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Carta Pedro Pacheco

Escola Secundária Antero de Quental, 8 de Fevereiro de 2010


Exma. Senhora Ministra da Educação
 Exmas. e Exmos. Colegas
 
 João e Ana olham Orlando. Orlando olha à roda perplexo. Volta uns papéis
sobre uma secretária e diz: estamos no gabinete da Ministra da Educação
no início do ano de 2010! Onde viemos parar! Imaginem quem é a ministra
da educação; nem mais nem menos do que Isabel Alçada, uma das autoras
dos nossos livros de viagens no tempo! 
E Orlando continua. Vive-se no ensino em Portugal uma curiosa situação.
Acaba esta ministra de suceder a uma outra senhora que fizera unir numa
onda comum de protesto os professores quase todos do país.  
Não menos espantoso é o que se desenha em princípios deste ano.
É que praticamente sem tirar nem pôr o que quer que fosse no projecto
liderado pelo mesmo Primeiro-ministro, e só com a mudança de titular, os
sindicatos passaram a aprovar o prosseguimento da acção governativa, as
diversas frentes de luta que se tinham organizado, e anteriormente
impunham o ritmo no combate às medidas governamentais, cindiam em
multiplicados ninhos de mais ou menos intrincadas congeminações
justificativas para o extraordinário volte face. E sabem porquê tudo isso?
Mais tarde, continuou Orlando, foi-se tornando claro o que estava na origem
do aparente contra-senso. Foi tudo uma questão de lógica. Em primeiro
lugar, de lógica de rosto. Da áspera agressividade para o sorriso pré-
fabricado tão ao gosto da formatada população televisiva da altura. Em
segundo lugar, de lógica de partilha. Foram todos chamados ao regaço em
vez de repudiados e agredidos. A madrinha mágica de tantos afilhados
tanto acolheu carruagens em fim de linha como cérebros ainda em
aceleração para a sua messe. Em terceiro e último lugar, a lógica da
expectação. Da estática lógica do objecto para a dinâmica lógica do
fenómeno. Do ou é ou não é da outra senhora para uma unidade de
contrários tão ao gosto das aventuras que nos fez viver, em co-autoria com
Ana Maria Magalhães, assim como a muitos milhares dos seus milhares de
leitores.
Ana e João interrogaram: mas o que é isso da lógica do objecto e da lógica
do fenómeno?
É simples, disse Orlando. Quem quer sentar-se precisa de uma cadeira. E
uma cadeira ou é ou não é, e se é não é outra coisa. Isto, segundo os dois
princípios estruturantes da lógica matemática ou formal, que são o princípio
da não contradição e o princípio do terceiro excluído. Para quem se quer
sentar pouco importa como encaixam as madeiras, de que árvore ou
árvores vieram e se amanhã serão ou não lenha para o lume. Na lógica do
fenómeno é que isto pode interessar tanto mais quanto aqueles dois outros
princípios perderão sentido. É a unidade dos contrários que se afirma em
vez do princípio da não contradição. Em vez do terceiro excluído, afirma-se
a transformação da quantidade em qualidade e da qualidade em
quantidade. Em vez, enfim, de taxativas assunções ou exclusões, a negação
da negação impõe-se.  
Foi assim que Isabel Alçada abraçou o que lhe confiaram para dar
continuidade. Depois da hercúlea fixação na tarefa que se impôs a Maria de
Lurdes Rodrigues, contra quase tudo e contra quase todos, incumbe agora a
Isabel Alçada dar humano corpo a quanto concebeu e organizou a sua
antecessora.
Orlando, gritaram baixinho Ana e João quase em simultâneo, estamos a
ouvir alguém que se aproxima! Rapidamente os três saíram do gabinete
pela porta do lado oposto, misturando-se sem dar nas vistas na azáfama do
início de um novo dia de trabalho no ministério. Já a salvo da situação
delicada em que podiam ter sido apanhados, Orlando, vendo o interesse
pelo que contava, continuou.  
Mas quem não continua agora sou eu, pois tenho de preparar uns trabalhos
com um colega e ir para a aula. Continuarei a seguir.  

 Com os melhores cumprimentos,


 
 Pedro Albergaria Leite Pacheco

 
Escola Secundária Antero de Quental, 10 de Fevereiro de 2010
 
Exma. Senhora Ministra da Educação

 Exmas. E Exmos. Colegas


 

Como disse Orlando, o personagem da co-autora das Viagens no Tempo,


depois da hercúlea fixação na tarefa a que se impôs a Dra. Maria de Lurdes
Rodrigues, contra quase tudo e contra quase todos, incumbe agora à Dra.
Isabel Alçada dar corpo a quanto concebeu e organizou a sua antecessora.
A questão que se coloca agora é a de saber afinal por que razões estavam
tantos contra uma coisa que uma simples mudança de método apaziguou.
Primeiro vejamos como foi possível tantos judeus embarcarem nos vagões e
pagarem aos caminhos de ferro alemães a sua viagem para a morte. 
É que a vida nos guetos era insuportável. Tudo parecia melhor do que
permanecer onde estavam!  
Este ludíbrio foi pago bem caro por quem o abraçou.
 
A Dra. Maria de Lurdes Rodrigues promoveu o gueto insuportável.  
A Dra. Isabel Alçada promove agora a viagem de comboio.
 
Ponderemos.
 
Quando em toda a frente produtiva a imagem do patrão entrou em total
descrédito vão agora as escolas fazer, de uns tantos, patrões dos outros
todos ou não é tempo de abolir a força de trabalho assumida como
mercadoria?
Quando as prerrogativas/vexação de patrão/empregado mergulham na
mais insanável crise, quando a economia capitalista multiplica falências por
tudo o que é sítio, vão as escolas dar louvores à mais grotesca aberração
argumentativa e suporte à mais abjecta prepotência administrativa em
defesa de tais obsoletas figuras?  
As escolas concentram saber e saberes para o equívoco ou para o
esclarecimento?
Tem sentido um Estatuto da Carreira Docente todo ele construído para
obstar à carreira docente?
Tem sentido um Estatuto que, além de dificultar e discriminar a progressão
profissional, humilha aqueles que são objecto de tal iniquidade? Tem
sentido operacionalizar uma avaliação docente transformada pelos próprios
propugnadores, ora em farsante pró-forma (para os de casa), ora em
chicote (para os outros), tecnicamente fraudulenta e politicamente pouco
faltando para o desnude e o olhar os dentes?
Tem sentido permitir-se que os sindicatos sejam usados para fazer passar
tal ignomínia?
Tem sentido expulsar cada vez mais profissionais do ensino ao mesmo
tempo que para os que ficam cada vez mais horas de trabalho e mais
trabalhos se lhes dá?
Tem sentido os centros de cultura, que inelutavelmente as escolas são,
darem cobertura ao ludíbrio que constitui fazer crer que o dinheiro é
referente no discurso económico e o pão mera virtualidade?
Tem sentido permitir-se fazer colapsar o valor da moeda em prol da sua
salvaguarda?  
Alguma vez a destruição acelerada das condições de vida e a liquidação
generalizada da força de trabalho trouxeram riqueza a algum povo?
 
Colegas e Colegas, Sra. Ministra:
 
Em Tróia um objecto decidiu um devir. As inacessíveis muralhas foram
tomadas com a colaboração daqueles que com elas queriam defender-se.
Cegos, por aquela lógica, para qualquer outra lógica, garantiram o que no
fenómeno esperava quem a lógica do fenómeno abraçou.  
Nem sempre se tem condições para distinguir alimento de engodo e isco, é
bem certo.
 
À Dra. Isabel Alçada peço que não equivoque o seu lugar na história.
Às minhas colegas e meus colegas eu peço que não ajudem ao equívoco.

Obrigado,
 

Pedro Albergaria Leite Pacheco

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