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TRANSGRESSÃO E MORTE EM “O PRIMO BASÍLIO”, DE

EÇA DE QUEIROZ
ROBERTO NUNES BITTENCOURT (PUC-RIO)

Traçando pequenos quadros domésticos da vida familiar bur-


guesa de Lisboa, Eça de Queiroz compreende que a arte é como um
espelho da sociedade. A literatura tem sido, afnal, “uma das formas
mais importantes de que dispõe o homem, não só para o conhecimen-
to do mundo, mas também para a expressão, criação e recriação des-
se conhecimento” (Vieira, 1978, p. 11).
“O primo Basílio” (1878) tem sido apontado pela crítica literá-
ria como um romance de tese, em que Eça de Queiroz, tendo como
objetivo denunciar a formação da família lisboeta – a pequena bur-
guesia –, revela a degradação moral da sociedade, que pauta o casa-
mento como uma instituição de interesses, ao mesmo tempo que
critica ferozmente, com um olhar extremamente lúcido e aguçado,
consciente da necessidade de moralização de Portugal, a educação da
mulher nos moldes românticos.

O Primo Basílio apresenta, sobretudo, um pequeno quadro do-


méstico, extremamente familiar a quem conhece bem a burguesia
de Lisboa: a senhora sentimental, mal educada, [...] arrasada de
romance, lírica, sobreexercida no temperamento pelo ociosidade
e pelo mesmo fim do casamento peninsular, que é ordinariamente
a luxúria, nervosa pela falta de exercício e disciplina moral, etc,
etc. – enfim, a burguesinha da Baixa. (Queiroz, 2000, p. 34)
Deixando claro que cada personagem é uma célula social, uma
pequena parte dessa sociedade corrompida, Eça traça em Luísa o
arquétipo da mulher lisboeta do século XIX, privada de liberdade e
que vive à mercê das emoções contidas. Sonhadora e romântica,
limitada em seu desenvolvimento da razão e levando uma vida ocio-
sa e monótona, Luísa tem como passatempo a leitura de romances.
Alías, leitora extremamente sensível das obras românticas, é incapaz
de separar a realidade da fantasia. Seu maior sonho era viver as
aventuras e amores dos livros que lia.

Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em


solteira, aos dezoito anos, entusiasmara-se por Walter Scott e pe-
la Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses,
que têm sobre as ogivas os brasões do clan, mobilados com arcas
góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde es-
tão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz
viver: e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, temos e graves, ten-
do sobre o gorro a pena de águia presa ao lado pelo cardo da Es-
cócia de esmeraldas e diamantes. Mas agora era o moderno que a
cativava, Paris, as suas mobílias, as suas sentimentalidades. Ria-
se dos trovadores, exaltara-se por Mr. de Camors e os homens i-
deais apareciam-lhe de gravata branca, nas ombreiras das salas de
baile, com um magnetismo no olhar, devorados de paixão, tendo
palavras sublimes. Havia uma semana que se interessava por
Margarida Gautier; o seu amor infeliz dava-lhe uma melancolia
enevoada; via-a alta e magra, com o seu longo xale de caxemira,
e os olhos negros cheios de avidez da paixão e dos ardores da tí-
sica; nos nomes mesmo do livro — Júlia Duprat, Armando, Pru-
dência, achava o sabor poético duma vida intensamente amorosa;
e todo aquele destino se agitava, como numa música triste, com
ceias, noites delirantes, aflições de dinheiro, e dias de melancolia
no fundo dum coupé quando nas avenidas do Bois, sob um céu
pardo e elegante, silenciosamente caem as primeiras neves. (Id.,
ibid., p. 21-22)

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Há que se destacar que Eça de Queiroz não critica o fato, por
exemplo, de as mulheres se darem ao gosto da leitura; sua crítica
deve-se ao fato de como os romances são lidos, o que fazia as jovens
encontrarem na literatura grandes ilusões sobre a vida, sobre o mun-
do e sobre o amor. Quantas e quantas mulheres não devem ter so-
nhado ser Emma Bovary?
Todo o comportamento de Luísa é uma predisposição para o
adultério. Casara-se com o engenheiro Jorge, ainda que não o amas-
se. O casamento foi uma troca mútua de interesses, fruto do desejo
de organização da vida quotidiana. É um enlace de comodidades e
conveniências: com Luísa, Jorge tem o carinho de que necessitava; a
moça, por sua vez, vê no marido a concretização de toda moça da sua
idade: o de casar.

Quando sua mãe morreu, porém, começou a achar-se só: era no


inverno, e o seu quarto nas traseiras da casa, ao sul, um pouco
desamparado, recebia as rajadas de vento na sua prolongação ui-
vada e triste; sobretudo à noite, quando estava debruçado sobre o
compêndio, os pés no capacho, vinham-lhe melancolias lângui-
das: estirava os braços com o peito cheio dum desejo; quereria
enlaçar uma cinta fina e doce, ouvir na casa o frou-frou dum ves-
tido! Decidiu casar. Conheceu Luísa, no verão, à noite, no Pas-
seio. Apaixonou-se pelos seus cabelos louros, pela sua maneira
de andar, pelos seus belos olhos castanhos muito grandes. No in-
verno seguinte, foi despachado, e casou. Sebastião, o seu íntimo
amigo, o bom Sebastião, o Sebastiarrão, tinha dito, com uma os-
cilação grave da cabeça, esfregando vagarosamente as mãos:
– Casou no ar! casou um bocado no ar! (Id., ibid., p. 16-7)

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Para satisfazer os prazeres do coração, entretanto, Luísa trans-
gride os laços do matrimônio ao aventurar-se a uma relação adúltera
com o primo Basílio.

Tudo começa com duas viagens: a partida do marido e a chegada


do primo, que se tronará seu amante. Já de início, o ato de viajar
configura como algo relevante para o “desenrolar” dos fatos. Po-
de-se dizer que é a representação da “saída de cena” do que era
rotineiro, para dar lugar ao novo [...] Além de a partida do marido
propiciar que a esposa fique só e, assim, ainda mais ociosa do
que era normalmente, o homem que virá fazer a sua corte será
alguém a quem Luísa atribui uma série de qualidades, as quais,
por sua vez, estão vinculadas às viagens realizadas por ele. Devi-
do ao seu imaginário romântico, o processo de “cosmopolitiza-
ção” por que passara Basílio é determinante para transformar o
primo em objeto de desejo. (Montenegro, 2005, p. 33)

Basílio retorna após ter viajado por muitos lugares do mundo.


“Estivera em Constantinopla, na Terra Santa, em Roma. O último
ano passara-o em Paris” (Queiroz, op. cit., 62). Luísa credita que,
com p primo, poderá levar uma vida de grandes aventuras. Passa,
então, a sonhar com a possibilidade de conhecer o mundo – aquele
criado pelas imagens que a literatura lhe ensinou e que Luísa toma
como verdadeiro.

— Que vida interessante a do primo Basílio! — pensava. — O


que ele tinha visto! Se ela pudesse também fazer as suas malas,
partir, admirar aspectos novos e desconhecidos, a neve nos mon-
tes, cascatas reluzentes! Como desejaria visitar os países que co-
nhecia dos romances — a Escócia e os seus lagos taciturnos, Ve-
neza e os seus palácios trágicos; aportar às baías, onde um mar
luminoso e faiscante morre na areia fulva; e das cabanas dos pes-
cadores, de teto chato, onde vivem as Graziellas, ver azularem-se
ao longe as ilhas de nomes sonoros! E ir a Paris! Paris sobretudo!

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Mas, qual! Nunca viajaria decerto; eram pobres; Jorge era casei-
ro, tão lisboeta! (Queiroz, oip. cit., p. 69-70)

A ociosidade, a vaidade, a educação romanesca etc. atraem a


moça para os braços do primo. Entendendo a transgressão como o
não agir adequadamente ao considerado moralmente correto, po-
demos dizer que a relação entre Luísa e Basílio é a maior transgres-
são do romance. A atitude da moça, porém, parece encontrar “justifi-
cativa” em uma conversa que tivera com Sebastião: “Não há mulhe-
res más, minha rica senhora, há homens maus, é o que há”. Assim,
lírica e romântica, cada vez mais tentada a entregar-se aos cortejos de
seu primo, entrega-se à lubricidade de Basílio. Inicialmente, sente-se
em conflito, já que, tendo recebido uma educação conservadora,
repressora, busca libertar-se de padrões antigos, em face das trans-
formações de seu tempo. O adultério é visto por ela como uma atitu-
de de libertação. Tornara-se, então, uma mulher capaz de transgredir
as leis do casamento para satisfazer os prazeres do coração.
Amantes, Luísa e Basílio passam a encontra-se com certa fre-
qüência em um quarto alugado para este fim. Antes de conhecer o
local, a moça acreditava que o Paraíso, como Basílo chamava o local,
era realmente um lugar maravilhoso, e que poderia desfrutar com o
primo muitas delícias.

Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito


nervosa; [...] Mas ao ]mesmo tempo uma curiosidade intensa,
múltipla, impelia-a, com um estremecimentozinho de prazer. Ia,
enfim, ter ela própria aquela aventura que lera tantas vezes nos
romances amorosos! Era uma forma nova do amor que ia expe-

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rimentar, sensações excepcionais! Havia tudo a casinha misterio-
sa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo! Porque o
aparato impressionava-a mais que o sentimento; e a casa em si in-
teressava-a, atraía-a mais que Basílio! Como seria? Conhecia o
gosto de Basílio, - e o Paraíso decerto era como nos romances de
Paul Féval. (Id., ibid., p. 184-5)

Ao chegar à casinha misteriosa, entretanto, depara-se com um


pequeno quarto. Observando melhor o aposento, “Luísa viu logo, ao
fundo, uma cama de ferro com uma colcha amarelada, feita de re-
mendos juntos de chitas diferentes; e os lençóis grossos, de um bran-
co encardido e mal lavado, estavam impudicamente entreabertos.”
(Id., ibid., p. 186). Ironicamente, o Paraíso é um lugar sujo, sórdido,
contrário aos sonhos de Luísa. Talvez, de certa forma, este local seja
um reflexo daquilo que são Luísa e Basílio, já que entre eles tudo era
falso. Na verdade, a moça não ama seu primo nem o conhece tanto
quanto acreditava conhecer. A relação entre ambos é, como o casa-
mento da moça com Jorge, um jogo de interesses. Ela acredita que
viverá nessa relação extra-conjugal momentos de gozo e felicidade.
É assim, afinal, que acontece nos romances que lê. Basílio, por sua
vez, encontra na prima uma forma prazerosa de ocupar o tempo en-
quanto segue com seus negócios em Lisboa.
Pouco a pouco inicia-se a queda de Luísa. A moça realizara
uma viagem sem volta, ao romper os laços do casamento. A idéia da
devassidão e da perversão passou a acompanhar a jovem romântica.
Se viveu com Basílio algo que se possa chamar “paraíso”, seu infer-
no começa a ser construído. Juliana, a empregada da família, desde o

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início das visitas de Basílio à Luísa, percebeu a possibilidade de uma
relação entre o casal. Sendo conduzida pela revolta e pelo rancor
contra a patroa, Juliana, ao conseguir provas da infidelidade de Luísa
– como numa das cartas do primo Basílio – passa a chantagear a
moça. Além disso, Basílio começa a dar sinais de tédio e descaso,
revelando seu verdadeiro caráter à prima e deixando claro que não a
ama.
Parte de Lisboa e Luísa fica à mercê das chantagens de Julia-
na, que transforma a sua vida em uma tormenta diária. Em certo
momento, os papéis se invertem: de empregada, Juliana torna-se
senhora de Luísa. Esta sofre e aceita o sofrimento, tanto físico quanto
moral, tudo para que o adultério com Basílio não fosse revelado.
Atormentada por pesadelos, Luísa perde a paz e o sono. Sua agonia é
longa e suas dores são intensas.
Destaca Ana Helena Cizotto Belline que

A educação viciosa de Luísa culmina na formação do seu caráter


abúlico, isto é, na sua ausência de vontade, na sua incapacidade
de tomar decisões ou reagir a situações que a desagradem. A sua
submissão a Juliana, por exemplo, é classificada pelo narrador
como fruto de um “caráter móbil, inconsistente, cheio de deixar-
se ir”. (Belline, 1997, p. 64)

A redenção não chega para Luísa. Mesmo quando Juliana


morre, a jovem romântica sente todo o peso das chantagens e da
angústia pela qual vinha sendo acometida, caindo, novamente, doen-
te. Uma carta de Basílio chega às mãos de Jorge, que, ao lê-la, des-
cobre toda a verdade.

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Jorge dobrou o papel, lentamente, em duas, em quatro dobras, a-
tirou-o para cima da mesa, disse alto: – Sim, senhor! Bonito! En-
cheu o cachimbo de tabaco maquinalmente, com os olhos vagos,
os beiços a tremer; deu alguns passos incertos pelo escritório. De
repente, arremessou o cachimbo, que despedaçou um vidro da ja-
nela, bateu com as mãos desvairado, e, atirando-se de bruços para
cima da mesa, rompeu a chorar, rolando a cabeça entre os braços,
mordendo as mangas, batendo com os pés, louco! (Id., ibid., p.
385)

Ainda que o marido viesse perdoar a esposa, já era tarde de-


mais. “Luísa caiu numa sonolência prostrada com gemidos fracos,
que saía de seus lábios como a lamentação interior da vida vencida.”
(Id., ibid., p. 402). A moça romântica cai inconsciente e falece de
febre cerebral. Ironicamente, a mesma doença que acometia as mu-
lheres dos romances que lia e que tanto queria viver.
Luísa está, porém, isenta de culpa. Esta é da sociedade cor-
rompida, que o autor tanto quis mostrar, moralizar, modernizar, tra-
zer à luz. Intencionalmente Eça concebe Luísa como um títere, uma
marionete manipulada pela sociedade. A morte da jovem sonhadora
torna-se, portanto, não um castigo, mas uma necessidade. Aponta
Ramalho Ortigão que “a moral deste livro não está em que a prima
de Basílio morra depois da queda: está em que ela não podia deixar
de cair.” (Rosa, 1963, p. 120)

Comenta o escritor e crítico literário Ezra Poud, destacando a


função social do escritor que:
A literatura não existe no vácuo. Os escritores, como tais, têm
uma função social bem definida, exatamente proporcional à sua
competência como escritores. Essa é a sua principal utilidade.
Todas as demais são relativas e temporárias e só podem ser avali-

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adas de acordo com o ponto de vista de cada um [...] A lingua-
gem é o principal meio de comunicação humana. Se o sistema
nervoso de um animal não transmite sensações e estímulos, o a-
nimal se atrofia. Se a literatura de uma nação entra em declínio, a
nação se atrofia e decai. (Pound, 1977, p. 36)

Pensando desta forma, não é equivocado dizer que Eça de


Queiroz foi o grande nome do romance realista português, ao retra-
tar, através da arte literária, os problemas sociais e morais da realida-
de portuguesa do século XIX, revelando uma espécie de doença da
sociedade, pretensamente evoluída, mas cujos valores estavam cor-
rompidos. Portugal está salvo da atrofia. Permanecem o autor, a obra
e a nação.

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Referências Bibliográficas

BELLINE, Ana Helena Cizotto. Roteiro de leitura: O primo Basílio


de Eça de Queirós. São Paulo: Ática, 1997.
MONTENEGRO, Mariana. Encenações e transgressões em Eça de
Queirós: uma leitura de O primo Basílio e Os Maias. Dissertação
(Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro, 2005.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Cultirx, 1977.
QUEIROZ, Eça de. O primo Basílio. São Paulo: FTD, 1994.
______. Correspondência. Lisboa: Livros do Brasil, 2000.
ROSA, Alberto Machado da. Eça, discípulo de Machado?. Rio de
Janeiro: Fundo de Cultura, 1963.
VIEIRA, Alice. O prazer do texto: perspectivas para o ensino de
literatura. São Paulo: EPU, 1978.

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