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24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009

nBoaventura Santos: nDilema do Direito Penal: nEntrevista:


história e justiça social Lei Maria da Penha Professora Ela Wiecko
Justiça Social e Justiça Histórica
Boaventura de Sousa Santos

A
o voltar do período de férias, os
Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal enfrentarão uma
questão crucial para a construção da
identidade do Brasil pós-constituin-
da sobreexploração dos escravos que
para aqui foram trazidos. Por essa ra-
zão, no Brasil, a injustiça social tem
um forte componente de injustiça
histórica e, em última instância, de
racismo antiíndio e antinegro. (“Ten-
dências/Debates”, 10/06/2008).
ANO III
Nº 32
Agosto de 2009

C&D Constituição & Democracia


te: é possível adoptar um sistema de É claro que na organização das
acções afirmativas para ingresso nas suas relações raciais o Brasil difere de
universidades públicas que destine países como os EUA, na medida em
parte das vagas a negros e indígenas? que apresenta um grau bem maior de
Ao rejeitar o pedido de liminar em miscigenação. A questão é saber se
acção movida pelo DEM, ex-PFL, esse maior grau de miscigenação foi
que pretendia ver suspensa a matrí- suficiente para evitar a persistência
cula dos alunos aprovados na UnB no de desigualdades estruturais asso-
âmbito de uma política de selecção ciadas à cor da pele e à identidade ét-

Criminologia:
com estes contornos, o Ministro Gil- nica ou, em outras palavras, se o fim
mar Mendes sugeriu que a resposta do colonialismo como relação polí-
a esta questão fosse buscada em tica acarretou o fim do colonialismo
função do impacto das acções afir- como relação social. Indicadores so-
mativas sobre um dos elementos
que acompanha o constitucionalis-
mo moderno desde as suas origens,
ciais de toda ordem dizem que essas
desigualdades não apenas persis-
tem, como prometem seguir ator-
Estado, sociedade
na Revolução Francesa: a fraterni- mentando as gerações futuras. Um
dade. Perguntou o Ministro se, com
o advento de programas como o da
estudo recente divulgado pela Se-
cretaria Especial de Direitos Huma-
e lógica punitiva
UnB, o país estaria abrindo mão da nos da Presidência da República,
idéia de um país miscigenado e adop- por exemplo, mostra que o risco de
tando o conceito de uma nação bi- ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes
color, que opõe “negros” a “não-ne- maior entre adolescentes negros do
gros”. E indagou se não haveria for- que entre brancos.
mas mais adequadas de realizar “jus- Falar em fraternidade no Brasil sig-
tiça social”, tal como a adopção de co- nifica, essencialmente, enfrentar o
tas pelo critério da renda. peso desse legado, o que representa
A proposta de situar o juízo de um grande desafio para um país em
constitucionalidade no horizonte da que muitos tomam a idéia de demo-
fraternidade representa uma impor- cracia racial como dado, não como mentos historicamente alijados das Para os estudiosos das reformas
tante inovação no discurso do STF. projecto. Mas se o desafio for en- universidades em razão da cor da universitárias, seria fundamental que
Mas assim como o debate sobre a frentado na sua inteireza pelas insti- pele ou identidade étnica. Em se- o programa da UnB pudesse com-
adopção de acções afirmativas ba- tuições sem que se busque diluir a gundo lugar, a construção e adopção pletar o ciclo de 10 anos previsto no
seadas na cor da pele não pode ser gravidade do problema em categorias de alternativas com este recorte não Plano de Metas da instituição. Sobre
dissociado do modo como a socie- fluidas como a dos “pobres”, o país ca- acarreta prejuízo para a qualidade dos o posicionamento a ser adoptado
dade brasileira se organizou racial- minhará não apenas para a consoli- trabalhos acadêmicos; ao contrário, pelo STF diante do problema, a res-
mente, o debate sobre a concretiza- dação de uma nova ordem constitu- traz mais diversidade, criatividade e posta não está clara. O Tribunal po-
ção da Constituição não pode des- cional, no plano jurídico, como tam- dinamismo ao campus. Em terceiro derá desprezar a experiência da UnB
prezar as circunstâncias históricas bém para a construção de uma or- lugar, apesar de levantar reacções sob o receio de que ela venha a dis-
nas quais ela se insere. Como já es- dem verdadeiramente pós-colonial, pontuais, como a do DEM, e de in- solver o mito de um país fraterno,
crevi nesta secção, a enunciação do no plano sócio-político. cluir decisões que sempre serão po- porque mais miscigenado que ou-
ideário da fraternidade nas revolu- Ao estabelecer e monitorar um sis- lêmicas, como a do critério de iden- tros. Mas o Tribunal também pode-
ções iluministas européias cami- tema de acções afirmativas que des- tificação dos beneficiários, acções rá conceder que o programa da UnB
nhou de par com a negação da fra- tina parte das vagas a pretos, pardos afirmativas baseadas na cor da pele representa, bem ao contrário, uma
ternidade fora da Europa (“Tendên- e indígenas, a UnB tem oferecido ou identidade étnica conseguem de- tentativa válida de institucionalizar
cias/Debates”, 21/08/2006). Nesse três grandes contribuições para essa senvolver um elevado grau de legiti- a fraternidade ao reconhecer a exis-
“novo mundo”, do qual o Brasil se tor- transição. Em primeiro lugar, o sis- midade na comunidade acadêmica. tência de grupos historicamente des-
nou parte desde que a Carta de Ca- tema de educação superior pode re- Basta ver como diversos grupos de favorecidos, contribuindo, assim,
minha chegou ao Rei de Portugal, a cusar-se a reproduzir as desigual- pesquisa e sectores do movimento es- para a efectivação da justiça social.
prosperidade foi construída à base da dades que lhe são externas e mobili- tudantil se articularam em defesa Somente a segunda resposta permi-
usurpação violenta dos territórios zar a comunidade para a construção do sistema da UnB quando este se viu te combinar justiça social com justi-
originários dos povos indígenas e de alternativas de inclusão de seg- confrontado pela acção do DEM. ça histórica.
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Cotas raciais em universidades


Cotas raciais em universidades
EDITORIAL José Geraldo de Sousa Junior - Reitor da Universidade de Brasília, professor da Faculdade de Direito e
coordenador do projeto O Direito Achado na Rua 03

Observatório da Constituição e da Democracia Por que ensinar criminologia?


Carolina Costa Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de
José Geraldo de Sousa Junior

A
crise do sistema penal é assunto de permanente discussão na mídia, na universidade, Criminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduação
nos setores responsáveis pela execução de políticas públicas. Fala-se em alternati- em Direito da UnB

“A
Marina Quezado Grosner - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de s cotas deram concretude
vas ao sistema penal, mudanças na legislação, tratamento digno aos presos, políti- Criminologia; Professora voluntária de “Criminologia” (2005-2007) na graduação em Direito da UnB 04
cas de segurança pública. A Constituição Federal assegura essa dignidade, quando impõe a objetivos de justiça social,
que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, vedando, ainda, a pena de morte. A experiência de Ceilândia equilibrando as propor-
Neste número do Observatório da Constituição e da Democracia, realizado em parce- Lei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor? ções étnicas presentes na sociedade,
ria com o Grupo Candango de Criminologia (GCCrim), lançaremos um olhar crítico sobre a Mayra Cotta - Graduanda em Direito pela UnB, integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) e do e fizeram circular no ambiente do en-
Projeto de Extensão de Atendimento de Mulheres em situação de violência doméstica na Ceilândia 06 sino e da pesquisa novos temas, cos-
vivência das garantias constitucionais do campo penal. Luciana Ramos aborda a difícil si-
tuação das mulheres encarceradas e a luta por seus direitos sexuais e reprodutivos. Os im- Justiça Restaurativa: uma resposta possível aos conflitos penais mologias mais complexas e um diá-
pactos da Lei Maria da Penha são novamente tema de artigo do Observatório, agora em Marina Lopes Rossi - Membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM). Cursando o Máster de logo mais amplo entre saberes”.
Criminologia e Execução Penal na Universidade Autônoma de Barcelona 08 Volto a um tema que já havia sido
texto de autoria de Mayra Cotta. Em entrevista, a Professora Ela Wiecko de Castilho fala
objeto de abordagem neste espaço
de assuntos caros à criminologia crítica, como o processo de reforma do Código Penal, e A audiência única no processo penal (Cotas contra a desigualdade racial).
também sobre a ocupação pelas mulheres de espaços públicos de poder. Pedro Ivo - Advogado, bacharel em Direito pela UnB, membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) 10
E o faço em razão de ADPF (Arguição
Os textos que compõem este número adotam a perspectiva de que a Criminologia Crítica
Dos grilhões ao satyagraha de Descumprimento de Preceito Fun-
propõe outro olhar à questão penal – e estes novos caminhos se iniciam nos bancos da fa-
Ricardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo – Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela UnB, damental) proposta pelo Democra-
culdade. Estudar e compreender a Criminologia são fundamentais ao estudante de Direito. integrante do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) 11 tas (DEM), ex-PFL, contra os atos nor-
Trazemos à discussão também o tema das ações afirmativas, que já foi objeto de um mativos que estabelecem o sistema
número específico do Observatório. O Prof. José Geraldo de Sousa Junior chama a aten- Entrevista com a professora Ela Wiecko
Reforma penal, lei Maria da Penha e segurança pública: (im)possibilidades para uma justiça criminal adotado pela UnB para ingresso de
ção para o importante debate em torno do sistema de cotas da Universidade de Brasília, negros na universidade.
Carolina Ferreira - Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de
que foi impugnado perante o STF. Na mesma linha de afirmação da importância das cotas Criminologia (GCCrim); professora voluntária de “Criminologia e Justiça Restaurativa” (2008-2009) na graduação Submetida ao presidente do STF
no processo de reconhecimento do caráter emancipatório do direito, Boaventura de Sousa em Direito da UnB ainda no recesso de julho, o autor re-
Santos destaca a relevância de combinar justiça social e justiça histórica. Eneida Vinhaes Bello Dultra - Mestranda em Direito, Estado e Sociedade, consultora do Centro Feminista de
quereu liminar para suspender o re-
Com essas propostas, este número do Observatório da Constituição e da Democracia, Estudos e Assessoria – CFEMEA
Noemia Porto - Mestranda em Direito, Estado e Constituição na UnB, especialista em Direito Constitucional pela gistro dos alunos aprovados no últi-
lançado no momento em que se discutem políticas de segurança pública na CONSEG – UnB, diretora da Escola de Magistratura do Trabalho da 10ª Região (Ematra-X) e juíza do Trabalho 12 mo vestibular, tanto pelo sistema
Conferência Nacional de Segurança Pública, em Brasília – DF, traz pontos de partida para universal quanto pelo sistema de
algumas discussões, esperando que a relação entre sistema penal, justiça social e Cons- OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO cotas, para assim obter nova listagem
tituição seja, um dia, real. A feminilidade encarcerada
Luciana de Souza Ramos - Pesquisadora do Grupo Candango de Criminologia (GCCRIM) da Universidade de
de aprovados; e também para impor
Brasília. Foi pesquisadora-membro do Grupo de Trabalho Interministerial sobre sistema carcerário feminino de que os juízes e tribunais de todo o
Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito 2008 14 país determinassem a suspensão
Faculdade de Direito – Universidade de Brasília imediata de todos os processos que
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO envolvam a aplicação de sistemas de
A cruel mecânica das sentenças criminais condenatórias
Vinicius Machado - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; membro do Grupo Candango de cotas em universidades.
EXPEDIENTE Douglas Locateli
Eneida Vinhaes Bello Dultra Criminologia 16 Ao prestar informações, a UnB
Fabiana Gorenstein reafirmou a convicção acerca da
Fabio Costa Sá e Silva OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS constitucionalidade do sistema por próprio STF já fixou em julgamento Em seu parecer, o procurador- ralismo. Ainda segundo o procurador,
Giovanna Maria Frisso
A presença do GCCrim no Fórum Social Mundial de 2009 ela adotado, tanto mais que em con-
Guilherme Scotti paradigmático, “a divisão dos seres geral da República, Roberto Gurgel, “o quadro de dramática exclusão do
Jean Keiji Uema
Diogo Machado - Advogado e membro do Grupo Candango de Criminologia (GCCrim) 18
sonância com as diretrizes de direi- humanos em raças resulta de um pro- afirmou que as cotas não só respei- negro justifica medidas que o favo-
Caderno mensal concebido, preparado e Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros
elaborado pelo Grupo de Pesquisa Judith Karine OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO to internacional dos direitos huma- cesso de conteúdo meramente polí- tam o princípio da igualdade como reçam e que ensejem uma distribui-
Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade Juliano Zaiden Benvindo O Ministério Público e a execução da pena criminal nos, às quais o Brasil se vincula, tico-social”, e é desse pressuposto, fe- também ajudam a alcançar esse pre- ção mais igualitária de bens escassos,
de Direito da UnB – Plataforma Lattes Leonardo Augusto Andrade Barbosa Paula Bajer Fernandes Martins da Costa - Procuradora Regional da República; doutora em direito processual
do CNPq). ISSN 1983-8646 Lúcia Maria Brito de Oliveira
além de explicar o alcance acadêmi- nótipo, que se origina “o racismo ceito constitucional. O procurador ci- como são as vagas em uma univer-
penal-USP; coordenadora do Grupo de Trabalho Sistema Prisional da Procuradoria Federal dos Direitos do
Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira co do modelo autonomamente apli- que, por sua vez, gera a discrimina- tou também a Convenção Interna- sidade pública, visando à formação
Coordenação Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Cidadão; diretora da Associação Nacional dos Procuradores da República 20
Alexandre Bernardino Costa Natália Dino
cado. Mostrou como, política e epis- ção e o preconceito segregacionista” cional sobre a Eliminação de Todas de uma sociedade mais justa”.
Argemiro Martins Noemia Porto DIREITO ACHADO NA RUA temologicamente, a instituição deu (Habeas Corpus nº 82.424, DJU de as Formas de Discriminação, da qual O presidente do STF, Gilmar Men-
Cristiano Paixão Paulo Henrique Blair de Oliveira Advocacia e Consultoria As janelas quebradas da democracia concretude a objetivos de justiça so- 19/3/2004, seção 1, p. 17). o Brasil é signatário desde 1968. A des, não concedeu a liminar e reme-
José Geraldo de Sousa Junior Ramiro Nóbrega Sant´Ana www.yamakawa.adv.br Paulo César de Sales Júnior - Graduando da Faculdade de Direito da UnB 22
Menelick de Carvalho Netto Raphael Augusto Pinheiro cial, “amorenando” a universidade e Na manifestação apresentada ao convenção recomenda às nações a teu o debate ao Plenário, que é o mais
Valcir Gassen Renato Bigliazzi
NOTA DO CORRESPONDENTE equilibrando as proporções étnicas Supremo, a AGU defendeu que as implantação de políticas de ação apropriado para a dimensão do tema
Rosane Lacerda
Comissão executiva As diferentes melodias da América presentes na sociedade, de um lado, medidas de ação afirmativa desti- afirmativa para reverter a trajetória de que foi levado ao Supremo, assegu-
Mariana Cirne Projeto editorial Ana Luiza - Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB 23 enquanto, de outro, a experiência nam-se a reduzir as desigualdades fá- minorias que sofrem discriminação. rando um auditório amplo, que per-
Paulo Rená da Silva Santarém R&R Consultoria e Comunicação Ltda abriu condições para fazer circular no ticas registradas entre os estudantes Para o procurador-geral, “o mito mita ao país mobilizar-se para dis-
Ricardo Machado Lourenço Filho Justiça Social e Justiça Histórica ambiente do ensino e da pesquisa no- que competem para ingressar no da democracia racial transformou-se cussão tão relevante.Trata-se, agora,
Silvia Regina Pontes Lopes Editor responsável
Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra 24
Sven Peterke Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS) vos temas, cosmologias mais com- ensino público superior. A peça ela- em retórica oficial, passando a servir de participar fortemente desse de-
plexas e um diálogo mais amplo en- borada pela Secretaria Geral de Con- como um álibi para que o Estado e a bate, procurando dar sustentação a

Assine C&D
Integrantes do Observatório Editor assistente
Adriana Andrade Miranda Rozane Oliveira tre saberes. tencioso (SGCT) lembrou a tradi- sociedade brasileira nada fizessem a ações afirmativas enquanto reco-
Aline Lisboa Naves Guimarães
Beatriz Vargas
Contra o argumento de que a me- cional posição da jurisprudência do respeito da discriminação”. Além dis- nhecimento de um direito emanci-
Diagramação - Gustavo Di Angellis
Damião Alves de Azevedo Ilustrações - Flávio Macedo Fernandes dida proporciona um racismo in- STF, no sentido de garantir a partici- so, ele sustentou que as cotas aten- patório com o qual, como lembra
Daniel Augusto Vila-Nova Gomes vertido, salientou que o modelo ado- pação das minorias no processo de- dem ao chamado princípio da justi- Boaventura de Sousa Santos,“a dife-
http://www.unb.br/fd/ced/
Daniela Diniz Contato Preço avulso: R$ 2,00
Daniele Maranhão Costa observatorio@unb.br tado não deriva de uma concepção mocrático de formação de opinião e ça distributiva e ajudam a quebrar es- rença não nos inferiorize e a igual-
Douglas Antônio Rocha Pinheiro www.fd.unb.br biologista restrita, mas, tal como o vontade, em todas as suas esferas. tereótipos e a promover maior plu- dade não nos descaracterize”.
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Por que ensinar


nimo de patologia e degeneração.
No início do século XX o ensino da
Criminologia ligou-se à Medicina
Legal, mas permaneceu como disci-
plina acessória ao Direito Penal. O cu-
rioso é que dita “cientificidade” da

Criminologia?
Criminologia acabou por afastá-la
ainda mais do estudo do Direito.
A partir da década de 1930, o es-
tudo teórico da Criminologia perdeu
um pouco de seu aspecto médico
para despontar como ramo da So-
ciologia. Indicavam-se como “causas”
Carolina Costa Ferreira e da delinqüência aspectos sócio-eco-
Marina Quezado Grosner nômicos, ambientais e culturais, re-
lacionando-os às estatísticas crimi-

E
nsinar Criminologia é um de- nais. Mas a Criminologia ainda per-
safio. Os estudantes de Direito, manecia positivista, etiológica.
acostumados às visões frag- Porém, nos anos 1960, uma nova
mentadas das disciplinas que se teoria mudou relativamente os estu-
apresentam ao longo de todo o cur- dos criminológicos, despertando o
so, resistem à proposta de um saber pensamento crítico. Constatou-se
que extrapola métodos ou teorias, que a criminalidade não poderia
propondo um novo modo de pensar. mais ser considerada um comporta-
Para exercitar esta habilidade, alunos mento minoritário na população,
e professores precisam ver, com- praticado por alguns indivíduos pe-
preender, refletir. É preciso, funda- rigosos, diferentes, anormais. Ao
mentalmente, reagir à realidade do contrário, comprovou-se que todos
sistema penal. na sociedade cometem crimes: exer-
O senso comum – presente no dis- cícios de autodenúncia e vitimização
curso dos telejornais, na posição dos mostraram várias condutas violado-
órgãos de governo, nas leis propostas ras de normas penais que não des- que algumas pessoas são conside- Criminologia como ciências acessó- desenvolvimento de pesquisas que
no Congresso – é uma forte barreira pertaram a máquina punitiva estatal radas criminosas, e como é realiza- rias, repetindo um antigo “modelo in- possam revelar a verdadeira realida-
imposta àqueles que se aventuram a e, portanto, não trouxeram conse- da essa seleção. tegrado das ciências penais”. A dis- de do sistema penal, ou a forma pela
ensinar Criminologia. Os “pré-con- qüência alguma para seus autores. A Com esse novo olhar, a Crimino- ciplina de Criminologia, quando ofe- qual essa visão é construída.
ceitos” são perceptíveis em qualquer criminalidade é um comportamen- logia da Reação Social passa a pes- recida aos graduandos, é optativa e Aquele que realmente com-
ambiente – na universidade, no tra- to observado na maioria da popula- quisar o controle penal. Como são es- tratada de forma secundária. Direito preende os postulados da Crimino-
balho, em conversas entre amigos. ção, cuja conduta, para ser crimino- colhidas as condutas que passarão a Penal e Processo Penal têm maior re- logia se modifica e se torna capaz de
Nesta perspectiva, contrariar o sa, depende da reação a ela, do inte- ser crimes e as que deixarão de sê-lo? levância no currículo acadêmico. O transformar, ainda que minima-
senso comum pressupõe o (re)co- resse desta sociedade em satisfazer Como age a polícia na apuração dos resultado é um total desconforto – ini- mente, o mundo à sua volta, refle-
nhecimento das teorias criminoló- seus ideais de punição. crimes de que tem conhecimento? cial – dos alunos que, ao fim do cur- tindo sobre os estereótipos que an-
gicas, da evolução do discurso puni- Neste raciocínio, tal reação se tra- Quais fatores influenciam a vítima a so, desafiam a si mesmos a pensar de tes reproduzia. Alunos e professores
tivo na sociedade e, principalmente, duz numa “etiqueta” atribuída a es- levar ou não ao conhecimento da po- forma diferente, questionando um tornam-se mais iguais – estabelecem
refletir sobre as razões pelas quais de- ses indivíduos e condutas previa- lícia determinado crime? Como é a sistema penal que lhes foi ensinado uma relação de proximidade, cúm-
terminados pontos de vista ganham mente selecionados. E se apenas decisão do Judiciário por iniciar ou como se perfeito fosse, nas intenções plices na descoberta de novos sa-
espaço na mídia, e outros nem tan- parte da criminalidade é apreendida não um processo, ou condenar ou ab- de “recuperação” e “ressocialização” beres. Passam, sobretudo, a com-
to. Discute-se, por exemplo, a apli- pelo sistema penal, o objeto de es- solver determinada pessoa? Qual o dos “indivíduos”. partilhar uma perspectiva mais hu-
cabilidade da “Criminologia de Am- tudo da Criminologia positivista tam- impacto que a passagem pelo siste- Para romper tantos preconceitos mana do Direito.
bientes” ou da “Criminologia Clínica”, bém se torna fragmentado, pois cui- ma prisional tem sobre o indivíduo em torno do tema, é preciso mostrar Estudar Criminologia, hoje, na
tipologias que insistem em se rein- da apenas dos casos que entraram no encarcerado? O enfoque presente a realidade, usando todos os instru- perspectiva da reação social e crítica,
ventar para discutir “causas” do cri- sistema penal. nestas questões não conseguiu afas- mentos possíveis. Discutem-se teo- mostra-se imprescindível à formação
me e “perfis” de criminosos, para A partir destas constatações, a tar, por completo, o paradigma po- rias através de textos, filmes, músicas. dos juristas, em especial daqueles que
manter em evidência políticas pú- Criminologia deixa de perguntar sitivista. A Criminologia, então, ain- O objetivo é praticar ações para des- optam por atuar na área criminal,
blicas com poucas soluções e muito tropológicos da criminalidade, me- cas determinantes da conduta deli- Esse discurso cumpre sua fun- como ocorre o crime e quem são os da fica dividida. pertar reações, discussões e apren- para que tenham coragem de propor
preconceito: surtos de ciência a ser- diante a observação de indivíduos se- tuosa, que revelavam uma persona- ção segregadora e racista, em prol das criminosos – porque, afinal, o crime E este conflito é revelado nos cur- dizado mútuo. Professores e alunos novos modelos de diminuição do
viço do discurso punitivo. gregados em cárceres e manicômios, lidade perigosa de uma classe de classes dominantes e dos grupos de e os criminosos conhecidos são sos de Direito. O Direito Penal é con- se abrem a um universo diferente de controle penal e de solução de con-
Estes exemplos remontam ao pa- em que características como altura, pessoas - os delinqüentes - sujeitos poder. Na América Latina, a Crimi- aqueles selecionados pelo sistema siderado a “verdadeira” ciência cri- possibilidades, com o objetivo de flitos, para minimizar o sofrimento
radigma criminológico, chamado textura do cabelo, tamanho do crânio diferentes dos indivíduos “normais” nologia positivista se manifestou for- penal – para perguntar, agora, por minal, tendo a Política Criminal e a fortalecer o interesse acadêmico no que o sistema penal proporciona.
positivista; herança do século XIX, e do maxilar eram fundamentais e dos quais a sociedade deveria se de- temente na teoria do homem delin-
preocupa-se com o sujeito crimino- para identificar um padrão no perfil fender. Até hoje se percebe a in- qüente, atribuindo aos índios e ne-
so, buscando (somente) nele as cau- do delinqüente. fluência destes conceitos: em muitos gros, nossos primeiros criminosos na- A Criminologia deixa de perguntar como ocorre o crime e quem são os criminosos para perguntar,
sas para o cometimento de crimes. As Dessa Criminologia, as pesqui- Estados, as secretarias responsáveis tos, a condição de inferiores e, por-
pesquisas dessa Criminologia co- sas ampliaram seu objeto, passando pela segurança pública são chamadas tanto, perigosos. Naquele momento, agora, por que algumas pessoas são consideradas criminosas, e como é realizada essa seleção.
meçaram pela procura de traços an- às causas físicas, sociais e psicológi- de Secretarias de “Defesa Social”. o discurso da delinqüência foi sinô-
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Como medidas de prevenção, a lei urgência, os juízes parecem se iden-


procurou fomentar a integração dos tificar mais com a lógica típica do di-
estudos de gênero, a promoção de reito penal. Nos Juizados de Ceilân-
campanhas educativas e de progra- dia, por exemplo, a partir dos aten-
mas educacionais que enfoquem esta dimentos realizados de forma inter-
temática, a criação de atendimento disciplinar entre os cursos de Direi-
policial especializado para as víti- to e Psicologia da UnB, no Projeto de
mas, a capacitação dos aplicadores da Extensão de Atendimento de Mu-
lei e até mesmo a coibição, na mídia, lheres em situação de violência do-
de papéis estereotipados que legiti- méstica, é possível perceber uma
mem a violência de gênero. Também hesitação dos magistrados em defe-
foi pensada uma série de medidas de rirem as medidas protetivas de ur-
assistência à mulher em situação de gência próprias do direito de família.
violência doméstica, como a manu- Realmente, uma análise exploratória
tenção por seis meses do vínculo tra- realizada nos dois Juizados Espe-
balhista, o acesso prioritário da ser- ciais Criminais de Ceilândia mostrou
vidora à remoção e a inclusão da ví- que estas medidas são pouco deferi-
tima em programas sociais. das – prestação de alimentos provi-
Ainda além, um dos principais sórios, separação de corpos e sus-
avanços da lei foi a criação das equi- pensão das visitas (requeridas em
pes de atendimento multidiscipli- 43%, 34% e 21% dos casos, respecti-
nar, integradas por profissionais es- vamente) são deferidas numa fre-
pecializados nas áreas psicossocial, qüência de 3%, 9.5% e 5.5%.
jurídica e de saúde, que devem for- Isso pode ser entendido como
necer subsídio ao juiz, ao Ministério uma resistência dos magistrados em
Público e à Defensoria Pública bem tocar nas questões afetas às áreas que
como desenvolver trabalhos de orien- não pertencem ao direito penal.
tação, encaminhamento, prevenção Igualmente, a medida protetiva de
e outras medidas, voltados para a afastamento do lar acaba depen-
ofendida, o agressor e seus familiares, dendo quase exclusivamente da gra-
com especial atenção às crianças e vidade da tipificação dada a cada
adolescentes. ocorrência – a mesma análise explo-

A experiência de Ceilândia Como se vê, portanto, a Lei Maria


da Penha foi concebida para com-
bater de forma eficaz a violência do-
méstica e familiar, ciente da com-
plexidade deste problema e com-
disse que iria matá-la, ou que seu
companheiro a puxou pelos cabelos
uma mulher que há anos se subme-
te às agressões do marido, eles julgam
ratória constatou que o 75% dos
afastamentos do lar são deferidos
em situações que envolvem o crime
de lesão corporal.
O momento de realização da au-
preendendo que não há respostas desde o bar em que estava até a casa um crime de desacato e uma con- diência, por sua vez, poderia servir de
Lei Maria da Penha: proteção integral da mulher ou punição do agressor? simples e imediatas para a questão. onde moram, o mais provável é que travenção penal de perturbação à oportunidade para a compreensão do
Foram imaginadas diversas maneiras receba pouca atenção dos policiais. tranqüilidade, por exemplo. problema submetido ao judiciário,
Mayra Cotta dentro da Universidade, uma dis- casso experimentado pelo Estatuto intenso da legislação punitiva – aos de se proteger integralmente a mu- De fato, pode-se perceber na fala de Isso leva a uma prática que acaba por meio da escuta da vítima e do
cussão tão intensa em relação a este da Criança e do Adolescente. Assim crimes ocorridos no contexto da vio- lher e de se promover meios para a in- alguns a idéia de que há brigas nor- sendo nefasta aos propósitos da lei, agressor, bem como dos demais en-

C
ompletados três anos da en- tema. A violência doméstica e fami- como a aplicação desta legislação lência doméstica e familiar foi veda- terrupção dos ciclos de violência, mais entre os casais, não merecedo- pois a violência doméstica e familiar volvidos no conflito. Também seria na
trada em vigor da lei 11.464, liar, a partir da Lei Maria da Penha, abandonou seus principais objetivos da a aplicação de penas pecuniárias, possibilitando à vítima – e ao agres- ras da proteção policial. Por outro contra a mulher – uma questão com- audiência a ocasião mais adequada
que ficou conhecida como deixou de pertencer entre as quatro de proteção e promoção da cidada- a lesão corporal leve nestas situações sor – uma vida sem violência. O prin- lado, quando a mulher chega apre- plexa, cujo enfrentamento requer para a atuação conjunta dos profis-
Lei Maria da Penha, muitos come- paredes do casal para se transformar nia das crianças e adolescentes para teve sua pena aumentada e foi pre- cipal aspecto, contudo, que parece ser sentando em seu corpo sinais evi- atuação multidisciplinar e reflexão sionais especializados nas áreas psi-
moram supostas conquistas possi- em fenômeno jurídico próprio. se transformar em meio eficaz de pu- vista a possibilidade de prisão pre- destacado por parte dos entusiastas dentes da violência, os agentes pa- para muito além da mera punição do cossocial, jurídica e de saúde na
bilitadas por este instrumento no Chama a atenção, contudo, a ên- nição penal dos menores, a Lei Ma- ventiva para o cumprimento das me- da lei, infelizmente, é a maior puni- recem mais estimulados a tomar agressor – é reduzida à tipificação de orientação e encaminhamento vol-
sentido de redução dos eventos de fase dada ao caráter punitivo da lei. ria da Penha encontra dificuldades didas protetivas de urgência – mas ção dos autores. O Ministério Públi- providências que consideram efica- condutas isoladas, retiradas pon- tados à ofendida, ao agressor e aos fa-
violência doméstica e familiar. E, Criada como um mecanismo de pro- em implementar suas diretrizes pre- seus principais objetivos vão muito co, inclusive, se apropria da lei para zes – entram na viatura e vão atrás do tualmente da dinâmica de relacio- miliares. Nos Juizados de Ceilândia,
de fato, há alguns aspectos que de- teção integral à mulher, voltado, es- ventivas e educativas, assumindo além do aumento da repressão dos enfatizar este viés – afinal, agora é lei: agressor para realizar o flagrante. namento dos envolvidos. O juiz, por- contudo, o que se vivencia nas salas
vem ser comemorados – o fenôme- pecialmente, à prevenção da violên- um papel de intervenção pontual agressores. Basta ver as diversas no- quem bater em mulher vai preso. No Judiciário, a reprodução des- tanto, não procura uma solução de audiência é a reprodução das
no da violência de gênero no âmbi- cia doméstica de gênero e ao aten- do Estado por meio da lógica punitiva vidades desenvolvidas pela Lei Maria Até mesmo a implementação da ta lógica punitiva do Estado-penal se abrangente e eficaz para o problema práticas típicas dos JECrims – muita
to da família e das relações inter- dimento multidisciplinar das víti- do direito penal. da Penha no sentido de buscar a lei se dá por meio da lógica punitiva mostra evidente já de partida, uma a ele exposto, mas, ao contrário, ten- correria para o encerramento de
pessoais ganhou perspectiva nacio- mas, a Lei Maria da Penha parece ca- A lei, de fato, trouxe mudanças prevenção da violência doméstica do direito penal, seja na atuação po- vez que as demandas geradas pela Lei de a dar uma resposta estatal ade- cada audiência e pouco espaço para
nal e nunca se viu, especialmente minhar em direção ao mesmo fra- que apontam para um rigor mais bem como a emancipação da mulher. licial, seja na prática judiciária. In- Maria da Penha são levadas aos Jui- quada à ameaça, à injúria ou à lesão que sejam ouvidos os envolvidos.
teressante notar, entre os policiais, a zados Especiais Criminais nos Fóruns corporal descritas no inquérito. O fe- A lei Maria da Penha, pensada
ambivalência de suas abordagens que ainda não criaram os Juizados de nômeno da violência doméstica con- especialmente como forma de pre-
A Lei Maria da Penha encontra dificuldades em implementar suas diretrizes nas questões de violência doméstica, Violência Doméstica e Familiar con- tra a mulher é traduzido em tipos pre- venção e repressão da violência do-
observada a partir do acompanha- tra a Mulher, conforme a previsão le- vistos no Código Penal, simplificado méstica e familiar contra a mulher e
preventivas e educativas, assumindo um papel de intervenção pontual do Estado mento de alguns plantões na 15ª
Delegacia de Polícia, em Ceilândia.
gal. Dessa forma, os juízes que deci-
dem os conflitos abarcados pela lei
numa linguagem mais familiar aos
aplicadores do direito.
repleta de mecanismos para se ten-
tar atingir estes objetivos, acaba sen-
Quando uma mulher procura uma transitam também pelos crimes de Também no momento de decidi- do moldada, na prática, à lógica pu-
por meio da lógica punitiva do direito penal. Delegacia alegando que o marido menor potencial ofensivo – entre rem acerca das medidas protetivas de nitiva do Estado-penal.
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Justiça Restaurativa: uma resposta


das partes envolvidas. Não há entre
os autores um consenso sobre a de-
finição deste modelo, mas podem-se
citar alguns elementos que são es-
senciais para a sua caracterização: o

possível aos conflitos penais processo dialogado, a participação


das partes e o acordo restaurador.
A grande diferença entre a justi-
ça restaurativa e o processo penal tra-
dicional é a existência de um diálo-
Marina Lopes Rossi1 go que permite alcançar um acordo.
Este processo é muito positivo para

“A
ampliação das práticas de as vítimas, pois elas podem expres-
justiça restaurativa é um sar os seus sentimentos ao seu agres-
desafio, que pode ajudar sor, o que as ajuda a superar o trau-
na construção de um novo sistema de ma do delito. Também traz benefícios
justiça criminal, menos punitivo, em para o infrator, pois após ouvir a ví-
que se busca promover a responsa- tima ele ficaria mais consciente do
bilidade e a consciência de cada ci- dano que provocou. Este encontro
dadão e não a repressão e a obe- ajuda a romper as visões estereoti-
diência”. padas e auxilia as partes a enxerga-
“Cinco estudantes moram jun- rem o outro.
tos. Num determinado momento, O processo dialogado permite
um deles se arremessa contra a tele- ainda uma participação maior da
visão e a danifica, quebrando tam- comunidade na resolução dos con-
bém alguns pratos. Como reagem flitos, que é um valor democrático
seus companheiros? É evidente que bastante deficiente no sistema penal
nenhum deles vai ficar contente. tradicional. nistério da Justiça e o PNUD (Pro-
Mas, cada um, analisando o aconte- Além do diálogo, por meio do grama das Nações Unidas para o
cido à sua maneira, poderá adotar qual as partes envolvidas chegam a Desenvolvimento) que objetiva pro-
uma atitude diferente. O estudante
número 2, furioso, diz que não quer
uma solução para o conflito, o resul-
tado final também é importante. O
mover estas práticas no país.
Com o apoio das Nações Unidas,
Um conflito pode ser resolvido de
mais morar com o primeiro e fala em acordo restaurador tem como obje- a Secretaria de Reforma do Judiciá-
expulsá-lo de casa; o estudante nú- tivo reparar simbólica e/ou mate- rio tem procurado fomentar o de- diferetes maneiras e não se deve
mero 3 declara: ‘o que se tem que fa- rialmente a vítima e permitir a rein- bate sobre o tema, além de contri-
zer é comprar uma nova televisão e tegração do infrator e a restauração buir com alguns projetos-piloto já pretender construir um único
outros pratos e ele que pague’. O es- da comunidade afetada. existentes com o objetivo de incen-
tudante número 4, traumatizado
com o que acabou de presenciar,
É essencial, porém, o estabeleci-
mento de limites para este acordo.
tivar a replicação destas experiên-
cias. Foram apoiados três projetos:
modelo para todos os casos.
grita: ‘ele está, evidentemente, doen- Não se pode admitir, por exemplo, na Vara da Infância e da Juventude
te; é preciso procurar um médico, que ele tenha como objeto a execu- de São Caetano do Sul-SP; na 3ª
levá-lo a um psiquiatra, etc...’. O úl- ção de medidas degradantes para o Vara da Infância e da Juventude de
timo, enfim, sussurra: ‘a gente acha- infrator, pois, apesar da concordân- Porto Alegre-RS e no Juizado Espe- pretende ser) a panacéia de todos os enxergar novas alternativas, que po-
va que se entendia bem, mas alguma cia de ambas as partes, ainda há um cial Criminal do Núcleo Bandeiran- males do sistema de justiça criminal dem proporcionar soluções mais sa-
coisa deve estar errada em nossa co- caráter de castigo, que deve ser limi- tes, em Brasília-DF. e que não são todos os casos que po- tisfatórias para as partes e para a toda
munidade, para permitir um gesto tado legalmente. É importante destacar que os três dem ser resolvidos por meio deste a sociedade.
como esse... Vamos juntos fazer um O Conselho da Europa elaborou projetos são distintos, mas todos modelo. Como já afirmava Hulsman, um
exame de consciência”. alguns princípios que devem ser aplicam os princípios da justiça res- Trata-se de uma alternativa que conflito pode ser resolvido de dife-
aplicados em qualquer processo em taurativa. Nos dois primeiros, estes propõe um novo olhar sobre os con- rentes maneiras e não se deve pre-
A parábola acima, citada por Louk que se permita à vítima e ao infrator, são aplicados em casos envolvendo flitos penais, buscando não a culpa- tender construir um único modelo
Hulsman no seu livro “Penas Perdi- com consentimento mútuo, partici- crianças e adolescentes. Já em Bra- bilidade individual, mas o enfrenta- para ser imposto a todos os casos. Ao
das”, evidencia que existem várias par ativamente na solução das con- sília, o projeto se dirige aos crimes de mento de todas as questões relativas contrário, é necessário se promover
maneiras possíveis de se lidar com seqüências do delito, com a ajuda de menor potencial ofensivo pratica- ao conflito. Procura-se não a punição, e incentivar diferentes estratégias
um conflito. No âmbito penal, porém, um terceiro facilitador. Entre estes se dos por adultos. mas a responsabilização pelo dano mais compatíveis com a pluralidade
durante muito tempo, admitia-se pode citar: a necessidade de con- A ampliação das práticas de justiça praticado e a reparação. O foco não e a complexidade da sociedade mo-
apenas uma solução: o modelo re- sentimento, a confidencialidade das restaurativa é um desafio, que pode está no passado, na ação já pratica- derna.
pressivo do sistema de justiça crimi- discussões e a disponibilidade da ajudar na construção de um novo sis- da, mas no futuro, no que pode ser Nesse contexto, a justiça restau-
nal, com a aplicação da pena de pri- mediação em todas as fases da justi- tema de justiça criminal, menos pu- feito para restaurar as partes envol- rativa surge como uma resposta pos-
são. O crescimento das práticas de ça penal. nitivo, em que se busca promover a vidas e a comunidade. sível, que não destaca apenas o que
justiça restaurativa começa a ques- O crescimento das práticas de justiça restaurativa começa No Brasil há alguns projetos-piloto responsabilidade e a consciência de Para a construção de um sistema há de negativo nos conflitos penais,
tionar este monopólio. que buscam implementar práticas cada cidadão e não a repressão e a de justiça justo é essencial que se pro- mas aproveita o seu potencial trans-
A justiça restaurativa propõe uma
nova forma de solução dos conflitos
a questionar o modelo repressivo de justiça criminal. restaurativas, mas este modelo não
está institucionalizado. Foi firmado
obediência.
É importante lembrar, porém,
movam diferentes formas de solução
dos conflitos penais. É preciso retirar
formador e incentiva o protagonismo
da comunidade na solução dos seus
penais, com uma maior participação um acordo de cooperação entre o Mi- que a justiça restaurativa não é (e não os óculos da retribuição para poder problemas.
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A audiência única no processo penal


Pedro Ivo
Dos grilhões ao satyagraha
N
o ano de 2008, foram editadas Ricardo Luiz Barbosa de Sampaio Zagallo
as Leis 11.689/2008,

“A
11.690/2008 e 11.719/2008, o afirmar que o ideal de-
que instituíram profundas modifi- mocrático é o cidadão res-
cações, respectivamente, no Tribunal ponsável, e não o obedien-
do Júri, no regime de provas do pro- te, o satyagraha de Gandhi nos per-
cesso penal e no procedimento penal mite enxergar o conflito como ele-
ordinário. Com pouco mais de um mento estruturador da própria vida
ano da Reforma Processual Penal, in- social e a não-violência como uma vi-
tensas discussões têm sido travadas tória em si, independente do resul-
sobre a interpretação dessas novas tado alcançado”.
disposições. No meio acadêmico, Resultado da união dos termos
discute-se se o propósito da Reforma sânscritos satya (verdade) e agraha
de modernizar o processo penal, (firmeza), a palavra satyagraha fi-
tornando-o célere, não traz o risco de cou nacionalmente conhecida como
sacrifício aos postulados do devido o nome dado à operação da Polícia
processo legal e da ampla defesa. Nos Federal que, em julho de 2008, pren-
tribunais, o dia-a-dia das varas cri- deu o banqueiro Daniel Dantas, o
minais tem originado uma série de megainvestidor Naji Nahas e o ex-
discussões sobre a aplicabilidade de prefeito de São Paulo Celso Pitta,
dispositivos das novas leis. entre outros, sob a suspeita de en-
Um dos institutos que mais tem sido volvimento em crimes financeiros e
objeto de debates é a audiência única. casos de corrupção. Não obstante o
A nova audiência, antes cindida em três contexto em que empregado, a ori-
sessões distintas, passou a compreen- gem do conceito em nada diz com a
der a realização de toda a instrução pro- repressão ou o uso das prisões como
cessual, a realização de alegações finais meio de se alcançar determinados
orais pelas partes e o proferimento de fins. Pelo contrário, está em polo contra na relação com o outro, no res- nhecido como “A marcha do sal”, nheça o direito e os meios de coagir
sentença em audiência. Em razão des- diametralmente oposto. peito às suas concepções, tomando- Gandhi e mais setenta e nove com- os cidadãos.
sa abrangência, a audiência única tem Seu desenvolvimento deve-se a se o cuidado de evitar qualquer ati- panheiros deixaram a cidade de Todavia, a sociedade brasileira
sido chamada de “superaudiência” Mahatma Gandhi e está ligado ao tude violenta contra ele. Nessa saga, Ahmedabad numa caminhada de desta primeira década do Séc. XXI vê-
por autores que analisaram a Reforma modo não violento de vida. Para a não-violência é o meio e a verdade 390km até o povoado de Dandi, na se imersa numa espiral aparente-
de 2008. A proposta de uma audiência Gandhi, o objetivo da vida deve ser o fim, e o essencial não é ter razão, costa do oceano Índico, pregando o mente sem fim de violências, fruto de
única está diretamente vinculada ao a busca pela verdade, entendida mas ser bom. “dever de deslealdade” para com um séculos de iniquidades e cultura au-
objetivo de acelerar a tramitação dos como “voz da consciência” e exis- Isso não significa, no entanto, governo de leis desumanas que se toritária, para a qual a resposta ha-
processos criminais. Nesse contexto, a tente em todas as pessoas. Disso que o homem não-violento deva apoiava na exploração de milhões bitual tem sido o incremento do po-
estratégia encontrada pela Lei para diência única tem gerado situações. da oralidade, as atas de audiência e os um momento posterior, ainda que a decorrem duas premissas caras ao ser omisso e covarde. Para Gandhi, de indianos. Chegando ao destino, der punitivo estatal, numa lógica de
que o processo seja célere e, ao mesmo Os Tribunais têm se deparado com si- demais atos documentados tornam a consequência disso seja a cisão da au- satyagraha: o homem deve ele pró- a necessidade de forçar o adversá- com um punhado de sal apanhado meios e fins em que a violência co-
tempo, resguarde, ao menos formal- tuações em que as garantias consti- ser a principal fonte informativa do diência: “o instituto da audiência una prio promulgar as leis que orientem rio a reconhecer as exigências da da praia na mão, conclamou seus metida hoje contribuiria para uma
mente, o devido processo legal e a tucionais do devido processo legal e processo, o que impõe, por conse- deve ser respeitado se garantidos os seus pensamentos, palavras e ações, justiça não justifica todos os meios. conterrâneos a abertamente deso- longínqua e incerta paz. Estariam jus-
ampla defesa, foi fortalecer a oralida- da ampla defesa impõem a inovação qüência, o emprego da linguagem es- postulados de maior grandeza como o que implica tanto na possibilida- A não-violência é mais efetiva na bedecerem à lei que obrigava ao pa- tificados assim os sofrimentos e as
de. Para tanto, a Reforma não apenas do procedimento da audiência única. crita por todos os atores envolvidos. a ampla defesa e o contraditório”. de de incorrer em erros como tam- luta contra o mal do que a lei de ta- gamento do imposto sobre o sal restrições a direitos.
robusteceu o emprego da palavra fa- Nesse contexto, o Tribunal de Justiça Em outro julgado, também de ini- Os julgados acima citados pos- bém corrigi-los quantas vezes for lião, que ao usar de violência só faz até que a Índia e seu povo se tor- Ao afirmar que o ideal democrá-
lada (alegações finais orais), como im- do Distrito Federal – TJDFT decidiu, ciativa do NPJ/UnB (habeas corpus nº suem, em comum, o fato de terem necessário. Essa autonomia é fun- aumentar a perversidade. As práti- nassem independentes. Em agosto tico é o cidadão responsável, e não o
pôs a concentração dos atos proces- recentemente, em habeas corpus im- 2009.00.2.005529-1), o TJDFT enten- encontrado soluções constitucionais damental na busca do justo, pois é cas não-violentas de Gandhi ficaram de 1947 a Índia finalmente se livrou obediente, o satyagraha de Gandhi
suais (audiência única) e instituiu o petrado pelo Núcleo de Prática Jurí- deu que a cisão da audiência - co- para dificuldades práticas na aplica- maior o risco daquele que obedece mundialmente conhecidas durante do julgo britânico, sem a necessi- nos permite enxergar o conflito como
princípio da identidade da física do juiz dica da Universidade de Brasília – mum por razões práticas - pode ser ção do instituto da audiência única. cegamente a uma autoridade exterior a campanha pela libertação colonial dade de qualquer levante armado. elemento estruturador da própria
(o juiz que acompanha a instrução pro- NPJ/UnB (habeas corpus nº determinada também se estiverem As decisões mencionadas fornecem persistir no erro do que quem pen- da Índia nas décadas de 1930 e Mas o que a filosofia e as práticas vida social e a não-violência como
fere a sentença). Somente com a con- 2009.00.2.002622-7), que, na hipóte- sob perigo garantias constitucionais. um norte para a interpretação dos di- sa por si. O indivíduo que busca a 1940, quando estratégias de resis- não-violentas podem ter a ver com o uma vitória em si, independente do
fluência desses três elementos res- se de realização de diversas audiên- Foi o que ocorreu na hipótese anali- nâmicos institutos da Reforma de verdade deve convencer-se também tência passiva e não cooperação Direito? Afinal, segundo a teoria clás- resultado alcançado. Trata-se de es-
guarda-se a oralidade. Por outro lado, cias, presididas por diversos juízos di- sada pela Corte, em que o acusado, 2008. Nas hipóteses em que a obser- que esse é um caminho sem fim, e a foram utilizadas buscando fins po- sica, o Estado é o detentor do mo- tabelecer um Estado de Direito no ci-
qualquer transgressão, ainda que tênue, ferentes, deve ser oportunizado às por ser morador de rua, não foi loca- vância das novas disposições legais verdade será sempre fragmentária, líticos, baseadas na constatação nopólio da violência legítima e o Di- vismo dos cidadãos que voluntaria-
a tais requisitos, ocasiona uma quebra partes o oferecimento de alegações fi- lizado por seus advogados dativos an- favorecer tão somente o projeto de parcial e imperfeita. Logo, o homem que a maior força do império bri- reito o regulador do seu uso, neces- mente renunciam à violência, e não
irreparável da oralidade. nais escritas – ainda que a Lei preve- tes do oferecimento da defesa preli- celeridade e deixar de atender ao não deve nunca tentar impor sua ver- tânico não estava nos fuzis ou no sário quando determinadas práti- na repressão de governo. Somente
Pelo fato de a cisão da instrução e ja de modo diverso, pelo fato de as ale- minar (momento em que são indi- devido processo legal e à ampla de- dade aos outros, imperativo que ele- número de soldados, mas na capa- cas colocarem em risco o próprio então, em uma dinâmica da não-vio-
a substituição de juízes serem bas- gações finais orais não se mostrarem cadas as testemunhas). O Tribunal de- fesa, adaptações são necessárias, va a tolerância à regra de ouro da cidade de resignação e cooperação convívio social. Certamente não se- lência, será possível falar efetiva-
tante comuns no cotidiano das varas suficientes para o resguardo da am- cidiu por resguardar o direito do acu- ainda que, em algumas hipóteses, conduta humana. voluntária do povo indiano. Em 12 ria realista conceber uma sociedade mente em uma economia da violên-
criminais, a aplicação do rito da au- pla defesa. É que, no caso de quebra sado de indicar testemunhas para contra a literalidade da Lei. Por essa razão, a verdade se en- de março de 1930, no que ficou co- sem um governo ao qual se reco- cia e em Direito Penal mínimo.
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qual o instrumento adequado para uma tendência de usar a forma mais


ENTREVISTA COM A PROFESSORA ELA WIECKO
ser utilizado, se civil ou penal. Neste gravosa para as condutas dos movi-
sentido eram importantes os Juizados mentos, a fim de evitar que aconte-

Reforma penal, lei Maria da Penha e


Interdisciplinares. Foi difícil na tra- ça a alteração da realidade que eles
mitação da proposta no Congresso pretendem. É preciso lembrar que a
que essa complexidade fosse com- lei penal como é conservadora é fei-
preendida, daí porque a proposta ta para punir. No caso das mulheres,

segurança pública: (im)possibilidades


inicial foi modificada. Também o Ju- por exemplo, há repressão quando se
diciário não conseguiu compreender pretende designar a ocorrência de
ainda a aplicação dessas dimensões apologia ao crime em eventos que na
complexas para enfrentar o proble- verdade orientam e auxiliam a im-

para uma justiça criminal


ma. Em razão disso, hoje prevalece a plementação dos casos de aborto
lógica criminal. Então, houve sim legal nos serviços públicos.
mais criminalização. A revolução que está em anda-
Para que se consiga romper esse ci- mento hoje no mundo é aquela fei-
clo de violência é preciso reconhecer ta através do direito, por isso pres-
Carolina Ferreira, Eneida Dutra contra a pessoa, mas isso também também que a criminalização de veis que torne possível uma compa- que se trata de violência de gênero. siona-se pela implementação dos
e Noemia Porto não foi adiante. A proposta aparen- condutas não acontece mais de den- ração com a fase anterior. É verdade Mais de 90% dos casos de violência ainda não-realizados.
tava ser mais uma “maquiagem” do tro para fora, isto é, da sociedade para que há uma discussão pública maior doméstica é praticada por homens
Considerando as possibilidades que verdadeira reforma. o legislador. Há modelos conven- sobre o tema da violência doméstica, contra mulheres. Essa situação foi Como a senhora se posiciona so-
de alterações legislativas ao Código Há um aspecto interessante da- cionados internacionalmente, como mas se a lei está proporcionando observada e estudada, daí concluímos bre a ocupação dos espaços públicos
Penal (PL 1069/95 entre outros), es- quele período, o então Ministro Cer- é o caso da lei da lavagem de dinheiro, um aumento das denúncias e dimi- que para combater esse quadro é e políticos pelas mulheres? O que di-
pecialmente na parte dos crimes nichiaro do STJ conversava bastante do crime organizado, do enfrenta- nuindo os casos por causa da apli- preciso ação afirmativa. Então, a lei ficulta estar nos espaços de poder e
contra os costumes, a senhora con- com a imprensa sobre os trabalhos da mento ao terrorismo. Quando se faz cação de medidas que ela estabele- não é inconstitucional e não fere o decisão?
sidera que tais iniciativas atendem comissão, na tentativa de abrir e pu- alterações parciais, ou a partir de ce, não sabemos com certeza. O Gru- princípio da isonomia. Os homens po- No espaço político a defasagem é
à expectativa de atualização? E em blicizar o debate e receber sugestões consensos particularizados, a socie- po Candango de Criminologia que dem reivindicar as medidas protetivas mais grave e não corresponde à per-
que medida? da sociedade. Eram enviadas cor- dade perde a visão do conjunto, o que funciona no Núcleo de Prática Jurí- – e o juiz pode e deve decidir basea- centagem das mulheres na popula-
A chamada reforma do Código respondências para universidades, aprofunda ainda mais a injustiça dica – NPJ da UnB começou a atuar do no seu poder geral de cautela. ção. No Ministério Público Federal, se
Penal não tem acontecido de forma pois na época ainda não se tinham que o sistema representa. em 2007/2008 com atendimentos Quanto à retratação, ela tem que mantém, há mais de 10 anos, apenas
sistemática, há vários projetos de disponíveis meios tecnológicos de co- jurídicos às mulheres vítimas de vio- ser feita em audiência. A idéia, a em torno de 30% de mulheres. No Ju-
leis ao mesmo tempo. Foram criadas municação. Recebemos diversas con- Fazendo um balanço dos 3 anos lência doméstica. Em 2009, os aten- partir de uma experiência daqui do que impondo sacrifício às mulheres. caminho é este mesmo: mostrar a diciário tem aumentado mais a pre-
duas comissões de especialistas, ins- tribuições do movimento feminista, da Lei Maria da Penha-LMP, na sua dimentos passaram a ser jurídicos e DF, era de que a retratação fosse se- Por uma questão de coerência, a presença do Estado não apenas pela sença feminina. Mas os concursos
tituídas pelo Ministério da Justiça articulado pelo Conselho Nacional de aplicação prática, houve criminali- psicológicos. Este novo formato foi gura e que não ocorresse em decor- medida protetiva só se justifica pela polícia, mas com outros setores tam- públicos para determinadas carreiras
para apresentarem proposta de re- Direitos da Mulher. Como era a úni- zação de condutas? Na sua observa- analisado no trabalho de monogra- rência de constrangimento à mu- situação vulnerável, mas é preciso es- bém. Isso evidentemente leva tempo são muito difíceis. Exigem tempo de
visão do CP. A Comissão Especial de ca mulher, é como se eu pudesse ser ção, a lei gerou um empoderamen- fia de uma aluna da graduação da lher. A polêmica se dá nos crimes de tar atenta a um discurso em defesa da e também não podemos nos esque- preparação e isso é mais difícil para
1998 se dedicou a rever a parte es- a voz do movimento feminista. Po- to das mulheres? Quanto à desis- UnB, Sarah Raquel, que estudou e re- lesão corporal leve em que a ação era autonomia das mulheres. cer de que há uma “indústria do cri- as mulheres. A exigência ou as prio-
pecial, da qual participei como úni- rém, nós que estudamos Criminolo- tência da denúncia pela mulher nos latou três casos de atendimentos no condicionada à representação pela me” por trás disso tudo, à qual inte- ridades familiares, dos companheiros,
ca mulher. Logo foi abandonada a gia Crítica não acreditamos nos au- casos de lesão leve, qual sua opinião? Núcleo. Nos casos estudados, a par- Lei 9.099/95. A LMP mudou o pro- Qual é a sua opinião sobre os ressa vender produtos e não investir dos filhos - cujos cuidados predo-
idéia de se fazer mudanças no siste- mentos de penas, na excessiva cri- É difícil fazer um balanço porque tir do atendimento interdisciplinar, as cedimento para ação penal pública impactos atuais do PRONASCI e a or- em segurança pública. minantes são dispensados pelas mu-
ma de penas, por exemplo, modifi- minalização. Senti certa dificuldade não temos coleta de dados padroni- mulheres ficaram mais empoderadas incondicionada. Isto é polêmico para ganização da Conferência Nacional lheres - afetam as mulheres que
cando em alguns tipos previstos com em dialogar, pois os movimentos de zada que permita uma análise. No e não têm mais medo. nós feministas e também foi no pro- de Segurança Pública (CONSEG)? Algumas iniciativas estatais tem acabam deixando seus estudos para
pena privativa de liberdade para mulheres pretendiam descriminali- Distrito Federal talvez fosse possível Essa lei decorreu de uma propos- cesso legislativo. Existem duas li- Estou vendo com muito entu- tomado uma forma repressiva forte segundo plano. Além disso, no início
pena substitutiva. Isso exigiria um zar o crime de aborto, mas crimina- realizar este balanço, então, na dis- ta apresentada por mulheres à Se- nhas de entendimento: a primeira é siasmo a CONSEG; a questão das contra Movimentos Sociais. Há uma da carreira normalmente é necessá-
grande esforço de revisão geral. A lizar, de forma mais pesada, outros ciplina do Mestrado em Direito da cretaria de Política para as Mulheres de que não se deve tratar as mulhe- conferências livres é um avanço na criminalização dos movimentos? rio permanecer no interior do país, o
compreensão era de que a socieda- crimes sexuais. UnB as pesquisas se dirigiram para a da Presidência da República-SPM. res como “vítimas”, mas como pes- discussão. Por outro lado, tenho Não acho exagerada a expressão que é bastante complicado também
de veria tais modificações como um Concluídos os trabalhos, o proje- busca destes dados nas delegacias, Não se queria aumento de tipos-cri- soas que se encontram em situação preocupação pois a maioria das pes- criminalização dos movimentos so- para elas. A verdade é que as mulhe-
“afrouxamento” do sistema. Esse já foi to foi encaminhado para o Ministro para se saber como estavam rece- me, mas sim a existência de uma de violência, devendo ser fortalecido soas que vão participar são da polí- ciais. É o que está acontecendo, não res assumem mais que os homens os
um sinal de que não conseguiríamos da Justiça e de lá seguiu para a Casa bendo as mulheres que sofriam vio- equipe interdisciplinar que estaria ha- seu direito à autonomia e à liberda- cia. O próprio Ministério Público só no Brasil. Trata-se de um fenô- compromissos familiares. Elas vão
fazer uma verdadeira reforma. Para Civil, de onde não mais saiu. Vários lência doméstica. Descobriu-se jus- bilitada a escolher, com a vítima da de; a segunda corrente entende que não se articulou com a devida ante- meno global, expressivo na América entrando pelas beiradas, ocupando
mexer nos crimes da parte especial projetos de lei posteriores foram tamente que não há dados disponí- violência doméstica, em cada caso, a mulher ainda está dominada pela cedência e terá um espaço mínimo Latina, e que decorre de um conflito cargos que são considerados como ti-
era preciso enfrentar questões polê- apresentados tendo como ponto de estrutura de uma sociedade ma- na Conferência. A visão mais repres- ideológico. Os movimentos sociais picamente femininos. A discrimina-
micas, a exemplo do crime de abor- partida discussões e estudos realiza- chista, e o Estado, de certa forma, ain- siva deve prevalecer; faltam policiais querem a implementação de direitos ção enfim ainda permanece.
to, a eutanásia. Havia muita pressão dos pela comissão. É muito difícil no da deve “protegê-la”. No entanto, que tenham uma visão mais huma- sociais como o acesso à terra, à edu- As coisas vão mudando. Temos
de setores da sociedade, nestes casos, Brasil realizar uma reforma total
Os movimentos sociais querem a implementação de chegamos a um consenso de que nista da questão da segurança pú- cação, à comunicação, à liberdade. O mulheres onde antes não havia.
das igrejas. A Comissão decidiu não como a que já aconteceu em outros no Brasil deveria prevalecer a ação blica e com um trabalho interdisci- Estado cria óbices muito fortes, como Aparentemente houve avanço, mas
excluir o crime de aborto, mas deli- países, em razão da diversidade cul-
direitos sociais como o acesso à terra, à educação, à penal pública incondicionada, por plinar. A concepção do PRONASCI é é o caso das rádios comunitárias se for analisado, mesmo quando
berou por ampliar as hipóteses do
chamado aborto legal. Na segunda
tural e da profunda desigualdade.
Para enfrentar questões polêmicas e
comunicação, à liberdade. Mas há uma tendência de causa da condição dominante de
vulnerabilidade ainda vivida pela
ótima. A política de segurança pú- que não têm regulamentação. As es- elas estão em altos cargos, depen-
dem de uma rede masculina que dá
blica deve ser conjugada a outras, truturas de poder usam a lei mais for-
Comissão, conseguimos propor a ter discussão ampla vai demorar usar a forma mais gravosa para conter os mulher. Assim, a tutela gera uma si- como saúde, educação, etc. Recen- te, que define infrações penais e ad- sustentação naquele espaço e elas
mudança do nome do título dos cri- muito tempo. Cada ano ao sair uma tuação de equilíbrio. temente, ouvi de pessoas atuantes ministrativas, para punir as condutas. precisam precisam fazer conces-
mes contra os costumes, para chamá- nova lei, temos um fatiamento que movimentos, a fim de evitar que aconteça a No Poder Judiciário, essa polê- nas favelas do Rio de Janeiro, que não Sabemos que em alguns casos os sões. As etapas para se chegar aos
los de crimes contra a dignidade se- faz com que se perca a idéia de sis- mica encobre um discurso baseado são da área de segurança pública, que movimentos sociais infringem a lei, cargos de destaque são dominadas
xual. Ainda queríamos que esse títu- tema penal em que se distingue o que alteração da realidade que eles pretendem. na defesa da família, na tentativa de os projetos do PRONASCI já conse- e por isso mesmos fica difícil para o por homens. O masculino não per-
lo compusesse a parte dos crimes é mais ou menos grave. Observa-se manter a harmonia familiar, mesmo guiram bons resultados. Acho que o Ministério Público não atuar. Mas há deu o controle ainda.
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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO lência. Sob a dimensão coletiva, na
ausência de políticas públicas que as-

A feminilidade encarcerada segurem a concretização desses di-


reitos, como acesso à informação
em educação sexual e reprodutiva,
discussão e oferta de métodos con-
traceptivos, prevenção à violência de
Luciana Ramos gênero.
Em muitas unidades prisionais

O
sistema penitenciário brasi- femininas, as mulheres são punidas
leiro é titular de muitas vio- quando flagradas tendo relações ho-
lações aos direitos humanos, mossexuais. A negação de visitas ín-
no que tange as mulheres presas o ce- timas e de relacionamentos dentro do
nário é pior, pois a múltipla punição cárcere representa de forma muito
dada às mulheres por “agirem como peculiar a discriminação de gênero.
homens” é mais cruel. Abandono da A negação do direito de visita ín-
família, marido e filhos, bem como a tima impossibilita também à mulher
impossibilidade de serem mulheres o direito de escolher engravidar, de
– não garantia da visita íntima, im- ser mãe, e aqui se observa outras con-
possibilidade de permanência com fi- seqüências da violação ao direito de
lhos nascidos no cárcere – são algu- exercer a maternidade. Recente-
mas das punições sofridas, para além mente fora aprovada a Lei nº
da pena. 11.942/09 que determina que as pe-
Embora o número de mulheres nitenciárias de mulheres sejam do-
presas no Brasil seja diminuto fren- tadas de seção para gestantes e par-
te ao número total de presos 308.786 turientes e de creches para os me-
(houve um aumento de 135% da po- nores cuja responsável esteja presa.
pulação feminina) 1, a situação car- Apesar de existir desde 2003 o
cerária dessas mulheres revela o grau Plano Nacional de Saúde no Sistema
de discriminação e de criminalização Penitenciário, que objetiva organizar
pelo qual vivem. o acesso das populações privadas
O sistema penitenciário brasilei- de liberdade sob a tutela do estado
ro abriga, aproximadamente, uma nas ações e serviços de saúde do Na sutileza da perversão de um sistema presidiário,
população carcerária feminina de
14.058 (4,55%) mulheres, sendo que
Sistema Único de Saúde – SUS, de
forma integral, era urgente a regula-
que desrespeita o homem preso, que parcela cabe às
6.522 (25%) estão em delegacias pú-
blicas, contra apenas 13% dos ho-
mentação da situação das mulheres mulheres presas, que são obrigadas ao uso de uniforme
no cárcere.
mens, o que demonstra falta de po- Desta forma a referida lei está em semelhante ao deles? Calças compridas, sempre. Nada
lítica penitenciária voltada especifi- perfeita sintonia com o relatório final
camente para as mulheres encarce- bém são duplamente condenadas: le- sentados que o sistema carcerário direitos passa pela garantia de aces- apresentado pelo Grupo de Trabalho de uso de saias! Nada de olhar-se no espelho e ver-se
radas. galmente, por infringirem a lei, e so- não foi pensado para as mulheres até so aos serviços de saúde da mulher. Interministerial instituído em 2007
As mulheres presas no Brasil hoje cialmente, por serem consideradas porque o sistema de controle dirigi- A desigualdade entre gêneros se com a finalidade de elaborar pro- mulher, quiçá ter desejos. Nada de “estereótipos” femi-
são jovens, mães solteiras, afro-des-
cendentes e, majoritariamente, con-
biológica e sexualmente anormais
(quando delinqüem). Os motivos
do exclusivamente ao sexo feminino
sempre se deu na esfera privada. O di-
faz de forma perversa na privação se-
xual imposta às mulheres presas, ou
postas para a reorganização e refor-
mulação do Sistema Prisional Femi-
ninos. Nada de sonhos, de auto conhecimento como ser
denadas por tráfico de drogas. Quan-
do presas, são abandonadas pela fa-
biológicos que se costumam apre-
sentar para a baixa criminalidade
reito penal foi constituído visando os
homens enquanto operadores de
seja, de maneira mais contundente e
inflexível que para os homens presos.
nino, bem como concretiza o Plano
Nacional de Saúde no Sistema Peni-
humano e ser mulher.
mília, sem garantia do direito a visi- feminina é relacionada a sua “natu- papéis na esfera (pública) da produ- Poucas unidades prisionais femininas tenciário.
ta íntima e de permanecerem com os ral” docilidade e passividade decor- ção material. admitem a visita íntima, constata o Um novo olhar para o encarcera- (Dora Martins, Juíza de Direito do Estado de São Paulo)
filhos nascidos no cárcere, o que de- rentes da “imobilidade dos óvulos”. O perfil do encarceramento fe- Relatório do Grupo de Trabalho In- mento feminino pautado na questão
monstra a dupla (múltipla) punição Desse modo, quando as infrações minino, detalhado acima, demonstra terministerial, coordenado pela Se- de gênero, respeitando as mulheres
da mulher, quer pelo sistema penal, se realizam em um contexto diferente claramente a desigualdade de gêne- cretaria de Política para as Mulheres, sob suas diversas faces, e garantindo Site de acesso ao Relatório da CPI do sistema carcerário:
quer pela sociedade. daquele imposto pelos papéis femi- ro, não só na aplicação da pena (to- quer sob a alegação de evitar a gra- a ela resignificar seu tempo na prisão http://pfdc. pgr.mpf.gov. br/grupos- de-trabalho/ sistema-prisiona l/CPIsistemacarc erario.pdf/ view
Assim, quando a mulher é encar- ninos, as infratoras são tratadas mais das as esferas da execução penal), videz – o que geraria maiores atri- e possibilitar novas expectativas para
cerada as conseqüências são de di- severamente que os homens. Com a bem como na não concretização de buições aos servidores penitenciários além da criminalidade, faz-se ur- 1 Dados de 2006 apresentados no Relatório Final do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) sobre
versas ordens. Não repercutem ape- mudança no perfil da “delinqüência” direitos básicos às detentas. e necessidade de adequação dos es- gente, pois a violência institucional “Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino”, Brasília: Dezembro/2007. Dados re-
nas na pessoa da detenta, mas atin- feminina, conseqüentemente, dos Toda forma de amor é punição tabelecimentos -, quer pelo baixo só reproduz a violência estrutural tirados do INFOPEN
gem os núcleos familiares, comuni- tipos penais, aumentam as formas de dentro do cárcere: Direitos sexuais e índice de visitas dos companheiros. das relações sociais patriarcais e de
tários e sociais; repercutem de forma punição e de controle, pois elas não reprodutivos nós também temos! Percebe-se a violação ao direito se- opressão.
específica nos filhos: crianças e ado- apenas infringem regras sancionadas Discutir os direitos sexuais e xual da mulher sob duas vertentes: na
lescentes. penalmente, mas, sobretudo, ofen- reprodutivos é falar não só do direi- individual, pela restrição à liberdade,
Conseqüências da criminaliza- dem a construção dos papéis de gê- to de decidir quando e como ter fi- privacidade, intimidade e autonomia, As mulheres encarceradas sofrem com dupla (múltipla) punição, seja pela pena,
ção feminina no cárcere nero, pois se “comportam como ho- lhos, mas também do direito de es- ou seja, ao livre exercício da sexuali-
As mulheres são tratadas mais
severamente que os homens e tam-
mens”.
Verifica-se diante dos dados apre-
colher com quem manter relações se-
xuais e quando. A efetivação desses
dade e da reprodução, sem qual-
quer discriminação, coerção ou vio-
seja pela ausência de políticas penitenciárias.
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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO mais ofensivos ao direito de defesa do lações genéricas sobre gravidade do
réu. Tal prática mecanizada se torna crime e necessidade de repreensão

A cruel mecânica das sentenças mais fácil quando se constata que


mais da metade (53%) da atividade
judicial penal – à exceção dos crimes
julgados nos Juizados Especiais Cri-
da conduta, tudo em forma de ter-
mos técnicos que pretensamente
justificam a si mesmos. É o sucesso
dos jargões.

criminais condenatórias
minais – dedica-se a perseguir auto- Já que os fatos e as teses podem
res de apenas três comportamentos ser padronizados, os indivíduos tam-
criminalizados: roubo, furto e porte bém podem. A sinistra figura do “ho-
ilegal de arma de fogo. Isso mesmo: mem médio” continua se reprodu-
dos incontáveis tipos penais referidos zindo no ideário dos juízes, ainda que
Vinicius Machado na legislação brasileira, apenas três se repagine em definições como “ci-
deles concentram o foco da perse- dadão de bem” e similares. O “ho-

C
ada caso é um caso e o senso cução penal. Seria coincidência o mem médio” é uma entidade exem-
comum não contraria essa fato de que comportamentos ordi- plar, correta, ideal e falsa. É um ente
máxima. Cada fato social car- nariamente atribuíveis a setores so- abstrato que, na percepção judicial,
rega consigo um sem-número de ciais marginalizados da sociedade regula a medida da ação humana
vetores, de particularidades e de pos- constituam o principal objeto da contrária à lei penal. Qual é a refe-
sibilidades. Cada indivíduo é um atuação repressora do Estado? Ora, se rência para se definir o comporta-
cosmos próprio e, por isso, as tenta- os crimes são basicamente os mes- mento padrão de um ser fantasioso
tivas de sua redução a uma categoria mos, os casos em análise se asseme- como o “homem médio”? Surge daí
podem até satisfazer a tentação de se lham e, principalmente, os crimi- a possibilidade de o juiz fazer pre-
simplificar a compreensão desse ser, nosos fazem parte do mesmo redu- dominar seu próprio código de con-
mas também o mutilam. Diante da to “homogeneizado” da sociedade, o duta, informal, associando-o ao có-
atual prática judicial, esse sujeito é ato de decidir se transforma na au- digo legal de punição. O preceito de
destituído de suas singularidades tomatizada tarefa de preencher la- tolerância a determinada prática se
para se tornar um dado analisável, cunas no texto pronto da sentença fixa nas particulares concepções do
num contexto em que a prioridade é condenatória. O sujeito acaba sendo magistrado, de acordo com um có-
conferida mais ao processo de exame apenas uma peça acessória do gran- digo punitivo paralelo, um second Nenhum método, cálculo ou engessamento mecânico
que ao indivíduo. de maquinário de produção de con- code. O “homem médio” acaba se re-
Assim se dá a atuação do sistema denações. velando na figura do julgador que de sentenças pode ser mais importante que o destino
de justiça criminal que, antes de cui- Para indivíduos sem rosto sob a vi- sentencia naquele caso. Diante de um
dar de específicos conflitos sociais e são judicial, oferece-se uma senten- indivíduo marginalizado, não há em- de um ser humano prestes a ter seu direito
de sujeitos únicos, enquadra-os em ça condenatória que mais parece patia por parte de um magistrado que
módulos para os quais já há respos- um resultado de exame laboratorial não se identifica com aquela reali- de liberdade restringido.
tas prontas. Nesse programa, tais in- automatizado. Isso porque o relato da dade que lhe é tão distante. Para um
divíduos devem se ajustar à mecâni- decisão também trata do grau de ser humano de categoria inferior,
ca judicial e não o contrário. Assim, anormalidade de um sujeito que, já um semicidadão, não é necessário se gundo sua própria convicção. As- pragmatismo, ao volume de proces-
como resultado de uma produção em de forma abstrata, atenta contra a or- deter em análises detalhadas acerca sim, ao examinar questões como cir- sos que abarrotam os gabinetes de
série de condenados, a sentença re- dem social. São maçãs podres, seres de sua conduta. É suficiente que, na cunstâncias e consequências do cri- juízes, tirando-lhes a capacidade de
presenta hoje o êxito dessa perspec- doentes que atraem a necessidade de sentença, proceda-se ao copiar e co- me, grau de culpabilidade, perso- se deterem a cada caso, ou à mera
tiva reducionista do sistema de jus- extirpação do que é mal. Assim, de- lar do discurso judicial corriqueiro nalidade do agente, antecedentes e preguiça. De qualquer forma, o fato
tiça criminal. Para chegar a esse es- vidamente categorizados, distin- acerca da marginalidade, com direi- conduta social, o magistrado dispõe é que a ampla defesa, o contraditó-
tágio da ação excludente da máqui- guem-se entre si apenas pela quali- to a bastantes termos técnico-jurí- de ampla margem para aferir a con- rio e a individualização da pena se
na judiciária, o indivíduo já foi mar- ficação jurídica dada no processo: dicos e a alusões cerimoniosas a en- duta criminalizada e, principalmen- tornam direitos fundamentais piso-
cado com o estigma de criminoso e nome, idade, filiação, endereço. Bas- tendimentos de tribunais. Em se- te, para investigar o ser do indivíduo teados por uma atividade judicial
já foi selecionado, diante de tantos ta então buscar um modelo de sen- guida, aplica-se a pena. “delinquente”, uma vez mais, de acor- que se preocupa mais com a repro-
outros indivíduos que praticam con- tença, mudar o nome do réu, o nú- Após conhecer o veredicto de sua do com o regramento de seu código dução de sua tecnologia da punição
dutas criminalizadas. Como mo- mero do processo, a data. Está pron- condenação, o indivíduo recebe a de valores. Mas o cálculo da pena aca- do que com a vida humana que está
mento crucial da atividade punitiva, ta a decisão condenatória que irá de- pena correspondente à conduta cri- ba por também não ser individuali- em julgamento.
a sentença condenatória resume a es- finir o direito de liberdade do indiví- minalizada por si praticada. É o mo- zado. Ao contrário, as análises acer- Contra esse cenário de devastação
tratégia de quantificação, massifi- duo, cujo futuro será o mesmo de ou- mento da individualização judicial da ca da essência do condenado e do de direitos, é imprescindível que se
cação e exclusão do sujeito. tros sujeitos sobre os quais a tecno- pena, um direito fundamental se- comportamento criminalizado se re- confira à humanidade do sujeito a
Em pesquisa feita com sentenças logia judicial já tenha testado sua efi- gundo o qual a sanção penal deve ser petem entre casos distintos. Por isso, prioridade que lhe é devida. Um
criminais condenatórias proferidas ciência. particularizada para aquele específico mesmo na fase de individualização da olhar mais preocupado em com-
no Distrito Federal nos anos de 2006 Ampla defesa? Contraditório? caso e para aquele específico sujeito. pena, o argumento também é robo- preender o contexto do indivíduo
e 2007, impressionou a capacidade Ora, se os crimes são basicamente os mesmos, os casos em análise se assemelham Como exercer plenamente tais di- Todavia, a mesma compreensão mas- tizado, vazio e genérico, os jargões ju- pode ser o primeiro passo para ame-
tecnológica desenvolvida pelos jul- reitos se o discurso judicial da sen- sificada que se desenvolveu na aná- rídicos transbordam e o resultado da nizar os efeitos de uma prática puni-
gadores ao redigirem suas sentenças.
e, principalmente, os criminosos fazem parte do mesmo reduto “homogeneizado” da tença trata de um ser abstrato e es- lise da autoria e da materialidade do equação é o mesmo. Antes de se re- tiva tão reducionista e mutiladora. Ne-
Os textos já estão prontos antes mes- sociedade, o ato de decidir se transforma na automatizada tarefa de preencher quece a concretude do indivíduo crime também repercute na fase de ferir ao indivíduo concreto, a priori- nhum método, cálculo ou engessa-
mo de o caso ser submetido a julga- que está sendo julgado? Não há individualização. Valendo-se de mi- dade é dada à manutenção da me- mento mecânico de sentenças pode
mento, fenômeno que não é exclusi- lacunas no texto pronto da sentença condenatória. O sujeito acaba sendo apenas uma como contrapor argumentos que nuciosos critérios legais de cálculo da cânica retórica das sentenças crimi- ser mais importante que o destino de
vo da justiça criminal, esfera em que, não enfocam o caso específico, mas pena, ao juiz é conferida a prerroga- nais condenatórias. um ser humano prestes a ter seu di-
entretanto, seus efeitos são ainda peça acessória do grande maquinário de produção de condenações. que apenas se traduzem em formu- tiva de avaliar a punição adequada se- Pode-se creditar essa situação ao reito de liberdade restringido.
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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS acordo com as conclusões apresen- recer de efetividade material. A Pes-
tadas, parece haver uma lacuna en- quisa Distrital por Amostra de Do-
tre as previsões formais de direitos e micílios – 2004 divulgou que 56,61%
a experiência concreta e diária do sis- da população do Distrito Federal é
tema penal. Um exemplo - em menos composta por pessoas pardas e pre-
de 12% dos processos de furto ana- tas. Nos casos de furto e roubo ana-
lisados pelos pesquisadores houve in- lisados, aproximadamente 74% dos
terposição de recurso. Isso significa réus eram pretos e pardos. Logo, soa
que na quase totalidade dos casos fo- inapropriado afirmar que a lei penal
ram descartadas eventuais oportu- é igual para todos diante de dados
nidades de o réu condenado vir a ser que indicam a sobre-representação
absolvido ou ter a pena condenató- da população negra dentre a popu-
ria suavizada. Além disso, segundo lação criminalizada nos processos es-
dados levantados pela pesquisa, réus tudados. O perfil de réu mais comu-
não assistidos por advogados parti- mente encontrado foi do homem
culares foram condenados, em mé- negro, jovem e desempregado.
dia, a maiores períodos de encarce- Outro ponto de relevância dis-
ramento quando comparados com os cutido durante o evento foi a de-
réus representados por advogados pendência estabelecida entre a gra-
particulares. Este último grupo teve vidade do regime da pena e os índi-
prisões provisórias decretadas por pe- ces de reincidência. A relação é di-
ríodos mais breves e os condenados retamente proporcional – quanto
foram sentenciados a regimes mais mais grave a pena aplicada, maior é
brandos. A situação é especialmen- o índice de reincidência. Mais da
te preocupante quando se tem notí- metade dos réus que cumpriram
cia de que mais de 90% dos acusados pena em regime fechado reincidi-
de furto não foram defendidos por ram. Foi o mais alto índice registra-
advogados particulares e, no caso do. Em contraposição, o menor ín- furto ou o roubo, as vítimas espera- réus ou sociedade. As vítimas ficam
dos acusados de roubo, o índice é su- dice de reincidência (24,2%) foi vam, sobretudo, a reparação dos da- frustradas em suas expectativas, os
perior a 70%. Não se pode falar em apresentado pelos réus que tive- nos que sofreram. Essa resposta, réus não são ressocializados e os ín-
pleno gozo do direito de defesa dian- ram suspensão condicional do pro- contudo, não é oferecida pelo siste- dices de reincidência desmentem a
te desse quadro. cesso, a mais branda das penas. Os ma penal, que, no máximo, condena afirmação de que a sociedade estaria
Acerca da prisão cautelar, foi ob- dados parecem indicar, portanto, o acusado à prisão. Mesmo nas hi- mais segura.
servado que a prática tem sido regra, que a pena de prisão contribui para póteses em que a legislação proces- O evento no Fórum Social Mun-
a despeito da excepcionalidade que a permanência da criminalidade. O sual penal previa como possível a re- dial encontrou espaço de legitimação
a legislação lhe atribui. A maioria ab- discurso dos réus ouvidos durante a paração dos danos, principal de- social para a formulação de uma po-
soluta dos réus de furto e de roubo é pesquisa vem ao encontro dos nú- manda das vítimas, a condição foi lítica alternativa à pena de prisão.
presa antes de ser julgada. Quase meros apresentados nas estatísticas. eleita em apenas 3,17% dos casos. O Como etapa preparatória da 1ª Con-
metade dos réus de roubo é presa em Em relação aos que cumpriram pe- resultado não poderia ser diferente ferência Nacional de Segurança Pú-

A presença do GCCrim no razão de flagrante. No caso de réus de


furto, esse motivo leva ao encarce-
ramento provisório de 75% deles.
Essa distorção viola o princípio da
nas restritivas de direitos, a fala dos
réus que foram efetivamente presos
é mais intensamente marcada pelos
impactos negativos da condenação
quando se observa que apenas 2,31%
das vítimas foram ouvidas durante a
audiência de suspensão condicio-
nal do processo, momento em que é
blica – CONSEG, a oficina atingiu seu
objetivo de ampliar a diversidade de
segmentos envolvidos para debater
os eixos temáticos propostos e enviar

Fórum Social Mundial de 2009 presunção de inocência, uma vez


que finda por encarcerar por perío-
dos muito longos acusados não sen-
tenciados. O sistema age em relação
ao suspeito como se sobre ele pesasse
no convívio social, para conseguir
emprego e para a vivência familiar.
Esse quadro parece indicar que a pri-
são, como primeira medida puniti-
va, precisa ser repensada.
possível determinar os termos da
reparação dos danos causados. Ao fi-
nal, veem-se vítimas feridas no exer-
cício da cidadania que procuravam
quando noticiaram o furto ou roubo
contribuições à etapa nacional. A
partir das discussões travadas, foram
encaminhadas ao Ministério da Jus-
tiça formulações de princípios e di-
retrizes para uma nova política cri-
Diogo de Oliveira Machado na divulgação de estudo desenvolvi- experiências relatadas por partici- O encontro instigou o diálogo e per- presunção de culpabilidade. Na ver- Mas a discussão não girou so- às autoridades competentes. A posi- minal brasileira, atenta a que, ao
do pelos pesquisadores do GCCrim, pantes residentes em diversos esta- mitiu a formação de parcerias para dade, o que se observou é que o sis- mente em torno dos réus. As vítimas ção que o sistema de justiça penal re- menos nos crimes contra o patri-

O
Grupo Candango de Crimi- que examinaram 2.806 casos de fur- dos do País e atuantes em momentos realização de eventos futuros. O es- tema penal não consegue oferecer à dos casos analisados também foram serva à vítima ratifica e nutre um di- mônio, medidas não privativas de li-
nologia (GCCrim) apresen- to e 2.416 casos de roubo, referentes distintos do sistema penal. O evento paço de promoção do debate, per- sociedade e à vítima outra resposta ouvidas. E manifestaram bastante reito penal fundamentado no sofri- berdade têm maior possibilidade de
tou em Belém, por ocasião do a processos iniciados entre 1997 e foi organizado de modo a permitir in- mitido pelo Fórum Social Mundial, senão a prisão provisória do suspei- insatisfação com o rumo do proces- mento. Em suma, ninguém é bene- oferecer respostas para uma inter-
Fórum Social Mundial de 2009, con- 1999 no Distrito Federal. Os dados co- tervenções a cada seção da pesquisa também foi de importância funda- to pela prática do furto ou roubo. Ele- so penal. Isso porque, ao noticiar o ficiado pelo sistema penal – vítimas, venção penal salutar.
clusões da pesquisa realizada acerca lhidos a respeito dos réus denuncia- apresentada. Assim, a presença de au- mental para agregar pessoas sensíveis mentos como a falta de estruturação
de “roubo e furto no DF: avaliação da dos e das vítimas, em cada um des- toridades em segurança pública per- a uma nova perspectiva a ser lança- da agência judiciária, a prescrição da
efetividade das sanções não privati- ses processos, permitiram analisar mitiu contribuições bastante quali- da sobre as políticas de segurança pú- pretensão punitiva, a demora pro-
vas de liberdade”. O evento consistiu em que medida as alternativas à ficadas a respeito do tema. Dessa for- blica, que prevejam a profunda re- longada para a prolação da sentença Ao menos nos crimes contra o patrimônio, medidas não privativas
em conferência livre sobre seguran- pena privativa de liberdade podem ma, além de publicizar a pesquisa formulação da estrutura instituída e ou mesmo a não execução da sen-
ça pública e foi realizado em prepa-
ração à 1ª Conferência Nacional de
contribuir para conter os malefícios
inerentes ao sistema penal.
realizada pelo grupo de pesquisa, a
conferência permitiu o encontro de
do discurso jurídico-penal vigente.
A efetividade de algumas garantias
tença condenatória contribuem para
esse quadro de uso abusivo da prisão
de liberdade podem oferecer respostas para uma
Segurança Pública, que deverá ocor- O fato de a conferência ter se rea- estudiosos da segurança pública e da constitucionais foi questionada na provisória.
rer entre os dias 27 e 30 de agosto. As lizado durante o Fórum Social Mun- política criminal, o que, sem dúvida, pesquisa. É o caso do direito à defe- O direito à igualdade, garantido intervenção penal salutar.
discussões foram travadas com base dial agregou grande variedade de trouxe contribuição de grande valia. sa e à presunção de inocência. De pela Lei Maior, também parece ca-
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OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO saúde física e mental das pessoas pre-

O Ministério Público e a
sas.
Mas, independentemente do de-
ver específico de fiscalizar os esta-
belecimentos prisionais, o Ministério
Público precisa estar estruturado

execução da pena criminal


Paula Bajer Fernandes Martins da Costa
para provocar, no Estado, a adoção de
políticas públicas voltadas para o
fim da superlotação e violação dos di-
reitos das pessoas presas.
Os estabelecimentos prisionais
são mantidos pelo Estado e cabe a ele

A
Constituição impõe ao Minis- acautelar pessoas que cumprem pena
tério Público o dever de pro- ou devam ficar presas durante o pro-
mover a ação penal de inicia- cesso em condições que lhes garan-
tiva pública. No sistema punitivo ta a dignidade.
brasileiro, a maioria das condutas A Procuradoria Federal dos Direi-
criminosas é reprimida pela perse- tos do Cidadão, no Ministério Públi-
cução pública e oficial, significando co Federal, mantém Grupo de Tra-
isso que a vontade da vítima em ter ou balho com finalidade de estudar e
não punido o autor da infração é ir- propor alternativas de ação que me-
relevante. lhorem o sistema prisional e contri-
Há exceções, evidentemente. Em buam para o término da superlotação
poucas hipóteses a lei permite à ví- nos presídios. As memórias e reali-
tima decidir se a persecução penal, zações deste Grupo podem ser en-
sempre pública, pode acontecer (in- contradas na página da internet
júria, dano a bem privado, entre ou- http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos-
tros). Mas a regra geral é a de que o de-trabalho/sistema-prisional.
Ministério Público promove a ação O Ministério Público Federal pode
penal e, assim, garante-se igualdade e deve concentrar atenção no siste-
na aplicação da lei, pois os agentes ma prisional como um todo. A União
públicos não podem optar entre agir repassa, aos Estados, recursos desti-
ou não agir segundo critérios subje- nados aos presos e à saúde dos pre-
tivos, pessoais. Se praticada a con- sos. A utilização adequada desses
duta descrita na lei como criminosa recursos precisa ser fiscalizada.
e descoberto seu autor, a persecução O Conselho Nacional de Políti-
penal é inevitável. ca Criminal e Penitenciária elabo-
O Ministério Público tem impor- rou plano diretor nacional do sis-
tante papel no controle e na repres- tema penitenciário e as unidades
são da criminalidade. Promove a da federação também têm planos
ação penal, judicial, pois a própria diretores correspondentes. Na pá-
Constituição afirma que, sem devido gina do Conselho na internet
processo legal, com pleno contradi- (http://www.mj.gov.br/cnpcp) estão
tório e ampla defesa, a punição não Plano Diretores Nacional, Planos Di- página da Procuradoria Federal dos como minimizar essa sensação de nistério Público é instituição per-
pode acontecer. retores dos Estados, bem como in- Direitos do Cidadão na internet incapacidade de solução dos pro- manente, essencial à função jurisdi-
Mas a Constituição impõe outro formações úteis relacionadas ao sis- (http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/grupos- blemas detectados que, em maior ou cional do Estado, incumbindo-lhe a
relevante dever ao Ministério Públi- tema prisional brasileiro. União e Es- de-trabalho/sistema-prisional/CPI- menor escala, despertam descrença defesa da ordem jurídica, do regime
co: a defesa aos direitos sociais e in- tados devem trabalhar juntos para sistemacarcerario.pdf/view). Em Por- no sistema punitivo. Essa descren- democrático e dos interesses sociais
dividuais indisponíveis. Assim, se que metas e objetivos sejam alcan- to Velho, Rondônia, situação de ab- ça, porém, é pessoal e não institu- e individuais indisponíveis”. A dig-
por um lado ele deve impulsionar a çados, para que o sistema, como um soluta miserabilidade humana no cional, porque as instituições per- nidade do homem é indisponível e é
persecução penal, deve fazê-lo res- mites em que imposta, bem como se todo, promova cumprimento da pena Presídio Urso Branco gerou pedido de manecem sob as variadas turbu- um dos fundamentos da República
peitando os direitos do autor do fato. direitos não atingidos pela conde- em condições que permitam a rein- intervenção no Estado ajuizado pelo lências e conflitos. Federativa do Brasil (artigo 1º da
E mais: deve agir para que, cada vez nação são suprimidos ou violados. O Ministério Público tem importante papel no serção do indivíduo em sociedade. Procurador-Geral da República no E, sob o ponto de vista institu- Constituição).
mais, direitos individuais sejam res- Por isso é que a Lei de Execução Pe- Não obstante o estabelecimento Supremo Tribunal Federal em outu- cional, cabe ao Ministério Público:”I Sob qualquer ponto de análise, a
peitados pelo Estado em todas as suas nal estabelece, no artigo 68, parágrafo controle e na repressão da criminalidade. de normas e metas de ação por quem bro de 2008. Recentemente, o Con- - promover, privativamente, a ação conclusão é inarredável: o Ministé-
tarefas e esferas de intervenção. único: “O órgão do Ministério Públi- deve promover correta execução da selho Nacional de Política Criminal e penal pública, na forma da lei;II - ze- rio Público deve fiscalizar a execu-
O Ministério Público não conclui co visitará mensalmente os estabe- Promove a ação penal, judicial, pois a própria pena, atrocidades continuam a exis- Penitenciária constatou condições lar pelo efetivo respeito dos Poderes ção da pena no processo judicial de
suas atribuições no momento em lecimentos penais, registrando a sua tir. Na já não tão recente CPI do Sis- insalubres e estado de violência em Públicos e dos serviços de relevância execução e deve fiscalizar, também,
que condenado o autor da infração presença em livro próprio”. Essa vi- Constituição afirma que, sem devido processo tema Carcerário (2008) relataram- presídios no Espírito Santo (relatório pública aos direitos assegurados nes- o sistema carcerário, cobrando, do
penal. A condenação e a execução da sita não deve ser formal ou simbóli- se situações de graves violação a di- na página do CNPCP na internet: ta Constituição, promovendo as me- Poder Executivo, medidas que de-
pena devem ser acompanhadas, fis- ca. O Ministério Público tem o dever legal, com pleno contraditório e ampla defesa, a reitos humanos em diversos locais de http://www.mj.gov.br/cnpcp). didas necessárias a sua garantia” (ar- monstrem aplicação de recursos
calizadas. O Ministério Público tem de adotar providências para prevenir detenção no Brasil. O relatório apre- Os relatos são terríveis e geram tigo 129 da Constituição). Este dis- públicos adequada à conquista e
o dever de verificar se a pena está sen- ou reprimir maus tratos, superlota- punição não pode acontecer. sentado pelo Deputado Domingos desconforto àqueles que aplicam o positivo é contextualizado pela nor- preservação da dignidade da pessoa
do executada adequadamente, nos li- ção, tratamento que prejudique a Dutra pode ser consultado em link na direito penal. Infelizmente, não há ma do artigo 127 da Carta:” O Mi- encarcerada.
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DIREITO ACHADO NA RUA NOTA DO CORRESPONDENTE

As janelas quebradas As diferentes melodias


da democracia
Paulo César de Sales Júnior
da América
Ana Luiza

S F
egurança pública e política cri- icam no mesmo pedaço de
minal são temas recorrentes nos chão. Esse que resolveram cha-
noticiários internacionais. As mar de continente e depois re-
preocupações crescem em torno do talhar em pedacinhos, só para depois
aumento dos custos de gestão do nos cobrarem assinatura e pedágio
sistema prisional. O debate passa para atravessar fronteiras. Como par-
então a girar em torno do melhora- te desse lote batizado America, Bra-
mento de técnicas e da ampliação dos sil e Estados Unidos não poderiam ser
efetivos policiais, ficando de lado os mais diferentes nas suas semelhanças.
fundamentos do sistema penal. O país do racismo e da segregação,
A criminologia, como matéria da luta pelos direitos civis e do mo-
crítica ao sistema punitivo e aos vimento black power ficou abalado
seus fundamentos, é a porta-voz pela morte prematura de um dos
do discurso crítico em relação ao sis- maiores símbolos da música mundial
tema penal, tendo sempre por con- do séuclo XX. Michael Jackson: um
traponto o discurso oficial elabora- homem deformado por processos
do pelas agências formais de con- de despigmentação da pele e cirur-
trole penal. gias plásticas, um homem atingido
No seio dos estudos criminológi- em cheio pela força do racismo e da
cos, formaram-se algumas correntes violência intra-familiar. Esse mes-
na busca por estabelecer uma fun- No bojo dessa teoria, ficou bas- ciar uma erradicação harmônica e de perda de tempo. mo homem, que recusa o espelho e
damentação filosófica legitimadora tante conhecida a teoria das jane- sustentável da criminalidade. A pena, observada tanto pelo mo- afasta sua identidade racial na pri-
da persecução penal. A escola posi- las quebradas, surgida por volta Ainda que superada a visão abs- delo preventivo, como pelo repres- meira pessoa, tem aqui a consciên-
tivista, inauguradora do que se de- dos anos oitenta, com o funda- trata e ideológica do sistema puni- sivo, perde o caráter de “prevenção cia coletiva de sua filiação racial, faz
nominou ciência criminal, teve a mento na ideia de que a desordem tivo e da própria realidade social, a geral”. A própria ideia de ressociali- clips considerando prioritariamente tano Veloso, por exemplo, que ainda efeitos nesses territórios aparentados. cismo abriu caminho para que um
preocupação de definir aspectos pa- e o abandono urbano teriam re- criminologia sociológica não con- zação se concretiza como mascara- a população negra e como negro é me faz suspirar com suas letras ins- Não nos deixa mentir a análise de diagnóstico mínimo possa ser siste-
tológico-normativos da criminali- sultado direto no incentivo à prática seguiu superar as contradições pró- mento da matriz retributiva. Assim, enterrado. piradas? Esse, até pouco tempo atrás, seus sistemas penitenciários. maticamente questionado no que
dade, apresentando modelos anatô- de novos delitos, com crescimento prias do sistema repressivo, ope- somente pelo discurso oficial é que Já transformado nessa espécie de sabia quem era negro no Brasil. Recita De um lado, temos o maior siste- se refere às violências vividas dentro
mico-fisiológicos daqueles que se- vertiginoso dos índices de crimi- rando apenas uma atualização des- a ampliação do poder político de personagem de cera, Jackson grava, trecho de seu livro no álbum Prenda ma carcerário do mundo, com mais e fora do cárcere nos Estados Unidos.
riam os criminosos natos. nalidade. Seus defensores faziam se modelo. criminalização expressa instrumen- em 1996, um videoclip no Brasil. Vai Minha: ao Vivo (1998), cena em que de 2 milhões de presos para o ano de Trata-se de um mundo de ações dis-
Posteriormente, a teoria socioló- analogia à seguinte situação: quan- Desse modo, pela perspectiva da to hábil a conter o avanço da crimi- a Salvador e canta no Pelourinho sua mãe o chama para ver o preto 2008, de acordo com o Departa- criminatórias seguidas por cons-
gica da criminologia, apresentando do a janela de uma casa é quebra- eficácia das medidas repressivas, nalidade. com os negros meninos do Olodum (Gilberto Gil) que ele gosta cantando mento de Justiça americano. Ho- trangimentos públicos que tendem a
uma definição sociológica do desvio, da, mas não é logo reparada, cria- resta claro que a tentativa de mudar O que se deve consertar primei- bradando no refrão: “eles não se im- na Tv. Depois, como num passe de mens negros sobram nas estatísticas: gerar impacto político.
superou o rígido determinismo dos se uma sensação de descaso e de- a realidade da criminalidade por ramente são os vícios dos Estados portam mesmo com a gente”. Sim, Mi- mágica, tudo se apaga quando entram são três vezes mais do que o núme- Algo, sem dúvida, muito diferen-
conceitos positivistas para concluir sordem com base na qual as demais meio das mais diversas políticas de que se dizem democráticos, permi- chael Jackson cantou a violência po- em cena a discussão das ações afir- ro de brancos e a pena de morte le- te de nosso discurso tropical abafa-
que a estrutura dos conflitos sócio- partes da casa serão também aban- persecução penal resultou em ine- tindo uma inclusão social que não dê licial, a tortura e a falta de solidarie- mativas. Não há mais negros no Bra- galmente aplicada em alguns estados do que o pudor não alcança. No Bra-
econômicos representa o cerne do donadas. quívoco fracasso. margem a seleções criminais desi- dade entre e para com o contingen- sil para Caetano. Ao menos nenhum da federação tem um viés racial de sil, vivemos numa lógica em que
problema da criminalidade. Com esse fundamento foram apli- Como ressalta Juarez Cirino, não guais. Que desse modo o desvio so- te negro, em mais uma vívida de- identifícável para receber o benefício peso. Nós, que não descobrimos tudo pode, desde que as intenções
Surge então a ideia de periculosi- cadas severas medidas de política cri- haveria, ademais, como dar certo a cial não se torne a regra, como se ob- monstração do alcançe da consciên- de políticas públicas específicas. En- qualquer potencial econômico para não se revelem, e a extinção da vida
dade social, que levada ao extremo no minal em cidades norte america- tentativa, tendo em vista que não é o serva atualmente. cia racial produzida nos Estados Uni- xergo muito de Jackson nesse tipo de o aprisionamento, vamos levando a negra vai se dando sem maiores em-
século XXI chegou a eclodir em cons- nas, entre as quais ficou famosa a po- sistema repressivo que vai modificar E no que diz respeito a democra- dos. E como é bonito rever aquela im- contradição, apesar do sentido estar coisa orientados por seu objetivo baraços.
truções como o “direito penal do lítica de tolerância-zero aplicada na a sociedade. E questiona: como es- cia, imprescindível recorrer à nossa placável cena se desdobrando pelas invertido. É a negação do coletivo, da maior sem maiores problemas: o ne- Por hora, sem as respostas devi-
inimigo”. A teoria sociológica da cri- cidade de Nova York. Condutas pou- tabelecer um sistema punitivo de- carta constitucional, na qual se es- ruas de Salvador, sem espaços para as possibilidade de reconhecimento no gócio é neutralizar e exterminar. O das, sigo me consolando na arte.
minologia teve como preocupação cos lesivas passaram a ser criminali- mocrático se não temos uma socie- tabelecem os fundamentos e os prin- reticências da democracia racial. outro, o que boneco de cera “moreno” número de corpos negros, princi- Saboreio as músicas de Jackson e
principal a tentativa de superar o zadas com o intuito de conter qual- dade democrática? cípios do Estado Democrático de Nós, no país das mulatas e do produz com esse tipo de discurso e fi- palmente da juventude, se amon- Caetano enquanto me ressinto por al-
paradigma da reação social, núcleo do quer atividade delitiva. A despeito de Não há como escapar da conclu- Direito brasileiro. E assim, que a carnaval, da convivência harmonio- liação política. toam sem qualquer tipo de censura gumas de suas escolhas. Espero as
modelo positivista, na medida em que aparentemente bem sucedida, essa são de que confiar na atuação do sis- concretização dos direitos indivi- sa e pacífica, vivemos a experiência de O que parece à primeira vista en- consequente. perguntas certas me assaltarem sa-
apontou para a assimetria mani- política teve como conseqüência a tema penal para controlar o amplo duais e sociais ali previstos seja, esta Jackson da maneira como fomos en- redo menor, é símbolo emblemático da Se o resultado é semelhante por bendo que melodias, dados e cená-
queísta de divisão entre bem e mal, criação de um regime de “lei e or- crescimento da criminalidade que se sim, a principal arma no combate à sinados: com eficiência e discrição. forma como se assumiu viver o racis- caminhos distintos, me chama aten- rios diferentes refletem realidades
delinquente e demais indivíduos. dem”, sem, no entanto, providen- observa nos dias de hoje é uma gran- criminalidade. Que dizer de personagens como Cae- mo e, principalmente, lidar com seus ção o fato de que a explicitação do ra- que se aproximam.
24 | UnB – SindjusDF CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | AGOSTO DE 2009
nBoaventura Santos: nDilema do Direito Penal: nEntrevista:
história e justiça social Lei Maria da Penha Professora Ela Wiecko
Justiça Social e Justiça Histórica
Boaventura de Sousa Santos

A
o voltar do período de férias, os
Ministros do Supremo Tribu-
nal Federal enfrentarão uma
questão crucial para a construção da
identidade do Brasil pós-constituin-
da sobreexploração dos escravos que
para aqui foram trazidos. Por essa ra-
zão, no Brasil, a injustiça social tem
um forte componente de injustiça
histórica e, em última instância, de
racismo antiíndio e antinegro. (“Ten-
dências/Debates”, 10/06/2008).
ANO III
Nº 32
Agosto de 2009

C&D Constituição & Democracia


te: é possível adoptar um sistema de É claro que na organização das
acções afirmativas para ingresso nas suas relações raciais o Brasil difere de
universidades públicas que destine países como os EUA, na medida em
parte das vagas a negros e indígenas? que apresenta um grau bem maior de
Ao rejeitar o pedido de liminar em miscigenação. A questão é saber se
acção movida pelo DEM, ex-PFL, esse maior grau de miscigenação foi
que pretendia ver suspensa a matrí- suficiente para evitar a persistência
cula dos alunos aprovados na UnB no de desigualdades estruturais asso-
âmbito de uma política de selecção ciadas à cor da pele e à identidade ét-

Criminologia:
com estes contornos, o Ministro Gil- nica ou, em outras palavras, se o fim
mar Mendes sugeriu que a resposta do colonialismo como relação polí-
a esta questão fosse buscada em tica acarretou o fim do colonialismo
função do impacto das acções afir- como relação social. Indicadores so-
mativas sobre um dos elementos
que acompanha o constitucionalis-
mo moderno desde as suas origens,
ciais de toda ordem dizem que essas
desigualdades não apenas persis-
tem, como prometem seguir ator-
Estado, sociedade
na Revolução Francesa: a fraterni- mentando as gerações futuras. Um
dade. Perguntou o Ministro se, com
o advento de programas como o da
estudo recente divulgado pela Se-
cretaria Especial de Direitos Huma-
e lógica punitiva
UnB, o país estaria abrindo mão da nos da Presidência da República,
idéia de um país miscigenado e adop- por exemplo, mostra que o risco de
tando o conceito de uma nação bi- ser assassinado no Brasil é 2,6 vezes
color, que opõe “negros” a “não-ne- maior entre adolescentes negros do
gros”. E indagou se não haveria for- que entre brancos.
mas mais adequadas de realizar “jus- Falar em fraternidade no Brasil sig-
tiça social”, tal como a adopção de co- nifica, essencialmente, enfrentar o
tas pelo critério da renda. peso desse legado, o que representa
A proposta de situar o juízo de um grande desafio para um país em
constitucionalidade no horizonte da que muitos tomam a idéia de demo-
fraternidade representa uma impor- cracia racial como dado, não como mentos historicamente alijados das Para os estudiosos das reformas
tante inovação no discurso do STF. projecto. Mas se o desafio for en- universidades em razão da cor da universitárias, seria fundamental que
Mas assim como o debate sobre a frentado na sua inteireza pelas insti- pele ou identidade étnica. Em se- o programa da UnB pudesse com-
adopção de acções afirmativas ba- tuições sem que se busque diluir a gundo lugar, a construção e adopção pletar o ciclo de 10 anos previsto no
seadas na cor da pele não pode ser gravidade do problema em categorias de alternativas com este recorte não Plano de Metas da instituição. Sobre
dissociado do modo como a socie- fluidas como a dos “pobres”, o país ca- acarreta prejuízo para a qualidade dos o posicionamento a ser adoptado
dade brasileira se organizou racial- minhará não apenas para a consoli- trabalhos acadêmicos; ao contrário, pelo STF diante do problema, a res-
mente, o debate sobre a concretiza- dação de uma nova ordem constitu- traz mais diversidade, criatividade e posta não está clara. O Tribunal po-
ção da Constituição não pode des- cional, no plano jurídico, como tam- dinamismo ao campus. Em terceiro derá desprezar a experiência da UnB
prezar as circunstâncias históricas bém para a construção de uma or- lugar, apesar de levantar reacções sob o receio de que ela venha a dis-
nas quais ela se insere. Como já es- dem verdadeiramente pós-colonial, pontuais, como a do DEM, e de in- solver o mito de um país fraterno,
crevi nesta secção, a enunciação do no plano sócio-político. cluir decisões que sempre serão po- porque mais miscigenado que ou-
ideário da fraternidade nas revolu- Ao estabelecer e monitorar um sis- lêmicas, como a do critério de iden- tros. Mas o Tribunal também pode-
ções iluministas européias cami- tema de acções afirmativas que des- tificação dos beneficiários, acções rá conceder que o programa da UnB
nhou de par com a negação da fra- tina parte das vagas a pretos, pardos afirmativas baseadas na cor da pele representa, bem ao contrário, uma
ternidade fora da Europa (“Tendên- e indígenas, a UnB tem oferecido ou identidade étnica conseguem de- tentativa válida de institucionalizar
cias/Debates”, 21/08/2006). Nesse três grandes contribuições para essa senvolver um elevado grau de legiti- a fraternidade ao reconhecer a exis-
“novo mundo”, do qual o Brasil se tor- transição. Em primeiro lugar, o sis- midade na comunidade acadêmica. tência de grupos historicamente des-
nou parte desde que a Carta de Ca- tema de educação superior pode re- Basta ver como diversos grupos de favorecidos, contribuindo, assim,
minha chegou ao Rei de Portugal, a cusar-se a reproduzir as desigual- pesquisa e sectores do movimento es- para a efectivação da justiça social.
prosperidade foi construída à base da dades que lhe são externas e mobili- tudantil se articularam em defesa Somente a segunda resposta permi-
usurpação violenta dos territórios zar a comunidade para a construção do sistema da UnB quando este se viu te combinar justiça social com justi-
originários dos povos indígenas e de alternativas de inclusão de seg- confrontado pela acção do DEM. ça histórica.

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