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Reflexão crítica do capítulo 9 do Livro de Damásio “O sentimento de si”

“Os sentimentos não são uma mera decoração das emoções.

[…]A emoção e as várias reacções com ela relacionadas estão alinhadas com a mente”.

António Damásio
Introdução

Optámos por efectuar a leitura do livro “O sentimento de si” de António Damásio e de


realizar a crítica ao capítulo nove “Sentir os sentimentos”.

António Damásio é considerado por muitos, um dos pais da teoria do cérebro


emocional. É um cientista de renome internacional, especialista nos mecanismos de
funcionamento do cérebro e um dos precursores na investigação sobre a inteligência emocional.

O capítulo que estudámos tem como principal objectivo distinguir as emoções dos
sentimentos, enfatizando o papel da consciência. Faz uma profunda reflexão sobre os modos
como o organismo participa nestes processos e fundamenta as suas pesquisas através dos
estudos realizados por ele próprio, comparando as suas inferências com os resultados obtidos
por outros cientistas.

Os conteúdos aqui abordados trazem à luz o conhecimento que é essencial para a


compreensão do nosso “eu” emocional.
Crítica

Neste capítulo, António Damásio estabelece uma relação directa entre a emoção e o
sentimento. Apesar de habitualmente utilizarmos as palavras: emoção e sentimento, como sendo
sinónimos, o facto é que a essência de ambas diferem uma da outra, embora estejam
estreitamente relacionadas.

A emoção é composta por imagens mentais provenientes dos padrões neurais que
representam as modificações do corpo e do cérebro. Por sua vez, o sentimento resulta da
“equação”: organismo + emoção + efeito causal da emoção no organismo.

O autor explica a origem deste facto relacionando proto-si e consciência nuclear. O


proto-si é composto por um conjunto de padrões neurais (constituídos pela forma como o
organismo tendo o cérebro como intermediário, constrói as representações de um objecto) que
ignoramos a nível consciente. A sua principal função é cartografar, constantemente, a condição
da disposição física do organismo. Assim sendo, Damásio denomina de proto-si a todas
correspondências entre o organismo e o objecto.

Quando o proto-si é modificado, de forma inconsciente, dá origem ao acto de conhecer.


A este processo o autor nomeia de consciência nuclear. Este tipo de consciência é uma das duas
formas de organização da consciência, trata do saber mais elementar que é “ o aqui e agora”, em
oposição à consciência alargada (que trata das lembranças, das perspectivas para o futuro, entre
outros factores). Os sentimentos da emoção já existentes nos quadros dos estados corporais só
são conhecidos após a integração de outros quadros do estado corporal na forma de proto-si, só
assim, é que podemos sentir os sentimentos da emoção. Ou seja, o conhecimento de um
sentimento é originado por outro sentimento. O autor fundamenta este paradoxo, considerando
que o proto-si, os sentimentos da emoção e sentir do conhecer os sentimentos surgiram em
momentos diferentes da evolução do homem e ocorrem em alturas diferentes do seu
desenvolvimento individual. Como diz Damásio (2000, p. 321), “O proto-si precede ao
sentimento mais elementar, e ambos precedem o sentir do conhecer que constitui a consciência
nuclear”.

As modificações cognitivas e corporais constituem a base dos sentimentos. As


modificações corporais dão-se através de sinais humorais (via sanguínea) e sinais neurais (via
nervosa). Este processo denomina-se de “circuito-através-do-corpo”. Em conjunto, estes sinais
modificam a paisagem corporal ao nível das estruturas do cerebrais. As suas modificações
podem ser conseguidas, até certo ponto, através do que o autor intitula de “circuito-como-se-
fosse-através-corpo”, onde os mapas sensoriais são modificados em determinadas regiões
neurais. O corpo parece como se tivesse sido modificado sem o ter sido efectivamente. Estes
mecanismos são fundamentais, tanto para a emoção e o sentimento, como para alguns processos
cognitivos. As modificações do estado cognitivo originam-se pela secreção de substâncias
específicas nalgumas regiões do cérebro. As mais importantes incutem no indivíduo alguns
comportamentos ao nível afectivo e social, alteram os estados corporais (podendo variar do
agradável ao
desagradável, entre outros) e transformam o procedimento das características do
processo cognitivo. Ficamos cientes das nossas emoções quando reflectimos, mais tarde, sobre
as imagens mentais que estas originaram. Nos mapas de certas estruturas cerebrais encontram-se
conjuntos de paradigmas neurais que são a essência do sentimento.

À medida que as mudanças corporais se vão realizando, começamos a nos aperceber da


sua existência e podemos verificar a sua contínua evolução. A verificação contínua do que o
nosso corpo está a realizar, enquanto o cérebro está ocupado ao nível da consciência com os
nossos pensamentos sobre temas específicos que vão passando um após o outro, é aquilo que
Damásio chama de sentimento.

A transição da emoção para o sentir consciente é feita seguindo etapas específicas. O


organismo deve interagir com determinado factor que instigue a emoção (seja reconhecido ou
não pela consciência). Este factor indutor da emoção activará regiões neurais que estão aptas
para o tipo de estímulo à qual está relacionado. Estas regiões, após activadas, originarão
respostas corporais e cerebrais que estabelecem a emoção. Os mapas neurais reproduzem as
modificações no estado corporal, manifestando-se os sentimentos. O proto-si e os padrões
neurais são cartografados e representados em estruturas de segunda ordem, o que corresponde
por outras palavras, à relação entre o proto-si e a “emoção como objecto” representado em
estruturas de segunda ordem.

Um dado muito interessante que o autor refere em relação à emoção e ao sentimento é


que, não existe um “estado” do sentimento antes da emoção, ou seja, a emoção antecede ao
sentimento e ter um sentimento não é sinónimo de o conhecer. É através do corpo que se
originam a emoção, o sentimento e a consciência. Em suma, as emoções servem como alerta ao
organismo e são fundamentais para a preservação da vida e os sentimentos encarregam-se de se
ocupar pelas consequências das emoções.

O sentir dá-nos a conhecer que sentimos. É este conhecimento que vai permitir
complementar uma emoção e que os seus efeitos possam se repercutir ao longo do tempo
através de respostas adequadas a cada situação. É impossível conhecer um sentimento se não
houver consciência do mesmo. Um sujeito deve estar consciente (acordado) para poder ter as
emoções e os sentimentos. Embora alguns sentimentos possam estar relacionados com as
emoções, muitos não o estão, pois estes relacionam-se também com os nossos padrões de
valores e visão de vida, assim sendo, todas as emoções geram sentimentos, mas nem todos os
sentimentos geram-se nas emoções. As emoções centram-se mais no corpo e os sentimentos na
mente.

As emoções básicas são reconhecidas universalmente e são semelhantes em indivíduos


de culturas diferentes. Elas são: medo, zanga, aversão, surpresa e felicidade. A maior parte do
tempo, não experimentamos os sentimentos relacionados a essas emoções básicas. Nenhum
destes sentimentos permanece durante muito tempo a não ser que se trate de alguma patologia.
Vivenciamos,
frequentemente, outros tipos de sentimentos como bem-estar, calma, tensão, irritação…
o que Damásio denomina de “sentimentos de fundo” e que a estes se relacionam as emoções de
fundo. Uma emoção de fundo persistente gera um humor e este, por sua vez, está estreitamente
ligado aos sentimentos de fundo.

Os sentimentos de fundo originam-se em estados corporais “de fundo” e não em estados


emocionais (por exemplo, fadiga/energia; harmonia/discórdia; equilíbrio/desequilíbrio, etc.)
relacionam-se estreitamente com os impulsos e as motivações de cada indivíduo, assim como
com o humor e a consciência. Podemos afirmar que este tipo de sentimentos forma o sentido da
vida e é fundamental para a representação do si. Esta representação do si relaciona-se com todas
as áreas do conhecimento e diz muito respeito à individualidade de cada ser: Quem sou?; Como
sou?; O que sou capaz de fazer?; O que sei de mim?...

Os sentimentos de fundo permitem-nos conhecer com alta precisão o estado do


organismo num momento determinado. As informações recolhidas pelo nosso cérebro para este
efeito valem-se das informações provenientes da musculatura lisa de diversos órgãos e dos
vasos sanguíneos, da musculatura estriada do coração e do peito, da representação química do
mileu interno ligado às fibras musculares em questão, e da presença ou ausência de indicadores
químicos que informam sobre uma eventual ameaça para a integridade dos tecidos e se as
circunstâncias são favoráveis a uma homeostasia ideal.

Os sentimentos de fundo estão relacionados com o estado corporal que predomina entre
as emoções. São subtis, pelo que subtilmente ficamos cientes que estamos a experienciar um
sentimento de fundo. Quando sentimos alegria, medo, tristeza ou outras emoções, o sentimento
de fundo foi substituído pela emoção que estamos a ter. Por esta razão, muito provavelmente,
são os sentimentos de fundo e não os emocionais aqueles que experimentamos com mais
frequência nas nossas vidas.

As emoções e os sentimentos acontecem no organismo e são manifestações relacionadas


com os quadros corporais. Por isso, são fundamentais para o estabelecimento de uma relação
entre o corpo e a consciência. Damásio (2000, p.328) refere que “o corpo é o palco principal das
emoções”. Ou seja, o corpo reflecte as emoções quer directamente (vísceras, mileu interno,
músculos esqueléticos…), quer através de manifestações nas estruturas somatossensoriais do
cérebro.

O autor aprofunda algumas das noções básicas de James, que refere que os sentimentos
são o reflexo das alterações do estado corpo. As respostas às emoções direccionam-se tanto ao
cérebro como ao corpo, pois a essência do sentimento é formada pela modificação das estruturas
neurais por parte do cérebro. Assim, ao contrário do que James defende, o corpo não é o única
fonte do sentimento. Do mesmo modo, que a proveniência dos indícios manifestados pelo corpo
pode orientar-se por uma representação que não existe potencialmente do corpo (“como se”),
em oposição de uma representação do corpo como realmente existe (“ como é”).
A ideologia defendida por James, resguarda que as manifestações corporais dos
sentimentos não são fundamentais. O facto de parecer que os doentes, com traumatismo na
espinal medula, manifestem sentimentos faz com que muitos autores refutem esta ideia. No
entanto, Damásio destaca o fenómeno de uma porção da comunicação corporal ser enviada pela
espinal medula. Uma grande parte da informação manifestada pelo corpo é revelada pela espinal
medula e outra parte é manifestada pelos nervos que se situam num nível superior à espinal
medula. Assim sendo, uma grande parte das manifestações emocionais depende da espinal
medula, enquanto outra parte depende essencialmente do sistema nervoso ao nível do tronco
cerebral.

Nem toda a informação corporal é transmitida por nervos. A principal função da espinal
medula também é revelada pela circulação sanguínea, sendo localizada no tronco cerebral. Após
vários estudos, o autor pôde concluir que quanto mais elevada a lesão na espinal medula, menor
a capacidade de sentir a emoção. Pois, a espinal medula é um canal importante de transmissão
de sentimentos. No entanto, mesmo que a lesão na espinal medula seja complexa, sempre é
possível a transição de sinais para o sistema nervoso central. Outro facto interessante ainda
referido, é que alguns autores conceberam a ideia de corpo como parte do organismo e omitiram
a cabeça. Esta ideologia é refutada por Damásio, por achar que a parte superior dos aparelhos
digestivo e respiratório e o sistema vocal são responsáveis pelo fornecimento de inúmeros sinais
ao cérebro, ou seja, que não necessitam da espinal medula para tal acontecer. Isto porque a
maioria das emoções expressam-se através da transformação muscular da face e do couro
cabeludo. E mais uma vez, estas representações emocionais não necessitam da espinal medula.

Damásio, para corroborar a sua teoria comparou os seus estudos com os que W. Cannon
tinha efectuado em gatos e cães. As experiências feitas por este cientista consistiam em
seccionar o nervo vago e a espinal medula a estes animais. Estas lesões impediam que o animal
se pudesse movimentar mas, como o cérebro e os circuitos nervosos que permitiam as
expressões faciais estavam intactos, os animais puderam manifestar facialmente as emoções
básicas de zanga, medo e outras. No entanto, como estes animais não são racionais, ou seja não
têm consciência alargada, é totalmente impossível estudar os seus sentimentos. Contudo,
Damásio acredita que os sentimentos devem sofrer modificações parciais porque o animal não
poderá receber os impulsos viscerais, que servem de complemento aos sinais cerebrais.
Também, afirma que Cannon falhou na sua tentativa de provar que os animais têm sentimentos,
porque ele não distinguiu a emoção e o sentimento, bem como, não reconheceu que o processo
era automatizado.

Para continuar a desvendar os mistérios da influência dos danos das lesões cerebrais nas
emoções e nos sentimentos, Damásio observou algumas pessoas que padeciam da síndroma
“Locked in”. Ou seja, pessoas incapazes de se movimentar em absoluto excepto de pestanejar,
mover os olhos e lacrimejar mas, dada a lesão cerebral que apresentam, carecem no absoluto
dos sentimentos de angústia e de encarceramento, que tal situação provocaria em indivíduos que
não padecem desta patologia.
Um dado interessante, é que estes doentes têm intactos os sentimentos de alegria,
tristeza e outros. O autor defende que as imagens que surgem neste caso, não podem ter lugar
pelo “circuito-através-do-corpo” porque o cérebro não consegue sentir o corpo. Desta forma, o
cérebro vale-se das estruturas cerebrais, ainda disponíveis, que estão na origem do sentimento
para o induzir. No entanto, como quase todos os caminhos de comunicação entre o corpo e o
cérebro estão livres, este (o cérebro) continua a receber sinais químicos e neurais dos sistemas
que determinam as emoções de fundo. É a recepção das imagens do mileu interno, que ainda
conseguem chegar ao cérebro, aquilo que permite aos doentes distinguir entre estados
harmoniosos e estados de dor. Como as emoções já não são produzidas no corpo mas sim no
cérebro, os processos da dor são mais curtos, portanto, sentidos por menos tempo.

Estas conclusões foram reforçadas através da administração de curare (que causa a


paralisia) a pacientes que tiveram de ser submetidos a algum tipo de intervenção cirúrgica. Estes
doentes manifestaram os sentimentos de angústia que eram de se esperar numa situação
semelhante, pois o curare não bloqueia os receptores muscarínicos, sendo, então enviadas para o
cérebro as imagens emocionais de forma normal. De tudo isto conclui-se que, o “circuito-
através-do-corpo” é mais importante para as emoções do que o “circuito-como-se-fosse-através-
do-corpo”.

O sentir do corpo pelo nosso cérebro, que é fundamental para o processo harmonioso de
sentir as emoções, se estiver comprometido, pode alterar de forma significativa a realização de
novas aprendizagens. Segundo estudos realizados por James Mcgaugh e os seus colegas, um
indivíduo que apresente lesões ao nível do nervo vago, pode ficar privado do processo
emocional que potencia a aprendizagem porque fica impossibilitado de receber grande parte da
informação visceral. Este estudo exalta a importância do “circuito-através-do-corpo” porque ele
se encarrega do fornecimento da informação visceral específica fundamental para o processo
emocional que orienta a aprendizagem. Um indivíduo num estado emocional de alegria
consegue reter mais informação do que um indivíduo que esteja a experimentar tristeza. A
alegria ajuda o indivíduo a concentrar-se mais nos novos conteúdos e a empenhar-se mais nas
tarefas de aprendizagem, enquanto que o estado de tristeza conduz o indivíduo a uma atitude de
desinteresse e afastamento.

Em suma, as emoções desempenham um papel importante na aprendizagem


significativa porque estão relacionadas aos impulsos, interesses e motivações dos intervenientes
no processo da aprendizagem.
Conclusão

Consideramos que a obra de Damásio, “O sentimento de Si”, constitui uma peça


fundamental para compreensão dos processos neurológicos e biológicos das emoções e dos
sentimentos. Na nossa opinião, o autor argumenta muito bem e fundamenta de forma concisa as
suas conclusões.

Na nossa experiência da leitura integral da obra, o facto de não termos conhecimentos


básicos sobre essas áreas, traduziu-se em algumas dificuldades de compreender todos os
conceitos abordados na mesma e levou-nos a pesquisar o significado de alguns termos
científicos apresentados.

Apesar das dificuldades iniciais experienciadas, esta leitura foi muito pertinente porque
veio aprofundar alguns conhecimentos sobre o papel das emoções para a aprendizagem.
Reforçando a ideia, já desenvolvida por muitos pedagogos, que a aprendizagem para ser bem
desenvolvida, deve ser significativa para os alunos.

Ao ter conhecimento sobre as noções da consciência e do corpo, bem como, de algumas


patologias ao nível do sistema nervoso central e as suas implicações, tivemos a oportunidade de
sensibilizarmo-nos para podermos agir de forma mais eficaz em prol de uma melhor adaptação
dos conteúdos e das estratégias a utilizar em alunos com Necessidades Educativas Especiais
semelhantes.
Bibliografia

Damásio, A. (2004). Ao encontro de Espinosa. Mem Martins: Publicações Europa-


América.

Damásio, A. (2000). O sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da


consciência. Lisboa: Publicações Europa - América.

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