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o getulismo e a MBP 1
Ao contrário do que escreveu em sua carta-testamento, antes 1937, mas logo ficaram obsoletos com o golpe de Estado que no
de sair da vida Vargas já havia entrado para a História, inclusive fim daquele ano suprimiu a eleição e firmou Getúlio no poder por
a da MPB. Nos velhos tempos do disco de 78 rpm bastava tempo indefinido.
estourar um assunto de grande interesse para vários discos Durante o Estado Novo, o ditador implantou férrea censura.
aparecerem nas lojas com músicas inspiradas no tema. O disco Era permitido falar do governo, mas apenas em tom elogioso.
era uma versão urbana do cordel, realizando crônica social, Isso explica o grande número de composições que
quase sempre satírica, dos temas mais em voga. Naturalmente, transformavam o Brasil em cartão-postal - como Aquarela do
a maioria dessas músicas - foxtrotes, marchinhas, sambas - era Brasil, Canta Brasil, Onde o Céu Azul é mais Azul - ou incitavam
tão efêmera quanto os assuntos. Muitas, porém, transcenderam a renúncia à boemia e à malandragem em favor do trabalho
sua função mais imediata e se tomaram clássicos da música honesto. É o caso de duas canções de Ataulfo Alves: O Bonde
popular, ainda que este ou aquele personagem ou situação São Januário (parceria com Wilson Batista), cuja letra foi
citados nas letras pareçam obscuros para gerações posteriores. censurada e alterada para se adaptar às determinações do
E desde seu surgimento como figura pública, Vargas sugeriu - regime, e a edificante É Negócio Casar! (com Felisberto Martins),
diretamente ou não - dezenas de músicas, refletindo seu status gravada em 1941.
de presidente mais popular de todos os tempos. Com a deposição de Getúlio, não faltou quem se vingasse da
O cânone getuliano começa com a candidatura à presidência censura, como se nota em sucessos como Trabalhar, Eu não de
em 1929. Eduardo Souto compôs uma curiosa marcha, É Sopa Almeidinha, Palacete no Catete, de Herivelto Martins e Cyro de
(17x3), tratando metaforicamente a eleição como uma partida de Soma, e Salada Política, de Alvarenga e Ranchinho. Também
futebol em que Getúlio perderia de lavada para Júlio Prestes; 17 não faltava quem respeitasse Vargas tão-somente em função de
era o número de estados unidos em tomo da candidatura de Júlio seu cargo de presidente, passando a achincalhá-lo quando foi
Prestes, contra os três (Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas apeado do poder. Os compositores Roberto Martins e
Gerais) que apoiavam Getúlio: “Pra vencer o combinado Eratóstenes Frazão gozaram esse tipo de aduladores na
brasileiro de Getulinho / é sopa, é sopa, é sopa...”. O grande marchinha Cordão dos Puxa-Sacos, que não só foi um dos
humorista e letrista Luiz Peixoto expressou a mesma opinião em maiores sucessos do carnaval de 1947 como também
duas marchas feitas em parceria com Hekel Tavares. Uma delas, popularizou de vez a expressão “puxa-saco”.
Comendo Bola, aconselhava o candidato a sair de campo antes Mas o político não deixou de ser admirado, ou adulado,
de levar uma surra: “Getúlio / você tá comendo bola / Não se enquanto esteve longe do poder. Houve manifestações como a
mete com seu Júlio / Não se mete com seu Júlio / que seu Júlio marcha Ai Gegê, de José Maria de Abreu e João de Barro: “Ai,
tem escola”. A outra, Harmonia! Harmonia; goza a esperteza de Gegê / Que saudades / que nós temos de você [...] Tudo sobe,
Getúlio, “Quero o Catete mas fingi que não queria / Chamem o sobe, sobe / todo dia no cartaz / Só o pobre do cruzeiro / cada
Getúlio que é uma ducha de água fria / 17x3 é covardia”. dia desce mais”. E quando Getúlio reassumiu o poder, em 1951,
O pesquisador Jairo Severiano lembra um detalhe: tanto os foi saudado com a marcha Retrato do Velho (de Haroldo Lobo e
candidatos da oposição quanto os da situação ganhavam Marino Pinto), talvez o maior sucesso de toda a era Vargas:
homenagens, mas somente os últimos conseguiam chegar ao “Bota o retrato do velho outra vez / bota no mesmo lugar / O
disco., “O governo ganhava sempre as eleições e ninguém sorriso do velhinho / faz a gente trabalhar!”. Como nessa época
queria correr o risco de desagradar o futuro presidente.” Mas a não havia mais censura, os discos traziam mais equilíbrio entre
Revolução de 1930 derrotou o govemo, e a posse de Getúlio elogios e críticas, como o samba Ministério da Economia, de
inspirou Casulo da Paixão Cearense a compor nada menos que Geraldo Pereira e Arnaldo Passos: “Agora tudo vai ficar barato /
um hino, 24 de Outubro, musicado por Henrique Vogeler. “Vinde Agora o pobre já pode comer / até encher”; a marcha Se eu
a nós, bravos Getúlios”. E o Bando de Tangarás gravou Ge-Gê Fosse o Getúlio, de Arlindo Marques Jr. e Roberto Roberti: “O
(Seu Getúlio), de Lamartine Babo, homenagem bem-humorada Brasil tem muito doutor /muito funcionário / muita professora / Se
ao novo presidente: “Ge-e-Gê, Ge / Te-U-Li; Tu / Ele-I-Li, O / eu fosse o Getúlio mandava / metade dessa gente pra lavoura”, e
Getúlio”. Até a então nascente música sertaneja contribuiu para Trabalhadores do Brasil, de Silvino Netto, cujo título evoca o
ampliar o cancioneiro getuliano, com modas pioneiras como bordão com o qual o presidente começava seus discursos:
Revolução Getúlio Vargas gravaria por Zico Dias e Ferrinho. “Trabalhamos com toda firmeza / pelo gigante pela própria
Mas, ao combater os paulistas revolucionários em 1932, Vargas natureza / mas, Senhor Presidente, / a vida está de amargar”.
foi alvo de paródias de canções de sucesso, como esta de Gosto O suicídio de Vargas rendeu novas músicas. O mesmo
que me Enrosco, de Sinhô: “Gosto que me enrosco de ouvir dizer Silvino Netto leu a carta-testamento em gravação contida num LP
/ que a ditadura vai perder / e o Getúlio, com toda a fortaleza, / de 10 polegadas lançado em homenagem ao líder morto, além
desce da nobreza para se esconder”. de ter quatro marchas-hino de sua autoria incluídas no mesmo
Uma das novidades implantadas pelo governante foi o direito disco, como Petrobrás e Presidente Imortal. Outras composições
de voto às mulheres. O verdadeiro sexo forte já podia votar - e inspiradas pelo suicídio incluem o forró Ele Disse, de Edgard
ser votado, a julgar pela marcha A Menina Presidência de 1936, Ferreira, lançada por Jackson do Pandeiro: “Ele disse uma frase
do cartunista e letrista Nássara, com melodia de Cristóvão de que conforta: / quando a fome bater na vossa porta / o meu nome
Alencar: “A menina presidência / vai rifar seu coração / e já tem é capaz de vos unir”, e o Hino a Getúlio Vargas, de João de
três pretendentes / Todos de chapéu na mão / O homem quem Barro: “Deixaste os braços do povo / para subir ao altar”.
será? / Será seu Manduca? / Ou será seu Vavá? / Entre esses Mais recentemente, Vargas continuou inspirando
dois meu coração balança / porque na hora H / quem vai ficar é compositores, mas sem a mesma freqüência de antes. Um
seu Gegê”. Uma nova eleição presidencial estava prevista para exemplo é Dr. Getúlio, samba-enredo de Edu Lobo e Chico
janeiro de 1938. Seria disputada por Getúlio, José Américo de Buarque, incluído na peça Vargas, escrita por Dias Gomes e
Almeida (o Vavá) e Armando de Salles Oliveira (o Manduca). O Ferreira Gullar e encenada em 1983. Não foi à toa que Flavio
disco e a partitura da marcha chegaram às lojas em janeiro de Rangel, diretor da peça, afirmou: “Getúlio, ao lado de Tiradentes,
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