Alalcômenes é um herói da Beócia, fundador da cidade
do mesmo nome. Atribui-se a ele a invenção das hierogamias de Zeus e Hera, isto
é, cerimônias religiosas em que se re-atualizava o casamento dos dois. Conta-se
que Hera, constantemente enganada por Zeus e cansada das infidelidades do
esposo, veio até Alalcômenes queixar-se do marido. O herói aconselhou-a a que
mandasse executar uma estátua dela mesma, mas confeccionada de carvalho
(árvore consagrada a Zeus), e fizesse transportá-la solene e ricamente
paramentada, seguida de grande cortejo, como se fosse uma verdadeira procissão
nupcial. A deusa assim o fez, instituindo uma festa denominada Festas Dedáleas.
Segundo a crença popular, este rito re-atualizava, rejuvenescia a união divina e
conferia-lhe eficácia por magia simpática, pondo um freio, ao menos temporário,
às infidelidades do marido...).
Como legítima esposa do pai dos deuses e dos homens, Hera é a protetora das
esposas, do amor legítimo. A deusa, no entanto, sempre foi retratada como
73

ciumenta, vingativa e violenta. Continuamente irritada contra o marido, por suas


infidelidades, moveu perseguição tenaz contra suas amantes e filhos adulterinos.
Héracles foi uma de suas vítimas prediletas. Foi ela a responsável pela imposição
ao herói dos célebres Doze Trabalhos. Perseguiu-o, sem tréguas, até a apoteose
final do filho de Alcmena. Por causa de Héracles, aliás, Zeus, certa vez a puniu
exemplarmente. Quando o herói regressava de Tróia, após tomá-la, Hera suscitou
contra seu navio uma violenta tempestade. Irritado, Zeus suspendeu-a de uma
nuvem, de cabeça para baixo, amarrada com uma corrente de ouro e uma bigorna
em cada pé. Foi por tentar libertar a mãe de tão incômoda posição, que Hefesto
foi lançado no vazio pelo pai. Perseguiu implacavelmente Io, mesmo
metamorfoseada em vaca, lançando contra ela um moscardo, que a deixava como
louca. Mandou que os Curetes, demônios do cortejo de Zeus, fizessem
desaparecer Épafo, filho de sua rival Io. Provocou a morte trágica de Sêmele, que
estava grávida de Zeus. Tentou quanto pôde impedir o nacimento de Apolo e
Ártemis, filhos de seu esposo com Leto. Enlouqueceu Átamas e Ino, por terem
criado a Dioníso, filho de Sêmele. Aconselhou Ártemis a matar a ninfa Calisto, que
Zeus seduzira, disfarçando-se na própria Ártemis ou em Apolo, segundo outros,
porque a ninfa, por ser do cortejo de Ártemis, tinha que guardar a todo custo sua
virgindade. Zeus, depois, a transformou na constelação da Ursa Maior, porque,
conforme algumas fontes, Ártemis, ao vê-la grávida, a metamorfoseou em ursa e a
liquidou a flechadas. Outros afirmam que tal metamorfose se deveu à cólera de
Hera ou a uma precaução do próprio Zeus, para subtraí-la à vingança da esposa.
Para escapar da vigilância atenta de Hera, Zeus não só se transformava de todas
as maneiras, em cisne, em touro, em chuva de ouro, no marido da mulher amada,
mas ainda disfarçava, a quem desejava poupar da ira da mulher: Io o foi em vaca;
Dioniso, em touro ou bode... De resto, o relacionamento entre os esposos celestes
jamais foi muito normal e a cólera e vingança da filha de Crono se apoiavam em
outros motivos. Certa vez, Hera discutia com o marido para saber quem conseguia
usufruir de maior prazer no amor, se o homem ou a mulher. Como não
conseguissem chegar a uma conclusão, porque Zeus dizia ser a mulher a
favorecida, enquanto Hera achava que era o homem, resolveram consultar
Tirésias, que tivera sucessivamente a experiência dos dois sexos. Este respondeu
que o prazer da mulher estava na proporção de dez para um relativamente ao do
homem. Furiosa com a verdade, Hera prontamente o cegou.
Tomou parte, como se sabe, no célebre concurso de beleza e teve por rivais a
Atena e Afrodite, e cujo juiz era o troiano Páris. Tentou, para vencer, subornar o
filho de Príamo, oferecendo-lhe riquezas e a realeza universal.
Como Páris houvesse outorgado a maça de ouro a Afrodite, que lhe ofereceu
amor, Hera fez pesar sua cólera contra Ílion, tendo tomado decisivamente o
partido dos gregos. Seu ódio, por sinal, se manifestou desde o rapto de Helena por
Páris. Quando da fuga do casal, de Esparta para Tróia, a magoada esposa de Zeus
suscitou contra os amantes uma grande borrasca, que os lançou em Sídon, nas
costas da Síria. Tornou-se, além do mais, a protetora natural do herói grego
Aquiles, cuja mãe Tétis fora por ela criada. Conta-se, além do mais, que era grata
74

a Tétis, porque esta sempre repeliu as investidas amorosas de Zeus. Mais tarde,
estendeu sua proteção a Menelau, tornando-o imortal. Participou da luta contra os
Gigantes, tendo repelido as pretensões pouco decorosas de Porfírio.
Ixíon, rei dos Lápitas, tentou seduzí-la, mas acabou envolvendo em seus braços
uma nuvem, que Zeus confeccionara à semelhança da esposa. Dessa "união"
nasceram os Centauros. Para castigá-lo, Zeus fê-lo alimentar-se de ambrosia, o
manjar da imortalidade, e depois lançou-o no Tártaro. Lá está ele girando para
sempre numa roda de fogo. Protegeu o navio Argo, fazendo-o transpor as
perigosas Rochas Ciâneas, as Rochas Azuis, e guiou-o no estreito fatídico entre
Cila e Caribdes.
Sua ave predileta era o pavão, cuja plumagem passava por ter os cem olhos com
que o vigilante Argos guardava sua rival, a "vaca" Io. Eram-lhe também
consagrados o lírio e a romã: o primeiro, além de símbolo da pureza, o é também
da fecundidade, como a romã.
Pelo fato de ser esposa de Zeus, Hera possui alguns atributos soberanos, que a
distinguem das outras imortais, suas irmãs. Como seu divino esposo, exerce uma
ação poderosa sobre os fenômenos celestes. Honrada como ele nas alturas, onde
se formam as borrascas e se amontoam as nuvens, que derramam as chuvas
benfazejas, ela pode desencadear as tempestades e comandar os astros que
adornam a abóbada celeste. A união de Zeus e Hera é como um símbolo da
natureza inteira. É por intermédio de ambos, do calor, dos raios do sol e das
chuvas, que penetram o solo, que a terra é fecundada e se reveste de luxuriante
vegetação. Ainda como Zeus, Hera personifica certos atributos morais, como o
poder, a justiça, a bondade. Protetora inconteste dos amores legítimos, é o
símbolo da fidelidade conjugal. Associada à soberania do pai dos deuses e dos
homens, é respeitada pelo Olimpo inteiro, que a saúda como sua rainha e senhora.
É verdade que, por vezes, uma rainha irascível e altiva, mas que jamais deixou de
ser, em seus rompantes ou em sua majestade serena, a grande divindade feminina
do Olimpo grego, cujo grande deus masculino é Zeus.

XVII - Deuses Gregos e Romanos

A mitologia grega é bastante rica em termos de contos e explicações da origem do


mundo, a tudo atribuindo os poderes dos deuses gregos, que segundo a crença
geral, moravam no Monte Olimpo.
Dizem as lendas gregas que, no princípio, havia somente o grande Caos, do qual
surgiram os Velhos Deuses, ou Titãs, dirigidos pelo deus Cronos (Tempo). Zeus era
um filho de Cronos e chefiou a rebelião da nova geração dos deuses - chamados
Deuses Olímpicos - que dominaram a Grécia em toda a sua época clássica. Os
principais deuses olímpicos são:

17.1 - Zeus
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É o deus principal, governante do Monte Olimpo. Rei dos deuses e dos homens,
era o sexto filho de Cronos. Como seus irmãos, deveria ser comido pelo pai, mas a
mãe deu uma beberagem a Cronos e este vomitou novamente o filho; este e seus
irmãos, também vomitados na mesma hora, uniram-se contra o pai, roubaram os
raios e venceram a batalha. Os raios, fabricados pelo deus Hefaistos, eram o
símbolo de Zeus.
Zeus para os gregos e Júpiter para os romanos.

17.2 - Palas Atena ou Atenéia

Deusa virgem, padroeira das artes domésticas, da sabedoria e da guerra. Palas


nasceu já adulta, na ocasião em que Zeus teve uma forte dor de cabeça e mandou
que Hefaistos, o deus ferreiro, lhe desse uma machadada na fronte; daí saiu Palas
Atena. Sob a proteção dessa deusa floresceu Atenas, em sua época áurea. Dizia-se
que ganhou a devoção dos atenienses quando presenteou a humanidade com a
oliveira, árvore principal da Grécia.
Palas para os gregos e Minerva para os romanos.

17.3 - Apolo

Deus do sol e patrono da verdade, da música, da medicina e pai da profecia. Filho


de Zeus, fundou o oráculo de Delfos, que dava conselhos aos gregos através da
Pitonisa, sacerdotiza de Apolo que entrava em transe devido aos vapores vindos
das profundezas da terra.
Apolo para os gregos

17.4 - Ártemis

A Diana dos romanos, era a deusa-virgem da lua, irmã gêmea de Apolo, poderosa
caçadora e protetora das cidades, dos animais e das mulheres. Na Ilíada de
Homero, desempenhou importante papel na Guerra de Tróia, ao lado dos troianos.
Ártemis para os gregos e Diana para os romanos.

17.5 - Afrodite

Deusa do amor e da beleza, era esposa de Hefaistos e amante de Ares, a quem


deu vários filhos (entre eles Fobos = Medo, e Demos = Terror). Afrodite era
também mãe de Eros.
Afrodite para os gregos e Vênus para os romanos.

17.6 - Hera

Esposa de Zeus, protetora do casamento, das mulheres casadas, das crianças e


dos lares. Era também irmã de Zeus, uma das filhas vomitada por Cronos.
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Hera para os gregos e Juno para os romanos.

17.7 - Démeter

Era a deusa das colheitas, dispensadora dos cereais e dos frutos. Quando Hades,
deus do inferno, levou sua filha Perséfone como sua esposa, negou seus poderes à
terra, e esta parou de produzir alimentos; a solução de Zeus foi que Perséfone
passaria um terço do ano no inferno, com seu marido, e o restante do tempo com
sua mãe, no Olimpo. Dessa forma, Démeter abrandou sua ira e tornou a florescer
nas colheitas.
Démeter para os gregos e Ceres para os romanos.

17.8 - Hermes

Filho de Zeus e mensageiro dos mortais, era também protetor dos rebanhos e do
gado, dos ladrões, era guardião dos viajantes e protetor dos oradores e escritores.
Hermes para os gregos e Mercúrio para os romanos.

17.9 - Poseidon

É o deus do mar e dos terremotos, foi quem deu os cavalos para os homens.
Apesar disso, era considerado um deus traiçoeiro, pois os gregos não confiavam
nos caprichos do mar.
Poseidon para os gregos e Netuno para os romanos.

17.10 - Dionísio

Era o deus do vinho e da fertilidade. Filho de Zeus e uma mortal, foi alvo do ciúme
de Hera, que matou sua mãe e transtornou o seu juízo. Assim, Dionísio vagueava
pela terra, rodeado de sátiros e mênades. Era o símbolo da vida dissoluta.
Dionísio para os gregos e Baco para os romanos.

17.11 - Ares

O deus guerreiro por excelência. Seu símbolo era o abutre. Seus pais, Zeus e Hera,
detestavam-no, mas era protegido por Hades, pois povoava o inferno com as
numerosas guerras que provocava. Sua vida estava longe de ser exemplar - foi
surpreendido em adultério com Afrodite, esposa de Hefaistos, que os prendeu em
fina rede; foi ferido por três vezes por Héracles (Hércules). Era muito respeitado
pelos gregos por sua força e temperamento agressivo.
Ares para os gregos e Marte para os romanos.

17.12 - Hefaistos ou Hefesto


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Deus ferreiro, do fogo e dos artífices. Filho de Zeus e Hera, foi lançado do Olimpo
por sua mãe, desgostosa por ter um filho coxo. Refugiou-se nas profundezas da
terra, aprendendo com perfeição o ofício de ferreiro. De suas forjas saíram muitas
maravilhas, inclusive a primeira mulher mortal, Pandora, que recebeu vida dos
deuses. Construiu no Olimpo um magnífico palácio de bronze para si próprio, e era
estimado em Atenas. Para compensá-lo de sua feiúra, seu pai deu-lhe por esposa
Afrodite, a deusa da beleza. Era artesão dos raios de Zeus.
Hefaistos para os gregos e Vulcano para os romanos.

Além desses deuses, que junto a muitos outros pululavam no Olimpo, havia heróis
(filhos de deusas ou deuses com mortais), semideuses, faunos, sátiros e uma
infinidade de entidades mitológicas que explicavam por lendas todos os fenômenos
da natureza. Entre os heróis mais populares, podemos citar:
Io amada por Zeus, que a transformou em novilha para escondê-la da ciumenta
Hera.
Deucalião e Pirra únicos sobreviventes do dilúvio que Zeus mandou ao mundo
pervertido.
Héracles ou Hércules, autor dos famosos Doze Trabalhos; era filho de Zeus e da
moratal Alcmena.
Édipo que matou a esfinge e casou-se com sua própria mãe.
Perseu que matou a Medusa, uma das Górgonas, e libertou a princesa
Andrômeda da serpente marinha.
Cadmo que matou um dragão e no local fundou a cidade de Tebas.
Europa irmã de Cadmo, foi amada por Zeus que lhe apareceu sob a forma de um
touro e, em suas costas, atravessou o mar.
Jasão chefe dos Argonautas, equipe de heróis - Héracles, Orfeu, Castor e Pólux, e
outros - que navegou no navio "Argos" em busca do Velocino de Ouro.
Teseu que penetrou o labirinto de Creta e matou o Minotauro, acabando por
unificar a Ática.
Atalanta mulher aventurosa que se casou com o ardiloso Hipomenes.
Belerofonte que matou o monstro Quimera e domou o cavalo alado, Pégaso.
Os heróis de Tróia Aquiles, Heitor, Ájax, Agaménon, Ulisses - autor da idéia do
cavalo de Tróia - e outros.

XVIII - A Grécia e a Chegada dos Indo-Europeus

Por uma questão de clareza, não se pode falar do mito grego sem antes traçar,
embora esquematicamente, um esboço histórico do que era a Grécia antes da
Grécia, isto é, antes da chegada dos Indo-Europeus ao território de Hélade.
Vamos estampar, de início, como já o fizera Pierre Léveque, um quadro, um
sistema cronológico, com datas arredondadas, sujeitas portanto a uma certa
margem de erros. A finalidade dos dados cronológicos, que se seguem, é apenas
de orientar e chamar a atenção para o "estado religioso" da Hélade pré-helênica e
ver até onde o antes influenciou o após no curso da mitologia grega.
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Neolítico I ~ 4500-3000
Neolítico II ~ 3000-2600
Bronze Antigo ou Heládico Antigo ~ 2600-1950
Primeiras Invasões Gregas (Jônios) na
~ 1950
Grécia
Bronze Médio ou Heládico Médio ~ 1950-1580
Novas Invasões Gregas (Aqueus e
~ 1580
Eólios?)
Bronze Recente ou Heládico Recente ou
~ 1580-1100
Período Micênico
Últimas Invasões Gregas (Dórios) ~ 1200

Se os restos paleolíticos são muito escassos e de pouca importância, no Neolítico I


o solo grego é coberto por uma série de "construções", obra, ao que parece, de
populações oriundas do Oriente Próximo asiático. A transição do Neolítico I para o
Neolítico II é marcada, na Grécia, pela invasão de povos, cuja origem não se pode
determinar com segurança. O sítio neolítico mais bem conhecido é Dimini, na
Tessália, e que corresponde ao Neolítico II. Trata-se de uma acrópole, de uma
cidade fortificada, fato raro para a época. O reduto central contém um mégaron,
ou grande sala, o que revelaria uma organização monárquica. Trata-se, e é isto
que importa, de uma civilização agrícola. O homem cuida dos rebanhos e a mulher
se encarrega da agricultura, o que patenteia a crença de que a fecundidade
feminina exerce uma grande e benéfica influência sobre a fertilidade das plantas. A
divindade soberana do Neolítico II, na Grécia, é a Terra-Mãe, a Grande Mãe, cujas
estatuetas, muito semelhantes às cretenses, representam deusas de formas
volumosas e esteatopígicas. A função dessas divindades, hipóstases da Terra-Mãe,
é fertilizar o solo e tornar fecundos os rebanhos e os seres humanos.
Na virada do Neolítico II para o Bronze Antigo ou Heládico Antigo, ~2600-1950,
chegam à Grécia novos e numerosos invasores, provenientes da Anatólia, na Ásia
Menor. Cortejando a civilização anterior com o progresso trazido pelos anatólios, o
mínimo que se pode dizer é que se trata de uma grande civilização, cujo centro
mais importante foi Lerna, na Argólida, cujos pântanos se tornariam famosos,
sobretudo por causa de um dos Trabalhos de Herácles. Uma das contribuições
mais sérias dessa civilização foi a lingüística: a partir do Bronze Antigo ou Heládico
Antigo, montes, rios e cidades gregas recebem nome, o que permite acompanhar
o desenvolvimento e a extensão da conquista anatólia, que se prolonga da
Macedônia, passando pela Grécia continental, pelas Cíclades, e atingem a ilha de
Creta, que também foi submetida pelos anatólios. O grande marco dessa
civilização, no entanto, foi a introdução do bronze, início evidentemente de uma
nova era.
De outro lado, a existência comprovada de palácios fortificados denuncia uma
sólida organização monárquica. Em se tratando de uma civilização agrícola, a
divindade tutelar continua a ser a Grande Mãe, dispensadora da fertilidade e da
79

fecundidade. As estatuetas, com formas também opulentas e esteatopígicas,


adotam, por vezes, nas Cíclades, uma configuração estilizada de violino, o que,
aliás, as tornou famosas. As tumbas são escavadas nas rochas ou se apresentam
em forma de canastra. As numerosas oferendas nelas depositadas atestam a
crença na sobrevivência da alma.
Nos fins do segundo milênio, entre ~2000-1950, ou seja, no apagar das luzes da
Idade do Bronze Antigo ou Heládico Antigo, a civilização anatólia da Grécia
propriamente desapareceu, com a irrupção de novos invasores. Dessa feita, eram
os gregos que pisavam, pela primeira vez, o solo da futura Grécia.
Os gregos fazem parte de um vasto conjunto de povos designados com o nome
convencional de Indo-Europeus. Estes, ao que parece, se localizavam, desde o
quarto milênio, ao norte do Mar Negro, entre os Cárpatos e o Cáucaso, sem
jamais, todavia, terem formado uma unidade sólida, uma raça, um império
organizado e nem mesmo uma civilização material comum. Talvez tenha existido,
isto sim, uma certa unidade lingüística e uma unidade religiosa. Pois bem, essa
frágil unidade, mal alicerçada num "aglomerado de povos", rompeu-se, lá pelo
terceiro milênio, iniciando-se, então, uma série de migrações, que fragmentou os
Indo-Europeus em vários grupos lingüísticos, tomando uns a direção da Ásia
(armênio, indo-iraniano, tocariano, hitita), permanecendo os demais na Europa
(balto, eslavo, albanês, celta, itálico, grego, germânico). A partir dessa dispersão,
cada grupo evoluiu independentemente e, como se tratava de povos nômades, os
movimentos migratórios se fizeram no tempo e no espaço, durante séculos e até
milênios, não só em relação aos diversos "grupos" entre si, mas também dentro de
um mesmo "grupo". Assim, se as primeiras migrações indo-européias (indo-
iranianos, hititas, itálicos, gregos) estão séculos distantes das últimas (baltos,
eslavos, germânicos...), dentro de um mesmo grupo as migrações se fizeram por
etapas. Desse modo, o grupo itálico, quando atingiu a Itália, já estavam
fragmentado, "dialetado", em latinos, oscos e umbros, distantes séculos uns dos
outros, em relação à chegada a seu habitat comum. Entre os helenos o fato ainda
é mais flagrante, pois, como se há de ver, os gregos chegaram à Hélade em pelo
menos quatro levas: jônios, aqueus, eólios e dórios e, exatamente como aconteceu
com o itálico, com séculos de diferença entre um grupo e outro. Para se ter uma
idéia, entre os jônios e os dórios medeia uma distância de cerca de oitocentos
anos!
Se não é possível reconstruir, mesmo hipoteticamente, o império indo-europeu e
tampouco a língua primitiva indo-européia, pode-se, contudo, estabelecer um
sistema de correspondência entre as denominadas línguas indo-européias,
mormente, e é o que importa no momento, no que se refere ao vocabulário
comum e, partindo deste, chegar a certas estruturas religiosas dessa civilização.
O vocabulário comum mostra a estrutura patrilinear da família, o nomadismo, uma
forte organização militar, sempre pronta para as conquistas e os saques.
Igualmente se torna claro que os indo-europeus conheciam bem e praticavam a
agricultura; criavam rebanhos e conheciam o cavalo.
Os termos mais comuns, são, resumidamente, os que indicam:
80

Parentesco pai, mãe, filho, filha, irmã;


rei, tribo, aldeia, chefe da casa
Grupo Social
e da aldeia;
lavrar, tecer, fiar, ir de carro,
Atividades Humanas trocar, comprar, conduzir (=
casar);
boi, vaca, cordeiro, ovelha,
bode, cabra, abelha, cavalo,
Animais égua, cão, serpente, vespa,
mosca e produtos: leite, mel,
lã, manteiga;
álamo, faia, salgueiro,
Vegetais
azinheira;
machadinha, roda, carro, jugo,
Objetos
cobre, ouro, prata;
Principais partes do corpo; nomes distintos para os dez
primeiros números; nomes das dezenas, a palavra cem, mas não
mil.

O vocabulário religioso é extremamente pobre. São pouquíssimos os nomes de


deuses comuns a vários indo-europeus.
Básico é o radical * deiwos, cujo sentido preciso, segundo Frisk, é alte Benennung
des Himmels, quer dizer, "antiga denominação do céu", para designar "deus", cujo
sentido primeiro é luminoso, claro, brilhante, donde o latim deus, sânscrito deváh,
iraniano div, antigo germânico tívar. Este mesmo radical encontra-se no grande
deus da luz, o "deus-pai" por excelência: grego Zeús, sânscrito Dyáuh, latim Iou
(de * dyew-) e com aposição de piter (pai), tem-se (Iuppiter), "o pai do céu
luminoso", Júpiter, bem como o sânscrito Dyauh pitã, grego Zeùs, patér, cita Zeus-
Papaios, isto é, Zeus Pai.
Zeus é, portanto, o deus do alto, o soberano, "o criador". Cosmogonia e
paternidade, eis seus dois grandes atributos. ¹
Além de Zeus, para ficar apenas no domínio grego, podem citar-se ainda "o deus
solar" Hélios (Hélio), védico Sûnrya, eslavo antigo Solnce, e o "deus-Céu", grego
Ouranós (Úrano), sânscrito Varuna, a abóbada celeste.
De qualquer forma, como acentua Mircea Eliade, "Os Indo-Europeus tinham
elaborado uma teologia e uma mitologia específicas. Praticavam sacrifícios e
conheciam o valor mágico-religioso da palavra e do canto (* Kan). Possuíam
concepções e rituais que lhes permitiam consagrar o espaço e 'cosmizar' os
territórios em que se instalavam (essa encenação mítico-ritual é atestada na Índia
antiga, em Roma, e entre os celtas), as quais lhes permitiam, de mais a mais,
renovar periodicamente o mundo (pelo combate ritual entre dois grupos de
celebrantes, rito de que subsistem traços na Índia e no Irã)". Eliade conclui,
mostrando que a grande distância que separa as primeiras migrações indo-
81

européias das últimas, impossibilita a identificação dos elementos comuns ao


vocabulário, na teologia e na mitologia da época histórica.
Essas longas e lentas migrações, por outro lado, face ao contato com outras
culturas e mercê dos empréstimos, sincretismos e aculturação, trouxeram
profundas alterações ao acervo religioso indo-europeu. E se muito pouco nos
chegou de autênctico dessa religião, esse pouco foi brilhantemente enriquecido,
sobretudo a partir de 1934, pelas obras excepcionais de Georges Dumézil. Partindo
da mitologia comparada, mas sem os exageros e erros de Max Müller e sua escola,
apoiado em sólida documentação, Dumézil fez que se compreendesse melhor toda
a riqueza acerca do que se possui do mito e da religião de nossos longínquos
antepassados. Uma de suas conclusões maiores foi a descoberta da estrutura
trifuncional da sociedade e da ideologia dos indo-europeus, estrutura essa
fundamentada na tríplice função religiosa dos deuses.
Não há dúvida de que é entre os indo-iranianos, escandinavos e romanos que a
"trifunção" está mais acentuada, mas entre os gregos, ao menos da época
histórica, a mesma estrutura pode ser observada, ao menos como hipótese:

Soberania Força Fecundidade


(Sacerdotes) (Guerreiros) (Campônios)
Indo-Iranianos Varuna e Mitra Indra Nasátya
Escandinavos Odin e Tyr Tor Freyr
Romanos Iuppiter Mars Quirinus
Gregos Zeús Áres Deméter

No que tange à Hélade, esta divisão há de perdurar, religiosamente, até o fim.


Eis aí, em linhas gerais, o que foi a Grécia antes da Grécia e a primeira
contribuição religiosa dos indo-europeus gregosà sua pátria, nova e definitiva.
¹ Deus em grego se diz theós, mas este, segundo H. Frisk, theós significa espírito,
alma: a idéia de theós como deus é recente e teria se desenvolvido a partir da
divinização dos mortos ou talvez o vocábulo signifique, a princípio, cipo, estela.

XIX - As Origens - O Caos

O estado primordial, primitivo do mundo é o Caos. Era, segundo os poetas, uma


matéria que existia desde tempos imemoriais, sob uma forma vaga, indefinível,
indescritível, na qual se confundiam os princípios de todos os seres particulares.
Caos era ao mesmo tempo uma divindade, por assim dizer, rudimentar, capaz,
porém, de fecundar. Gerou primeiro a Noite, e depois o Érebo.

19.1 - A Noite

A Noite, deusa das Trevas, filha do Caos, é na verdade a mais antiga das
divindades. Certos poetas a consideram como filha do Céu e da Terra; Hesíodo dá-
lhe um lugar entre os Titãs e o nome de Mãe dos Deuses, porque sempre se
82

acreditou que a Noite e as trevas haviam precedido a todas as coisas. Desposou


Érebo, seu irmão, de quem teve o Éter e o Dia. Mas sozinha, sem unir-se a
nenhuma outra divindade, procriara o inevitável e inflexível Destino, a Parca
Negra, a Morte, o Sono, a legião dos Sonhos, Momo, a Miséria, as Hespérides,
guardadoras dos pomos de ouro, as desapiedadas Parcas, a terrível Nemesias, a
Fraude, a Concupiscência, a triste Velhice e a obstinada Discórdia; em resumo,
tudo quanto havia de doloroso na vida passava por ser obra da Noite. Algumas
vezes dão-lhe os nomes gregos de Eufrone e Eulalia, isto é, - Mãe do bom
conselho. Há quem marque o seu império ao norte do Ponto-Euxino, no país dos
Cimérios; mas a situação geralmente aceita é na parte da Espanha, - a Esméria, na
região do poente, perto das colunas de Hércules, limites do mundo conhecido dos
antigos.
Quase todos os povos da Itália viam a Noite, ora com um manto volante,
recamado de estrelas, por cima de sua cabeça, ou com um outro manto azul e
archote derrubado, ora representada por uma mulher nua, com longas asas de
morcego e um fanal na mão. Representam-na também coroada de papoulas e
envolta num grande manto negro, estrelado. Às vezes num carro arrastado por
dois cavalos pretos ou por dois mochos, e a deusa cobre a cabeça com um vasto
véu semeado de estrelas. Muito freqüentemente colocam-na no Tártaro, entre o
Sono e a Morte, seus dois filhos. Algumas vezes um menino precede-a,
empunhando uma tocha, - símbolo do crepúsculo. Os romanos não a punham em
carro, e representavam-na ociosa e adormecida.

19.2 - O Érebo

O Érebo, filho do Caos, irmão e esposo da Noite, pai do Éter e do Dia, foi
metamorfoseado em rio e precipitado nos Infernos, por ter socorrido os Titãs. Faz
parte do Inferno e é mesmo considerado como o próprio Inferno. Pela palavra
Éter, os gregos compreendiam os Céus, separados dos corpos luminosos. O
vocábulo dia, sendo feminino em grego (Hèméra); dizia-se que o Éter e o Dia
foram o pai e a mãe do Céu. Essas estranhas uniões significam somente que a
Noite existia antes da criação, que a Terra estava perdida na obscuridade que a
cobria, mas que a Luz, penetrando através do Éter, havia aclarado o universo.
Em linguagem de menor valor mitológico, poderia se simplificar, e dizer que a
Noite e o Caos precederam à criação dos céus e da luz.

19.3 - Eros e Anteros

Foi pela intervenção de um poder divino, eterno como os elementos do próprio


Caos, pela intervenção manifesta de um deus que, sem ser propriamente o amor,
tem entretanto alguma conformidade com ele, que o Caos, a Noite, o Érebo
puderam unir-se para a procriação.
Em grego, esse deus antigo, ou melhor, anterior a toda antigüidade, chama-se
Eros. É ele que inspira ou produz esta invisível simpatia entre os seres, para os
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unir em outras procriações. O poder de Eros vai além da natureza viva e animada:
ele aproxima, une, mistura, multiplica, varia as espécies de animais, de vegetais,
de minerais, de líquidos, de fluídos, em uma palavra, de toda a criação. Eros é pois
o deus da união, da afinidade universal; nenhum outro ser pode furtar-se à sua
influência ou à sua força: Eros é invencível.
Entretanto, tem como adversário no mundo divino - Anteros, isto é, a antipatia, a
aversão. Esta divindade tem todos os atributos opostos aos do deus Eros: separa,
desune, desagrega. Tão salutar, tão forte e poderoso talvez como Eros, Anteros
impede que se confundam os seres da natureza dissemelhante; se algumas vezes
semeia em torno de si a discórdia e o ódio, se prejudica a afinidade dos
elementos, ao menos a hostilidade que entre eles cria contém cada um nos limites
marcados, e destarte a natureza não pode cair novamente no caos.

19.4 - O Destino

O Destino é uma divindade cega, inexorável nascida da Noite e do Caos. Todas as


outras divindades estavam submetidas ao seu poder. Os céus, a terra, o mar e os
infernos faziam parte do seu império: o que resolvia era irrevogável; em resumo, o
Destino era por si mesmo essa fatalidade, segundo a qual tudo acontecia no
mundo. Júpiter, o mais poderoso dos deuses, não pôde aplacar o Destino, nem a
favor dos outros deuses, nem a favor dos homens.
As leis do Destino eram escritas desde o princípio da criação em um lugar onde os
deuses podiam consultá-las. Os seus ministros eram as três Parcas encarregadas
de executar as ordens. Representam-no tendo sob os pés o globo terrestre, e
agarrando nas estrelas, e um cetro, símbolo do seu poder soberano. Para mostrar
que era inflexível, os antigos o representavam por uma roda que prende uma
cadeia. No alto da roda uma grande pedra, e embaixo duas cornucópias com
pontas de azagaia. Conta Homero que o Destino de Aquiles e de Heitor é pesado
na balança de Júpiter, e como a sorte do último o arrebata, sua morte é
decretada, e Apolo retira o apoio que lhe dispensara até então. São as leis cegas
do Destino que tornaram culpados a tantos mortais, apesar do seu desejo de
permanecer virtuosos: em Ésquilo, por exemplo, Agamemnom, Clitemnestre,
Jocasta, Édipo, Eteoclo, Polínice, etc., não podem fugir à sua sorte.
Só os oráculos podiam entrever e revelar o que estava escrito no livro do Destino.

19.5 - A Terra (Gaia)

A Terra, mãe universal de todos os seres, nasceu imediatamente depois do Caos.


Desposou Urano ou o Céu, foi a mãe dos deuses e dos gigantes, dos bens e dos
males, das virtudes e dos vícios. Fazem-na unir-se com o Tártaro e Ponto, ou o
mar, de cujas uniões os monstros que encerram todos os elementos. A Terra, às
vezes tomada pela Natureza, tinha vários nomes: Titéia, Ops, Telus, Vesta e
mesmo Cibele.
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Dizia-se que o homem nascera da terra embebida d'água e aquecida pelos raios do
Sol; assim, a sua natureza participa de todos os elementos, e quando morre, sua
mãe venerável o recolhe e o guarda no seu seio. Na Mitologia, muitas vezes é
considerado entre os filhos da Terra; geralmente, quando não se sabia a origem,
quer de um homem, quer de um povo célebre, dava-se-lhe o nome de filho da
Terra.
Algumas vezes a Terra é representada pela figura de uma mulher sentada num
rochedo; as alegorias modernas descrevem-na sob os traços de uma venerável
matrona, sentada sobre um globo, coroada de torres, empunhando uma
cornucópia cheia de frutos. Outras vezes aparece coroada de flores, tendo a seu
lado o boi que lavra a terra, o carneiro que se ceva e o mesmo leão que está aos
pés de Cibele. Em um quadro de Lebrun, a Terra é personificada por uma mulher
que faz jorrar o leite dos seus seios, enquanto se desembaraça do seu manto, e do
manto surge uma nuvem de pássaros que revoa nos ares.

19.6 - Telus

Telus, deusa da terra, muitas vezes tomada pela própria Terra, é chamada pelos
poetas a Mãe dos Deuses. Ela representa o solo fértil, e também o fundamento
sobre que repousam os elementos que se geram entre si. Diziam-na mulher do Sol
ou do Céu, porque tanto a um como ao outro deve a sua fertilidade. Era
representada como uma mulher corpulenta, com uma grande quantidade de
peitos. Freqüentemente se confundem Telus e Terra com Cibele. Antes de estar
Apolo de posse do oráculo de Delfos, era Telus que o possuía e que o divulgava;
mas em tudo estava em meias com Netuno. Depois, Telus cedeu os seus direitos a
Temis, e Temis a Apolo.

19.7 - Urano ou Coelo (Ouranos)

Urano ou Coelo, o Céu, era filho do Éter e do Dia. Segundo Hesíodo, era filho do
Éter e da Terra. De qualquer maneira, desposou Titéia, isto é, a Terra ou Vesta,
que, neste caso, é distinta de Vesta, deusa do fogo e da virgindade. Diz-se que
Urano teve quarenta e cinco filhos de várias mulheres, sendo que, destes, dezoito
eram de Titéia; os principais foram Titã, Saturno e Oceano, que se revoltaram
contra seu pai e o impossibilitaram de ter filhos. Cheio de mágoa e em
conseqüência da mutilação de que fora vítima, Urano morreu.
O que caracteriza as divindades das primeiras idades mitológicas, é um brutal
egoísmo junto a uma desapiedada crueldade. Urano tomara aversão a todos os
seus filhos: desde que nasciam, encerrava-os em um abismo e os não deixava ver
o dia. Foi isto que motivou a revolta. Saturno, sucessor de Urano, foi tão cruel
como o pai.

19.8 - Titéia
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Titéia, a antiga Vesta, mulher de Urano, foi a mãe dos Titãs, nome que significa
filhos de Titéia ou da Terra. Além de Titã propriamente dito, de Saturno e Oceano,
ela teve Hipérion, Japeto, Tia, Réia ou Cibele, Temis, Mnemosine, Febe, Tétis,
Brontes, Steropes, Argeu, Coto, Briareu, Giges. Com Tártaro teve o gigante Tifon,
que se destinguiu na guerra contra os Deuses.

19.9 - Saturno (Cronos)

Filho segundo de Urano e da antiga Vesta, ou do Céu e da Terra, Saturno, depois


de haver destronado o pai, obteve de seu irmão primogênito Titã, o favor de reinar
em seu lugar. Mas Titã impôs uma condição, - a de Saturno fazer morrer toda a
sua posterioridade masculina, a fim de que a sucessão ao trono fosse reservada
aos seus filhos. Saturno desposou Réia, de quem teve muitos filhos, que devorou
avidamente, conforme combinara com seu irmão. Além disso, sabendo que, um
dia, ele próprio seria derrubado do trono por um dos seus filhos, exigia que sua
esposa lhe entregasse os recém-nascidos. Entretanto Réia conseguiu salvar a
Júpiter, que quando grande, declarou guerra a seu pai, venceu-o, e depois de o
haver tratado como o fora Urano por seus filhos, pô-lo fora do céu. Assim a
dinastia de Saturno continuou em prejuízo da de Titã.
Saturno teve três filhos de Réia, que conseguiu salvá-los: Júpiter, Netuno e Plutão,
e uma filha, Juno, irmã gêmea e esposa de Júpiter. Alguns autores, ao número das
filhas de Saturno e Réia, acrescentam Vesta, deusa do fogo, e Ceres, deusa das
searas. De resto, Saturno teve, com muitas outras mulheres, um grande número
de filhos, como, por exemplo, o centauro Chiron, filho da ninfa Filira, etc.
Conta-se que Saturno, destronado por seu filho Júpiter, reduzido à condição de
simples mortal, foi refugiar-se na Itália, no Lácio, onde reuniu os homens ferozes,
esparsos nas montanhas, e lhes deu leis. O seu reinado foi a idade do ouro, sendo
os seus pacíficos súditos governados com doçura. Foi restabelecida a igualdade
das condições; nenhum homem servia a outro como criado; ninguém possuía coisa
alguma exclusivamente para si; tudo era bem comum, como se todo mundo
tivesse tido a mesma herança. Para lembrar esses tempos felizes, celebravam-se
em Roma as Saturnais. Essas festas, cuja instituição remontava no passado muito
além da fundação da cidade, consistiam sobretudo em representar a igualdade que
primitivamente reinava entre os homens. Começavam as Saturnais no dia 16 de
dezembro de cada ano; ao princípio só duravam um dia, mas ordenou o Imperador
Augusto que durariam três; Calígula aumentou-lhes vinte e quatro horas. Durante
estas festas se suspendia o poder dos senhores sobre os escravos, e estes tinham
inteiramente livres a palavra e as ações. Então, tudo era prazer, tudo era alegria;
nos tribunais e nas escolas havia férias; era proibido empreender uma guerra,
executar um criminoso ou exercer outra arte além da culinária; trocavam-se
presentes e davam-se suntuosos banquetes. De mais a mais todos os habitantes
da cidade paravam as suas tarefas; toda a população se dirigia ao monte Aventino,
para respirar o ar do campo. Os escravos podiam criticar os defeitos dos seus
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senhores, fazer-lhes partidas, e nesses dias eram os senhores que serviam os


escravos, à mesa.
Em grego, Saturno é designado pelo nome de Cronos, que quer dizer o Tempo. A
alegoria é transparente nesta fábula de Saturno; este deus que devora os filhos é,
diz Cícero, o Tempo, o Tempo que se não sacia dos anos e que consome todos
aqueles que passam. A fim de o conter, Júpiter o acorrentou, isto é, submeteu-o
ao curso dos astros que são como laços que o prendem.
Os cartagineses ofereciam a Saturno sacrifícios humanos; as vítimas eram crianças
recém-nascidas. Nesses sacrifícios, as flautas, os tímpanos, os tambores faziam um
ruído tão grande que se não ouviam os gritos da criança imolada.
Em Roma, o templo elevado a esse deus no pendor do Capitólio, foi o depósito do
tesouro público, em lembrança de que no tempo de Saturno, na idade do ouro,
não se cometiam furtos. A sua estátua estava amarrada com cadeias que só se
tiravam em dezembro, durante as Saturnais.
Saturno era geralmente representado como um velho curvado ao peso dos anos,
erguendo na mão uma foice para mostrar que preside ao tempo. Em muitos
monumentos apresentam-no com um véu, sem dúvida porque os tempos são
obscuros e cobertos de um segredo impenetrável.
Com um globo na cabeça é o planeta Saturno. Numa gravura, talvez etrusca, é
representado com asas e a foice pousada sobre um globo; é assim que
representamos sempre o Tempo.
O dia de Saturno é o sábado (Saturni dies), (em francês, samedi, em inglês,
saturday).

XX - Monstros Modernos

Há um grupo de seres imaginários sucessores das "cruéis Górgonas, Hidras e


Quimeras" das velhas superstições e que, como não têm relação direta com os
falsos deuses do paganismo, continuaram a existir na crença popular depois do
advento do cristianismo. Podem ser mencionados pelos escritores clássicos, mas
sua popularidade é maior nos tempos modernos. Procuramos basear nossas
descrições dos mesmos não tanto na poesia antiga como nos velhos livros de
história natural e nas narrativas de viajantes.

20.1 - A Fênix

Ovídio nos fala da seguinte maneira sobre a Fênix: "A maior parte dos seres nasce
de outros indivíduos, mas há uma certa espécie que se reproduz sozinha. Os
assírios chamam-na de fênix. Não vive de frutos ou de flores mas de incenso e
raízes odoríferas. Depois de ter vivido quinhentos anos, faz os ninhos nos ramos
de um carvalho ou no alto de uma palmeira. Nele ajunta cinamomo, nardo e mirra,
e com essas essências constrói uma pira sobre a qual se coloca, e morre, exalando
o último suspiro entre os aromas. Do corpo da ave surge uma jovem fênix,
destinada a viver tanto quanto a sua antecessora. Depois de crescer e adquirir
87

forças suficientes, ela tira da árvore o ninho (seu próprio berço e sepulcro de seu
pai) e leva-o para a cidade de Heliópolis, no Egito, depositando-o no templo do
"Sol".
Tal é a narrativa de um poeta. Vejamos a de um narrador filosófico. "No consulado
de Paulo Fábio (34 de nossa era), a milagrosa ave conhecida no mundo pelo nome
de fênix, que havia desaparecido há longo tempo, tornou a visitar o Egito"  diz
Tácito. "Era esperada em seu vôo por um grupo de diversas aves, todas atraídas
pela novidade e contemplando maravilhadas tão bela aparição". Depois de uma
descrição da ave, que não difere muito da antecedente, embora acrescente alguns
pormenores, Tácito continua: "O primeiro cuidado da jovem ave, logo que se
empluma e pode confiar em suas asas, é realizar os funerais do pai. Esse dever,
porém, não é executado precipitadamente. A ave ajunta uma certa quantidade de
mirra, e, para experimentar suas forças, faz freqüentes excursões, carregando-a
nas costas. Quando adquire confiança suficiente em seu próprio vigor, leva o corpo
do pai e voa com ele até o altar do Sol, onde o deixa, para ser consumido pelas
chamas odoríferas." Outros escritores acrescentam alguns pormenores. A mirra é
compacta, em forma de um ovo, dentro do qual é encerrada a fênix morta. Da
carne da morta nasce um verme, que quando cresce se transforma em ave.
Heródoto descreve a ave, embora observe: "Eu mesmo não a vi, exceto pintada.
Parte de, sua plumagem é de ouro e parte carmesim; quanto a seu formato e
tamanho são muito semelhantes aos de uma águia."
O primeiro escritor que duvidou da crença na existência da fênix foi Sir Thomas
Brownw, em seus "Erros Vulgares", publicado em... 1646. Suas dúvidas foram
repelidas, alguns anos depois, por Alexander Ross, que diz, em resposta à
alegação de que a fênix aparecia tão raramente: "Seu instinto lhe ensina a manter-
se afastada do tirano da criação, o homem, pois se fosse apanhada por ele, seria
sem dúvida devorada por algum ricaço glutão, até que não houvesse nenhuma
delas no mundo." No livro V do "Paraíso Perdido", Milton compara a uma fênix o
Anjo Rafael descendo à terra:
Assim, cortando o céu, voa ligeiro,
Entre mundos e mundos navegando,
Ora os ventos polares enfrentando,
Ora cortando, calmo, o róseo espaço,
Até que alcança as altaneiras águias,
Crêem ver neles as aves uma fênix
Que cortasse os espaços, solitária,
Em procura da Tebas egipciana,
Para os restos mortais no radioso
Templo do Sol guardar.

20.2 - O Basilisco

Esse animal era chamado o rei das serpentes, tendo na cabeça, para confirmar
essa realeza, uma crista em forma de coroa. Supunha-se que nascia do ovo de um
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galo, chocado por sapos ou serpentes. Havia várias espécies de basilisco. Uma
delas queimava todo aquele que dela se aproximava. Uma Segunda assemelhava-
se à cabeça da Medusa e sua vista causava tal horror que provocava a morte
imediata. No "Ricardo III" de Shakespeare, Lady Ana, em resposta ao galanteio de
Ricardo acerca de seus olhos, retruca: "Fossem eles os do basilisco, para te ferir
de morte!"
O basilisco era chamado rei das serpentes porque todas as outras cobras,
comportando-se como bons súditos e muito sensatamente não desejando serem
queimadas ou fulminadas, fugiam logo que ouviam à distância o silvo de seu rei,
ainda que estivessem se banqueteando com a mais deliciosa presa, deixando o
manjar para o monstruoso monarca.
O naturalista romano Plínio, assim descreve o basilisco: "Não arrasta o corpo,
como as outras serpentes, por meio de uma flexão múltipla, mas avança firme e
ereto. Mata os arbustos, não somente pelo contato, mas respirando sobre eles e
fende as rochas, tal é o poder maligno que nele existe." Acreditava-se que se o
basilisco fosse morto pela lança de um cavaleiro, o poder do seu veneno,
conduzido através da arma, matava não somente o cavaleiro, mas até o cavalo.
Luciano faz alusão a esse fato nos versos:
Ele matou o basilisco em vão,
Deixando-o inerte no arenoso chão.
Corre o veneno através da lança
E mata o mouro, quando a mão alcança.
Tal prodígio não podia deixar de penetrar nas lendas dos santos. Assim, conta-se
que um santo homem, indo a uma fonte no deserto e vendo, de repente, um
basilisco, levantou logo os olhos para o céu e, graças a um piedoso apelo à
Divindade, fez o monstro cair morto a seus pés.
Os poderes maravilhosos dos basiliscos são atestados por vários sábios, como
Galeno, Aviceno, Scaliger e outros. Por vezes, algum deles duvidava de uma parte
da lenda, mas admitia o resto. Jonston, um médico letrado, observa
sensatamente: "Seria difícil de acreditar que ele mata com o olhar, pois, assim
sendo, quem o teria visto e continuado vivo para contar o caso?" O digno sábio
não sabia que aqueles que iam caçar o basilisco dessa espécie levavam consigo
um espelho, que fazia refletir a horrível imagem sobre o original, fazendo o
basilisco matar-se com sua própria arma.
Mas quem seria capaz de atacar esse terrível monstro? Há um velho ditado
segundo o qual "tudo tem seu inimigo" e o basilisco intimidava-se diante da
doninha. Por mais amedrontador que fosse o aspecto da serpente, a doninha não
se preocupava e entrava na luta ousadamente. Quando mordida, retirava-se por
algum tempo para ingerir a arruda, que era a única planta que o basilisco não fazia
murchar, e voltava a atacar com redobrado vigor e coragem, não deixando o
inimigo enquanto não o estendia morto no chão. O monstro, como se consciente
da estranha maneira pela qual vinha ao mundo, votava, também extrema antipatia
ao galo e estava sujeito a exalar o último suspiro tão logo ouvisse o canto daquela
ave.
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O basilisco tinha alguma utilidade depois de morto. Sabemos, assim, que sua
carcaça era colocada no templo de Apolo, e em casas particulares, por ser um
remédio soberano contra aranhas, e que também era posta no templo de Diana,
motivo pelo qual nenhuma andorinha se atrevia a penetrar no recinto sagrado.

20.3 - O Unicórnio

Plínio, o naturalista romano, cuja descrição do unicórnio serve de base à maior


parte das descrições feitas pelos modernos, pinta-o como "um ferocíssimo animal,
semelhante no resto do corpo a um cavalo, com a cabeça de cervo, patas de
elefante, cauda de javali, voz retumbante e o único chifre preto, de dois côvados
de comprimento, (cerca de 1,20 m.) no meio da testa". Acrescenta que o unicórnio
"não pode ser apanhado vivo" e, de certo modo, tal desculpa devia ser
apresentada naqueles dias pelo fato do unicórnio não aparecer nas arenas dos
anfiteatros.
O unicórnio constituía um problema para os caçadores, que não sabiam como se
apoderar de tão valiosa presa. Alguns descreviam seu chifre como podendo mover-
se à vontade do animal, uma espécie de espada, em resumo, a qual nenhum
caçador que não fosse habilíssimo na esgrima teria possibilidade de enfrentar com
sucesso. Outros afirmavam que toda a força do animal estava no chifre e que,
quando perseguido de perto, ele se atirava do alto dos mais elevados rochedos,
com o chifre para a frente, de maneira a cair sobre ele, e, depois, tranqüilamente,
levantava-se, sem nada haver sofrido com a queda.
Finalmente, porém, acabou-se achando um meio de vencer o pobre unicórnio.
Descobriu-se que ele era grande admirador da pureza e da inocência e que cedia
terreno quando encontrava em seu caminho uma jovem virgem. Vendo-a, o
unicórnio se aproximava cheio de reverência, ajoelhava-se diante dela, e, pondo a
cabeça em seu regaço, adormecia. A traiçoeira virgem fazia, então, sinal aos
caçadores, que se aproximavam e capturavam o simplório animal. Os modernos
zoólogos, naturalmente descrentes de tais lendas, não levam a sério a existência
do unicórnio. Existem, contudo, animais que têm na cabeça uma protuberância
óssea mais ou menos semelhante a um chifre, que podem Ter dado origem à
lenda. O chifre do rinoceronte, como é chamado, é uma dessas protuberâncias,
embora de tamanho bem pequeno e não correspondendo de modo algum à
descrição do chifre do unicórnio. O que há de mais semelhante a um chifre no
meio da testa é a protuberância óssea que existe na cabeça da girafa, mas,
também esta é muito curta e rombuda, e não constitui o único chifre do animal, e
sim um terceiro chifre, em frente dos dois outros. Em resumo, embora possa ser
excessivo negar-se a existência de outro quadrúpede de um só chifre, além do
rinoceronte, pode-se afirmar com segurança que a existência de um chifre
comprido e resistente na testa de um animal semelhante ao cavalo e ao veado
constitui perfeita impossibilidade.

20.4 - A Salamandra
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Na "Vida de Bevenuto Cellini", artista italiano do século XVI, escrita por ele
mesmo, há o seguinte trecho: "Quando eu tinha cerca de cinco anos de idade,
meu pai, estando num pequeno quarto, onde estava fogo e madeira de carvalho,
olhou as chamas e viu um animalzinho semelhante a um lagarto, que podia viver
na parte mais quente do elemento. Percebendo imediatamente do que se tratava,
chamou-me e a minha irmã, e, depois de nos ter mostrado a criatura, deu-me um
tabefe no ouvido. Caí, chorando, enquanto ele, consolando-me com carícias, disse
estas palavras: "Meu querido filho, não te dei este tabefe por alguma coisa errada
que tiveste feito, mas para que te lembres que a criaturinha que viste no fogo é
uma salamandra, tal qual nenhuma outra foi vista por mim até hoje". Assim
dizendo, beijou-me e deu-me algum dinheiro."
Parece-nos desarrazoado duvidar de um caso que o Signor Cellini foi uma
testemunha tanto de vista como de ouvido. Ajunte-se a esta autoridade de
inúmeros e sábios filósofos, à frente dos quais estão Aristóteles e Plínio, afirmando
aquele poder de salamandra. De acordo com eles, a salamandra não somente
resistia ao fogo, mas o apagava e, quando via a chama, avançava contra ela,
como um inimigo que sabia vencer.
Não nos devemos maravilhar com o fato de que a pele de um animal possa resistir
à ação do fogo. Assim, chegamos à conclusão de que a pele da salamandra (pois
existe realmente tal animal, é uma espécie de lagarto) era incombustível e de
grande utilidade para servir de invólucro a artigos muito valiosos para serem
protegidos por material; comum. Foram realmente produzidos panos à prova de
fogo, que se diziam feitos da pele de salamandra, embora os conhecedores
verificassem que a substância de que eram feitos era o amianto, um mineral cujos
filamentos muito finos podem ser aproveitados para a fabricação de tecidos.
O fundamento das lendas acima relatadas parece provir do fato da salamandra
realmente secretar pelos poros do corpo um líquido leitoso, que, quando ela se
irrita, é produzido em grande quantidade e que pode, sem dúvida, durante alguns
momentos, protegê-la contra o fogo. Além disso, a salamandra é um animal
hibernante, que, durante o inverno, se refugia em algum tronco oco de árvore ou
em outra cavidade, e ali permanece em estado de torpor, até que a primavera o
desperte de novo. É possível, portanto, que seja levada ao fogo junto com a lenha
e só desperte a tempo de recorrer a suas faculdades defensivas. Seu suco viscoso
lhe seria, então, de todo valor e todos quantos a têm visto admitem que ela trata
de sair do fogo o mais depressa possível, com exceção de um caso, em que as
patas e outras partes do corpo do animal ficaram seriamente queimadas.

XXI - Minerva

21.1 - Nascimento de Minerva

Métis, a reflexão personificada, fora a primeira esposa de Júpiter. Foi ela que deu
ao velho Saturno uma beberagem para obrigá-lo a devolver os jovens deuses que
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ele havia engolido. Estando grávida, predisse a Júpiter que teria em primeiro lugar
uma filha e, em seguida, um filho que se tornaria senhor do céu. O rei dos deuses,
espantado com tal profecia, engoliu Métis. Algum tempo depois, foi acometido de
violentíssima dor de cabeça e rogou a Vulcano que lhe fendesse a cabeça com o
machado.
Mal recebeu o golpe de machado de Vulcano, saiu-lhe do cérebro, armada de
todas as suas peças, a filha Minerva, nova encarnação da sabedoria divina. Essa
lenda, de caráter assaz bárbaro e, por conseguinte, velhíssima, está representada
de maneira ingênua num baixo-relevo onde, extraordinariamente, Vulcano é um
rapaz imberbe.
Num espelho etrusco vemos Ilitia, a deusa dos partos assistindo ao rei dos deuses
e tirando-lhe da cabeça Minerva, que sai armada do capacete e da lança. No outro
lado está Vênus que também parece acorrer em auxílio a Júpiter e atrás da qual
vemos, empoleirada numa árvore, a pomba que lhe é consagrada. Tais divindades
trazem os seus nomes no espelho em língua etrusca.
O mesmo tema decorava um dos frontões do Partenão, mas é provável que o
nascimento estivesse ali concebido de maneira inteiramente diversa. Infelizmente,
nada resta da parte central do frontão em que tal cena estava representada.
Júpiter é a abóbada do céu donde jorra o raio luminoso e súbito; como é também
o senhor dos deuses, a sua sabedoria não vacila absolutamente em lhe brotar do
cérebro divino. Minerva devia, pois, nascer inteiramente armada e provida de
todos os seus atributos. É assim que no-la apresentam as estátuas, muitas vezes
com a lança e o escudo, mas sempre com o capacete e a égide.
Luciano narrou o nascimento de Minerva sob forma de diálogo:
"Vulcano. - Que devo fazer, Júpiter? Venho, por ordem tua, armado de um
machado afiadíssimo e que, se houvesse necessidade, seria capaz de partir, de um
só golpe, a mais dura das pedras.
Júpiter. - Ótimo, Vulcano! Parte-me, pois, a cabeça.
Vulcano. - Queres submeter-me a uma prova, ou estás louco? Dá-me uma ordem
séria, dize o que queres que eu faça!
Júpiter. - Já te disse, parte-me a cabeça; bate com toda a força e sem demora;
não posso viver com as dores que me dilaceram o cérebro.
Vulcano. - Acautela-te, Júpiter. Quem sabe se não vamos cometer uma asneira? O
meu machado é afiadíssimo, fará com que te corra o sangue e não te libertará à
guisa de Lucina.
Júpiter. - Bate, vamos, Vulcano! Nada temas. Sei o que quero.
Vulcano. - Bato, mas contra a vontade. Que me resta, se assim me ordenas?...
Que estou vendo? Uma jovem armada da cabeça aos pés! Safa, que dor de cabeça
não devia ser a tua, Júpiter! Não é de assombrar que te hajas mostrado irascível,
se trazias viva, sob a membrana do teu cérebro, uma jovem desta estatura, e,
ainda por cima, armada. Não sabíamos que tinhas na cabeça um verdadeiro
campo. Olha, ela salta! Ei-la que dança a pírrica, agita o escudo, brande a lança, e
está dominada pelo entusiasmo. O que é mais estranho é que, de súbito, se
tornou belíssima e pronta para casar. É verdade que tem olhos cinzentos, mas o
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capacete compensa esse defeito. Júpiter, como pagamento pelo serviço que te
prestei, cede-ma por esposa.
Júpiter. - Tu me pedes o impossível, Vulcano; ela quer permanecer virgem para
sempre. Quanto a mim, não me oponho ao que desejas.
Vulcano. - É o que quero. O resto fica por minha conta. Vou levá-la." (Luciano).

21.2 - Nascimento de Erecteu

Vulcano pôs-se imediatamente a procurar Minerva, e, certo de que ela estivesse na


Acrópole, rumou para Atenas. Mal a percebeu, colocou-se-lhe na frente e quis dar
os passos necessários. Mas a deusa o recebeu de maneira tal que lhe tirou
qualquer desejo de recomeçar. O pobre ferreiro ficou despeitadíssimo; para
mostrar que saberia dispensá-la, resolveu contrair núpcias no mesmo instante, e
dirigiu-se à Terra, boníssima criatura, que o aceitou apesar das mãos negras.
Dessa união nasceu Erecteu, que mais tarde se tornou rei de Atenas. O que deu
origem a tão singular lenda foi a fato de os atenienses, já colocados sob a
proteção de Minerva, quererem, por um laço qualquer, prender-se ao deus do
fogo, que preside à indústrias dos metais.
A Terra, mal gerou Erecteu, deixou o recém-nascido no chão, sem mais com ele
preocupar-se, como se fosse uma simples cobra ou um verme. Minerva,
percebendo-o, compadeceu-se e, pegando-o, pô-lo num cesto e levou-o para o
seu santuário. Mas, apesar de todo o seu bom coração, não conseguia livrar-se das
preocupações guerreiras, e, estando a galgar a Acrópole levando o cesto, notou
que a sua cidade não estava bastante fortificada do lado do Ocidente. Entrou na
casa de Cécrops, que tinha três filhas, Pandrosa, Aglaura e Herse, e, confiando-
lhes o cesto, muito bem fechado, proibiu-lhes que o abrissem para verificar o
conteúdo, e imediatamente partiu em busca de uma montanha que julgava
necessária para a fortificação da cidade. Quando partiu, Aglaura e Herse, impelidas
pela curiosidade, pretenderam abrir o cesto, não obstante as censuras de
Pandrosa. Mas uma gralha, que tudo vira, foi contar o fato a Minerva, que já
segurava a montanha entre os braços e que fortemente surpresa, a deixou cair.
Eis aí a origem do monte Licabeto.

21.3 - Pandrosa

A deusa concebeu tal afeto por Pandrosa, que não somente lhe confiou a
educação do pequenino protegido, como também exigiu que Pandrosa, após a
morte, recebesse as honras divinas. Quando Erecteu se tornou rei de Atenas,
apressou-se em satisfazer tal desejo, mas, associando no seu reconhecimento a
filha de Cécrops e a deusa que o recolhera, elevou um templo em duas partes,
uma das quais foi dedicada a Minerva e outra a Pandrosa. A construção foi
queimada pelos persas, como todos os monumentos de Atenas, e o que hoje
existe foi erguido após as guerras médicas.
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21.4 - Disputa de Minerva e Netuno

Atenas tira o seu nome de Atena (nome grego de Minerva) mas a honra de dar o
nome à cidade que Cécrops acabava de fundar deu origem a uma famosa disputa
entre Netuno e a deusa. Constituía ela o tema de um dos dois frontões do
Partenão, esculpidos por Fídias e cujos fragmentos mutilados fazem hoje parte do
Britsh Museum em Londres.
Era preciso pôr a nova cidade sob a proteção de uma divindade. Decidiu-se que se
tomaria por protetor da cidade o deus que produzisse a coisa mais útil. Netuno,
batendo a terra com o tridente, criou o cavalo e fez jorrar uma fonte de água do
mar, querendo com isso dizer que o seu povo seria navegador e guerreiro. Mas
Minerva domou o cavalo para o transformar em animal doméstico, e, batendo a
terra com a ponta da lança, fez surgir uma oliveira carregada de frutos,
pretendendo com aquilo mostrar que o seu povo seria grande pela agricultura e
pela indústria.
Cécrops, embaraçado, consultou o povo, para saber a que deus preferia entregar-
se. Contudo, não se tendo naqueles tempos tão remotos imaginado que as
mulheres não pudessem tão bem quanto os homens exercer direitos políticos,
todos votaram. Ora, sucedeu votarem todos os homens por Netuno e todas as
mulheres por Minerva; mas como entre os colonos que acompanhavam Cécrops,
houvesse uma mulher mais, Minerva raptou-a. Netuno protestou contra essa
maneira de julgar a divergência, e apelou para o tribunal dos doze grande deuses.
Estes chamaram Cécrops como testemunha, e tendo sido a votação considerada
regular, passou a cidade a ser consagrada a Minerva. Os atenienses, no entanto,
temendo a cólera de Netuno que já ameaçara engoli-los, ergueram na Acrópole
um altar ao Olvido, monumento de reconciliação de Netuno e Minerva; em
seguida, Netuno participou das honras da deusa. Eis como os atenienses se
tornaram um povo navegador e ao mesmo tempo agrícola e manufatureiro.
Minerva era para os atenienses a deusa por excelência e a Acrópole a montanha
santa. A Acrópole figura numa moeda de Atenas, assaz grosseira, aliás. Não se
vêem nela representações de edifícios, mas somente dominar a grande Minerva de
bronze, que os navegantes saudavam de longe, como protetora da cidade. A
confiança inspirada por Minerva só desapareceu com a influência cristã, e um dos
derradeiros historiadores pagãos, Zózimo, narra de que maneira se apresentou a
deusa pela última vez. "Alarico, diz ele, impaciente por se apoderar de Atenas, não
quis entreter-se com outro assédio. Apressou-se, pois, em ir a Atenas na
esperança de tomá-la, quer por ser dificílimo defender a grande extensão das suas
muralhas, quer por estar ele já de posse do Pireu e por haver pouquíssimas
provisões na cidade. Eis a esperança nutrida por Alarico. Mas a cidade tão antiga
seria conservada pela providência dos deuses no meio de tão terrível perigo. A
maneira pela qual ela foi protegida é demasiadamente milagrosa e
demasiadamente capaz de inspirar sentimentos de piedade, para que a
silenciemos. Quando Alarico se aproximou das muralhas à testa do seu exército,
viu Minerva, tal qual surge nas imagens, dar a volta à cidade, e Aquiles tal qual o
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descreve Homero apareceu no alto das muralhas. Alarico, estarrecido com o


espetáculo, tratou de fazer a paz e abandonou a luta." (Zózimo).

21.5 - Tipo e Atributos de Minerva

"A partir do dia, diz Ottfried Muller, em que Fídias terminou de desenhar o caráter
ideal de Minerva-atena, uma fisionomia cheia de calma, uma força que tem
consciência de si própria, um espírito claro e lúcido, passaram a ser para sempre
os principais traços do caráter de Palas A sua virgindade a coloca acima de todas
as fraquezas humanas; ela é demasiadamente viril para se entregar a um homem.
A testa muito pura, o nariz longo e fino, a linha um pouco dura da boca e das
faces, o queixo largo e quase quadrado, os olhos pouco abertos e quase
constantemente voltados para a terra, a cabeleira atirada, sem arte, para cada
lado da testa e ondulada sobre a nuca, traços nos quais transparece a rudeza
primitiva, correspondem perfeitamente a tão maravilhosa criação ideal."
Minerva se identifica completamente com a cidade que ela protege, e se por duas
vezes usa cavalos no capacete é para mostrar a sua reconciliação com Netuno a
quem era consagrado o cavalo, e que, como deus dos mares, não podia deixar de
ter grande importância em Atenas. É o que vemos num medalhão antigo no qual a
cidade de Roma personificada se liga à de Atenas (Palas-atena). As duas ilustres
cidades se caracterizam pelos seus atributos: a loba com os dois filhos é o atributo
comum de Roma, como a coruja é o habitual atributo de Atenas. A deusa
ateniense traz a égide com a cabeça de Górgona, e quatro cavalos lhe ornam o
capacete.
Os cavalos aparecem igualmente num soberbo entalhe antigo. A pena do capacete
é suportada por uma esfinge e dois corcéis alados ou pégasos: a parte da frente
está ornada de quatro cavalos e o cobre-orelha de um grifo. Os enfeites da deusa
são luxuosos; além da égide de escamas bordadas de serpentes, traz ela um colar
de bolotas, e brincos em forma de cachos de uvas.
Às vezes, como na medalha de Thurium, não é nem o cavalo, nem o grito que
ornam o capacete de Minerva, mas uma Cila ou um monstro fantástico com cauda
de serpente.
A deusa usa sempre um capacete, até quando desempenha um papel pacífico. O
capacete tem, às vezes, asas para indicar o caráter aéreo de Palas. Vemo-lo,
quanto ao resto, sob formas extremamente variadas, em moedas gregas ou
romanas.
A coruja, a ave que vê bem durante a noite, é naturalmente consagrada a
Minerva, deusa que personifica simultaneamente o raio e a inteligência. Nas mais
antigas moedas de Atenas se nos depara a coruja, símbolo de uma vigilância
constantemente alerta.
Como deusa guerreira, Minerva combate com a lança. No entanto, uma medalha
da Macedônia, imitação de antiga figura arcaica, no-la apresenta com o raio de
Júpiter. A vitória está freqüentemente na mão da deusa. É assim que ela aparece
numa bela moeda do Lisímaco.
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A arte dos tempos primitivos preferia a imagem de Palas às das outras divindades;
os antigos paládios representavam ordinariamente a deusa com o escudo erguido,
e brandindo a lança. Entretanto, essa forma varia muito, até nos próprios tempos
primitivos, e Minerva se reveste de diferentes aspectos, segundo as localidades.
Uma medalha da Nova Ílion representa uma Palas troiana cujo tipo, imitação de
antiga figura arcaica, deve remontar a remota antigüidade. Está de pé e traz na
mão direita a lança apoiada ao ombro, enquanto a esquerda empunha um facho. A
ave sagrada está de pé diante da deusa, cujo costume, e particularmente o
capacete, se afastam completamente do tipo habitual de Minerva.
A égide é uma pele de cabra de que nos servimos como escudo, mas significa
igualmente a tempestade, e é em tal sentido que Homero a entende, quando fala
do fogo e da luz que partem do escudo divino. Minerva, sendo na ordem física o
raio personificado, devia ter por atributo a égide, e nos monumentos arcaicos
podemos ver de que maneira era empregada primitivamente. Na grande época da
arte, Minerva trá-la sobre o peito; a Górgona figura sempre na égide.
A cabeça da Górgona é um dos atributos essenciais da deusa a aparece quer sobre
a égide, quer sobre o seu escudo. Exprime o terror com o qual Palas fere os
inimigos.
A Minerva arcaica de Herculanum está numa atitude hierática: vestida do peplo de
dobras tesas e engomadas, que recobre a concha, marcha resolutamente para o
combate. A maneira pela qual a deusa traz aqui a égide é característica: segura-a
sobre o ombro para ter o braço esquerdo inteiramente coberto. A égide é
grandíssima, ao passo que nos monumentos menos antigos, perde algo da sua
importância.
A égide usada por Júpiter passava por ser a pele da cabra Amaltéia, que lhe foi
nutriz. Mas há tradições diferentes em torno da égide de Minerva. A deusa matara
o monstro Ágis, filho da Terra, que vomitava chamas com uma fumaça negra e
espessa. O monstro desolou, a princípio, a Frígia, em seguida o monte Cáucaso,
cujas florestas queimou até a Índia. Depois foi incendiar o monte Líbano e
devastou sucessivamente o Egito e a Líbia. Minerva, após o derrubar, o traspassou
com a lança e da sua pele fez uma couraça, sobre a qual colocou posteriormente a
cabeça de Górgona, e que usava como troféu. Quando a égide está colocada em
volta do braço, como no-la apresenta a Minerva de Herculanum, é sempre um sinal
de combate.
A Minerva de Egina segura a lança e o escudo no alto, mas a égide, em vez de ser
usada sobre o braço, serve de couraça para garantir o peito e até as costas, sobre
as quais recai. Essa estátua, que hoje se encontra na Gliptoteca de Munique,
ocupava o centro do frontão ocidental do templo de Egina.
A famosa Minerva de Fídias, no Partenão, era de marfim e ouro. A deusa estava de
pé, coberta da égide, e a sua túnica descia até os calcanhares. Empunhava uma
lança com uma das mãos e com a outra uma vitória. O capacete estava encimado
por uma esfinge, emblema da inteligência celeste; nas partes laterais havia dois
grifos, cuja significação era a mesma que a da esfinge, e, acima da viseira, oito
cavalos a galope, imagem da rapidez com a qual age o pensamento divino. A
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cabeça de Medusa figurava-lhe no peito. Os braços e a cabeça da deusa eram de


marfim, com exceção dos olhos formados por duas pedras preciosas; as vestes
eram de ouro e podiam ser retiradas com facilidade, pois era mister, quando a
república se via em apertos, poder recorrer ao tesouro público, do qual a deusa
era depositária. Na face exterior do escudo, posto aos pés da deusa, estava
representado o combate dos atenienses contra as amazonas, na face inferior o dos
gigantes contra os deuses: o nascimento de Pandora estava esculpido no pedestal.
Um trecho da Antologia grega compara a Minerva de Fídias, em Atenas, à Vênus
feita por Praxíteles em Cnido: "Vendo a divina imagem de Vênus, filha dos mares,
tu dirás: subscrevo o juízo do frígio Páris. Se vires em seguida a Minerva de
Atenas, exclamarás: quem não lhe adjudicou o primeiro era um boieiro!"

21.6 - Minerva e Encélades

Minerva participou da guerra dos deuses contra os gigantes e contribuiu


poderosamente para a vitória de Júpiter. Entre os inimigos por ela vencidos, o
mais importante é Encélades. A força desse gigante era tal que, sozinho, poderia
ter lutado contra todos os deuses juntos. Num momento em que Minerva se
achava distante dos companheiros de armas, Encélades, percebendo que ela
estava sozinha, dá um salto e posta-se-lhe na frente. A deusa o vê sem
empalidecer, reúne todas as forças e pegando com ambas as mãos a Sicília, atira-a
sobre o gigante que fica esmagado sob a enorme massa. A queda de Encélades
termina a guerra dos gigantes: às vezes tenta ele remexer-se, e é o que produz os
tremores de terra da região. A sua cabeça está situada sob o monte Etna, por
onde vomita chamas, o que leva um poeta francês a dizer:
"Encelade, malgré son air rébarbatif, dessous le mont Etna fut enterré tout vif; là
chaque fois qu'il éternue, un volcan embrase les airs, et quand par hasard il
remue, il met la Sicile à l'envers."
O tanque de Encéfales em Versalhes mostra o gigante do qual somente vemos a
cabeça e os gigantescos braços no meio dos fragmentos de rochedos. Mas a luta
de Minerva contra esse gigante, tal qual a descreveu a mitologia, tem sido
raramente representada, por não ser do domínio da plástica.

21.7 - Minerva e Tirésias

Virgem essencialmente casta, Minerva sempre vestida, e se os artistas dos últimos


séculos a representam por vezes despida, notadamente no julgamento de Páris, é
pela ignorância em que se encontram quase sempre dos caracteres distintivos da
deusa. Um único homem, o tebano Terésias, observou um dia Minerva no banho, e
foi imediatamente ferido de cegueira, ou, segundo outros, metamorfoseado em
mulher.
Pradier fizera um grupo de Minerva repelindo as setas de Cupido: a idéia era justa
mitologicamente. Vênus ofendeu-se um dia pelo fato de seu filho nada poder
contra a deusa ateniense:
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"Vênus. - Por que, pois, Amor, tu que venceste os demais deuses, Júpiter, Netuno,
Apolo, Réa, e eu própria, tua mãe, po que poupas apenas Minerva? Contra ela o
teu archote não tem fogo, a tua aljava não tem setas, tu não tens arco... Não
sabes mais disparar uma seta?
Amor. - Tenho medo dela, minha mãe. Ela é terrível, os seus olhos são terríveis, o
seu aspecto imponente e viril. Todas as vezes em que avanço contra ela para
lançar-lhe uma seta, ela me espanta agitando a sua pena; tremo e as setas me
fogem das mãos.
Vênus. - Marte, por acaso, não é mais terrível? E, no entanto, tu o desarmaste e
venceste.
Amor. - Sim, mas ele próprio é que se oferece aos meus golpes; chama-os.
Minerva, pelo contrário, sempre me fita com desconfiança; um dia quando por
acaso voava para ela, segurando o archote: "Se te aproximares de mim, disse-me,
juro por meu pai que te varo com esta lança, pego-te pelo pé e atiro-te ao Tártaro,
onde te dilacerarei com as minhas próprias mãos para matar-te." São essas as
suas ameaças sem fim, e ao mesmo tempo lança sobre mim olhares furiosos; traz,
ademais, sobre o peito uma cabeça horrorosa, cuja cabeleira é feita de víboras e
que sempre me causa o maior terror. Creio estar vendo um fantasma e fujo mal a
percebo." (Luciano).

21.8 - Minerva e Mársias

Segundo uma velhíssima lenda, Minerva, tendo encontrado um osso de cervo, dele
se serviu para inventar a flauta. Mas notando que tal instrumento a obrigava a
umas caretas que a afeavam, e que, quando pretendia tocar, as demais deusas se
riam, atirou para longe a desastrada flauta, e proferiu a maldição mais terrível
contra o que a recolhesse. O frígio Mársias, que muito provavelmente pouco se
importava com a divindade de Atena, não atribuiu a menor importância a tais
imprecações, recolheu o instrumento e conseguiu tecá-lo com grande perfeição.
Havia na Acrópole de Atenas um grupo representando Minerva a golpear Mársias,
por ter ousado recolher a flauta por ela atirada para longe e que ela desejava
fosse esquecida para todo o sempre. Num baixo-relevo, que está em Roma, vemos
Minerva tocando a flauta dupla, e Mársias, sob a forma de um sátiro, a espreita
para se apoderar do instrumento, no momento oportuno. Mais habitualmente, a
deusa observa com atenção o que acaba de inventar. A mesma razão que a
obrigou a renunciar ao uso de tal instrumento, impedia que os escultores a
representassem com uma figura deformada e careteira.

21.9 - Minerva Higéia

Vimos a serpente aparecer entre os atributos de Minerva. Essa serpente é


habitualmente o emblema de Erecteu, que foi criado pela deusa. Mas Minerva era,
por vezes, invocada como protetora da saúde. Tinha então o nome de Minerva
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higéia, e a serpente que ao seu lado surge com uma taça que a deusa segura com
a mão, como se a serpente estivesse perto da companheira de Esculápio.

21.10 - Minerva Obreira ou Ergane

Minerva não é apenas guerreira. Dela é que nos vem a indústria, é por isso tem
sido denominada Minerva obreira. Laboriosa tanto quanto guerreira, enriquece as
cidades que a honram ao mesmo tempo em que as protege. Ama a agricultura, e
ensinou aos homens o uso da oliveira: é por tal motivo que essa árvore lhe é
consagrada e que vemos figurar uma lâmpada entre os seus atributos. A
arquitetura, a escultura, a mecânica cabem o domínio da deusa, que preside em
geral a todos os trabalhos do espírito e da imaginação. Está representada, com tal
aspecto, mas conservando o seu costume de guerra, num interessante baixo-
relevo, onde a vemos dirigir, com os seus conselhos, um jovem escultor que
cinzela um capitel, e outros obreiros que lidam com uma máquina; Júpiter e Diana
estão atrás dela e seguidos de uma sacerdotisa fazendo uma libação, e de uma
grande serpente de cabeça de bode que representa o gênio do teatro, como indica
a inscrição mutilada que se lê acima. A de baixo diz: "Lucéio Pecularis, empreiteiro
do proscênio, mandou colocar este baixo-relevo votivo segundo um sonho tido."
As principais atribuições de Minerva ergane estão resumidas num passo de
Artemidoro: "Minerva é favorável aos artesãos, em virtude do seu apelido de
obreira; aos que desejam contrair núpcias, pois pressagia que a esposa será casta
e apegada ao lar; aos filósofos, pois é a sabedoria nata do cérebro de Júpiter. É
ainda favorável aos lavradores, porque tem uma idéia comum com a terra; e aos
que vão à guerra, porque tem uma idéia comum com Marte."
Foi Minerva obreira que inventou as velas dos barcos e a ela se deve a construção
do famoso navio Argos. Mas é sobretudo pelos tecidos e trabalhos das mulheres
que Minerva assume importância toda especial, e tem por atributo a roca. É
também especialmente invocada pelas obreiras que preparam os tecidos, como se
pode ver neste trecho da Antologia:
"Ó Minerva, as filhas de Xuto e de Melita, Sátira, Heracléia, Eufro, todas
três de Samos, te consagram uma a sua longa roca, com o fuso que
obedecia aos seus dedos para se incumbir dos fios mais soltos; outra a
sua lançadeira harmoniosa que fabrica as telas de tecido cerrado; a
terceira o seu cesto com os lindos novelos de lã, instrumentos de
trabalho que, até a velhice, lhes sustentaram a laboriosa vida. Eis,
augusta deusa,, as ofertas das tuas piedosas obreiras."

21.11 - Minerva e Aracne

Os tecidos constituíam um dos ramos mais importantes da indústria dos


atenienses; mas as fábricas da Ásia, célebres em todas as épocas, sobrepujavam
em delicadeza as cidades gregas, cujos tecidos menos delicados eram
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provavelmente mais sólidos. Foi o que deu origem à lenda que nos pinta a
rivalidade entre Minerva e Aracne.
Aracne não era ilustre pelo nascimento, mas o seu talento e a sua industriosidade
a haviam tornado famosa. Seu pai era tintureiro de lã na cidade de Colonon, e ela
adquirira tal reputação em todas as cidades da Lídia pela beleza dos seus
trabalhos, que as ninfas do Tmolo e do Pactolo abandonavam as águas límpidas e
os deliciosos bosquetes para lhe admirar os trabalhos da agulha. Sabia fiar e fazer
a lã, e embelezava os seus tecidos com desenhos encantadores realçados por
todas as cores do arco-íris. Envaidecia-se, porém, de tal modo com o seu talento,
que por toda parte apregoava não ter receio de desafiar a própria Minerva.
A deusa, ferida por tal intento, assumiu o aspecto de uma anciã, cobriu de cabelos
brancos a cabeça, e, indo procurar Aracne, censurou-a em termos amigáveis pela
inconveniência da pretensão de uma simples mortal de se comparar a uma deusa,
e sobretudo à deusa da qual procede toda a indústria humana. Aracne ofendeu-se,
acolheu muito mal a anciã, que assim lhe falava, e, fitando-a de sobrolho
carregado, avançou para ela disposta a golpeá-la, dizendo que, se Minerva se
apresentasse, saberia muito bem confundi-la, mas que a deusa não ousaria,
certamente, empreender uma luta que lhe seria desvantajosa.
Minerva, diante daquelas palavras, reassume o seu verdadeiro aspecto e declara
que aceita o desafio. Ei-las a prepararem os trabalhos, a disporem os tecidos e a
iniciarem o mister. Já corre a lançadeira com incrível rapidez, e o desejo que
ambas experimentam de vencer redobra a atividade. Para tornarem o trabalho
mais perfeito, cada uma delas desenha velhas histórias. Minerva representou no
seu a disputa mantida com Netuno em torno do nome que deveria ser usado pela
cidade de Atenas. Aracne houve por bem fixar histórias que não podiam deixar de
ser desagradáveis às divindades do Olimpo grego. Viam-se as metamorfoses dos
deuses, e as suas intrigas amorosas figuradas de tal modo que nenhum prestígio
lhe advinha. Mas o trabalho de Aracne foi executado com tal delicadeza e tão
incrível perfeição que Minerva não logrou descobrir sequer o menor defeito.
Esquecida, então, de que era deusa, para só se lembrar do despeito provado por
ser igualada em finura por uma simples mortal, Minerva rasgou o tecido da rival,
que imediatamente se enforcou de desespero. Minerva, tomada de piedade,
sustentou-a no ar, para impedir que se estrangulasse, e disse-lhe: "Viverás,
Aracne, mas ficarás para sempre pendurada desta maneira; será o castigo teu e de
toda a tua posteridade." Ao mesmo tempo, Aracne sentiu que a cabeça e que o
corpo lhe diminuíam de volume; mingudas patas lhe substituíram os braços e as
pernas, e o resto do corpo se transformou num enorme ventre. A partir de então,
as aranhas sempre continuaram a fiar, e a indústria humana até hoje não
conseguiu igualar a finura dos seus tecidos. (Ovídio).
É fácil notar que esta lenda, na qual Minerva não revela absolutamente um bom
caráter, tem a sua origem nas cidades gregas da Ásia. Aracne, que é lídia, mostra,
aos olhos dos gregos, uma singular audácia ao se comparar com a ateniense
Minerva, mas os tecidos do Oriente eram inimitáveis, e procurados anciosamente
em todos os mercados da Grécia; não é no terreno do trabalho que Aracne é
100

vencida, é apenas mediante um resultado do poder divino, de que se acha dotada


a adversária, igual, senão superior a ela em talento.

21.12 - A Festa das Panatenéias

A grande festa das Panatenéias celebrava-se em Atenas, em honra de Minerva


(Atena), deusa tutelar da cidade, a quem ela devera o nome. A festa compreendia
diferentes exercícios, entre outros corridas a pé e a cavalo, combates gímnicos, e
concursos de música e poesia. As lutas gímnicas se desenrolavam nas margens do
Ilisso. A festa terminava por uma grande procissão figurada no friso da cela do
Partenão.
O objetivo religioso da festa era cobrir a deusa de um véu novo em substituição ao
que fora gasto pelo tempo. Mas o objetivo político era muito outro; tratava-se de
mostrar que Minerva era ateniense pelo coração, e que ninguém podia invocar-lhe
a proteção, se não fosse amigo de Atenas.
No monumento, vemos a sacerdotisa recebendo duas jovens virgens que lhe
entregam objetos misteriosos. As jovens são crianças, pois segundo os ritos não
podiam ter menos de sete anos nem mais de onze. "Durante a noite que precede a
festa, diz Pausânias, põem elas sobre a cabeça o que a sacerdotisa lhes ordena
que carreguem. Ignoram o que se lhes dá; aquela que lhes dá os objetos
misteriosos também nada sabe. Há na cidade, perto da Vênus dos jardins, um
recanto em que se acha um caminho subterrâneo cavado pela própria natureza. As
jovens descem por aí, depõem o fardo, e em troca recebem outro,
cuidadosamente coberto. O precioso fardo contém a velha vestimenta, e o que
elas trazem de volta encerra a nova. Como a cena se desenrola de noite, uma
delas empunha um archote."
Enquanto a sacerdotiza recebe a nova vestimenta da deusa, o grão-sacerdote,
assistido por um jovem rapaz, se ocupa em dobrar o antigo peplo. O público não
assiste à misteriosa cena do santuário, mas os deuses, espectadores invisíveis,
estão sentados e dispostos em grupos simétricos. Entre eles, depara-se-nos
Pandrosa, recoberta do véu simbólico que caracteriza o sacerdócio; mostra ela ao
jovem Erecteu, ajoelhado, a cabeça da procissão que avança em direção ao
santuário.
Vem antes um grupo de anciãos de andar grave, todos envoltos nos seus mantos e
quase todos a se apoiarem nos seus bordões. São os guardas das leis e dos ritos
sagrados, pois alguns parecem dar instruções às jovens virgens atenienses que os
seguem. Trazem estas com gravidade o candelabro, o cesto, os vasos, as páteras
e os demais objetos destinados ao culto. Depois das atenienses, surgem as filhas
dos forasteiros fixados em Atenas. Não têm o direito de carregar objetos tão
santos, mas seguram nas mãos os assentos dobradiços que servirão os canéforos.
Vêm, depois, os arautos e os ordenadores da festa, que precedem os bois
destinados ao sacrifício, seguidos dos meninos que conduzem um carneiro.
Desfilam alguns homens que seguram bacias e odres cheios de azeite. Finalmente
101

os músicos que tocam flauta ou lira, e um grupo de anciãos, todos empunhando


um ramo de oliveira.
Começa, então, o desfile dos carros puxados por quatro cavalos e o longo cortejo
dos cavaleiros. Sabia-se que Minerva ensinara aos homens a arte de domar os
cavalos e de os atrelar ao carro, e a festa era sempre acompanhada de jogos
eqüestres. Todos conheciam, pelos moldes, a famosa cavalgata do Partenão. Um
cortejo de jovens, cuja clâmide flutua ao vento, doma os cavalos tessalienses que
se empinam e lhes resistem.
Os prêmios concedidos aos vencedores nos jogos realizados em honra de Minerva
consistiam ordinariamente em ânforas cheias de azeite. Era um modo de lembrar
que a deusa plantara a oliveira que constituía a grande riqueza da Ática. O museu
do Louvre possui vários desses vasos, chamados panatenaicos. Têm eles
interessantes decorações, nas quais vemos Minerva de pé, brandindo a lança e
segurando o escudo. A figura está concebida no estilo tradicional das antigas
figuras de estilo arcaico. Está situada entre duas colunas que suportam, cada uma,
um galo.
O galo era, com efeito, consagrado a Minerva obreira; Creuzer nos explica a razão:
"O nome de ergane, diz ele, exprimiu a princípio o próprio trabalho, a tarefa diária,
e parece ter-se aplicado primitivamente, com epíteto de Minerva, à proteção
especial que a deusa dispensava às ocupações das mulheres. Sob tal ponto de
vista, era-lhe consagrado o galo; quando o canto dessa ave anuncia o retorno da
Aurora, relembra-nos ao mesmo tempo o culto de Minerva ergane e de Mercúrio
agoreu, ou seja, os trabalhos da indústria e do comércio."

XXII - Cupido

22.1 - Nascimento de Cupido

Cupido nos tempos primitivos é considerado um dos grandes princípios do universo


e até o mais antigo dos deuses. Representa a força poderosa que faz com que
todos os seres sejam atraídos uns pelos outros, e pela qual nascem e se
perpetuam todas as raças. Mitologicamente, não sabemos quem é seu pai, mas os
poetas e escultores concordam em lhe dar Vênus por mãe, e é realmente
naturalíssimo que Cupido seja filho da beleza.
O nascimento de Cupido proporcionou a Lesueur o tens de uma encantadora
composição. Vênus sentada nas nuvens está rodeada das três Graças, uma das
quais apresenta o gracioso menino. Uma das Horas, que paira no céu, esparze
flores sobre o grupo.

22.2 - Educação de Cupido

Notando Vênus que Eros (Cupido) não crescia e permanecia sempre menino,
perguntou o motivo a Têmis. A resposta foi que o menino cresceria quando tivesse
um companheiro que o amasse. Vênus deu-lhe, então, por amigo Anteros (o amor
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partilhado). Quando estão juntos, Cupido cresce, mas volta a ser menino quando
Anteros o deixa. É uma alegoria cujo sentido é que o afeto necessita de ser
correspondido para desenvolver-se.
A educação de Cupido por Vênus proporcionou assunto para uma multidão de
maravilhosas composições em pedras gravadas. Vênus brinca com ele de mil
modos diversos, pegando-lhe o arco ou as setas e seguindo-lhe com o olhar os
graciosos movimentos. Mas o malicioso menino vinga-se, e várias vezes a mãe
experimenta o efeito das suas flechadas.
Cupido era freqüentemente considerado um civilizador que soube mitigar a rudeza
dos costumes primitivos. A arte apoderou-se dessa idéia, apresentando-nos os
animais ferozes submetidos ao irresistível poder do filho de Vênus. Nas pedras
gravadas antigas vemos Cupido montado num leão a quem enfeitiça com os seus
acordes; outras vezes atrela animais ferozes ao seu carro, após domesticá-los, ou
então quebra os atributos dos deuses, porque o universo lhe está submetido. Não
obstante o seu poder, jamais ousou atacar Minervae sempre respeitou as Musas.
Cupido é o espanto dos homens e dos deuses. Júpiter, prevendo os males que ele
causaria, quis obrigar Vênus a desfazer-se dele. Para o furtar à cólera do senhor
dos deuses, viu-se Vênus obrigada a ocultá-lo nos bosques, onde ele sugou o leite
de animais ferozes. Também os poetas falam sem cessar da crueldade de Cupido:
"Formosa Vênus, filha do mar e do rei do Olimpo, que ressentimento tens contra
nós? Por que deste a vida a tal flagelo, Cupido, o deus feroz, impiedoso, cujo
espírito corresponde tão pouco ao encantos que o embelezam? Por que recebeu
asas e o poder de lançar setas, a fim de que não pudéssemos safar-nos dos seus
terríveis golpes?" (Bíon).
Um epigrama de Mosco mostra a que ponto conhecia Cupido o seu poder, até
contra Júpiter. "Tendo deposto o arco e o archote, Cupido, de cabelos
encaracolados, pegou um aguilhão de boieiro e suspendeu ao pescoço o alforje de
semeador; depois, atrelou ao jugo uma parelha de bois vigorosos e nos sulcos
atirou o trigo de Ceres. Olhando, então para o céu, disse ao próprio Júpiter:
"Fecunda estes campos, ou então, touro da Europa, eu te atrelarei a este arado."
(Antologia).
Luciano, nos seus diálogos dos deuses, assim formula as queixas de Júpiter a
Cupido:
"Cupido. - Sim, se cometi um erro, perdoa-me, Júpiter. Sou ainda menino e não
atingi a idade da razão.
Júpiter. - Tu, Cupido, um menino?! Mas se és mais velho que Japeto. Por não teres
barba nem cabelos brancos, julga-tes ainda menino? Não. És velho e velho
maldoso.
Cupido. - E que mal te fez, pois, este velho, como dizes, para que penses em
encadeá-lo?
Júpiter. - Vê, pequenino malandro, se não é grande mal insultar-me a ponto de
fazeres com que eu me revestisse da forma de sátiro, touro, cisne e água. Não
fizeste com que mulher alguma se apaixonasse de mim próprio, e não sei
absolutamente que, pelo teu sortilégio, eu tenha conseguido agradar a uma que
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fosse. Pelo contrário, devo recorrer a metamorfoses e ocultar-me. É verdade que


amam o touro ou o cisne, mas se me vissem morreriam de medo." (Luciano).
Cupido inspirou encantadores trechos a Anacreonte: "No meio da noite, na hora
em que todos os mortais dormem, Cupido chega e, batendo à minha porta, faz
estremecer o ferrolho: "Quem bate assim? exclamei. Quem vem interromper-me
os sonhos cheios de encanto? - Abre, responde-me Cupido, não temas, sou
pequenino. Estou molhado pela chuva, a lua desapareceu e eu me perdi dentro da
noite." Ouvindo tais palavras apiedei-me; acendo a lâmpada, abro e vejo um
menino alado, armado de arco e aljava; levo-o ao pé da lareira, aqueço-lhe os
dedinhos entre as minhas mãos, e enxugo-lhe os cabelos encharcados de água.
Mal se reanima: "Vamos, diz-se, experimentemos o arco. Vejamos se a umidade o
não estragou. "Estica-o, então, e vara-me o coração, como faria uma abelha;
depois, salta, rindo com malícia: "Meu hóspede, diz, rejubila-te. O meu arco está
funcionando perfeitamente bem, mas o teu coração está agora enfermo."
(Anacreonte).
"Um dia, Cupido, não percebendo uma abelha adormecida nas rosas, foi por ela
picado. Ferido no dedinho da mão, soluça, corre, voa para o lado de sua mãe:
"Estou perdido, morro! Uma serpentezinha alada me picou. Os lavradores dizem
que é uma abelha." Vênus responde-lhe: "Se o aguilhão de uma simples abelha te
faz chorar, meu filho, reflete como devem sofrer aqueles a quem tu atinges com as
setas!" (Anacreonte).

22.3 - Tipo e Atributos de Cupido

Na arte Cupido apresenta dois tipos distintos, pois uma das vezes o vemos como
adolescente, outras sob o aspecto de gracioso menino. Mas o primeiro de tais tipos
é o mais antigo. Uma pedra gravada nos mostra Cupido de estilo antigo,
representado por um efebo alado e disparando uma seta. O arco, as setas e as
asas são sempre os atributos de Cupido.
O tipo de Cupido adolescente está fixado perfeitamente num tronco do museu Pio-
Clementino. Os membros, infelizmente, faltam. Os ombros apresentam vestígios
de orifícios abertos para acolherem o pé das asas. A cabeça, de delicada beleza,
está coberta de cabelos encaracolados.
Foi Praxíteles, contemporâneo de Alexandre, que fixou na arte o tipo de Cupido.
Sabe-se que o grande escultor era freqüentador assíduo da famosa cortesã Frinéia.
Esta, ao lhe pedir um dia que ele lhe cedesse a mais bela das suas estátuas, teve
o prazer de ser ouvida. Mas Praxíteles não lhe explicou qual delas seria. Frinéia,
então, mandou que um escravo fosse à casa do escultor, e dali a pouco o escravo
voltou dizendo que um incêndio destruíra a casa de Praxíteles e com ela a maior
parte dos seus trabalhos; no entanto, acrescentou, que nem tudo desaparecera.
Praxíteles precipitou-se imediatamente para a porta, gritando que estaria perdido
todo o fruto dos seus longos esforços, se o incêndio lhe não tivesse poupado o
Cupido e o Sátiro. Frinéia tranqüilizou-o assegurando-lhe que nada estava
queimado e que, graças ao ardil, ficara sabendo dele próprio o que de melhor
104

havia em escultura. Escolheu, assim, o Cupido. Mas não era para guardá-la que a
cortesã pedira a obra-prima ao grande escultor, pois, na Grécia, os costumes
licenciosos não impediam sentimentos elevados. Frinéia doou a estátua à cidade
de Téspies, sua pátria, que Alexandre acabara de devastar. A escultura foi
consagrada num antigo templo de Cupido, e foi graças a esse Destino religioso que
se tornou espécie de compensação para uma cidade destruída pela guerra.
"Téspies já não é mais nada, diz Cícero, mas conserva o Cupido de Praxíteles, e
não há viajante que não vá visitá-la para conhecer tão esplêndida obra-prima."
Esse Cupido era de mármore, as asas eram douradas, e ele empunhava o arco.
Calígula mandou que o transportassem para Roma; Cláudio devolveu-o aos
habitantes de Téspies, Nero roubou-o de novo. A célebre estátua foi, então,
colocada em Roma sob os pórticos de Otávio, onde pouco depois a destruiu um
incêndio.
O escultor Lisipo também fizera uma estátua de Cupido para os habitantes de
Téspies, colocada ao lado da obra-prima de Praxíteles. A famosa estátua conhecida
pelo nome de Cupido empunhando o arco passa por ser cópia de uma dessas duas
obras. Via-se também no templo de Vênus em Atenas um famosíssimo quadro de
Zêuxis, representando Cupido coroado de rosas. Até a conquista romana, quase
sempre fora Cupido representado como adolescente de formas esbeltas e
elegantes. A partir de tal época, surge mais freqüentemente sob o aspecto de
menino.
A arte dos últimos séculos representou muitas vezes Cupido. No quarto de banho
do cardeal Bibbiena, no Vaticano, Rafael fixou Cupido triunfante, fazendo puxar o
carro por borboletas, cisnes, etc. Numa multidão de encantadoras composições
mostra-o doidejando ao lado de sua mãe ou então abandonando-a, após havê-la
picado.
Parmeggianino fez com Cupido e o seu arco uma graciosa figura que, por longo
tempo foi atribuída a Correggio. Correggio e Ticiano, por sua vez, fixaram Cupido
em todas as suas formas, mas nenhum pintor o representou tantas vezes quantas
Rubens. Os cupidos frescos e bochechudos do grande mestre flamengo podem ser
vistos em todas as galerias, brigando, brincando, voando, correndo, colhendo
frutos, etc.
Embora tais composições pequem, uma vez que outra, por um pouco de afetação,
são quase sempre encantadoras. A maioria foi popularizada pela gravura ou pela
litografia. Aqui, vemos Cupido de pé, asas abertas, passar os braços em volta do
pescoço da Inocência sentada num cabeço. Mais longe, a Inocência seduzida por
Cupido, é arrastada pelo Prazer e seguida pelo Arrependimento. Outras vezes, o
autor representa Cupido preso por um elo de ferro ao pedestal de um busto de
Minerva e pisando com o pequenino pé, mas em troca, outras é Cupido triunfante
que se vinga da mulher insensata a qual julgou encadeá-lo para sempre.
Cupido fere várias vezes sem ver, e dá origem a sentimentos que nem o mérito,
nem a beleza explicam suficientemente. Foi o que Correggio pretendeu exprimir ao
representar. Vênus prendendo uma venda sobre os olhos do filho. Ticiano pintou o
mesmo tema que se vê reproduzido com freqüência na arte dos últimos séculos.
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22.4 - Esaco

Cupido produz naqueles aos quais fere efeitos preendentes, que na Lenda se
traduzem sempre por metamorfoses. Assim, o mergulhão é uma ave que voa
sempre acima das águas e nela mergulha freqüentemente. Noutros tempos,
tratava-se do filho de um rei, que tinha aversão à corte do pai e evitava participar
das festas que ali se realizavam, preferindo ir aos bosques, por ter a esperança de
encontrar a ninfa Hespéria a quem amava ternamente. Entretanto Esaco, assim se
chamava ele, não era correspondido. Um dia, estando a ninfa a fugir-lhe à
perseguição amorosa, foi picada por uma serpente venenosa e morreu. Esaco,
desesperado por lhe ter causado a morte, atirou-se ao mar do alto de um rochedo.
Mas Tétis, comovida, sustentou-o na queda, cobriu-o de penas, antes que ele
caísse na água e impediu-o, assim, de morrer, por maior que fosse o seu desejo
de não sobreviver à querida Hespéria. Indignado contra a mão favorável que o
protege, queixa-se da crueldade do Destino que o força a viver. Eleva-se no ar,
depois se precipita com impetuosidade na água; mas as penas o sustêm e
reduzem o esforço que ele faz para morrer. Furioso, mergulha a todo instante no
mar, e procura a morte que o evita. O amor tornou-o magro, tem coxas longas e
descarnadas e um pescoço muito comprido. Ama as águas, e é pelo fato de nelas
mergulhar constantemente que se chama mergulhão. (Ovídio).

22.5 - Pico e Circe

Pico, filho de Saturno e rei da Itália, era um jovem príncipe de maravilhosa beleza.
Todas as ninfas o admiravam quando o viam, mas a feiticeira Circe não se
contentou com admirá-lo, e quis que ele a desposasse. No entanto, só colheu
desdém, pois ele amava perdidamente Canenta, filha de Jano. Um dia, tendo ido
caçar javalis, encontrou Circe, que lhe confessou abertamente a sua paixão.
Vendo-se desdenhada, a feiticeira proferiu as terríveis palavras de que se serve
para fazer empalidecer a lua ou obscurecer o sol. Pico, aterrorizado com as
fórmulas mágicas, começou a fugir; mas imediatamente notou que estava
correndo muito mais velozmente do que de hábito, ou antes que estava voando,
visto que fora metamorfoseado em ave. Na sua cólera, pôs-se a dar fortes bicadas
nas árvores; as penas tinham conservado a cor das vestes usadas por ele naquele
dia, e o broche de ouro que as prendia ficou assinalado no seu pescoço por uma
mancha amarelada, brilhante. Canenta chorou tanto que o seu formoso corpo
terminou por se evaporar nos ares, e dela nada mais restou.

22.6 - O Cabelo de Niso

De todas as metamorfoses operadas por Cupido, não há nenhuma que seja tão
surpreendente como a de que foi vítima Cila, filha do rei Niso.
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O rei de Creta, Minos, após devastar as costas de Megara, iniciara o cerco da


cidade, cujo Destino dependia de um cabelo de ouro que Niso, rei do país trazia
entre os cabelos brancos. O síto já durava havia seis meses sem que a sorte se
declarasse nem por um partido, nem por outro. Em Megara havia uma torre cujas
muralhas produziam um som harmonioso desde que Apolo ali deixara a sua lira. A
filha do rei, Cila, subia freqüentemente, em tempo de paz, a essa torre, para ter o
prazer de produzir nas muralhas alguns sons atirando-lhes pequeninas pedras.
Durante o cerco, também visitava o mesmo lugar para de lá ver os ataques e os
combates feridos em torno da cidade. Como fizesse bastante tempo que os
inimigos se achavam acampados em torno, ela conhecia os principais oficiais, as
suas armas, os seus cavalos e a sua maneira de combater. Nota sobretudo o
chefe, Minos, com particular atenção e mais do que o necessário para a sua
tranqüilidade, tanto que a paixão atingiu tal ponto que ela resolveu sacrificar o
país à glória do estrangeiro a quem amava.
Uma noite, enquanto a cidade inteira estava imersa no sono, penetrou no
aposento do pai e cortou-lhe o cabelo fatal. Munida do precioso objeto, a infeliz
Cila, a quem o crime dava nova ousadia, saiu da cidade, atravessou o campo
inimigo, chegou à tenda de Minos a quem confiou o cabelo do qual dependia a
salvação da cidade. Minos sentiu aversão por tão desnaturada filha, e recusou-se a
vê-la. O cabelo estava cortado, a cidade caiu entre as mãos dos inimigos, mas
Minos partiu imediatamente depois, proibindo o embarque de Cila nos seus navios.
Foi em vão que ela alcançou, banhada em lágrimas, a praia, cabelos desalinhados,
braços estendidos para o homem que a repelia. Viu partir o navio, e, no seu
desespero, atirou-se ao mar para seguir a nado o ente amado. Mas notou seu pai,
Niso, que, metamorfoseado em gavião, a perseguia, e começava a cair sobre ela
para a dilacerar a bicadas. Assim, em vez de nadar, Cila começa também a voar
sobre a superfície da água, pois estava, por sua vez transformada em calhandra.
Desde então a ave de rapina, que ela tão indignamente traíra, não cessa de lhe
fazer cruel guerra. (Ovídio).

XXIII - Ulisses

23.1 - A Estória de Ulisses

Ulisses (também chamado de Odisseu) sabia antes de ir a Tróia que decorreriam


vinte anos para o seu retorno à sua ilha rochosa de Ítaca, seu filho Telêmaco e sua
esposa Penélope. Permaneceu em Tróia por dez anos e por outros dez singrou os
oceanos, naufragou, acabando por ficar desprovido de todos os seus
companheiros, freqüentemente com a vida por um fio, até que no vigésimo ano
chegou mais uma vez às praias de sua ilha natal.

23.2 - O Ciclope
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Ao deixar Tróia, Ulisses e seus companheiros primeiramente encontraram os


Cicônios, cuja cidade eles saquearam, mas em cujas mãos sofreram pesadas
baixas. Estiveram em perigo de perder mais elementos para os Comedores de
Loto, hedonistas que nada faziam além de ficarem sentados e comendo as
saborosas frutas que os faziam esquecer todos os cuidados e responsabilidades.
Ulisses teve que arrastar a força de volta ao navio aqueles que, entre os seus
homens, provaram o loto. Mal tinham se recobrado da aventura quando
enfrentaram a seguinte, o encontro com o Ciclope Polifemo.
Os ciclopes eram uma raça de fortes gigantes de um só olho, que ocupavam uma
fértil região onde o solo gerava abundantes plantações por conta própria,
fornecendo um pasto farto para as gordas ovelhas e bodes. Ansioso para encontrar
os habitantes de tal terra, Ulisses direcionou um navio para o porto e,
desembarcando, se dirigiu juntamente com a tripulação à caverna do Ciclope
Polifemo, um filho de Posídon. Polifemo estava fora cuidando de suas ovelhas,
assim Ulisses e a tripulação ficaram à vontade, até que ele retornou com o seu
rebanho ao crepúsculo. O Ciclope era forte. Monstruoso e terrível e após algumas
poucas perguntas sobre a origem e o que desejavam seus hóspedes inesperados,
agarrou dois deles e fez seus miolos saltarem ao chão antes de devorá-los. A
seguir o Ciclope sentiu-se sonolento; Ulisses considerou esfaqueá-lo até a morte,
mas desistiu da idéia quando percebeu que a fuga seria impossível, pois a entrada
da caverna tinha sido bloqueada com uma grande rocha, a qual o Ciclope podia
erguer com uma só mão, mas seria impossível de mover mesmo com a força
combinada de Ulisses e seus companheiros. O Ciclope comeu mais dois homens de
Ulisses como refeição matinal e então saiu, tomando o cuidado de recolocar a
grande pedra na entrada da caverna. O inteligente Ulisses não demorou a montar
um plano de ação. Ele aguçou a ponta de uma grande estaca de madeira que
havia no chão da caverna e endureceu sua ponta ao fogo.
Ao cair da tarde quando Polifemo retornou à caverna, Ulisses ofereceu-lhe uma
tigela de forte vinho para acompanhar sua ração de marinheiros gregos. O Ciclope
bebeu o vinho com entusiasmo e pediu para que a tigela fosse reenchida três
vezes. Então, num estupor de embriaguez, deitou-se para dormir. Antes de dormir,
perguntou o nome de seu hóspede, e Ulisses respondeu que era "Outis", ou seja,
"Ninguém" em grego; o Ciclope prometeu que em retribuição pelo vinho comeria
"Ninguém" por último. Assim que o monstro dormiu, Ulisses aqueceu a ponta da
estaca ao fogo; quando ela ficou em brasa ele e quatro de seus melhores homens
enterraram a ponta no olho único do Ciclope. O olho emitiu um chiado, semelhante
"ao alto silvo que sai de um grande machado ou enxó, quando o ferreiro coloca a
peça dentro da água para conferir-lhes têmpera e dar força ao ferro". O Ciclope,
rudemente acordado pela dor terrível, urrou e rugiu, chamando seus vizinhos, os
outros Ciclopes, para que viessem ajudá-lo. Mas quando estes se agruparam do
lado de fora de sua caverna e perguntaram quem o estava incomodando, quem o
tinha ferido, sua única resposta foi que Ninguém o incomodava e Ninguém o
estava ferindo; assim eles acabaram perdendo o interesse e se retiraram.
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Ao amanhecer, Ulisses e seus homens se preparam para fugir da caverna; cada


homem foi amarrado embaixo de três grandes ovelhas, enquanto Ulisses alojou-se
sob o líder do rebanho, um grande carneiro com magnífica lã. O Ciclope cego
afastou a pedra e sentou-se à entrada da caverna, tentando agarrar a tripulação
de Ulisses que estava saindo juntamente com as ovelhas, mas estes passaram a
salvo por suas mãos, Ulisses por último. Guiando as ovelhas para o seu navio, eles
trataram de zarpar rapidamente, apesar que Ulisses não resistiu zombar do
Ciclope, que respondeu atirando pedaços de penhascos na direção de sua voz,
alguns chegando a cair muito próximos do barco. Assim, Ulisses reuniu-se ao
restante da esquadra e, enquanto os marinheiros pranteavam os companheiros
perdidos, consolaram-se com as próprias ovelhas que tinham auxiliado sua fuga da
caverna.

23.3 - Eólia

Da ilha do Ciclope, Ulisses velejou até que chegou à ilha flutuante de Eólia, cujo
rei, Éolo, tinha recebido de Zeus o poder sobre todos os ventos. Éolo e sua grande
família receberam Ulisses e sua tripulação de maneira hospitaleira, e, ao chegar a
hora da partida, Éolo deu a Ulisses uma bolsa de couro na qual tinha aprisionado
todos os ventos tempestuosos; a seguir, invocou uma boa brisa para o oeste que
levaria os navios a salvo para casa, em Ítaca. Eles velejaram no curso por dez dias
e estavam à vista de Ítaca quando o desastre os atingiu. Ulisses, que tinha ficado
acordado toda a jornada segurando o leme do barco, caiu num sono exausto, e
sua tripulação, não sabendo o que havia na bolsa de couro, começou a suspeitar
que continha um valioso tesouro que Éolo teria dado a Ulisses. Ficaram
enciumados, sentindo que tinham enfrentado as situações difíceis com Ulisses,
devendo também compartilhar suas recompensas: acabaram por abrir a bolsa e
acidentalmente libertaram os ventos. Ulisses acordou no meio de uma medonha
tempestade, que soprou o navio de volta a Eólia. Desta vez a recepção dada a
Ulisses e a seus companheiros foi bastante diferente. Eles pediram que Éolo lhes
desse uma nova chance, mas, este declarando que Ulisses devia ser um homem
odiado pelos deuses, negou-se terminantemente a ajudá-los, mandando embora
Ulisses e seus companheiros.

23.4 - Circe

Na sua seguinte chegada à terra, Lestrigônia, todos os navios, com exceção o de


Ulisses, foram perdidos num calamitoso encontro com os monstruosos habitantes;
assim foi num estado considerável de pesar e depressão que Ulisses e seus
camaradas sobreviventes viram-se na ilha de Aca. Desembarcando, permaneceram
deitados dois dias e duas noites na praia, completamente exaustos pelos seus
esforços e desmoralizados pelos horrores que tinham passado. No terceiro dia,
Ulisses levantou-se para explorar a ilha, e a partir de um outeiro percebeu fumaça
saindo de uma habitação na floresta. Decidindo prudentemente a não fazer um
109

reconhecimento imediato, retornou ao barco para contar a novidade aos


companheiros. Previsivelmente ficaram amedrontados, lembrando dos Lestrigões e
do Ciclope, mas, como Ulisses estava determinado a explorar, dividiu sua
companhia em dois grupos, um comandado por ele próprio e o outro por um
homem chamado Euríloco. Os dois grupos tinham a sorte e a tarefa da exploração
recaiu em Euríloco, enquanto Ulisses permaneceu no navio. O grupo de Euríloco
acabou chegando à casa na floresta. Do lado de fora existiam lobos e leões, que
cabriolavam e faziam festas aos homens; eram de fato seres humanos que tinham
sido transformados em animais pela feiticeira Circe, cujo lindo canto podia ser
escutado no interior da casa. Quando os marinheiros gritaram para chamar sua
atenção, saiu e os convidados a entrar; apenas Euríloco, suspeitando de algum
truque, permaneceu do lado de fora. Circe ofereceu comida aos homens, no qual
continha uma droga que os faria esquecer de sua terra natal; quando terminaram
de comer, os tocou com sua varinha e os conduziu ao chiqueiro, pois agora
possuíam a forma externa de porcos, apesar de infelizmente lembrarem quem
realmente eram.
Em pânico, Euríloco voltou correndo ao navio para relatar o desaparecimento de
seus companheiros. Ulisses ordenou que o levasse de volta à casa de Circe, e
quando se recusou, partiu só para o resgate. No seu caminho através da ilha,
encontrou Hermes, disfarçado como um jovem; o deus deu-lhe uma planta
mágica, a qual, misturada com a comida de Circe, seria um antídoto para sua
droga; também o instruiu como lidar com a feiticeira: quando Circe o tocasse com
sua varinha, deveria avançar sobre ela como se para matá-la; ela então recuaria
com medo e o convidaria a compartilhar de sua cama. Deveria concordar com isso,
mas deveria fazê-la jurar solenemente a não tentar truques enquanto estivesse
vulnerável.
Os fatos se passaram como Hermes tinha previsto. Após terem ido para a cama,
Circe banhou Ulisses e o vestiu com roupas finas e lhe preparou um suntuoso
banquete, mas Ulisses sentou-se numa abstração silenciosa, recusando toda a
atenção. Circe acabou lhe perguntando o que estava errado, e disse-lhe que ela
não poderia esperar que estivesse de corpo e alma na festa enquanto metade de
sua tripulação estava chafurdando no chiqueiro. Então Circe libertou os novos
porcos de seu confinamento e os untou com ungüento mágico. Seus pêlos rijos
caíram e se tornaram novamente homens, porém mais jovens e mais bonitos do
que tinham sido antes. Ulisses e seus homens choraram com alívio e alegria e
pararam apenas quando Circe sugeriu que deveriam chamar o restante de sua
companhia para que se juntassem à celebração. Ficaram com Circe por todo um
ano, comendo, bebendo e se divertindo, esquecendo os percalços que tinham
passado.

23.5 - O Mundo Inferior

Eventualmente, Ulisses foi lembrado por alguns dos companheiros que talvez fosse
tempo de se pensar em Ítaca. Circe avisou-o que antes de zarpar para casa
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deveria primeiro visitar o Mundo Inferior (ou reino dos mortos) para consultar o
profeta tebano Tirésias: apenas Tirésias poderia dar-lhe instruções para seu
retorno. Assim, Ulisses velejou com seu navio através do Rio de Oceano e atracou
o barco perto do bosque de choupos de Perséfone. Lá, na margem, cavou uma
vala na qual colocou libações aos mortos, compostas de mel, água, leite e vinho;
sobre a vala cortou a garganta de um carneiro e de uma ovelha negra. Atraídos
pelo cheiro de sangue, as almas dos mortos surgiram para beber, mas Ulisses
sacou sua espada e os manteve a distância, esperando pelo aparecimento da alma
de Tirésias. O primeiro a aparecer foi um elemento de sua tripulação, Elpenor, que
tinha caído do teto da casa da Circe onde estava dormindo na manhã da partida e
o qual, na ânsia dos outros em partir, tinha ficado sem enterro nem velório;
Ulisses prometeu resolver este caso assim que possível. Quando Tirésias apareceu,
Ulisses o deixou beber o sangue, e o profeta então disse-lhe que havia uma boa
possibilidade para seu retorno a salvo para casa, mas deveria certificar-se em não
pilhar o Rebanho do Sol na ilha de Trinácia; também o alertou sobre a situação
que encontraria em Ítaca, onde pretendentes astutos estavam cercando sua fiel
esposa Penélope.
Após ter ouvido o que Tirésias poderia contar-lhe, Ulisses deixou outras almas se
aproximarem e beber o sangue, o que lhes possibilitou conversar com Ulisses. A
primeira que surgiu era sua velha mãe, que relatou-lhe como tinha morrido e fez
um triste relato do estado lamentável de seu pai Laerte e os bravos esforços de
Penélope para repelir seus pretendentes. Ulisses, tocado pelo pesar e desejando
confortar tanto a si próprio como a sua mãe, tentou três vezes abraça-la, mas nas
três vezes se desvaneceu entre seus braços e o deixou segurando o ar. Outras
heroínas aproximaram-se e conversaram, e a seguir veio Agamenon, que contou a
Ulisses sobre sua morte sangrenta, confortando-o com a idéia que Penélope nunca
agiria como Clitemnestra. Aquiles também se aproximou, e Ulisses saudou-o como
o homem mais afortunado que já havia vivido, um poderoso príncipe entre os
vivos e os mortos. Aquiles respondeu que preferiria ser um escravo vivo do que
um rei morto, mas Ulisses o consolou com notícias das façanhas de seu filho
Neoptólemo, e partiu feliz.
Durante esta visita Ulisses viu alguns dos famosos componentes do mundo dos
mortos; Sísifo eternamente empurrando sua grande pedra montanha acima, com
ela escorregando de volta assim que chegava ao topo; e Tântalo, enfiado até o
pescoço dentro de uma pequena lagoa com água, a qual desaparecia quando se
inclinava para bebê-la, com ramos de frutas pendentes sobre sua cabeça que
sumiam quando ele tentava alcança-las. Ulisses queria ver mais, e encontrou o
fantasma do poderoso Hércules, mas antes de poder encontrar outros heróis de
gerações anteriores, foi assustado por uma grande onde de mortos que vieram aos
milhares em sua direção e elevaram a sua volta seus brados lúgubres e dolorosos;
em pânico, retornou ao navio, soltou as amarras e cruzou de volta ao mundo dos
vivos.

23.6 - As Sereias, Cila e Caribde


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Ulisses retornou à ilha de Circe, e assim que Elpenor foi adequadamente


sepultado, Circe deu a Ulisses mais instruções para a sua jornada e para prepará-
lo para os males que ainda estavam por vir. O navio velejou primeiro para a ilha
das Sereias, terríveis criaturas com cabeças e vozes de mulheres, mas com corpos
de pássaros, que existiam com o propósito de atrair marinheiros para as rochas de
sua ilha com doces canções. Quando o barco se aproximou, uma calmaria mortal
se abateu sobre o mar, e a tripulação utilizou os remos. De acordo com as
instruções de Circe, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera, enquanto
ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse passar a salvo pelo
perigo e ainda ouvir a canção. "Venha para perto, Ulisses", cantavam as Sereias:
Ulisses gritou para seus homens para que o soltassem, mas remaram
resolutamente para a frente, e o perigo acabou passando.
A próxima tarefa era navegar os dois locais perigosos de Cila e Caribde. Caribde
era um terrível redemoinho, que alternativamente sugava e aatirava para cima a
água; os marinheiros prudentes que escolheram evitá-lo foram forçados a
encontrar, ao invés, a igualmente terrível Cila. Cila ocultava-se numa caverna
localizada no alto de um rochedo, disfarçada pela névoa e vapor de água dos
vagalhões abaixo; possuía doze pés que balançavam no ar e seis pescoços, cada
um equipado com uma monstruosa cabeça com três fileiras de dentes. Da sua
caverna exigia uma taxa de vítimas humanas dos barcos que passavam abaixo.
Ulisses, alertado por Circe, decidiu não contar a seus marinheiros sobre Cila;
passando mais ao largo possível de Caridbe, eles passaram diretamente abaixo do
rochedo de Cila, e, apesar de Ulisses estar armado e preparado para lutar com ela
pela vida da tripulação, conseguiu escapar de sua vigilância e teve sucesso em
arrebatar seis vítimas aos berros.

23.7 - O Rebanho do Sol

A seguir, o navio aproximou-se da ilha de Trinácia, um local de pasto farto onde


Apolo mantinha seu rebanho do gado gordo. Ulisses tinha sido alertado tanto por
Circe como por Tirésias que, se esperava alcançar Ítaca vivo, deveria evitar este
local e, a qualquer custo, não tocar neste gado. Explicou isto a seus homens, mas,
cansados e deprimidos pela perda de mais seis camaradas, insistiram em lançar
âncora e passar a noite na praia. Deparando-se com um motim, Ulisses tinha
poucas opções além de concordar, mas os fez jurar que deixariam o gado em paz.
Naquela noite formou-se uma tempestade, e por todo um mês o vento soprou do
sul, sendo impossível continuarem sua viagem.
Enquanto possuíam as provisões que Circe tinha lhes dado, os homens
mantiveram sua promessa e não tocaram no gado. Mas sua comida acabou por
terminar e, movidos pela fome, aproveitaram a oportunidade de uma ausência
temporária de Ulisses para abater alguns dos mais belos exemplares do rebanho;
consideravam que se os sacrificassem em honra dos deuses, os deuses dificilmente
ficariam irados. Ulisses retornou sentindo o odor da carne assada; repreensão era
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inútil, pois o mal estava feito, e os deuses estavam determinados a vingar o crime.
Quando a carne terminou, o vento amainou, assim o navio pode zarpar; mas nem
bem estava no mar quando uma terrível borrasca surgiu e o barco foi
primeiramente esmagado pela força das ondas, e a seguir feito em pedaços por
um raio. Toda a tripulação se perdeu, salvo o próprio Ulisses, que conseguiu
agarrar-se aos destroços do mastro e quilha, no qual permaneceu por dez dias até
que foi jogado nas areias da ilha de Pgigia, morada da linda ninfa Calipso.

23.8 - Calipso

Calipso tornou Ulisses seu amante e ficou com ela por sete anos, pois não tinha
meios de escapar. A deusa Atena acabou enviando Hermes, mensageiro dos
deuses, para explicar à ninfa que era chegada a hora de deixar seu visitante seguir
seu caminho. Calipso, apesar de relutante em perdê-lo, sabia que devia obedecer,
assim forneceu a Ulisses material para a confecção de uma jangada, deu-lhe
comida e bebida e invocou um vento suave para levá-lo de volta a Ítaca. Sem
incidentes, aproximou-se da terra dos Feácios, grandes marinheiros que estavam
destinados a levá-lo na última etapa de sua viagem. Mas então Posídon interviu:
detestava Ulisses pelo que tinha causado a seu filho, o Ciclope Polifemo, e agora
estava irado por vê-lo tão próximo do fim de sua jornada. Então, enviou outra
tempestade, que partiu o mastro da jangada e a deixou ser levada pelo vento.
Como o vento norte na época da colheita arremessa pelos campos uma bola de
cardo, o mesmo ocorreu com a sua jangada, indo para cima e para baixo sobre as
ondas. Agora o Vento Sul o jogaria para o Norte como um jogo, e agora o Leste o
deixaria para ser perseguido pelo Oeste.
Ulisses foi salvo da morte certa pela intervenção da ninfa marinha Ino. Ela deu-lhe
seu véu, instruindo-o a atá-la ao redor da cintura e então a abandonar o barco e
se dirigir para a praia. Como uma grande onda despedaçou sua jangada, Ulisses
fez o que tinha lhe sido dito. Por dois dias e duas noites nadou em frente, mas no
terceiro dia alcançou as praias de Feácia e acabou conseguindo chegar à costa
rochosa na foz de um rio. Atirou o véu de Ino de volta ao mar e deitou-se numa
moita espessa para dormir.

23.9 - Ulisses em Feácia

Inspirada por Atena, a princesa Feaciana Nausícaa tinha escolhido aquele mesmo
dia para uma ida à foz do rio para lavar roupas nas fundas lagoas que lá existiam.
Quando ela e suas criadas terminaram a lavagem e espalharam as roupas sobre os
seixos, tomaram banho, comeram e se divertiram cantando e brincando com uma
bola enquanto esperavam que as roupas secassem. Quando Nausícaa atirou a bola
para uma das criadas, esta não conseguiu segurar e acabou caindo no rio; todas
as moças gritaram alto e Ulisses acordou de seu sono, imaginando em que terra
selvagem tinha chegado agora. Quebrando um galho, o qual utilizou para esconder
sua nudez, emergiu de sua moita e encontrando Nausícaa bravamente mantendo o
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seu lugar, enquanto as outras moças fugiram em pânico. Dirigiu-se a Nausícaa


numa súplica, pedindo-lhe para mostrar o caminho para a cidade e para que desse
algo para vestir. Nausícaa respondeu-lhe com dignidade e gentileza, e, após ter
tomado banho, Ulisses passou óleo no próprio corpo e vestiu-se com uma das
finas roupas delas; deu-lhe comida e bebida, e ele a acompanhou juntamente com
as outras moças de volta aos arredores da cidade. Para evitar fofocas, Nausícaa
deixou Ulisses neste ponto, para que fosse só ao centro da cidade. Sugeriu que
fosse direto à casa de seu pai Alcínoo e caísse aos pés de sua mãe Arete com uma
súplica.
Guiado pela própria Atena na forma de outra moça local, Ulisses chegou ao
esplêndido palácio de Alcínoo. Havia paredes de bronze e portões de ouro,
guardados por cães de guarda de ouro e prata. Dentro do palácio, a luz era
fornecida por estátuas de ouro maciço mostrando jovens portando tochas. Dentro
do pátio havia um lindo jardim e horta, com árvores frutíferas, vinhas e uma bem
aguada cobertura vegetal. Após ter admirado tudo isso, Ulisses, envolto numa
névoa criada por Atena, entrou e caminhou diretamente em direção à rainha
Arete, colocando seus braços em volta de seus joelhos numa súplica. Assim que a
névoa disfarçante se dissipou, os Feácios escutaram com espanto sua petição:
pediu abrigo e para ser transportado para sua terra natal.
Quando se recobrou de sua surpresa inicial, Alcínoo foi generoso na sua reação.
Polidamente, evitou questionar seu hóspede imediatamente, arranjou-lhe um
descanso imediato, prometendo que pela manhã medidas seriam tomadas para
retorná-lo a sua terra. Quando os outros Feácios se retiraram e Ulisses ficou a sós
com Alcínoo, Arete perguntou-lhe quem era e como tinha conseguido suas roupas,
as quais não tinha tardado a reconhecer. Ulisses, então, contou a estória de suas
aventuras desde que tinha deixado a ilha de Ogigia, explicando como tinha
encontrado Nausícaa na foz do rio. Enquanto isso, Arete arranjou que um leito
fosse arrumado e Ulisses ficou grato em se retirar.
No dia seguinte um barco foi emparelhado para transportar Ulisses de volta à sua
casa, mas antes de partir, o hospitaleiro Alcínoo insistiu em festejar seu hóspede e
regalá-lo com esportes e outros entretenimentos. Primeiro o bardo Demódoco
atuou para o grupo reunido, cantando um episódio da guerra de Tróia, uma
discussão que tinha ocorrido entre o ilustre Aquiles e o inteligente Ulisses.
Enquanto escutava, Ulisses chorou e moveu seu manto sobre a cabeça para
esconder sua tristeza. Apenas Alcínoo percebeu, e para alegrar seu convidado
propôs algumas competições atléticas. No início Ulisses ficou alegre ao observar os
jovens nobres, mas, quando desafiado, atirou o disco a uma distância recorde. A
seguir, ocorreram danças e então Demódoco cantou novamente a estória das
aventuras amorosas de Afrodite e Ares. Os nobres Feacianos competiram entre si
para presentear Ulisses. Na refeição da noite, Demódoco cantou novamente, e
com sugestão de Ulisses o tema foi o Cavalo de Madeira de Tróia. Ulisses chorou
novamente enquanto ouvia, e novamente apenas Alcínoo o observou. Ao fim da
estória, Alcínoo pediu a Ulisses que lhes contasse quem era, de onde vinha e para
onde desejava ser transportado; e porque chorava com as canções do bardo.
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Assim convidado, Ulisses contou quem era e descreveu todas as aventuras pelas
quais tinha passado: falou dos Cicônios e dos Comedores de Loto, do Ciclope,
Éolo, os Lestrigões, Circe, sua visita ao mundo dos mortos, as Sereias, Cila e
Caridbe e o Rebanho do Sol, finalizando com sua estada com Calipso, de onde
acabou por sair e ser trazido à terra dos Feácios.
Na manhã seguinte Ulisses despediu-se finalmente de seus anfitriões e um rápido
barco Feaciano o conduziu sem incidentes a Ítaca. Ulisses dormiu quando o barco
percorria sua rota, e estava ainda adormecido quando a estrela d'alva surgiu e a
tripulação o colocou, juntamente com os presentes recebidos dos Feácios, na praia
de Ítaca, ao lado de uma maravilhosa caverna, morada das ninfas. Quando Ulisses
acordou não conseguiu reconhecer o local, em grande parte porque Atena tinha
lançado uma névoa sobre a ilha, para lhe dar tempo de encontrar Ulisses e lhe
arranjar um disfarce adequado. Como estava nervosamente se perguntando onde
os traiçoeiros Feácios o tinham desembarcado, Atena apareceu na forma de um
pastor e, em resposta às suas perguntas, contou-lhe que estava realmente em
Ítaca. O cansado Ulisses contou a deusa uma estória sobre ser um exilado
cretense; ela sorriu diante de sua inteligência e em resposta revelou sua
verdadeira identidade, reafirmando-lhe que estava realmente em Ítaca, e o
aconselhou como deveria proceder para reconquistar sua esposa e reino.

23.10 - Ulisses em Ítaca

Nos vinte anos que Ulisses esteve fora de casa, a maioria do povo de Ítaca, fora
sua esposa Penélope, seu filho Telêmaco e uns poucos amigos fiéis, acreditava
que estava morto, que tinha morrido em Tróia ou na sua viagem de volta. Como
Penélope não era apenas bonita e completa, mas também rica e poderosa, sendo
que o homem que casasse com ela herdaria a riqueza e a posição de Ulisses,
estava sendo acossada por pretendentes, jovens nobres que permaneciam no
palácio de seu marido, comendo e bebendo suas provisões e forçando suas
atenções indesejadas sobre ela. Pelo período que pode, Penélope ganhou tempo,
convencendo cada um que havia base para esperança, mas não dizendo nada
definitivo a qualquer um deles. Por três anos os enganou, dizendo que estava
tecendo um manto para o velho pai de Ulisses, Laerte; seria inadmissível que ele
morresse sem que tivesse uma mortalha pronta; portanto deveriam aguardar sua
decisão até que tivesse terminado sua tarefa. Todos os dias trabalhava no tear,
mas à noite desfazia seu trabalho sob luz de tochas. No início do quarto ano,
entretanto, foi traída por uma de suas criadas, que ajudou seus pretendentes a
pegá-la no seu artifício. E relutantemente foi forçada a terminar seu tecido.
Pouco antes da chegada de Ulisses em Ítaca, Atena inspirou Telêmaco, agora com
idade para desempenhar um papel ativo no retorno de seu pai, a fazer uma
jornada com o objetivo de descobrir o que lhe tinha acontecido. Telêmaco se
dirigiu primeiramente a Pilos, onde consultou o velho Nestor; Nestor não tinha
novidades, mas o enviou ao magnificente palácio de Menelau em Esparta. Menelau
e Helena o trataram com grande bondade, e Menelau explicou como tinha ficado
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sabendo de um Velho Homem do Mar que Ulisses estava retido na ilha da linda
ninfa Calipso. Quando Ulisses chegou a Ítaca, Telêmaco estava voltando para
casa; os pretendentes, irritados e um pouco alarmados pelo comportamento de
Telêmaco, planejaram emboscar seu barco durante o seu retorno, mas, com a
ajuda de Atena, Telêmaco escapou desta armadilha e chegou a salvo em casa.
Atena aconselhou Ulisses a não ir diretamente à cidade mas, ao contrário, procurar
abrigo com o porqueiro Eumeu, que vivia com seus porcos numa fazenda um
pouco distante. Disfarçado como um mendigo, Ulisses fez como sua patronesse
sugeriu, e foi muito bem recebido por Eumeu, cuja explanação sobre a situação na
cidade era entremeada com elogios a seu senhor ausente e preces para seu
retorno a salvo. Em resposta às perguntas de Eumeu, Ulisses contou-lhe uma
longa estória sobre suas origens, dizendo ser um filho ilegítimo de um rico
cretense; após muitas aventuras tinha acabado em Tesprótia, onde tinha ouvido
falar de Ulisses, o qual tinha passado a pouco tempo por este local. O rei de
Tesprótia o colocou num navio com destino a Duliquio, mas a maldosa tripulação o
tinha preso, com a intenção de vendê-lo como escravo. Quando eles
desembarcaram em Ítaca, conseguiu soltar-se de suas cordas e nadar para a
praia, chegando então à morada de Eumeu.
Eumeu engoliu toda a estória, exceto referências a Ulisses, que se recusava a
aceitar, mesmo quando seu hóspede jurou que estaria de volta naquele mesmo
mês e ofereceu-se para ser jogado num abismo pelos homens de Eumeu se
estivesse errado. Eumeu serviu a Ulisses uma refeição composta de carne de porco
assada, e arrumou uma confortável cama perto do fogo; ele próprio passou a noite
do lado de fora, cuidando da propriedade de seu senhor ausente.
Na noite seguinte, durante o jantar na cabana do porqueiro, Ulisses anunciou sua
intenção de rumar para a cidade para esmolar no palácio; mas Eumeu, ansioso
pela segurança de seu hóspede, insistiu que esperasse o retorno de Telêmaco.
Naquela noite, foi a vez de Eumeu contar a estória de sua própria vida, e contou
como tinha nascido de pais nobres mas sendo raptado por mercadores fenícios
quando era criança, para ser vendido como escravo em Ítaca. Na manhã seguinte,
Telêmaco chegou a ilha e, guiado por Atena, seguiu diretamente para a cabana do
porqueiro. Enquanto Eumeu seguiu para a cidade para contar a Penélope que
Telêmaco estava de volta, Atena dissolveu o disfarce de Ulisses e solicitou que
revelasse a identidade do filho. Telêmaco a princípio relutou em acreditar que o
mendigo na cabana do porqueiro era realmente seu pai, mas acabou
convencendo-se e os dois choraram juntos, de alegria e alívio. Ao se recobrarem
fizeram planos: Ulisses seguiria Telêmaco de volta à cidade e iria esmolar em seu
próprio palácio. Lá, avaliaria a situação e esperaria a oportunidade ideal para
atacar; quando esta ocasião chegasse, sinalizaria para Telêmaco e, então, os dois,
com a ajuda de Zeus e Atena, dariam cabo dos miseráveis pretendentes.
Ulisses foi para a cidade em companhia do porqueiro. No caminho encontraram o
pastor de cabras Melanteu, em velhaco completamente a soldo dos pretendentes,
que dirigiu vários insultos e golpes ao velho mendigo. Do lado de fora, sobre um
monte de esterco, estava um velho galgo, doente e debilitado. Quando escutou a
116

voz de Ulisses, ergueu as orelhas e moveu alegremente sua cauda. Ulisses o


reconheceu imediatamente e, tocado por sua aparência, disfarçadamente verteu
uma lágrima. Ao comentar a aparência dilapidada do cão com Eumeu, este último
respondeu que há vinte anos nenhum cão podia vencer Argos, ou farejar melhor,
mas na ausência de seu senhor envelheceu e ficou malcuidado. Quando os dois
entraram no prédio, Argos morreu em silêncio, feliz de ver seu senhor novamente
após vinte longos anos.
Como seria previsível, Ulisses foi agredido e insultado pelos pretendentes quando
tentou esmolar no seu próprio salão. Eles zombaram de seus andrajos, o
ameaçaram, e um chegou mesmo a jogar um banquinho nele. Mas, ao vencer o
mendigo resistente num pugilato, subiu no conceito deles. Neste ponto, Penélope
foi subitamente inspirada a se mostrar aos pretendentes. Assim, desceu ao salão,
onde sua beleza encheu a todos com desejo; repreendeu Telêmaco por permitir
que insultassem o mendigo em sua casa, voltando-se então aos pretendentes e
sugerindo que, ao invés deles consumirem sua casa, seria mais adequado que lhe
trouxessem presentes. Concordaram e, para prazer de Ulisses, trouxeram finos
presentes de tecidos e jóias. Ao cair da noite, era hora de novo banquete e Ulisses
fez-se útil cuidando das luzes e fogos. Os pretendentes novamente desafiaram o
mendigo entre eles, e outro banco foi atirado, para ser imediatamente evitado pelo
seu alvo. Quando os pretendentes finalmente se retiraram para suas próprias
casas para passar a noite, Telêmaco e Ulisses removeram todas as armas da sala e
as guardaram num depósito. Penélope desceu então novamente para conversar
com o mendigo, cuja presença tinha despertado seu interesse. Perguntou-lhe de
onde tinha vindo e explicou sua própria difícil situação: os pretendentes estavam
pressionando para que fizesse sua escolha entre eles, enquanto apenas desejava a
volta de Ulisses. Ulisses respondeu-lhe que era um cretense de descendência real,
e que tinha encontrado Ulisses em Creta. Para testar a veracidade de sua estória,
perguntou-lhe que roupas Ulisses estava usando, o qual descreveu uma capa
púrpura com um broche de ouro com um detalhe de um galgo mordendo um
fauno. Penélope chorou quando reconheceu estes detalhes. Para animá-la, Ulisses
prometeu-lhe que seu marido estava vivo, bem e muito perto; de fato estaria de
volta a Ítaca naquele mesmo mês.
Penélope sugeriu então que o mendigo poderia apreciar um banho e uma cama
confortável. Mas o cauteloso Ulisses, entretanto, apenas permitiu que seus pés
fossem lavados por uma antiga criada, assim a velha ama Euméia foi chamada
para a tarefa. Euméia comentou imediatamente como o mendigo s fazia lembrar
de Ulisses; Ulisses respondeu que todos diziam o mesmo. Quando começou a lavar
seus pés, Ulisses subitamente lembrou-se da cicatriz na sua perna, conseguida
quando era apenas um menino e tinha se juntado a uma expedição de caça de
javalis no monte Parnasso com seu avô Autólico e seus tios. Ficou nas sombras,
mas evidentemente Euméia sentiu e reconheceu a cicatriz; na excitação, derrubou
a bacia com água e teria gritado alto para avisar Penélope se Ulisses não tivesse
agarrado firmemente pela garganta e a instruído a não contar a ninguém quem
era até que se livrasse dos pretendentes. Durante todo este tempo, Penélope
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estava sentada absorta em seus pensamentos. Mas quando Euméia buscou mais
água e terminou a tarefa e Ulisses estava novamente sentado ao lado do fogo,
dirigiu-se novamente a ele e explicou seu dilema: deveria se casar para livrar
Telêmaco do fardo de sua presença e das dos pretendentes, ou continuar a
aguardar a volta de Ulisses? Perguntou-lhe se o mendigo poderia explicar o
significado de um sonho recente no qual uma grande águia desceu das montanhas
e abateu-se sobre seus vinte gansos de estimação, matando-os todos; a seguir,
pousando num apoio do telhado, a ave disse-lhe que os gansos eram os
pretendentes e ela própria era Ulisses. O mendigo Ulisses assegurou-lhe que o
sonho se tornaria verdade e que os pretendentes seriam todos destruídos, mas a
cautelosa Penélope respondeu que os sonhos são confusos; aqueles que viessem
através do portão de chifre se tornariam verdade, mas aqueles do portão de
marfim vinham apenas para enganar. Antes de ela se retirar para seus aposentos
para passar a noite, e chorar por Ulisses até que conseguiu dormir, disse ao
mendigo que pretendia anunciar uma competição entre os pretendentes. Colocaria
doze cabeças de machado em linha e convidaria os pretendentes a curvar o
grande arco de Ulisses e mandar uma flecha diretamente através de todas as
doze. Casaria com aquele que provasse ser capaz de realizar este feito, o qual
Ulisses freqüentemente era capaz de realizar.
No dia seguinte, Penélope trouxe o grande arco de Ulisses e anunciou a
competição aos pretendentes, cada um esperando ser o único a curvar o arco e
atirar através das cabeças de machados. Telêmaco preparou o salão para a
competição e tentou curvar o grande arco, dobrando-o através de seu joelho. Isso
necessitou toda a sua força, e poderia Ter conseguido se não fosse um sinal de
cabeça de Ulisses para que parasse. Assim, abandonou a tentativa e os
pretendentes tiveram, um por um, a sua vez, mas nenhum conseguiu curvar o
arco, ainda mais mandar uma flecha através dos machados. Enquanto estavam
experimentando suas forças, Ulisses esgueirou-se para fora do salão e revelou sua
verdadeira identidade ao porqueiro Eumeu e ao igualmente confiável vaqueiro
Filótio, orientando-os a virem em seu auxílio quando desse o sinal. Quando um dos
dois líderes dos pretendentes, Eurímaco, tentou e falhou no teste, o outro líder,
Antínoo, sugeriu que adiassem isto por um dia, pois tratava-se de um dia festivo e
deveriam estar se banqueteando e fazendo sacrifícios ao deus-arqueiro Apolo; sua
sugestão foi completamente aprovada. Após todos terem bebido seu primeiro
brinde, Ulisses perguntou se ele poderia tentar o arco. Antínoo não concordou,
mas Penélope, que estava observando a cena, insistiu que tivesse direito a uma
chance; Telêmaco então interviu, mandando sua mãe de volta a seu quarto. No
meio do burburinho o porqueiro Eumeu sorrateiramente retirou o arco e o levou a
Ulisses, colocando-o nas suas mãos. Vistoriou a arma familiar, para assegurar-se
que não estava danificada pelo longo desuso; então, "tão facilmente como um
músico que conhece as cordas de sua lira, foi colocado novo encordoamento após
a tripa de ovelha ter sido enrolada nas duas extremidades", encordoou o arco e o
curvou, o qual cantou nas suas mãos como uma chamada de uma andorinha. Em
118

silêncio, sem alarde, ajustou uma flecha no arco e atirou através de toda a linha
de machados.
Os pretendentes, pegos de surpresa, ficaram ainda mais chocados com a
seqüência. Ao correr Telêmaco para tomar o seu lugar ao lado do pai, Ulisses
apontou uma segunda flecha, desta vez à garganta de Antínoo. Não percebendo o
que estava acontecendo e pensando se tratar de um acidente, os pretendentes
cercaram Ulisses furiosos, mas quando contou-lhes quem realmente era e que sua
intenção era matar a todos, perceberam sua situação e tentaram atacá-lo. Ajudado
pelos fiéis servos, o vaqueiro e o porqueiro, Ulisses e Telêmaco poderiam ainda
estar em desvantagem pelo grande número de pretendentes, se Atena não tivesse
intervido em seu favor. Pretendente após pretendente caiu ao chão, sendo
poupados apenas o menestrel e o mensageiro, que foram pressionados a servirem
contra a vontade aos pretendentes. Os pretendentes "jaziam aos montes, sobre o
sangue e a poeira, como os peixes que o pescador tinha retirado das profundezas
entre as malhas de sua rede, numa curva de praia, para jazer em grupos sobre a
areia, arquejando pela água salgada até que o sol brilhante desse um fim a suas
vidas". Ulisses então "manchado com sangue e sujeira, como um leão que
acabasse de se alimentar de um novilho", chamou a velha ama Euméia. Ela
apontou as criadas que se desgraçaram ao servir os pretendentes limpando e
arrumando o salão; isto feito, foram enforcadas de uma vez no pátio.
Penélope, sob a influência de Atena, tinha dormido profundamente durante o
barulho da grande batalha no salão e as operações subseqüentes de limpeza.
Agora foi acordada por Euméia que contou as novas sobre o retorno de seu
marido. Atordoada pelo choque, não conseguia Ter completa certeza que o
estranho era realmente Ulisses, ou o que deveria dizer-lhe. Cautelosa como o seu
marido, ela colocou-lhe um teste final instruindo Euméia a retirar de seu quarto o
grande leito que Ulisses tinha construído. Ulisses sabia que o leito era impossível
de ser movido, pois tinha sido construído ao redor de uma oliveira viva. Apenas
quando, exasperado pela sua obstinação, descreveu a construção da cama é que
Penélope ficou convencida que ele era realmente seu marido longamente
desaparecido; atirou-se em seus braços e chorou. Então foram juntos para seu
leito nupcial e finalmente puderam ficar um nos braços do outro; Ulisses contou a
Penélope todas as suas aventuras e a noite continuou se estendendo, pois a deusa
Atena retardou a aurora às praias de Oceano.

XXIV - A Guerra de Tróia

A Guerra de Tróia realmente aconteceu? A extensão do apelo que a estória tem


exercido sobre sucessivas gerações é demonstrada pelos esforços de incontáveis
historiadores, arqueólogos e românticos entusiastas para estabelecer a base
histórica para a guerra de Tróia. Atualmente, é geralmente aceito que o local foi
corretamente identificado no final do século XIX por Heinrich Schliemann no monte
Hissarlik, na planície dos Dardanelos, na costa noroeste da Turquia. Entretanto, a
afirmação de Schliemann de ter descoberto a Tróia da guerra de Tróia é nos dias
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de hoje largamente desacreditada. O monte Hissarlik contém numerosos níveis


sucessivos de habitação, e foi num dos mais recentes que Schliemann afirmava ter
descoberto o maravilhoso tesouro: esta posição é agora considerada como sendo
nova demais da ordem de mil anos, para ter sido destruída pelos gregos dos
palácios de Micenas do continente grego. Estes podem ter sido o instrumento de
destruição de um dos mais antigos níveis de Hissarlik, o qual parece ter sido
queimado até o chão, possivelmente após um cerco, ao redor do período correto
(por volta de 1200 a.C.). Esta Tróia mais antiga apresentava características
bastante humildes, mas na sua destruição deve estar a semente da realidade
histórica ao redor da qual a lenda surgiu. Entretanto, o desenvolvimento da lenda
permanece um mistério com poucas possibilidades de ser solucionado pelos
arqueólogos, assim então não havendo perigo que o romântico enigma de Tróia
seja destruído.
Seja qual for a base histórica, a guerra de Tróia é o episódio isolado mais
importante, ou complexo de episódios, que sobreviveram na mitologia e nas lendas
gregas. Os eventos que causaram a guerra e aqueles que se seguiram estão
combinados num grupo de estórias conhecidas como o Ciclo Troiano: algumas são
conhecidas a partir dos dois grandes poemas Homéricos, a Ilíada e a Odisséia, mas
outras partes da estória devem ser reunidas de numerosas outras fontes, indo
desde os dramaturgos gregos do século V a.C., até autores romanos mais
recentes. A estória como um todo pode ser comparada a uma ópera wagneriana
na sua riqueza e complexidade ao entrelaçar personagens e temas; é bastante
romântica e de grande apelo humano, pois, como todos os mitos gregos, trata-se
da estória fundamental do homem e sua luta para existir em face do destino e dos
deuses.
Um dos primeiros elos da cadeia de eventos que formaram o prelúdio da guerra de
Tróia foi forjado por Prometeu, o grande benfeitor da humanidade. Prometeu, um
primo de Zeus, tinha dado o fogo aos homens, um elemento cujos benefícios
tinham tão-somente sido desfrutados pelos deuses. Tinha também ensinado os
homens para oferecer aos deuses apenas a gordura e os ossos em sacrifícios de
animais, mantendo as melhores partes para eles próprios. Para punir Prometeu,
Zeus o acorrentou num alto penhasco nas montanhas e diariamente enviava uma
águia para comer seu fígado, o qual voltava a crescer à noite.
De acordo com algumas fontes, Prometeu acabou sendo libertado por Hércules,
mas outras dizem que foi libertado por Zeus, quando finalmente concordou em
contar-lhe um importante segredo. Este segredo relacionava-se à ninfa do mar
Tétis, que era tão bela que contava com vários deuses entre seus admiradores,
incluindo Posídon e o próprio Zeus; entretanto uma profecia conhecida apenas por
Prometeu predisse que o filho de Tétis estava destinado a ser mais importante que
seu pai. Ao saber disso, Zeus rapidamente abandonou a idéia de ser o pai de um
filho de Tétis, decidindo, ao invés, que deveria se casar com o mortal Peleu; o filho
nascido deles seria Aquiles, o maior dos heróis gregos em Tróia.
Tétis inicialmente resistiu aos avanços de Peleu, assumindo a forma de fogo,
serpentes, monstros e outras formas, mas ele a segurava fortemente apesar de
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todas as suas transformações, acabando por se submeter. Todos os deuses e


deusas do Olimpo, menos uma, foram convidados para o magnífico casamento de
Peleu e Tétis; no meio da festa, Éris, a única deusa que não tinha sido convidada,
entrou abruptamente no local e atirou entre os convidados o Pomo da Discórdia,
com a inscrição "a mais formosa". Esta maça foi requisitada por três deusas, Hera,
Atena e Afrodite. Como elas não conseguiram chegar a um acordo, e Zeus estava
compreensivelmente relutante em resolver a disputa, enviou as deusas para terem
suas belezas julgadas pelo pastor Páris, no Monte Ida, fora da cidade de Tróia, na
orla oriental do Mediterrâneo.
Páris era filho de Príamo, rei de Tróia, mas quando a esposa de Príamo, Hécuba,
estava grávida de Páris, sonhou que estava dando à luz a uma tocha donde
surgiam serpentes sibilantes, assim, quando o bebê nasceu, foi entregue a uma
criada com ordens de levá-lo ao Monte Ida e matá-lo. A criada, entretanto, ao
invés de matá-lo, simplesmente o deixou na montanha para morrer; ele foi salvo
por pastores, sendo criado para também se transformar em um deles. Enquanto
Páris estava vigiando seu rebanho, Hermes levou as três deusas para que as
julgasse. Cada uma ofereceu uma recompensa se fosse a escolhida; Hera ofereceu
riqueza e poder, Atena ofereceu habilidade militar e sabedoria e Afrodite ofereceu
o amor da mais bela mulher do mundo. Conferindo a vitória a Afrodite, acabou
incorrendo na ira das outras duas, as quais se tornaram daí para a frente inimigas
implacáveis de Tróia. Logo depois, Páris retornou por acaso a Tróia, onde sua
habilidade nas competições atléticas e sua surpreendente bela aparência causaram
interesse nos seus pais, que rapidamente estabeleceram sua identidade e o
receberam de volta com entusiasmo.
A mais bela mulher do mundo era Helena, a filha de Zeus e Leda. Muitos reis e
nobres desejaram desposá-la, e antes que seu pai mortal, Tíndaro, anunciasse o
nome do feliz escolhido, fez todos jurarem respeitar a escolha de Helena e virem
em ajuda de seu marido se fosse raptada. Helena casou com Menelau, rei de
Esparta, e na época que Páris veio visitá-los tinham uma filha, Hermíone. Menelau
recebeu Páris muito bem em sua casa, mas Páris pagou esta hospitalidade
raptando Helena e fugindo com ela de volta a Tróia. A participação de Helena
nesta situação é explicada de diferentes maneiras nas várias fontes: foi raptada
contra a sua vontade, ou Afrodite deixou-a louca de desejo por Páris ou, a mais
elaborada de todas, nunca foi para Tróia, e foi por causa de um fantasma que os
gregos gastaram dez longos anos em guerra.

24.1 - A Expedição Parte

Menelau convocou todos os outros pretendentes anteriores de Helena, e todos os


outros reis e nobres da Grécia, para ajudá-lo a montar uma expedição contra
Tróia, de modo a recobrar sua esposa. O líder da força grega era Agamenon, rei
de Micenas e irmão mais velho de Menelau. Os heróis gregos afluíram de todos os
cantos do continente e das ilhas para o porto de Áulis, o ponto de reunião a partir
do qual planejavam velejar através do Egeu até Tróia. Suas origens e os nomes de
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seus líderes estão listados no grande Catálogo de Navios próximo ao início da


Ilíada.
"As tribos (de guerreiros) vieram como as incontáveis revoadas de
pássaros - garças azuis ou cisnes de longos pescoços - que se reúnem
nas campinas da Ásia nas correntes de Cayster, e movimentando-se com
gritos agudos ao chegarem ao chão, numa frente avançada. Assim, tribo
após tribo surgiram de barcos e cabanas... inumeráveis como as folhas e
flores em suas estações".
Alguns dos heróis viera a Áulis mais facilmente do que outros. Ulisses, rei de Ítaca,
conhecia a profecia que se fosse a Tróia não retornaria por vinte anos, e então
fingiu loucura quando o mensageiro Palamedes chegou para convocá-lo, atrelando
duas mulas a um arado e movendo-as para cima e para baixo na praia; mas a
farsa de Ulisses foi revelada quando Palamedes colocou o filho pequeno de Ulisses,
Telêmaco, na frente das mulas, e Ulisses imediatamente voltou ao normal. Os pais
de Aquiles, Peleu e Tétis, estavam relutantes em deixar seu jovem filho se juntar à
expedição, pois eles sabiam estar predestinado que se fosse morreria em Tróia.
Numa tentativa de evitar o destino, o enviaram para Ciros, onde, disfarçado como
uma moça, se juntou às filhas do rei, Licomedes. Durante esta estada se casou
com uma das filhas, Deidaméia, que lhe deu um filho, Neoptólemo.
Ulisses, entretanto, descobriu que os gregos nunca conseguiriam capturar Tróia
sem a ajuda de Aquiles; assim foi até Ciros para buscá-lo. De acordo com uma das
versões da estória, Ulisses disfarçou-se de mascate, conseguiu entrar no palácio e
espalhou suas mercadorias à frente das mulheres; entre as jóias e os tecidos havia
armas às quais o jovem Aquiles demonstrou um interesse revelador. Outra fonte
descreve como Ulisses arranjou para que soasse uma trombeta nos aposentos das
mulheres: enquanto as filhas genuínas se espalhavam em confusão, Aquiles ficou
no seu lugar e empunhou suas armas. Tendo abandonado seu disfarce, Aquiles foi
facilmente persuadido a acompanhar Ulisses de volta a Áulis, onde a frota estava
se preparando para zarpar.
A grande força grega, cujos maiores heróis eram Agamenon, Menelau, Ulisses,
Ájax, Diomedes e Aquiles, estava pronta para partir, mas o vento teimosamente
ficou contra eles. Eventualmente, o profeta Calcas revelou que a deusa Ártemis
exigia o sacrifício da filha de Agamenon, Ifigênia, antes que o vento mudasse.
Agamenon ficou horrorizado pela profecia, mas a opinião pública o obrigou a
obedecer: Ifigênia, chamada sob o pretexto de casar com Aquiles, foi, ao
contrário, morta sobre o altar. Algumas fontes dizem que Ártemis ficou com pena
dela no último momento e a substituiu por um cervo; de qualquer maneira, o
vento mudou de direção e os barcos zarparam.

24.2 - A Ira de Aquiles

Algumas vezes se considera que a Ilíada é a estória da guerra de Tróia. De fato,


apesar de ela se estender largamente sobre toda a estória, seu objetivo ostensivo,
como anunciado nas primeiras linhas, é mais restrito:
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"Canto de ira, deusa, a destruidora ira de Aquiles, filho de Peleu, que


trouxe incontáveis dores aos Aqueus, e mandou muitas almas valiosas de
heróis a Hades, enquanto seus corpos serviam de alimento para os cães
e pássaros, e a vontade de Zeus foi feita... "
A estória da Ilíada é, então, a estória de Aquiles, e sua disputa com Agamenon. Ao
início da Ilíada os gregos já estavam em Tróia por nove anos. Eles tinham
saqueado uma grande parte dos campos ao redor e tinham escaramuças
esporádicas com quaisquer troianos que saíssem de trás de suas maciças
fortificações. Os gregos estavam ficando cansados da campanha e irritados por sua
falta de habilidade em conseguir uma vitória decisiva sobre a própria Tróia,
quando Aquiles se desentendeu com Agamenon sobre um assunto de honra.
Agamenon, como parte do saque de um ataque o qual Aquiles desempenhou a
parte principal, recebeu uma moça chamada Criseida, filha de Crisos, sacerdote de
Apolo. Crisos ofereceu a Agamenon um bom resgate para a libertação da moça,
porém Agamenon se recusou a libertá-la. Assim Crisos orou a Apolo, que mandou
uma praga sobre o acampamento grego, e o profeta Calcas revelou que esta seria
retirada apenas se Agamenon devolvesse Criseida. Aquiles estava completamente
a favor de fazer isso, mas Agamenon estava relutante. Eles discutiram, e
Agamenon acabou por concordar a fazer o que estava sendo ordenado, mas para
reafirmar sua autoridade sobre Aquiles da maneira mais insultuosa que podia, e
simultaneamente compensar-se pela perda de Criseida (a qual ele declarou preferir
à sua própria esposa Clitemnestra), tomou Aquiles sua escrava, Briseida. Aquiles
ficou justificadamente enraivecido. Não apenas foi um insulto à sua honra, mas
também foi grandemente injusto, pois ele, Aquiles, tinha conduzido a maior parte
da luta necessária a produzir os tesouros e o saque que Agamenon considerava no
direito de usufruir. Assim, Aquiles se retirou para sua tenda, e não tomou mais
parte nos combates ou nas reuniões do conselho. A luta se tornou mais dura, com
ataques mais diretos feitos a Tróia e aos troianos. Mas os gregos estavam numa
situação difícil sem seu maior guerreiro, e mesmo Agamenon tentou fazer contatos
com Aquiles, oferecendo-lhe riquezas de todos os tipos, justamente com a
devolução de Briseida. Aquiles, entretanto, rejeitou todos os apelos, declarando
mesmo que se as ofertas de Agamenon fossem "tantas como os grãos de areia ou
as partículas de pó" nunca se curvaria.
Nesta ocasião, Ulisses e Diomedes empreenderam uma expedição noturna para
espionar os troianos. Não sabendo disso, um troiano de nome Dolon estava
tentando fazer a mesma coisa: os gregos o surpreenderam e o forçaram a contar
as disposições do acampamento troiano. Seguindo sua orientação, terminaram sua
expedição noturna com um ataque ao acampamento de Reso, rei da Trácia, em
cujos belos cavalos escaparam de volta para o acampamento grego.
Apesar do sucesso desta temerária ação, o geral da luta os gregos estavam sendo
empurrados de volta a seus navios pelos troianos e estavam ficando desesperados,
quando o amigo de Aquiles, Pátroclo, veio até ele e rogou a permissão de liderar
as tropas de Aquiles, os Mirmidões, em batalha. Pediu também se poderia
emprestar a armadura de Aquiles, de modo a espalhar o terror nas linhas troianas,
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que poderiam tomá-lo por Aquiles. Aquiles concordou, e Pátroclo foi e lutou longa
e gloriosamente, antes de, previsivelmente, ser morto por Heitor, filho de Príamo e
o melhor guerreiro do lado troiano.
Aquiles foi tomado pela dor. Sua mãe, a ninfa do mar Tétis, veio até ele e
prometeu-lhe uma nova armadura para substituir a que tinha sido perdida com
Pátroclo. A nova armadura, feita pelo deus-ferreiro Hefesto, incluía um bonito
escudo coberto com cenas figuradas, cidades em guerra e em paz, cenas da vida
rural com rebanhos, pastores e danças rústicas, e ao redor da borda do escudo
corria o Rio de Oceano. Aquiles e Agamenon se reconciliaram e Aquiles retornou
ao campo de batalha, onde matou um troiano após outro com sua lança "como um
vento impetuoso que revolve as chamas, quando um incêndio grassa nas ravinas
das bases secas pelo sol das montanhas, e a grande floresta é consumida". Após
ter matado muitos troianos e sobreviventes mesmo ao ataque do Rio Escamandro,
o qual tentou afogá-lo nas suas grandes ondas, Aquiles estava finalmente pronto a
enfrentar seu principal adversário, Heitor.
O restante dos troianos tinha fugido da matança de Aquiles e buscado refúgio
atrás de suas muralhas, mas Heitor permaneceu fora dos portões,
deliberadamente esperando pelo duelo que sabia ter que enfrentar. Mas quando
Aquiles finalmente surgiu, Heitor foi tomado de compreensível terror e virou-se
para fugir. Percorreram três voltas ao redor das muralhas de Tróia antes que
Heitor parasse e destemidamente enfrentasse seu bravo oponente. A lança de
Aquiles alojou-se na garganta de Heitor, caindo este ao chão. Mal podendo falar,
Heitor pediu a Aquiles que permitisse que seu corpo fosse resgatado após sua
morte, mas Aquiles, furioso com o homem que tinha morto Pátroclo, negou seu
apelo e começou a sujeitar seu corpo a grandes indignidades. Primeiro o arrastou
pelos calcanhares atrás de sua carruagem, ao redor das muralhas da cidade, para
que toda Tróia pudesse ver. A seguir levou o corpo de volta ao acampamento
grego, onde este ficou jogado sem cuidados em suas choupanas.
Aquiles preparou então um elaborado funeral para Pátroclo. Uma grande pira foi
construída; sobre ela várias ovelhas e bois foram sacrificados e suas carcaças
empilhadas ao lado do corpo do herói morto. Jarros de mel e óleo foram
adicionados à pira, a seguir quatro cavalos e dois dos cachorros de Pátroclo. Doze
prisioneiros troianos mortos sobre a pira, a qual então foi deixada acesa. Ardeu
toda a noite, e durante toda a noite Aquiles colocou libações com vinho e pranteou
Pátroclo bem alto. Nos dia seguinte os ossos de Pátroclo foram coletados e
colocados numa urna dourada, e um grande monte foi erguido no local da pira.
Jogos funerários com prêmios magníficos foram feitos, com competições entre
carruagens, luta de boxe, pugilato, corridas, lutas armadas, arremesso do disco e
tiros com arco e flecha. E todo o dia ao amanhecer, por doze dias. Aquiles arrastou
o corpo de Heitor três vezes ao redor do monte, até que mesmo os deuses, que
tinham previsto e arranjado tudo isso, ficaram chocados; Zeus enviou Íris,
mensageiro dos deuses, para Tróia em visita a Príamo e o instruiu a ir
secretamente ao acampamento troiano com um bom resgate, que Aquiles aceitaria
em troca da libertação do corpo do filho de Príamo.
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Assim Príamo, escoltado por um simples mensageiro, se dirigiu ao acampamento


grego, sendo encontrado ao escurecer, quando se aproximava dos navios gregos,
por Hermes disfarçado como um seguidor de Aquiles. Hermes guiou Príamo pelo
acampamento grego, de modo que chegou sem ser percebido à tenda de Aquiles.
Príamo entrou diretamente e jogou-se aos pés de Aquiles: ele pediu que o herói
pensasse no seu próprio pai Peleu e tivesse mercê com um pai que tinha perdido
tantos de seus bons filhos nas mãos dos gregos; pediu que fosse permitido levar o
corpo de seu maior filho de volta a Tróia com ele, de modo que pudesse ser
adequadamente pranteado e enterrado pelos seus parentes. Aquiles ficou tocado
pelo apelo; choraram juntos, e o pedido de Príamo foi aceito. Assim, o corpo de
Heitor foi devolvido a Tróia, onde foi velado e sepultado com os ritos adequados.
Aqui acaba a Ilíada mas não é de forma nenhuma o fim da estória de Tróia. O
restante da estória é recontada parcialmente na Odisséia e em parte pelos
dramaturgos, mas também por autores romanos posteriores, principalmente
Cirílico na Emelia e por uma miscelânea de poetas como Quintus de Smirna. Após
a morte de Heitor, uma grande número de aliados vieram auxiliar os troianos,
incluindo as Amazonas com sua rainha, Pentesiléia, e os Etíopes liderados por
Mêmnon, um filho de Éos, deusa da aurora. Tanto Pentesiléia como Mêmnon
foram mortos por Aquiles. Mas Aquiles sempre soube que estava destinado a
morrer em Tróia, longe de sua terra natal, onde acabou sendo morto por uma
flecha, lançada pelo arco de Páris. A mãe de Aquiles, Tétis, quis tornar seu filho
imortal, e, quando este era ainda um bebê, levou-o ao Mundo Inferior e o imergiu
nas águas do rio Estige; isto tornou seu corpo imune aos ferimentos, exceto pelo
calcanhar, o qual ela utilizou para segurá-lo, sendo lá que a flecha o acertou.

24.3 - O Saque de Tróia

Após a morte de seu maior campeão, os gregos recorreram à astúcia nos seus
esforços de capturar Tróia, que tinha agüentado seu cerco por dez longos anos. O
Cavalo de Madeira é considerado como sendo idéia de Ulisses, enquanto o artesão
responsável por sua confecção foi Epeios. Ao ficar pronto, um grupo composto dos
gregos mais corajosos entrou dentro dele, incluindo o próprio Ulisses e
Neoptólemo, filho de Aquiles. O restante das forças gregas queimou suas cabanas
e partiram nos barcos, indo somente, entretanto, até a ilha de Tênedo, onde
aportaram e esperaram. Os troianos, mal podendo acreditar que os gregos tinham
se retirado, espalharam-se pela planície, ficaram maravilhados com o cavalo de
madeira e lembravam uns aos outros onde ficava o acampamento grego. Logo,
alguns pastores encontraram um único grego que tinha sido deixado para trás,
Sinon, que lhes contou que os seus compatriotas quiseram sacrificá-lo para
conseguir um vento favorável para a travessia; tinha conseguido escapar com
dificuldade das correntes com as quais estava preso. Esta estória despertou a
compaixão dos troianos, de modo que ficaram dispostos a acreditar no restante de
seu relato. Disse que os gregos, acreditando que Atena tinha se voltado contra
eles, tinha decidido velejar de volta e tentar conseguir novamente as graças
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divinas que a expedição possuía originalmente. Tinham construído o cavalo para


agradar Atena, e o fizeram deliberadamente grande, de modo que os troianos não
pudessem levá-lo para dentro de suas muralhas. Se o Cavalo entrasse em Tróia, a
cidade nunca seria tomada; se ficasse de fora, os gregos acabariam voltando e
arrasariam a cidade até os alicerces.
Uns poucos troianos desconfiaram do Cavalo e relutaram em trazê-lo para dentro
das muralhas. A profetisa Cassandra, filha de Príamo, cujo destino era que suas
profecias nunca tivessem crédito, alertou sobre a morte e a destruição que a
entrada do Cavalo traria a Tróia. E Laocoonte, o sacerdote de Posídon, fincou sua
lança contra os flancos do Cavalo, que ressoou com os tinidos dos homens
armados, e declarou que temia os gregos, mesmo quando eles davam presentes.
Mas, enquanto preparava um sacrifício ao deus que servia, duas grandes serpentes
surgiram do mar e estrangularam primeiro seus dois jovens filhos e a seguir o
próprio Laocoonte, antes de se refugiarem sob a altar de Atena. Com este augúrio,
os troianos não hesitaram mais e começaram a mover o grande Cavalo para
dentro de suas muralhas, derrubando suas fortificações de modo a poder fazê-lo.
Mesmo, então, o esconderijo dos heróis gregos poderia ter sido descoberto, pois
Helena decidiu aproximar-se do Cavalo e, andando a sua volta, chamou os nomes
dos heróis gregos, imitando a voz da esposa de cada homem. Alguns ficaram
tentados a responder, e apenas Ulisses teve a presença de espírito de conter suas
vozes.
Ao cair da noite, o traiçoeiro Sinon sinalizou para a frota em Tênedo, que retornou
silenciosamente a seu antigo local de ancoragem; Sino também liberou os heróis
de seu confinamento dentro do Cavalo, estando pronta a cena para o saque de
Tróia. Quando os deuses do Cavalo receberam o apoio de seus camaradas dos
navios, os troianos acordaram para ver sua idade em chamas. Os homens lutaram
desesperadamente, resolvidos a pelo menos vender caro suas vidas, horrorizados
pela visão de suas mulheres e filhos sendo arrancados de seus refúgios para serem
mortos ou aprisionados. Mais deplorável foi a morte de Príamo, assassinado no
altar de seu parque por Neoptólemo, filho do homem que tinha morto seu filho
Heitor. Dentre os poucos que escaparam de Tróia estava Enéias, filho de Anquises
e da deusa Afrodite. Alertado por sua mãe, ele abandonou a cidade com seu filho
pequeno Ascânio e seu velho pai, levando com eles os deuses de Tróia; sua
esposa o seguiu, mas se perdeu na confusão, trevas e destroços da cidade que
estava morrendo. Enéias estava destinado a, após muito vagar, alcançar a Itália,
onde fundou uma nova e maior Tróia, a precursora de Roma.
As aventuras dos dois heróis gregos no seu caminho de volta para casa e as
numerosas homenagens que receberam foram reunidas num grupo de poemas
épicos conhecidos como Nostoi (Retornos). Dentre estes poemas, a Odisséia, que
relata a volta de Ulisses à sua terra natal em Ítaca, é a única que sobrevive; a
volta de outros heróis deve ser coletada de uma variedade de fontes.

24.4 - O Retorno de Agamenon


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Agamenon e Menelau eram filhos de Atreu, o qual cometeu um terrível crime


quando, numa briga familiar, serviu a seu próprio irmão Tiestes um prato
preparado com membros dos próprios filhos deste. Este ato trouxe uma maldição
sobre a casa de Atreu, e o destino que Agamenon encontrou no seu retorno de
Tróia foi em parte uma retribuição pelo crime original de seu pai. Na ausência de
Agamenon por dez anos de Micena, o governo ficou nas mãos de sua esposa
Clitemnestra, auxiliada pelo seu amante Egisto, o único filho sobrevivente de
Tiestes. Uma cadeia de luzes iluminou os céus transmitindo a notícia da grande
vitória em Tróia para a Grécia; na ocasião que Agamenon chegou a seu palácio, os
planos de Clitemnestra estavam bem adiantados.
Encontrou seu marido à entrada do palácio, insistiu que ele deveria caminhar sobre
os tecidos de cor púrpura que tinha estendido para ele, numa entrada triunfal.
Agamenon estava relutante em cometer tal ato de insolência e impiedade, mas
acabou cedendo e selou assim sua sina. Seguindo-o para dentro do palácio,
Clitemnestra o atacou enquanto estava indefeso tomando banho, primeiro
envolvendo-o com uma rede, matando-o a seguir violentamente com um
machado. Os motivos dela para tão brutal assassinato eram complexos, mas
parece que não era tanto devido a sua reprovável paixão por Egisto e o desejo de
vingar o malfeito a seu pai e irmãos, mas o seu próprio ódio por Agamenon a
levou a fazê-lo. Agamenon tinha assassinado brutalmente o primeiro marido e os
filhos de Clitemnestra ante os olhos dela; também tinha sacrificado a filha deles
Ifigênia em Áulis. Ela desejava vingança.
A maldição de Atreu não morreu com Agamenon, pois ele e Clitemnestra tinham
outros dois filhos, Orestes e Electra, dispostos a vingar a morte do pai. Orestes,
quando ainda bebê, tinha sido enviado por sua irmã para fora de Micenas para a
segurança de Fócida, para protegê-lo de sua traiçoeira mãe. Electra permaneceu
em casa e foi maltratada por Clitemnestra e Egisto; de acordo com algumas
versões da estória, a casaram com um camponês de modo que a descendência
real terminasse em ignomínia. Quando se tornou adulto, Orestes retornou
secretamente à casa, acompanhado de seu amigo Pílades. Chegando à tumba de
seu pai, depositou mechas de seu cabelo sobre o túmulo, que foram reconhecidos
por Electra, que se aproximou para oferecer um sacrifício apaziguador em
benefício de sua mãe; Clitemnestra tinha tido um sonho de mau augúrio, onde
tinha dado à luz a uma serpente que tinha mamado em seu seio e sugado todo o
seu sangue. Orestes evidentemente viu isso como um auspício para si próprio, e
após uma acirrada discussão sobre os horrores do matricídio, Electra convenceu
Orestes a matar sua mãe e Egisto. Devido a este feito, ele foi tornado insano pelas
Fúrias, que o perseguiram até que, num julgamento especial do Areópago
Ateniense, foi absolvido com base em que assassinar a mãe é um crime menos
grave do que um assassinato de um marido. Desta forma, a maldição da casa de
Atreu terminou.

XXV - Pã, deus da Arcádia


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25.1 - Nascimento de Pã

Pã, antiquíssima divindade pelágica especial à Arcádia, é o guarda dos rebanhos


que ele tem por missão fazer multiplicar. Deus dos bosques e dos pastos, protetor
dos pastores, veio ao mundo com chifres e pernas de bode. Pã é filho de Mercúrio.
Era assaz natural que o mensageiro dos deuses, sempre considerado
intermediário, estabelecesse a transição entre os deuses de forma humana e os de
forma animal. Parece, contudo, que o nascimento de Pã provocou certa emoção
em sua mãe, assustadíssima com tão esquisita conformação; e as más línguas
pretendem até que, quando Mercúrio apresentou o filho aos demais deuses, todo o
Olimpo desatou a rir. Mas como é provável que haja nisso um pouco de exagero,
convém restabelecer os fatos na sua verdade, e eis o que diz o hino homérico
sobre a estranha aventura. "Mercúrio chegou à Arcádia fecunda em rebanhos; ali
se estende o campo sagrado de Cilene; nesses páramos, ele, deus poderoso,
guardou as alvas orelhas de um simples mortal, pois concebera o mais vivo desejo
de se unir a uma bela ninfa, filha de Dríops. Realizou-se enfim o doce o doce
himeneu. A jovem ninfa deu à luz o filho de Mercúrio, menino esquisito, de pés de
bode, e testa armada de dois chifres. Ao vê-lo, a nutriz abandona-o e foge.
Espantam-na aquele olhar terrível e aquela barba tão espessa. Mas o benévolo
Mercúrio, recebendo-o imediatamente, pô-lo ao colo, rejubilante. Chega assim à
morada dos imortais ocultando cuidadosamente o filho na pele aveludada de uma
lebre. Depois, apresenta-lhes o menino. Todos os imortais se alegram, sobretudo
Baco, e dão-lhe o nome de Pã, visto que para todos constituiu objeto de diversão."
As ninfas zombavam incessantemente do pobre Pã em virtude do seu rosto
repulsivo, e o infeliz deus, ao que se diz, tomou a resolução de nunca amar. Mas
Cupido é cruel e afirma uma tradição que Pã, desejando um dia lutar corpo a
corpo com ele, foi vencido e abatido, diante das ninfas que se riam.

25.2 - Pã e Syrinx

Um dia percorria Pã o monte Liceu, segundo o seu hábito, e encontrou a ninfa


Syrinx que jamais quisera receber as homenagens das divindades e que só tinha
uma paixão: a caça. Aproximou-se dela, e como nos costumes campestres se vai
imediatamente ao objetivo, sem nenhum artifício, sem nenhum desvio, disse-lhe:
"Cedei, formosa ninfa, aos desejos de um deus que pretende tornar-se vosso
esposo." (Ovídio).
Queria falar mais; mas Syntrix, pouco sensível àquelas palavras, deitou a correr, e
já chegara perto do rio Ladon, seu pai, quando, vendo-a detida, rogou às ninfas,
suas irmãs, que a acudissem. Pã, que lhe saíra no encalço, quis abraçá-la, mas em
vez de uma ninfa, só abraçou caniços. Suspirou e os caniços agitados emitiram um
som doce e queixoso. O deus, comovido com o que acabava de ouvir, pegou
alguns caniços de tamanho desigual e, unindo-os com cera, formou a espécie de
instrumentos que se chama syrinx e que constitui a flauta de sete tubos,
transformada em atributo de Pã.
128

25.3 - Pítis Metamorfoseada em Pinheiro

Com efeito, em breve, os melodiosos acordes fazem acorrer de toda parte as


ninfas que vêm dançar em volta do deus chifrudo. A ninfa Pítis parece tão
enternecida que Pã renasce com a esperança e crê que o seu talento faz com que
seja esquecido o rosto. Sempre tocando a flauta de sete tubos, começa a procurar
lugares solitários e percebe, finalmente, um rochedo escarpado no alto do qual
resolve sentar-se. Pítis segue-o. Para melhor ouvi-lo, aproxima-se cada vez mais,
tanto que Pã, vendo-a bem perto, julga o momento oportuno para lhe falar. Não
sabia o infeliz que Pítis era amada por Bóreas, o terrível vento do norte, que
naquele instante soprava com grande violência. Vendo a amante perto de um deus
estranho, Bóreas foi acometido de um acesso de ciúme furioso, e, não se
contendo, soprou com tal impetuosidade que a ninfa caiu no precipício, e
despedaçou contra as pedras o formoso corpo, imediatamente transformado pelos
deuses em pinheiro. Foi depois disso que essa árvore, que traz o nome da ninfa
(Pítis significa, em grego, pinheiro) foi consagrada a Pã, e é por esse motivo que
nas representações figuradas, a cabeça de Pã está muitas vezes coroada de ramos
de pinheiro.

25.4 - Pã e a Ninfa Eco

O destino de Pã era amar sempre sem que nunca lograsse unir-se à criatura
amada. Continuando a fazer música na montanha, ouviu, saída do fundo do vale,
uma terna voz que parecia repetir-lhe os acordes. Era a voz da ninfa Eco, filha do
Ar e da Terra. Desceu, então, para procurar a que lhe havia respondido, sem
nunca poder atingi-la, embora ela lhe respondesse constantemente; a cruel ninfa
parecia rir-se dele. Mas, francamente, ninguém a pode censurar por isso. Quando
se ama o belo Narciso, como é possível encarar o velho Pã? Pã é sempre velho,
apesar de ter tido por pai Mercúrio, que é eternamente jovem.

25.5 - Pã, Filho de Mercúrio

Um dia o pai e o filho encontraram-se:


Pã.  Bom dia, Mercúrio, meu pai!
Mercúrio.  Bom dia. Como dizes que sou teu pai?
Pã.  Não és Mercúrio, o deus de Cilene?
Mercúrio.  Sim. Como és meu filho?... Ah, por Júpiter! Lembro-me agora da
aventura! Quer dizer que eu, que tanto me orgulho desta minha beleza, e que não
tenho barba, devo ser chamado teu pai! Todos se riram de mim, por ser meu filho
um sujeito tão bonito assim!
Pã.  Mas eu não vos desonro, meu pai. Sou músico e toco muito bem flauta. Baco
não dá um passo sem mim. Escolheu-me por amigo e companheiro das danças, e
sou eu quem lhe conduz os coros.
129

Mercúrio.  Pois bem, Pã (creio que é esse o teu nome), sabes como podes ser-me
agradável? E queres, além disso, conceder-me um favor?
Pã.  Ordenai, meu pai, e nós veremos.
Mercúrio.  Vem cá, dá-me um abraço. Mas cuida de não me chamares de pai na
presença de estranhos. (Luciano).

25.6 - Pã, Divindade Pastoril

Como símbolo da obscuridade, Pã causa nos homens os terrores pânicos, isto é,


sem motivo. Na batalha de Maratona, inspirou aos persas um desses terrores
súbitos, o que contribuiu bastante para assegurar a vitória aos gregos. Foi por
causa desse auxílio que os atenienses lhe consagraram uma gruta na Acrópole.
Todavia, a princípio, Pã nada mais era do que a divindade pastoril dos arcádios
que o invocavam para que lhes multiplicasse os rebanhos. "Glauco e Coridon, que
conduzem juntos os seus rebanhos de bois pelas montanhas, ambos arcádios,
imolaram a Pã, guarda do monte Cilene, a novilha de lindas pontas; e as pontas,
de doze palmas, prenderam-nas em sua honra, mediante um longo cravo, ao
tronco deste plátano copado, bela oferta ao deus dos pastores." (Antologia).
As imagens primitivas de Pã eram providas de um símbolo cuja crueza significativa
nada possuía naquele tempo de licencioso. O seu culto, que posteriormente se
sumiu diante do das divindades do Olimpo, é extremamente antigo na Arcádia e
muito certamente anterior a qualquer civilização. "Quando a educação do gado
não prosperava, diz Creuzer, os pastores arcádios golpeavam os ídolos do deus Pã,
costume que prova a sua profunda barbaridade em matéria de religião."

25.7 - Pã, deus Universal

Sob a influência da poesia órfica, o deus Pã tornou-se o símbolo panteísta fundado


na interpretação do seu nome: a flauta de sete tubos representa, então, as sete
notas da harmonia universal, e a fusão das formas animais com as formas
humanas corresponde ao caráter múltiplo da vida no universo. É sob tal aspecto
que Pã nos surge numa linda composição de Gillot. Essa imagem corresponde à
idéia que da antigüidade tinha o século dezoito. Toda natureza está em festa
diante do deus que simboliza a universalidade dos seres; mas tal festa, tão repleta
de vida e de movimento, nos lembra as quermesses flamengas muito mais que os
baixos-relevos antigos.
Sob o reinado de Tibério, estando um navio ancorado, ouviu-se uma voz
misteriosa que gritava: "O grande deus Pã morreu!" Desde então, nunca mais se
ouviu falar dele.

25.8 - Um Pouco mais de Pã

O deus Pã, assim chamado, diz-se da palavra grega pã, que quer dizer tudo, era
filho, segundo uns, de Júpiter e da ninfa Timbris, segundo outros de Mercúrio e da
130

ninfa Penélope. Dizem outras tradições que era filho de Júpiter e da ninfa Calisto,
ou talvez do Ar e de uma Nereida, ou finalmente do Céu e da Terra. Todas essas
diversas origens têm uma explicação, não só no grande número de deuses com
esse nome, mas ainda nas múltiplas atribuições que a crença popular emprestava
a essa divindade. O seu nome parecia indicar a extensão do poder, e a seita dos
filósofos estóicos identificava Pã com o Universo, ou ao menos com a natureza
inteligente, fecunda e criadora.
Mas a opinião comum não se elevava a uma concepção tão geral e filosófica. Para
os povos, o deus Pã tinha um caráter e uma missão sobretudo agrestes. Se nos
mais remotos tempos ele havia acompanhado os deuses do Egito, na sua
expedição das Índias, se tinham inventado a ordem de batalha e a divisão das
tropas em ala direita e em ala esquerda, o que os gregos e os latinos chamavam
os cornos de um exército, se era mesmo por essa razão que o representavam com
chifres, símbolo da sua força e da sua invenção, a imaginação popular, desde logo
tendo restringido e limitado as suas funções, havia-o colocado nos campos, entre
os pastores e os rebanhos.
Era principalmente venerado na Arcádia, região das montanhas, onde proferia
oráculos. Em sacrifício ofereciam-lhe mel e leite de cabra. Celebravam-se em honra
sua as Lupercais, festas que depois se espalharam na Itália, onde o árcade
Evandro levou o culto de Pã. Representam-no ordinariamente muito feio, com os
cabelos e a barba descuidados, com chifres, e corpo de bode da cintura para
baixo, enfim, pouco diferente de um fauno ou de um sátiro. Muitas vezes empunha
um cajado e uma flauta de sete tubos que se chama a flauta do Pã, porque se diz
que foi ele o inventor, graças à metamorfose da ninfa Sirinx em juncos do Ladon.
Viam-no também como o deus dos caçadores; quando ia à caça, mais do que dos
animais ferozes era o terror das ninfas, a quem perseguia com os seus ardores
amorosos. Está sempre atrás de emboscadas atrás dos rochedos e das moitas;
para ele o campo não tem mistérios. Foi por isso que descobriu e revelou, a
Júpiter, o esconderijo de Ceres, depois do rapto de Prosérpina.
Pã foi muitas vezes confundido na literatura latina com Fauno e Silvano. Muitos
autores os consideravam como um só divindade com diferentes nomes. As
Lupercais eram mesmo celebradas em tríplice honra desses gênios. Entretanto Pã
é o único de quem se fez alegoria e que foi considerado como um símbolo da
Natureza, conforme a significação do seu nome. Dizem os mitólogos que os seus
chifres representam os raios do Sol; a vivacidade de sua tez exprime o fulgor do
céu; a pele de cabra estrelada que usa sobre o estômago representa as estrelas do
firmamento; enfim os seus pés e as suas pernas eriçados de pêlos designam a
parte inferior do mundo,  a terra, as árvores e as plantas.
Os seus amores suscitaram-lhe rivais, às vezes perigosos. Um deles, Bóreas, quis
arrebatar violentamente a ninfa Pitis, que era a Terra, condoída, metamorfoseou
em pinheiro. Eis a razão porque essa árvore, conservando ainda, os sentimentos
da ninfa, coroa Pã com a sua folhagem, enquanto o sopro do Bóreas excita os seus
gemidos.
131

Pã também foi amado por Silene, isto é, a Lua ou Diana, que para ir visitá-lo nos
vales e nas grutas das montanhas, esquece o belo e terno dormilão Endímion.
Sob o reinado de Tibério a fábula do grande Pã motivou um acontecimento que
interessou vivamente a cidade de Roma e que merece ser contado. "No mar Egeu,
diz Plutarco, estando uma tarde o navio do piloto Tamo nas imediações de certas
ilhas, o vento cessou de repente. Todas as pessoas a bordo estavam bem
acordadas, muitas mesmo passavam o tempo bebendo umas com as outras,
quando ouviram de súbito uma voz que vinha das ilhas e que chamava Tamo.
Tamo deixou que o chamassem duas vezes sem responder, mas à terceira
respondeu. A voz então ordenou-lhe que, ao chegar a um certo lugar, gritasse que
o grande Pã tinha morrido. Não houve ninguém a bordo que não ficasse tomado
de terror e de espanto. Deliberou-se se Tamo devia obedecer à voz e Tamo
concluiu que, se quando chegassem à paragem indicada, houvesse bastante vento
para passar adiante, não era preciso dizer nada; mas que se aí uma calmaria os
detivesse, era necessário desempenhar-se da ordem recebida. Ficou surpreendido
da calma que reinava nesse lugar, e imediatamente começou gritar a plenos
pulmões: 'O grande Pã morreu!' Apenas cessou de gritar, que todos ouviram de
todos os lados queixas e gemidos, como os de muitas pessoas surpresas e aflitas
por essa notícia.
Os que estavam no navio foram testemunhas dessa estranha aventura; e o ruído
em pouco tempo se espalhou em Roma. O imperador Tibério quis ver a Tamo; viu-
o, interrogou, reuniu os sábios para deles saber quem era esse grande Pã, e se
chegou à conclusão de que era filho de Mercúrio e de Penélope."
Outros mitólogos, interpretando este fato, preferiram ver nele o fim do antigo
mundo romano e o advento de uma sociedade nova.

XXVI - Prometeu e Pandora

26.1 - A Criação do Mundo

A criação do mundo é um problema que, muito naturalmente, desperta a


curiosidade do homem, seu habitante. Os antigos pagãos, que não dispunham,
sobre o assunto, das informações que dispomos, procedentes das Escrituras,
tinham sua própria versão sobre o acontecimento, que era o seguinte:
Antes de serem criados a terra, o mar e o céu, todas as coisas apresentavam um
aspecto a que se dava o nome de Caos  uma informe e confusa massa, mero peso
morto, no qual, contudo, jaziam latentes as sementes das coisas. A terra, o mar e
o ar estavam todos misturados; assim, a terra não era sólida, o mar não era
líquido e o ar não era transparente. Deus e a Natureza intervieram finalmente e
puseram fim a essa discórdia, separando a terra do mar e o céu de ambos. Sendo
a parte ígnea a mais leve, espalhou-se e formou o firmamento; o ar colocou-se em
seguida, no que diz respeito ao peso e ao lugar. A terra, sendo a mais pesada,
ficou para baixo, e a água ocupou o ponto inferior, fazendo flutuar a terra.
132

Nesse ponto, um deus  não se sabe qual  tratou de empregar seus bons ofícios
para arranjar e dispor as coisas na terra. Determinou aos rios e lagos seus lugares,
levantou montanhas, escavou vales, distribuiu os bosques, as fontes, os campos
férteis e as áridas planícies, os peixes tomaram posse do mar, as aves do ar e os
quadrúpedes da terra.
Tornara-se necessário, porém, um animal mais nobre, e foi feito o Homem. Não se
sabe se o criador o fez de materiais divinos, ou se na terra, há tão pouco tempo
separada do céu, ainda havia algumas sementes celestiais ocultas. Prometeu
tomou um pouco dessa terra e, misturando-se com água, fez o homem à
semelhança dos deuses. Deu-lhe o porte erecto, de maneira que, enquanto os
outros animais têm o rosto voltado para baixo, olhando a terra, o homem levanta
a cabeça para o céu e olha as estrelas.
Prometeu era um dos titãs, uma raça gigantesca, que habitou a terra antes do
homem. Ele e seu irmão Epimeteu foram incumbidos de fazer o homem e
assegurar-lhe, e aos outros animais, todas as faculdades necessárias à sua
preservação. Epimeteu encarregou-se da obra e Prometeu de examiná-la, depois
de pronta. Assim, Epimeteu tratou de atribuir a cada animal seus dons variados, de
coragem, força, rapidez, sagacidade; asas a um, garras a outro, uma carapaça
protegendo um terceiro, etc. Quando, porém, chegou a vez do homem, que tinha
de ser superior a todos os outros animais, Epimeteu gastara seus recursos com
tanta prodigalidade, que nada mais restava. Perplexo, recorreu a seu irmão
Prometeu, que, com a ajuda de Minerva, subiu ao céu e acendeu sua tocha no
carro do sol, trazendo o fogo para o homem. Com esse Dom, o homem assegurou
sua superioridade sobre todos os outros animais. O fogo lhe forneceu o meio de
construir as armas com que subjugou os animais e as ferramentas com que
cultivou a terra; aquecer sua morada, de maneira a tornar-se relativamente
independente do clima, e, finalmente, criar a arte da cunhagem das moedas, que
ampliou e facilitou o comércio.

26.2 - A Caixa de Pandora

A mulher não fora ainda criada. A versão (bem absurda) é que Júpiter a fez e
enviou-a a Prometeu e seu irmão, para puni-los pela ousadia de furtar o fogo do
céu, e ao homem, por tê-lo aceito. A primeira mulher chamava-se Pandora. Foi
feita no céu, e cada um dos deuses contribuiu com alguma coisa para aperfeiçoá-
la. Vênus deu-lhe a beleza, Mercúrio a persuasão, Apolo a música, etc. Assim
dotada, a mulher foi mandada à terra e oferecida a Epimeteu, que de boa vontade
a aceitou, embora advertido pelo irmão para ter cuidado com Júpiter e seus
presentes. Epimeteu tinha em sua casa uma caixa, na qual guardava certos artigos
malignos, de que não se utilizara, ao preparar o homem para sua nova morada.
Pandora foi tomada por intensa curiosidade de saber o que continha aquela caixa,
e, certo dia, destampou-a para olhar. Assim, escapou e se espalhou por toda a
parte uma multidão de pragas que atingiram o desgraçado homem, tais como a
gota, o reumatismo e a cólica para o corpo, e a inveja, o despeito e a vingança
133

para o espírito. Pandora apressou-se em colocar a tampa na caixa, mas,


infelizmente, escapara todo o conteúdo da mesma, com exceção de uma única
coisa, que ficara no fundo, e que era a esperança. Assim, sejam quais forem os
males que nos ameacem, a esperança não nos deixa inteiramente; e, enquanto a
tivermos nenhum mal nos torna inteiramente desgraçados.
Uma outra versão é de que Pandora foi mandada por Júpiter com boa intenção, a
fim de agradar ao homem. O rei dos deuses entregou-lhe, como presente de
casamento, uma caixa, em que cada deus colocara um bem. Pandora abriu a
caixa, inadvertidamente, todos os bens escaparam, exceto a esperança. Essa
versão é, sem dúvida, mais aceitável que a primeira. Realmente, como poderia a
esperança, jóia tão preciosa, ter sido misturada a toda a sorte de males, como na
primeira versão?

26.3 - As Idades do Mundo

Estando, assim, povoado o mundo, seus primeiros tempos constituíram uma era
de inocência e ventura, chamada a Idade de Ouro. Reinavam a verdade e a
justiça, embora não impostas pela lei, e não havia juizes para ameaçar ou punir.
As florestas ainda não tinham sido despojadas de suas árvores para fornecer
madeira aos navios, nem os homens haviam construídos fortificações em torno de
suas cidades. Espadas, lanças ou elmos eram objetos desconhecidos. A terra
produzia tudo necessário para o homem, sem que esse se desse o trabalho de
lavrar ou colher. Vicejava uma primavera perpétua, as flores cresciam sem
sementes, as torrentes dos rios eram de leite e de vinho, o mel dourado escorria
dos carvalhos.
Seguiu-se a Idade de Prata, inferior à de Ouro, porém melhor do que a de
Cobre. Júpiter reduziu a primavera e dividiu o ano em estações. Pela primeira vez
o homem teve que sofrer os rigores do calor e do frio, e tornaram-se necessária as
casas. As primeiras moradas foram as cavernas, os abrigos das árvores frondosas
e cabanas feitas de hastes. Tornou-se necessário plantar para colher. O agricultor
teve de semear e de arar a terra, com ajuda do boi.
Veio, em seguida, a Idade de Bronze, já mais agitada e sob ameaça das armas,
mas ainda não inteiramente má. A pior foi a Idade do Ferro. O crime irrompeu,
como uma inundação; a modéstia, a verdade e a honra fugiram, deixando em seus
lugares a fraude e a astúcia, a violência e a insaciável cobiça. Os marinheiros
estenderam as velas ao vento e as árvores foram derrubadas nas montanhas para
servir de quilhas dos navios e ultrajar a face do oceano. A terra, que até então fora
cultivada em comum, começou a ser dividida entre os possuidores. Os homens não
se contentaram com o que produzia a superfície: escavou-se a terra e tirou-se do
seu seio os minérios e metais. Produziu-se o danoso ferro e o ainda mais danoso
ouro. Surgiu a guerra, utilizando-se de um e de outro como armas; o hóspede não
se sentia em segurança em casa de seu amigo; os genros e sogros, os irmãos e
irmãs, os maridos e mulheres não podiam confiar uns nos outros. Os filhos
desejavam a morte dos pais, a fim de lhe herdarem a riqueza; o amor familiar caiu
134

prostrado. A terra ficou úmida de sangue, e os deuses a abandonaram, um a um,


até que ficou somente Astréia (Deusa da inocência e da pureza. Depois de sair da
terra, foi colocada entre as estrelas, onde se transformou na constelação Virgo.
Era filha de Têmis (Justiça), representada com uma balança em que pesa as
alegações das partes adversárias.), que, finalmente, acabou também partindo.
Vendo aquele estado de coisas, Júpiter indignou-se e convocou os deuses para um
conselho. Todos obedeceram à convocação e tomaram o caminho do palácio do
céu. Esse caminho pode ser visto por qualquer um nas noites claras, atravessando
o céu, e é chamado a Via Láctea. Ao longo dele ficam os palácios dos deuses
ilustres; a plebe celestial vive à parte, de um lado ou de outro.
Dirigindo-se à assembléia, Júpiter expôs as terríveis condições que reinavam na
terra e encerrou as suas palavras anunciando a intenção de destruir todos os seus
habitantes e fazer surgir uma nova raça, diferente da primeira, que seria mais
digna de viver e saberia melhor cultuar os deuses. Assim dizendo, apoderou-se de
um raio e já estava prestes a atirá-lo contra o mundo, destruindo-o pelo fogo,
quando atentou para o perigo que o incêndio poderia acarretar para o próprio céu.
Mudou, então, de idéia, e resolveu inundar a terra. O vento norte, que espalha as
nuvens, foi encadeado; o vento sul foi solto e em breve cobriu todo o céu com
escuridão profunda. As nuvens, empurradas em bloco, romperam-se com fragor;
torrentes de chuva caíram; as plantações inundaram-se; o trabalho de um ano do
lavrador pereceu em uma hora. Não satisfeito com suas próprias águas, Júpiter
pediu a ajuda de seu irmão Netuno. Este soltou os rios e lançou-os sobre a terra.
Ao mesmo tempo, sacudiu-a com um terremoto e lançou o refluxo do oceano
sobre as praias. Rebanhos, animais, homens e casas foram engolidos e os
templos, com seus recintos sacros, profanados. Todo edifício que permanecerá de
pé foi submergido e suas torres ficaram abaixo das águas. Tudo se transformou
em mar, num mar sem praias. Aqui e ali, um indivíduo refugia-se num cume e
alguns poucos, em barcos, apoiam o remo no mesmo solo que ainda há pouco o
arado sulcara. Os peixes nadam sobre os galhos de árvores; a âncora se prende
num jardim. Onde recentemente os cordeirinhos brincavam, as focas cabriolam
desajeitadamente. O lobo nada entre as ovelhas, os fulvos leões e os tigres lutam
nas águas. A força do javali de nada lhe serve, nem a ligeireza do cervo. As aves
tombam, cansadas, na água, não tendo encontrado terra onde pousar. Os seres
vivos que a água poupara caem como presas da fome.
De todas as montanhas, apenas o Parnaso ultrapassa as águas. Ali, Deucalião e
sua esposa Pirra, da raça de Prometeu, encontram refúgio  ele é um homem justo,
ela uma devota fiel dos deuses. Vendo que não havia outro vivente além desse
casal e lembrando-se de sua vida inofensiva e de sua conduta piedosa, Júpiter
ordenou aos ventos do norte que afastassem as nuvens e mostrassem o céu à
terra e a terra ao céu. Também Netuno ordenou a Tritão que soasse sua concha
determinando a retirada das águas. As águas obedeceram; o mar voltou às suas
costas e os rios aos seus leitos. Deucalião assim se dirigiu, então, a Pirra: "Ó
esposa, única mulher sobrevivente, unida a mim primeiramente pelos laços do
parentesco e do casamento, e agora por um perigo comum, pudéssemos nós
135

possuir o poder de nosso antepassado Prometeu e renovar a raça, como ele fez,
pela primeira vez! Como não podemos, porém, dirijamo-nos àquele templo e
indaguemos dos deuses o que nos resta a fazer." Entraram num templo coberto de
lama e aproximaram-se do altar, onde nenhum fogo crepitava. Prostraram-se na
terra e rogaram à deusa que os esclarecesse sobre a maneira de se comportar
naquela situação miserável. "Saí do templo com a cabeça coberta e as vestes
desatadas e atirai para trás os ossos de vossa mãe"  respondeu o oráculo. Estas
palavras foram ouvidas com assombro. Pirra foi a primeira a romper o silêncio:
"Não podemos obedecer; não vamos nos atrever a profanar os restos de nossos
pais." Seguiram pela fraca sombra do bosque, refletindo sobre o oráculo. Afinal,
Deucalião falou: "Se minha sagacidade não me ilude, poderemos obedecer a
ordem sem cometermos qualquer impiedade. A Terra é a mãe comum de nós
todos; as pedras são seus ossos; poderemos lançá-las para trás de nós; e creio ser
isto que o oráculo quis dizer. Pelo menos, não fará mal tentar." Os dois velaram o
rosto, afrouxaram as vestes, apanharam as pedras e atiraram-nas para trás. As
pedras (maravilha das maravilhas!) amoleceram e começaram a tomar forma.
Pouco a pouco, foram assumindo uma grosseira semelhança com a forma humana,
como um bloco ainda mal acabado nas mãos de um escultor. A umidade e o lodo
que havia sobre elas transformaram-se em carne; a parte pétrea transformou-se
nos ossos; as veias ou veios da pedra continuaram veias, conservando seu nome e
apenas mudando sua utilidade. As pedras lançadas pelas mãos do homem
tornaram-se homens, as lançadas pela mulher tornaram-se mulheres. Era uma
raça forte e bem disposta para o trabalho como até hoje somos, mostrando bem a
nossa origem.

26.4 - Prometeu Forma o Homem

Japeto representa o antepassado da humanidade. Talvez seja preciso reconhecer,


nessa personagem a que Gênesis dá por filho a Noé, Jafé, cujo nome personifica
uma das grandes raças primitivas. Era considerado pelos gregos o tipo do que há
de mais antigo e associa-se habitualmente a Saturno. Desposara Ásia, filha do
Oceano, e teve vários filhos, entre outros Prometeu, Epimeteu e Atlas. O Titã
Japeto não desempenha papel na mitologia; a sua importância vem da antigüidade
que se lhe atribuía e que lhe dava o mesmo tempo que os mais antigos deuses.
Embora seja o Titã Japeto tido como antepassado da humanidade, parece que é a
seu filho Prometeu que devemos a forma particular que nos distingue dos animais.
"Prometeu, diz Ovídio, após destemperar um pouco de terra com água, formou o
homem à semelhança dos deuses; e enquanto os outros animais têm a cabeça
voltada para o chão, somente o homem a ergue para o céu, e olha para o céu." A
fabricação do homem por Prometeu está representada em monumentos assaz
numerosos, mas que pertencem na sua maioria a uma baixa época.
Em todas as representações antigas, Prometeu aparece como artesão que faz o
homem materialmente, mas não como o deus que o anima. Esse papel cabe a
136

Minerva (a Sabedoria divina): vários monumentos nos apresentam nitidamente a


parte que cabe a cada um na criação da espécie humana.

26.5 - As Duas Partes de Prometeu

Prometeu orgulhava-se do seu trabalho; e tendo surgido divergências entre os


deuses e os homens primitivos, tomou ele o partido destes. As divergências, das
quais Hesíodo não nos diz a causa, eram acertadas em Sicíona: Prometeu,
desejando saber se Júpiter era verdadeiramente digno das honras divinas,
excogitou um ardil para provar a sua clarividência. "Expôs aos olhos de todos, diz
Hesíodo, um enorme boi. De um lado, encerrou na pele as carnes e os melhores
pedaços, envolvendo-os com o ventre da vítima; do outro, dispôs com pérfida
habilidade os ossos brancos que recobriu de gordura lustrosa. O pai dos deuses e
dos homens disse-lhe, então: "Filho de Japeto, ó mais ilustre de todos os reis,
amigo, com que desigualdade dividiste as partes!" Prometeu, sorrindo
interiormente do ardil, rogou-lhe que escolhesse, e Júpiter, apoderando-se da
parte mais pesada, só ali encontrou ossos."

26.6 - O Fogo Arrebatado aos Homens

Júpiter, furioso por ter sido enganado, quis vingar-se dos homens, dos quais
Prometeu é protetor, e roubou-lhes o fogo, sem o qual todo e qualquer trabalho é
impossível. Mas Prometeu não se deu por vencido, e conseguiu roubar uma faísca
do fogo do céu, que se apressou em levar aos homens. Dessa vez, Júpiter, vendo-
se decididamente iludido pelo Titã, não conteve o ressentimento e resolveu punir
simultaneamente os homens e o protetor. A grosseria dessa lenda é uma prova de
sua grande antigüidade; no entanto, não deu origem a nenhuma representação
plástica no período arcaico. Nas narrações dos poetas, o fogo estava contido numa
folha e invisível a todos os olhos; pelo contrário, o oleiro mostra a chama a sair de
um vasinho que o Titã segura com a mão.
Júpiter diz a Prometeu: "Filho de Japeto, rejubilas-te por haveres roubado o fogo
divino e iludido a minha sabedoria; mas esse ato será fatal a ti e aos homens que
hão de vir. Para vingar-me, enviar-lhes-ei um funesto presente que os enfeitiçará e
fará com que amem o seu próprio flagelo." (Hesíodo).

26.7 - Suplício e Libertação de Prometeu

Júpiter revelou-se cruel para com Prometeu e, a fim de puni-lo por ter dado o fogo
aos homens, agrilhoou-o ao Cáucaso. Uma águia lhe dilacerava constantemente o
fígado e a sua carne renascia imediatamente para que o suplício se renovasse
todos os dias. A luta de Júpiter contra Prometeu foi interpretada de maneira assaz
diferentes, mas segundo os trágicos seria possível ver nela uma vaga recordação
de uma mudança de crenças. Na antigüidade, Prometeu ficou como tipo de justiça
137

esmagada pela força, da consciência humana protestando contra um poder


inexorável.
O suplício de Prometeu teria, no entanto, fim. Hércules, o matador dos monstros e
grande reparador de erros, livrou o Titã matando a águia que o roía. Prometeu,
que conhecia o futuro, predissera que quem desposasse a Nereida Tétis, teria um
filho mais poderoso que o pai, e o rei dos deuses, sabendo de tal profecia,
renunciou ao projeto de unir-se a Tétis. Como recordação desse serviço, Júpiter
não obstaculou a libertação de Prometeu; mas já que afirmara que o suplício
duraria milhares de anos e que um deus não deve mentir, excogitou-se um
subterfúgio. De um dos elos da cadeia que agrilhoava o Titã se fez um anel, no
qual se introduziu um pedacinho do rochedo; desse modo, Prometeu continuava
sempre preso ao Cáucaso.
Um interessante sarcófago no museu Capitolino fixa em várias cenas toda a lenda
de Prometeu.
Há algumas variantes na história de Prometeu: alguns lhe atribuem a fabricação da
mulher, bem como a do homem, o que tiraria toda a razão de ser da linda Fábula
de Pandora. Entretanto, existem sobre essa versão monumentos que não podemos
desprezar. Um baixo-relevo antigo nos mostra Prometeu segurando um
desbastador e modelando a primeira mulher; um homenzinho ainda não animado
está deitado aos pés do escultor e quem Mercúrio conduz uma alma, caracterizada
pelas asas de borboleta, e que irá habitar o corpo terminado por Prometeu. Atrás
de Mercúrio, vemos as três Parcas que fiarão o destino da nova criatura. O touro,
o burro e a lebre, colocados perto do escultor, relembram uma tradição segundo a
qual Prometeu, ao formar a espécie humana, misturou ao limo de que se servia as
qualidades dos diversos animais.

XXVII - Mercúrio

27.1 - Mercúrio (Hermes)

Mercúrio era filho de Júpiter e de Maia, filha de Atlas. Os gregos chamavam-no


Hermes, isto é, intérprete ou mensageiro. Seu nome latino vinha da palavra
Merces, mercadoria. Mensageiro dos deuses e particularmente de Júpiter, ele os
servia com um zelo infatigável e sem escrúpulo, mesmo nos empregos pouco
honestos. Participava de todos os negócios, como ministro ou servidor. Ocupava-
se da paz e da guerra, das querelas e dos amores dos deuses, do interior do
Olimpo, dos interesses gerais do mundo, no céu, assim como na terra e nos
Infernos. Encarregava-se de fornecer e servir ambrosia à mesa dos Imortais,
presidia aos jogos, às assembléias, escutava os discursos e respondia, ou por si ou
de acordo com as ordens recebidas. Conduzia ao Inferno as almas dos mortos com
a sua vareta divina ou o seu caduceu; algumas vezes reconduzia-as à terra.
Ninguém morria antes que ele tivesse inteiramente rompido os laços que unem a
alma ao corpo.
138

Deus da eloquência e da arte de bem falar, ele o era também dos viajantes, dos
negociantes e mesmo dos ladrões. Embaixador plenipotenciário dos deuses,
assistia aos tratados de aliança, sancionava-os, retificava-os, não era estranho às
declarações de guerra entre as cidades e os povos. Dia e noite não cessava de
vigiar atento e alerta. Em uma palavra, era o mais ocupado dos deuses e dos
homens. Acompanhava e guardava Juno com toda perseverança, impedindo-a de
urdir qualquer intriga. Era mandado por Júpiter para facilitar-lhe agradabilíssimas
entradas entre os mortais, para transportar Castor e Pólux a Palem, para
acompanhar o carro de Plutão raptando Prosérpina; atirava-se do alto do Olimpo e
atravessava o espaço com a rapidez do raio. Foi a ele que os deuses confiaram a
delicada missão de conduzir diante do pastor Páris as três deusas que se
disputavam o prêmio da beleza.
Tantos empregos, tantas atribuições diversas concedidas a Mercúrio davam-lhe
uma importância considerável no conselho dos deuses. Por outro lado os homens
acrescentavam ainda as suas qualidades divinas, atribuindo-lhes mil talentos
industriosos. Não somente contribuía para o desenvolvimento do comércio e das
artes, como também se dizia que fora ele quem em primeiro lugar formara uma
língua exata e regular, quem inventara os primeiros caracteres da escritura, quem
regulara a harmonia das frases, quem pusera nome a uma infinidade de coisas,
quem instituíra práticas religiosas, quem multiplicara e fortalecera as relações
sociais, quem ensinara o dever aos esposos e aos membros da mesma família.
Ensinara também aos homens a luta e a dança, e em geral todos os exercícios ao
ar livre que necessitavam força e graça. Finalmente foi ele o inventor da lira, à
qual deu três cordas, e que ficou sendo o instrumento de Apolo. As suas
qualidades são contrabalançadas por defeitos. O seu gênio inquieto, a sua conduta
dolosa suscitaram-lhe mais de uma questão com os outros deuses. Júpiter mesmo,
esquecendo um dia todos os serviços desse dedicado servidor, expulsou-o do céu,
reduziu-o a guarda de rebanhos na terra; foi no mesmo tempo em que Apolo foi
ferido pela mesma desgraça.
Acusou-se Mercúrio de um grande número de ladroeiras. Ainda criança, esse deus
dos negociantes e dos ladrões furtou o tridente de Netuno, as flechas de Apolo, a
espada de Marte e o cinto de Vênus. Roubou também os bois de Apolo; mas em
virtude de uma convenção pacífica, trocou-os pela sua lira. Esses furtos, alegorias
bastante transparentes, indicam que Mercúrio, sem dúvida personificação de um
mortal ilustre, era ao mesmo tempo hábil navegador, provecto atirador de arco,
valente na guerra, elegante e gracioso em todas as artes, negociante consumado,
permutando o agradável pelo útil.
Tornou-se culpado de um assassinato para proteger os amores de Júpiter.
Argos, filho de Arestor, tinha cem olhos, dos quais cinqüenta ficavam abertos
enquanto o sono adormecia os outros cinqüenta. Juno confiou-lhe a guarda de Io,
mudada em vaca; Mercúrio, porém, adormeceu ao som de sua flauta esse guarda
vigilante, e cortou-lhe a cabeça. Juno, desolada e iludida, tomou os olhos de Argos
e os espalhou sobre a cauda do pavão. Outros contam que Argos foi por essa
deusa metamorfoseado em pavão.
139

O culto de Mercúrio nada tinha de particular, senão que se lhe ofereciam as


línguas das vítimas, emblema de sua eloquência. Pelo mesmo motivo ofereciam-
lhe leite e mel. Imolavam-lhe vitelas e galos. Era especialmente venerado em
Creta, país comercial, e em Cilene, na Élida, porque pensavam que tinha nascido
no monte do mesmo nome, situado perto dessa cidade. Ele tinha também um
oráculo em Acaie; depois de muitas cerimônias, falava-se na orelha do deus, para
pedir o que se desejava. Em seguida saía-se do templo, com as orelhas tapadas
com as mãos, e as primeiras palavras que se ouvissem eram a resposta de
Mercúrio.
Em Roma os negociantes celebravam uma festa em honra sua, a 1. de maio, dia
em que lhe dedicaram um templo no circo. Sacrificavam uma porca prenha, e se
aspergiam com a água de certa fonte à qual se atribuía uma virtude divina,
rogando ao deus de proteger o seu comércio e de perdoar-lhes as pequenas
velhacarias.
O "ex-voto" que os viajantes lhe ofertavam à volta de uma longa e penosa viagem,
eram pés alados.
Como divindade tutelar, Mercúrio é geralmente representado com uma bolsa na
mão. Em alguns monumentos é representado com uma bolsa na mão esquerda, e
na direita uma ramo de oliveira e uma clava, símbolos, um de paz, útil ao
comércio, o outro de força e de virtude, necessários ao tráfico. Como negociador
dos deuses, traz na mão o caduceu, vareta mágica ou divina, emblema da paz. O
caduceu é entrelaçado de duas serpentes, de sorte que a parte superior forma um
arco; além disso é superado por duas extremidades de asas. O deus tem asas no
seu gorro, e algumas vezes nos pés, para mostrar a ligeireza de seu andar e a
rapidez com que executa as ordens.
Geralmente é descrito como um jovem, belo de rosto, de um talhe desenvolto, ora
nu, ora com um manto nos ombros, que apenas o cobre.
Usa muito freqüentemente um chapéu chamado petaso, que tem asas. É raro
representá-lo sentado. As suas diferentes ocupações no céu, na terra e nos
Infernos, obrigavam-no a uma constante atividade. Em algumas pinturas vê-se o
deus com metade do rosto clara e a outra metade negra e sombria: isso indica que
ora está no céu ou na terra, ora nos Infernos, para onde conduz a alma dos
mortos.
Quando o representavam com uma longa barba e cara de velho, davam-lhe um
manto que lhe descia até os pés.
Dizem que Mercúrio é o pai do deus Pã, fruto dos seus amores com Penélope.
Penélope não foi a única mortal, nem a única deusa, honrada pelos seus favores;
teve ainda como amantes, Acacalis, filha de Minos, Herse, filha de Cécrops,
Eupolêmia, filha de Mirmidon, que lhe deu muitos filhos, Antianira, mãe de Equion,
Prosérpina e a ninfa Lara, de quem nasceram os deuses Lares.
Hermes, sendo nome próprio de Mercúrio em grego, era dado a certas estátuas de
mármore, e algumas vezes de bronze, sem braços e sem pés. Os atenienses, e
seguindo o seu exemplo, outros povos da Grécia, mesmo depois os romanos,
colocavam Hermes nas encruzilhadas das cidades e grandes estradas, porque
140

Mercúrio presidia às viagens e aos caminhos. Geralmente, Hermes é uma coluna


com uma cabeça; tendo duas cabeças, uma é de Mercúrio reunida à de outra
divindade.
A quarta-feira (mercredi, em francês) dia da semana, é-lhe consagrada (Mercurii
dies).

27.2 - Tipo e Atributos de Mercúrio

A mudança, a transição, a passagem de um estado a outro foram personificados


em Mercúrio. (Hermes). Mensageiro celeste, leva aos deuses as preces dos
homens e aos homens os benefícios dos deuses; condutor das sombras, é a
transição entre a vida e a morte; deus da eloqüência e dos tratados, faz passar ao
espírito dos outros o pensamento de um orador ou de um legado. É o deus dos
ginásios, porque na luta há troca de forças; é o deus do comércio e dos ladrões,
porque um objeto vendido ou roubado passa de uma mão a outra.
Na grande época da arte, esse deus se revestiu de caráter muitíssimo diferente.
Mercúrio torna-se, então, um efebo, macio e ágil, sempre imberbe, de cabelos
curtos e apresentando o tipo perfeito dos jovens que freqüentam os ginásios. O
seu rosto nunca tem a majestosidade de Júpiter, nem a altivez de Apolo, mas
freqüentemente o cunho de uma grande finura, de acordo com o seu papel na
Lenda, em que personifica a astúcia e a habilidade.
Dá-se ainda a Mercúrio outra série de atributos em relação com as suas diferentes
funções. Como divindade pastoral, acompanhado uma ou outra vez de um carneiro
ou uma cabra; como inventor da lira, coloca-se-lhe ao lado uma tartaruga. É um
galo que o caracteriza como deus do ginásio, e a bolsa que segura com a mão
revela o deus da mudança.
Mercúrio nasceu da união de Júpiter e de Maia, filha do Titã Atlas. Divindade
arcádia, é numa gruta do monte Cilene que vê o dia pela primeira vez, e é por isso
que alguns lhe dão o nome de deus de Cilene. Poucas divindades aparecem tão
freqüentemente como Mercúrio na mitologia; o seu papel é importantíssimo, e em
numerosos casos é, como os nossos criados de comédia, o personagem que tudo
faz, embora sempre dependente.
Além das cenas da Lenda, das quais participa diretamente, Mercúrio surge em
alguns monumentos ao lado de outras divindades, às quais se liga simbolicamente.
Uma moeda de Marco Aurélio apresenta-o ao lado de Minerva, em virtude da
relação existente entre o deus do comércio e a deusa da indústria. As relações
com Vênus são ainda mais diretas, pois da união de ambos é que nasce
Hermafrodita (Hermes-Aphrodite). Plutarco explica tal união dizendo que a
eloqüência e o encanto da linguagem devem associar-se ao atrativo da beleza.

27.3 - Mercúrio, Inventor da Lira

Mercúrio inventou a lira no mesmo dia em que nasceu. "Mal saiu do seio materno,
não ficou envolto nos sagrados cueiros; pelo contrário, imediatamente ultrapassou
141

o limiar do antro sombrio. Encontrou uma tartaruga e dela se apoderou. Estava ela
na estrada da gruta, arrastando-se devagar e comendo as flores do campo. Ao vê-
la o filho de Júpiter alegra-se; pega-a com ambas as mãos, e volta para a sua
morada, com o interessante amigo. Esvazia a escama com o cinzel de brilhante
aço e arranca a vida à tartaruga. Em seguida, corta alguns caniços, na medida
certa, e com eles fura o costado da tartaruga de escama de pedra; em volta
estende com habilidade uma pele de boi, adapta um cabo, no qual, nos dois lados,
mergulha cavilhas; em seguida, acrescenta sete cordas harmoniosas de tripa de
ovelha.
"Terminando o trabalho, ergue o delicioso instrumento, bate-o com cadência
empregando o arco, e a sua mão produz retumbante som. Então o deus canta
improvisando harmoniosos versos, e assim como os jovens nos festins se
entregam à alegria, ele também conta as entrevistas com Júpiter e a formosa
Maia, sua mãe, celebra o seu nascimento ilustre, canta as companheiras da ninfa,
as suas ricas moradas, os tripés e os suntuosos tanques que se encontram na
gruta." (Hino homérico).

27.4 - Mercúrio, Rei dos Ladrões

Desde a mais tenra infância mostrou Mercúrio as qualidades que dele iriam fazer o
deus dos ladrões. No mesmo dia em que nasceu, roubou o tridente de Netuno, as
setas de Cupido, a espada de Marte, a cintura de Vênus, etc. Foi para fechar tão
belo dia que foi roubar os bois guardados por Apolo, e para que ninguém lhe
seguisse as pegadas, resolveu fazê-los caminhar de costas. Levou-os assim até
Pilos, onde imolou dois aos deuses do Olimpo, e ocultou os demais numa caverna.
Mercúrio desconfiou que o pastor Bato, o qual guarda em tal lugar os rebanhos do
rico Neleu, divulgaria o seu roubo, se fosse interrogado, e sobretudo se disso lhe
adviesse alguma vantagem; assim, aproximando-se-lhe, pôs-se a acariciá-lo, e
disse-lhe pegando-o pela mão: "Meu amigo, se por acaso alguém vier pedir-te
novas deste rebanho, dize que o não viste; como recompensa, dou-te esta bela
novilha.  Podes estar certo, retrucou Bato, recebendo-a; esta pedra que vês será
mais capaz de trair-te o segredo do que eu." Mercúrio fingiu, então, afastar-se, e
voltando um instante depois sob outro aspecto: "Bom homem, disse-lhe, se viste
passar por aqui um rebanho, peço-te que me ajudes a procurá-lo; não favoreças
com o teu silêncio o roubo que sofri; dar-te-ei uma vaca e um touro." O ancião,
vendo que lhe ofereciam o dobro do que recebera: "Penso, respondeu, que o teu
rebanho deve estar nas cercanias desta montanha; sim, deve estar, se não me
engano!" Mercúrio, rindo-se de tais palavras, disse-lhe: "Ah, tu me trais, não é
verdade? Pérfido, enganas-me!" Assim dizendo, metamorfoseou-o na pedra que se
chama de toque, a qual serve para reconhecer-se se o ouro é de boa liga ou se é
falso. (Ovídio).
Quando sobreveio o dia, Mercúrio voltou às alturas de Cilene. Ali, curva-se e
esgueira-se para dentro da morada, entrando pela fechadura. Caminha com passo
furtivo no reduto sagrado da gruta, penetra sem ruído como faz habitualmente na
142

Terra, e assim chega até o seu leito, onde se cobre com fraldas, como qualquer
criancinha e fica deitado, com uma das mãos brincando com a faixa, e com a outra
empunhando a melodioso lira. Mas o deus não pudera ocultar a fuga a sua mãe,
que lhe dirigiu a palavra nestes termos: "Pequenino astuto, menino cheio de
audácia, de onde vens durante a treva da noite? Temo que o poderoso filho de
Latona te cubra os membros de pesados laços, te arranque a esta morada, ou te
surpreenda nos vales, ocupado em temerários roubos."
Mercúrio respondeu-lhe com as palavras cheias de astúcia: "Mamãe, por que
pretendes assustar-me como se eu fora uma criança débil que mal conhece uma
fraude e treme ouvindo a voz de sua mãe? Quero continuar a exercer esta arte
que me parece a melhor par a tua glória e a minha." (Hino homérico).
Apolo não conseguia informações sobre os bois; mas notando um pássaro que
cruza o céu, com as asas abertas, reconhece imediatamente, na sua qualidade de
profeta e áugure, que o ladrão é o filho de Júpiter. Atira-se com rapidez aos picos
de Cilene, e penetra na gruta, onde Maia deu à luz Mercúrio. O menino, vendo
Apolo irritado pelo roubo das reses, amontoa-se numa bola e envolve-se nas
fraldas.
O filho de Latona, após procurar por toda parte, dirige estas palavras a Mercúrio:
"Menino, que repousas neste berço, dize-me imediatamente onde estão as minhas
reses; se o não fizeres, erguer-se-ão entre nós funestos debates; agarrar-te-ei e
precipitar-te-ei no sombrio Tártaro, no seio das sombras funestas e horríveis. Nem
teu pai, nem tua mãe venerável poderão devolver-te à luz, e tu viverás
eternamente sob a Terra." Mercúrio respondeu-lhe com astúcia: Filho de Latona,
por que falas de maneira tão impressionante comigo? Por que vens procurar aqui
as tuas reses? Eu nunca as vi, e delas nunca ouvi falar; não me é possível indicar-
lhe o ladrão; por conseguinte, não receberia a recompensa prometida a quem fizer
com que o descubras. Não tenho a força do homem capaz de roubar rebanhos.
Não é esse o meu trabalho, porquanto outros cuidados me reclamam: preciso do
suave sono, do leite de minha mãe, destas fraldas que me cobrem, e dos banhos
mornos. Trata de evitar, pelo contrário, que se saiba desta divergência: seria um
escândalo para todos os imortais saberem que um menino recém-nascido transpôs
o limiar de tua morada com reses não domesticadas. O que dizes são palavras de
insensato. Nasci ontem, as pedras houveram dilacerado a pele delicada dos meus
pés; mas se exiges pronunciarei um juramento terrível: jurarei pela cabeça de meu
pai que não conheço o ladrão das tuas reses." (Hino homérico).
Entretanto, Apolo não se deu por vencido, e pegando o garoto ao colo, o levou a
Júpiter, a quem pediu os bois que o filho lhe roubara. Mercúrio começou por negar
descaradamente o roubo; mas Júpiter, que tudo sabe, ordenou-lhe que devolvesse
o que pegara indevidamente, e o menino conduziu Apolo para a gruta em que
ocultara os animais. Enquanto Apolo os contava, Mercúrio começou a tocar lira,
instrumento que ele acabara de inventar, e Apolo ficou de tal modo encantado que
quis comprar-lho. Mercúrio, na sua qualidade de deus do comércio, valeu-se da
ocasião para um bom negócio, e pediu em troca os bois. Apolo, imediatamente,
tentou tocar lira, mas enquanto lidava para arrancar os acordes, Mercúrio
143

descobriu o meio de inventar o cálamo. Apolo desejou também o novo


instrumento, que Mercúrio lhe vendeu em troca do caduceu, vareta mágica,
entrelaçada de serpentes e que lhe serviu mais tarde para adormecer Argos. O
descaramento com o qual Mercúrio soube mentir no mesmo dia em que nascera, e
a inteligência com a qual defendeu uma péssima causa, lhe garantiram o
patronato dos advogados.
Um epigrama da Antologia zomba do deus dos ladrões: "Posso tocar numa couve,
deus de Cilene?  Não, transeunte.  Que vergonha há nisso?  Não há vergonha, mas
existe uma lei que proíbe apoderar-se do bem alheio.  Que coisa estranha!
Mercúrio estabeleceu uma lei contra o roubo!"

27.5 - Mercúrio, deus do Comércio

Desde o nascimento possuíra Mercúrio o gênio da permuta, e é por isso que é o


deus do comércio. A arte o caracteriza, então, pela bolsa segura pela mão. O
emblema é o mesmo que o que se atribui ao deus dos ladrões; mas em vez de
aparecer sob as feições de um menino que acaba de fazer uma peraltice,
apresenta a grave fisionomia de homem que refletiu e pesa o valor dos atos.
Considerado como deus do comércio e da permuta, Mercúrio segura habitualmente
uma bolsa: traz o mesmo atributo quando é deus dos ladrões, mas neste caso está
representado com as feições de menino que sorri maliciosamente, por alusão às
aventuras que lhe assinalaram a mais tenra infância.
Mercúrio preside aos exercícios. Mas sob tal aspecto, a arte lhe modifica o caráter;
não traz mais o capacete e as asas, e se apresenta inteiramente nu sob o aspecto
de vigoroso efebo, que ocupa o lugar médio entre o caráter delgado de um Apolo
e o caráter robusto de um Hércules.
Os atributos de Mercúrio como deus dos ginásios são a palmeira e o galo. O galo
é, por excelência, a ave de luta, e os combates de galos eram um grande
divertimento para os gregos. Não é de surpreender, portanto, que tenha sido
escolhido para simbolizar a luta e os exercícios que a ela se ligam.
As imagens de Mercúrio figuravam sempre nos ginásios. "Aqui se colocou, para
proteger este belo ginásio, o deus que reina no monte Cilene e nas suas elevadas
florestas, Mercúrio, a quem os jovens gostam de oferecer amarantos, jacintos e
violetas perfumadas." (Antologia).
Essas imagens do deus eram às vezes uma simples cabeça pousada numa mísula.
O deus ri-se, ele também, de tal uso, num epigrama da Antologia: "Chamam-me
Hermes, o veloz. Ah, não me coloqueis nos ginásios, privado de pés e de mãos!
Sobre uma base, sem mãos e sem pés, como poderei ser veloz na corrida ou hábil
na luta?"

27.6 - Mercúrio Pedagogo

As letras servem para a transmissão das idéias. Como deus da permuta e da


tradição, Mercúrio é, pois, inventor das letras: ensinando aos homens a
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transformação das suas idéias em caracteres que a exprimem, esse deus tornou-se
naturalmente protetor dos ginásios. Invocam-no os mestres que ensinam aos
meninos os elementos da ciência; invocam-no também os escrivães públicos e
todos os que se dedicam a escrever. Os instrumentos de que nos servimos para a
escrita, para a geometria, fazem parte das suas atribuições, e os que ganham a
vida, deles se valendo, os dedicam ao deus quando são demasiado velhos. É o que
se vê num pequenino trecho da Antologia grega, onde um velho mestre de escola
se coloca sob a proteção do deus a quem serviu. "Um disco de chumbo negro para
traçar linhas, uma régua que assegura a constância de direção, vasos de líquido
negro para escrever, penas bem aparadas, a dura pedra que aguça o caniço e lhe
devolve a finura, o ferro que o modela com a sua ponta e a sua lâmina, todos
esses instrumentos do seu ofício, Menedemo tos consagra, ó Mercúrio, pois que a
idade lhe toldou os olhos. E tu, deus prestativo, não deixes morrer de fome o teu
obreiro."

27.7 - Mercúrio Crióforo

A Arcádia, um dos principais centros da velha raça pelásgica, sonharia em


Mercúrio, ou antes em Hermes, uma personificação da potência protetora da
natureza e especialmente da terra. Era figurado na origem por um pedaço de
madeira encimado por uma cabeça, e ali se fixava um símbolo grosseiro, que entre
os povos pastores exprime simplesmente a força geratriz. Esse caráter pastoral
desaparece, de resto, rapidamente, para passar ao deus Pã, que em várias
tradições é filho de Mercúrio. Mas o carneiro, que lhe é consagrado, e que vemos
às vezes entre os seus atributos, relembra o antigo caráter de divindade
campestre, e é sob tal aspecto que se chama Mercúrio crióforo, ou porta-carneiro.

27.8 - Mercúrio, Guarda das Estradas

Mercúrio, como deus do comércio, é naturalmente protetor das estradas e da


navegação. Nos tempos primitivos, montes de pedras colocados nas encruzilhadas
dos caminhos serviam de altares destinados ao deus: mais tarde, foram feitos de
outra maneira, mas sempre com o mesmo Destino.

27.9 - Mercúrio, deus da Eloqüência

Os monumentos de arte dão a Mercúrio, quando é considerado como deus da


eloqüência, uma atitude particular: ele levanta levemente o braço direito como se
pretendesse demonstrar alguma coisa.
A arte de comunicar as idéias pela linguagem participava naturalmente dos
atributos de Mercúrio, porque ele é o deus da permuta sob todas as formas. Era
ele também que todos invocavam para adquirir os dons da memória e da palavra,
como se pode ver num hino órfico a Mercúrio que contém as litanias do deus:
"Filho bem amado de Maia e de Júpiter, deus viajante, mensageiro dos imortais,
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dotado de grande coração, censor severo dos homens, deus prudente de mil
formas, assassino de Argos, deus de pés alados, amigo dos homens, protetor da
eloqüência, tu que gostas da astúcia e dos combates, intérprete de todas as
línguas, amigo da paz, que trazes um caduceu sangrento, deus venturoso, deus
utilíssimo, que presides aos trabalhos e às necessidades dos homens, generoso
auxiliar para a língua dos mortais, ouve as minhas preces, concede um feliz fim à
minha existência, concede-me felizes obras, um espírito dotado de memória e de
palavras escolhidas."(hino órfico).

27.10 - Mercúrio, Mensageiro dos deuses

Mercúrio transmite aos deuses as preces dos homens e faz subir a eles a fumaça
dos sacrifícios. Mas é sobretudo o mensageiro dos deuses e o fiel intérprete das
ordens que está incumbindo de levar. É ele que por ordem de Júpiter conduz as
três deusas à presença do pastor Páris encarregado de lhes adjudicar o prêmio da
beleza. Possui asas no pétaso e tem asas talares para indicar a rapidez do seu vôo.
Devotado mais especialmente a Júpiter, torna-se, se preciso, ministro complacente
dos seus prazeres.
O caduceu usado por Mercúrio parece ter significados diversos: primitivamente era
apenas a vareta usada pelos arautos que iam e vinham por diversos países em prol
das relações internacionais. Em outras circunstâncias a vareta reveste-se de uma
espécie de caráter mágico: é com ela que Mercúrio adormece Argos e é dela que
se serve para evocar as sombras. Em torno dos emblemas que caracterizam
Mercúrio, Gabriel de Saint-Aubin colocou mariposas para indicar a leveza e a
rapidez do vôo.
"O apelido de mensageiro, de servidor, diz Creuzer, tão freqüentemente dado a
Hermes, está quase sempre acompanhado do de assassino de Argos, em que se
revelam tão bem nas lendas pelásgicas as suas relações com a lua e o céu
estrelado. A vaca Io, efetivamente, e o vigilante Argos, que traz os seus inúmeros
olhos fitos nela, não parece ser outra coisa. Quanto a Hermes, enviado pelo
senhor dos deuses a libertar a sua amante de tão incômoda vigilância, nada mais
faz, ao matar Argos, do que cumprir a missão que lhe é confiada, de presidir à
alternativa do dia e da noite, da vida e da morte." (Creuzer).

27.11 - Mercúrio, Condutor de Almas

Além de seu papel de mensageiro dos deuses, Mercúrio está especialmente


incumbido de transportar as almas dos mortos ao reino de Plutão. Vários
monumentos no-lo apresentam sob tal aspecto, que, aliás, se conforma às
narrações dos poetas.
Vemos também, por vezes, Mercúrio caminhando rapidamente e segurando com a
mão uma almazinha caracterizada pelas asas de borboleta: é por isso que Horácio,
invocando Mercúrio, lhe dirige estas palavras: "És tu que, amado igualmente pelos
deuses do Olimpo e pelos deuses do Inferno, reúnes com a tua varinha de ouro as
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sombras leves e conduzes as almas piedosas à venturosa morada que lhes está
reservada."

27.12 - Queixas de Mercúrio

Dentre todos os deuses da antigüidade, não há nenhum que tenha exercido tantas
ocupações como Mercúrio. Intérprete e ministro fiel dos demais deuses, e em
particular de Júpiter, seu pai, serve-os nos seus problemas ou nos seus prazeres
com infatigável zelo.
A multiplicidade das funções de Mercúrio é verdadeiramente extraordinária, e o
mais ativo dos deuses chega às vezes a lamentar-se. "Há, por acaso, um deus
mais infeliz do que eu? Ter, sozinho, que fazer tanta coisa, sempre curvado ao
peso de tantos trabalhos! Desde o romper do dia, devo levantar-me para varrer a
sala do banquete; depois, quando já estendi tapetes para a assembléia e pus tudo
em ordem, preciso ir ao pé de Júpiter, a fim de levar ordens à Terra, como
verdadeiro correio. Mal regresso, ainda coberto de pó, devo servir-lhe a ambrósia,
e antes da chegada do escanção, era eu quem lhe dava o néctar. O mais
desagradável, porém, é que, único entre os deuses, não fecho olho durante a
noite, pois tenho de conduzir as almas a Plutão, levar-lhe os mortos e sentar-me
ao tribunal. Os trabalhos do dia não têm fim; além de assistir aos jogos, de fazer o
papel de arauto nas assembléias, de dar aulas aos oradores, encarrego-me,
simultaneamente, de tudo quanto diz respeito às pompas fúnebres." (Luciano).

XXVIII - Vulcano (Hefœstos)

28.1 - Nascimento de Vulcano

Vulcano era filho de Júpiter e de Juno, ou segundo alguns mitólogos, de Juno só,
com o auxílio do Vento. Envergonhada de ter dado à luz a um filho tão disforme, a
deusa o precipitou no mar, a fim de que eternamente ficasse escondido nos
abismos. Foi, porém, recolhido pela bela Tetis e Eurínome, filhas do Oceano.
Durante nove anos, cercado dos seus cuidados, viveu numa gruta profunda,
ocupado em fabricar-lhes brincos, broches, colares, anéis e braceletes. Entretanto
o mar escondia-o sob as suas ondas, tão bem que nem os deuses nem os homens
conheciam o seu esconderijo, a não ser as duas divindades que o protegiam.
Vulcano, conservando no fundo do coração um ressentimento contra sua mãe, por
causa dessa injúria, fez uma cadeira de ouro com mola misteriosa, e a enviou ao
céu. Juno admira uma cadeira tão preciosa; não tendo nenhuma desconfiança,
quer sentar-se nela; imediatamente fica presa como em uma armadilha; e aí ficaria
muito tempo, se não fosse a intervenção de Baco, que embebedou Vulcano para
obrigá-lo a soltar Juno. Pretende Homero que essa aventura da mãe dos deuses
excitou a hilaridade de todos os habitantes do Olimpo.
Em outra passagem Homero conta que foi o próprio Júpiter quem precipitou
Vulcano do alto do céu. No dia em que, para punir Juno por ter excitado uma
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tempestade que devia fazer perecer a Hércules, Júpiter suspendeu-a no meio dos
ares, Vulcano, por um sentimento de compaixão ou de piedade filial, socorreu a
sua mãe. Pagou caro esse movimento de bondade: Júpiter segurou-o pelos pés e
atirou-o no espaço. Depois de haver rolado todo o dia nos ares, o desgraçado
Vulcano caiu na ilha de Lemos, onde foi recolhido e tratado pelos habitantes.
Nessa terrível queda quebrou as duas pernas, e ficou coxo para sempre.
Entretanto, pela intervenção de Baco, Vulcano foi de novo chamado ao céu e
recaiu nas graças de Júpiter, que o fez desposar a mais bela e a mais infiel de
todas as deusas, Vênus, mãe do Amor. Esse deus, tão feio, tão disforme, é de
todos os habitantes do Olimpo o mais laborioso e ao mesmo tempo o mais
industrioso. Era ele que, por divertimento, fabricava mimos para as deusas que,
com os seus Ciclopes, na ilha de Lemos ou no monte Etna, forjavam raios de
Júpiter.
Teve a idéia engenhosa de fazer cadeiras que se dirigiam sozinhas à assembléia
dos deuses. Ele não é somente o deus do fogo, mas também o do ferro, do
bronze, da prata, do ouro, de todas as matérias fusíveis. Atribuíram-lhe todas as
obras forjadas que passavam por maravilhas: o palácio do Sol, as armas de
Aquiles, as de Enéias, o cetro de Agamemnom, o colar de Hermione, a coroa de
Ariana, a rede invisível em que prendeu Marte e Vênus, etc.
Esse deus tinha muitos templos em Roma, mas fora dos muros: diz-se que o mais
antigo era obra de Rômulo. Nos sacrifícios que se lhe ofereciam, era costume fazer
consumir pelo fogo toda vítima, sem nada reservar para o festim sagrado; eram,
pois, realmente holocaustos. A guarda dos seus templos era confiada a cães; o
leão lhe era consagrado. As suas festas se celebravam no mês de agosto, isto é,
durante os calores ardentes do estio.
Em honra ao deus do fogo, ou antes, considerado o fogo como o próprio deus, o
povo atirava vítimas em um braseiro, a fim de tornar propícia a divindade. Por
ocasião dessas festas, que duravam oito dias consecutivos, havia corridas
populares em que os concorrentes corriam com uma tocha na mão: aquele que
fosse vencido dava o seu facho ao vencedor.
Eram considerados filhos de Vulcano todos aqueles que se distinguiam na arte de
forjar metais. Os sobrenomes mais comuns que se dão a Vulcano, ou Hefœstos,
são: Lênio (o Leniano), Mulciber (o que maneja o ferro), Etnæus (do Etna),
Tárdipes (o que anda devagar), Junonígena (filho de Juno), Crisor (brilhante),
Colapódion (que tem os pés tortos, zambros, coxos), Anfigies (que coxeia dos dois
pés), etc.
Nos antigos monumentos representam esse deus barbado, com a cabeleira um
pouco descuidada, meio coberto por uma veste que só lhe chega um pouco acima
do joelho, trazendo um gorro redondo e pontudo. Com a mão direita segura um
martelo e com a esquerda as tenazes. Se bem que, segundo a fábula, ele fosse
coxo, os artistas suprimiam esse defeito ou o faziam apenas sensível. Assim
Vulcano se apresentava de pé, mas sem nenhuma deformidade aparente. Os
poetas colocavam a morada habitual de Vulcano em uma das ilhas Eólias, coberta
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de rochedos, cujo cimo vomita turbilhões de fumo e chama. Do nome dessa ilha,
antigamente chamada Vulcânea, hoje Vulcano, veio o nome de Vulcão.

28.2 - Tipo e Atributos de Vulcano

Os poetas representam Vulcano com as feições de um hábil ferreiro, mas ao


mesmo tempo burlesco no aspecto, assaz ridículo aos olhos dos Olímpicos,
corcunda e de conformação viciosa. Nos tempos primitivos, era representado sob a
forma de anão, mas nos belos tempos da arte passou a ser homem vigoroso e
barbudo, com um capacete cônico tendo como atributos as ferramentas de
ferreiro.
"Os que vão a Atenas, diz Valério Máximo, ali admiram a estátua de Vulcano feita
por Alcamene. Entre as demais perfeições que imediatamente nos dispõem em
favor do artista, notamos em primeiro lugar a arte com a qual ele dá a entrever a
atitude torta do deus sob as próprias vestes que servem para lhe ocultar a
imperfeição: não parece ser defeito que ele haja pretendido censurar em Vulcano,
mas apenas um sinal distintivo, próprio a dá-lo a reconhecer como deus do fogo."
Vulcano fabricara a primeira mulher, Pandora, como Prometeu fizera o primeiro
homem. É o divino obreiro do Olimpo, e os deuses lhe deviam quase tudo o de
que se utilizavam. A égide e o cetro de Júpiter, o trono do Sono, a coroa de
Ariadne, o colar da Harmonia, os touros de bronze que guardavam o velocino de
ouro, as armas de Aquiles, eram trabalhos de Vulcano. Era ele, ademais, autor do
carro do Sol, e fizera para Apolo uma admirável flecha que, após atingir o alvo,
voltava por si à mão que a havia lançado.

28.3 - Vingança de Vulcano

Para vingar-se dos pais que tão duramente o tinham tratado, Vulcano imaginou o
fabrico de uma cadeira de ouro, da qual, quem nela se sentasse, só se levantaria
com a sua permissão. Juno, que não conhecia o segredo, sentou-se e Vulcano não
quis livrá-la. Uma curiosa pintura de vaso nos apresenta Juno sentada e Marte
atacando Vulcano para libertar sua mãe. Vulcano não tinha forças para lutar contra
o deus da guerra, e foi obrigado a ceder, mas a sua irritação foi tal que não mais
quis voltar ao Olimpo. Os deuses afligiram-se com aquela resolução que os privava
de todas as belas obras que lhes fazia Vulcano. Baco resolveu levá-lo de novo ao
céu e embriagou-o.

28.4 - Os Fios de Vulcano

Na Odisséia, Vulcano é marido de Vênus. Outras tradições fazem, pelo contrário,


de Vênus, mulher de Marte. Como os deuses tinham nas diversas localidades
lendas diferentes e por vezes contraditórias, a poesia, vendo Vênus unida a Marte,
ou unida a Vulcano, pretendeu conciliar as várias tradições por meio de um
adultério, e daí saiu a história dos fios de Vulcano. Hesíodo dá por esposa a
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Vulcano Aglé, a mais jovem das Graças. Mas a história dos fios de Vulcano
prevaleceu e faz que as outras sejam esquecidas. O que é notável nessa história é
que Vulcano parece unicamente preocupado com os presentes que trouxe como
dote à mulher e que ele pretende reaver.
O Sol que vê tudo advertiu Vulcano das ligações existentes entre sua mulher e o
deus da guerra. Vulcano, então, coloca sobre um cepo uma enorme bigorna e
forma grilhões indestrutíveis. Essas cadeias eram finas como teias de aranha, e
ninguém conseguia percebê-las, tal a habilidade com que haviam sido feitas. Mal
Vulcano viu os dois culpados enredados nos fios, pôs-se a chamar todos os
deuses.
"Poderoso Júpiter, e vós, imortais afortunados, acorrei para testemunhardes uma
interessante cena que ninguém poderia, no entanto, tolerar! Visto que eu sou
disforme, a filha de Júpiter me ultraja sem cessar; agora, une-se ao pernicioso
deus da guerra, por ser ele belo e esbelto, ao passo que eu sou feio e corcunda!
Meus pais são os únicos culpados desta desgraça; jamais deveriam ter-me posto
no mundo!... Os laços que forjei para eles hão de retê-los até o dia em que o pai
de Vênus me devolver todos os presentes que lhe dei para conquistar-lhe a
impudente filha. Vênus é bela, sem dúvida, mas não consegue dominar as suas
paixões." (Homero).
Embora tal narração seja apresentada sob forma cômica, convém notar que é a
confusão dos amantes que leva os deuses a rir, e não a desventura do esposo,
como facilmente se supõe hoje.

28.5 - Os Ciclopes

Os ciclopes, obreiros de Vulcano, são habitualmente caracterizados pela


enormidade do vulto e pelo único olho, posto no meio da testa. Entretanto, Albane
afastou-se muito desse tipo. Incumbido de pintar os quatro elementos para o
cardeal de Sabóia, escolheu Vulcano e a sua forja para representar o fogo. Mas o
seu quadro nada possui de terrível.
Eis um fragmento da carta que ele escreveu ao cardeal para lhe anunciar o envio
do quadro pedido. "Pintei, como Vossa Alteza verá, não somente o fogo celeste e
propriamente elementar, representado pelo poderoso Júpiter, senão também o
fogo material e o do Amor, de que Vulcano e a deusa de Chipre são os emblemas:
não quis colocar as forjas de Vulcano nem Brontes, nem os demais ciclopes;
preferi fixar três jovens Amores, visto que a carne de meninos dessa idade
constituem interessante oposição às amorenadas de Vulcano. Tive, também, de
me conformar nessa escolha ao desejo de Vossa Alteza sereníssima, pois o
embaixador me dissera que conviria representasse eu grande número de Amores
ferindo com as suas setas irresistíveis o mármore mais duro, o aço, o diamante e o
próprio coração dos deuses."
Noutro quadro Albane coloca Vulcano al lado de Vênus. A sua oficina já não é uma
forja, mas um prado coberto de flores. Os seus obreiros não são mais os robustos
ciclopes, e o ruído dos seus martelos é temperado pelo das cascatas. Enquanto na
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entrada de uma gruta recoberta de usgo, um deles aciona o fole, outros


apresentam a Vênus as armas que acabam de fabricar para ele e para o filho:
essas armas são naturalmente setas. A deusa, deitada descuidadamente à sombra
dos bosquetes, sorri para tudo quanto a rodeia e seu esposo, o rude Vulcano, que
repousa ao seu lado, busca tornar-se amável para não prejudicar o quadro.
Os ciclopes sempre foram considerados como personagens formidáveis. Quando
Diana quis ter uma aljava e setas dignas da sua habilidade, foi visitar Vulcano que
ela encontrou na forja rodeado pelos ciclopes seus obreiros.
"As ninfas empalideceram à vista de tais gigantes semelhantes a montanhas e cujo
olho único, sob espessa sobrancelha, brilhava ameaçadoramente. Uns faziam
gemer imensos foles; outros, levantando os pesados martelos, batiam
furiosamente o bronze que tiravam da fornalha. A bigorna estremece, o Etna e a
Sicília tremem, a Itália ecoa o estrondo e a própria Córsega se sacode. Àquele
terrível espetáculo, àquele medonho fragor, as filhas do Oceano ficam
estarrecidas... e trata-se, aliás, de um estarrecimento perdoável; as próprias filhas
dos deuses, na sua infância, só encaram tais gigantes com temor, e quando se
recusam a obedecer, suas mães fingem chamar Arges ou Steropes: Mercúrio
acorre com as feições de um desses ciclopes, de rosto coberto de cinza e fumaça;
imediatamente, a criança, terrorizada, cobre os olhos com as mãos e se atira
tremendo ao seio materno." (Calímaco).

XXIX - Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 7.ª edição, Vol.
I, 1991.
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, Vol. III, 4.ª
edição, 1992.
BULFINCH, Thomas. A Idade da Fábula. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1965.
BURN, Lucilla. O Passado Lendário - Mitos Gregos. São Paulo: Moraes, 1992.
CERAM, C.W. Deuses, Túmulos e Sábios. São Paulo: Melhoramentos, 19.ª edição,
1989.
COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Tecnoprint.
DUMÉZIL, Georges. Ouranós - Varuna, étude de mythologie comparée indo-
européenne. Paris, A.
Maisonnneuve, 1934.
DUMÉZIL, Georges. Jupiter Mars Quirinus, essai sur la conception indo-européenne
de la société et
sur les origines de Rome. Paris, Gallimard, 1941.
ELIADE, Mircea. História das Crenças e das Idéias Religiosas. Tradução de Roberto
Cortes de Lacerda.
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, tomo I, vol. II, p. 15.
MÉNARD, René. Mitologia Greco-romana. São Paulo: Opus, Volumes I, II, III,
1991.
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__ PRADEC CULTURAL. Programa Ativo de Desenvolvimento Cultural. São Paulo:


Nova Central
Editora, Vol. II, p. 677/679.

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