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Direito Fundamental ao Território: Identificação,

Reconhecimento e Titulação.
O Caso da Comunidade Quilombola de Matão – PB

Inafran Francisco de Souza Ribeiro


Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)
Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)

1 - Introdução
A abordagem da questão do direito à terra dos remanescentes de quilombos no Brasil
deve estar, por óbvio, em sintonia com a complexidade da situação fundiária destas
comunidades, bem como deve ter como panorama suas características sócio-culturais e
econômicas.
A Constituição brasileira de 1988 trouxe consigo acalorados debates acerca da
conceitualização do termo quilombo, isto por que, pela primeira vez na história jurídico-
política do país, consagrou, embora de maneira bastante reticente, o direito à terra das
comunidades remanescentes de quilombos. Diz textualmente o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Assim sendo, os termos quilombos ou remanescente de quilombos mereceram, após
1988, uma ressemantização, visto que era de uso quase exclusivo de historiadores, e se
remetia apenas ao período em que no Brasil a escravidão legal era instituída. Tais termos, que
são utilizados para conferir direitos territoriais, se referem a grupos sociais que, em função de
razões históricas, se organizaram em comunidades onde o grau de parentesco e
relacionamento, as práticas produtivas, religiosas e culturais e o preconceito sofrido
confluíram para criar ou mesmo reforçar um sentimento de identidade étnica que faz com que
se sintam diferentes do restante da sociedade envolvente, sendo por esta assim também
reconhecidos, através de processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites
entre os que são considerados de dentro ou de fora. (BARTH, 2000)
Em relação especificamente ao termo remanescente, expressão veiculada pelo
dispositivo constitucional supracitado, podemos dizer que ele introduz um diferencial
importante com relação ao uso do termo quilombo, presente em outros locais da Carta Magna
(arts. 215 e 216). Nele, o que está em jogo são “comunidades”, isto é, organizações sociais,
grupos de pessoas que “estejam ocupando suas terras”, como diz o art. 68 (ARRUTI, 2006).
Deste modo, após 1988, e principalmente depois da expedição do decreto 4887/2003,
colocou-se na agenda política do Brasil a questão da identificação, do reconhecimento e da
titulação dos referidos territórios. Apontaremos, neste trabalho, para o caráter fundamental
deste direito que é conferido às comunidades remanescentes de quilombos e tentaremos
mostrar como ele vem sendo efetivado no Brasil.
Ademais, através da narração e da análise do processo de demarcação e titulação da
Comunidade Quilombola de Matão-PB, pretendemos fazer uma imersão nas diversas
concepções externadas pelos moradores, bem como outros atores envolvidos no processo, a
respeito do trabalho ali desenvolvido, além de refletir sobre o entendimento que se tem acerca
do direito que o trabalho se propunha a efetivar, visto que percebemos durante nossa estada na
comunidade que alguns entraves que se puseram ao bom andamento do trabalho foram
oriundos de alguns posicionamentos específicos no que se refere à legitimidade e à
oportunidade dos estudos que deles resultaria o Laudo Antropológico.

2 - O Direito Fundamental ao Território


A Constituição Brasileira enfatiza a primazia dos direitos fundamentais da pessoa
humana e a competência da União para legislar sobre direito agrário, direito urbanístico e para
executar políticas públicas urbanas e rurais, mediante o cumprimento das funções sociais da
cidade e da propriedade.
A complexidade da questão agrária é pujante, visto que o direito à terra1 guarda
relação e interdependência com direitos de outra natureza, tais como o direito à moradia, o
direito à propriedade, o direito à alimentação, o direito a ser protegido contra despejos e
deslocamento arbitrários, direito à segurança da posse e, principalmente, direito a um padrão
de vida adequado.
Assim sendo, uma abordagem ampla da questão fundiária enfatiza o direito à terra
como um Direito Humano Fundamental e leva em conta o cumprimento da função social da
propriedade como conditio sine qua non para a solução de conflitos fundiários e falta de terra

1
A utilização da expressão “direito à terra” inclui o conceito de território, o que abrange a totalidade do habitat
das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.
entre populações pobres que dependem do acesso a este recurso para sua sobrevivência e
bem-estar.
A importância universal do direito à terra é clara e inequívoca, assim como também o
é a relação direta que existe entre a questão da terra, o desenvolvimento sustentável, e
possibilidade de gozo de uma ampla gama de direitos.
A dissociação entre a propriedade, cartorialmente comprovada, e a posse, enquanto
animus domini facti, colocou a população afro-descendente situada em uma conjuntura de
interdependência necessária em relação àqueles que dominavam os recursos jurídicos,
principalmente de domínio fundiário. Deste modo, cria-se uma distância, que é legalmente
construída, entre os que possuem “títulos” e os que “ocupam”, configurando-se uma realidade
social baseada na hegemonia dos instrumentos cartoriais que leva a uma espécie de “violência
dos papéis”.
É sob esse panorama que os Laudos Antropológicos têm assumido uma importância
cada vez mais considerável na prática profissional da disciplina no Brasil. O Laudo, longe de
estar relegado a possuir um significado exclusivamente burocrático, coloca-se como
instrumento de defesa das comunidades, de modo a possibilitar-lhes reação frente ao que
anteriormente chamamos de “violência dos papéis”. A divulgação dos laudos vem sendo
particularmente veiculada por membros e lideranças das comunidades, num esforço por
rearranjar um campo de forças no qual os estudos não só se reduzam a instrumento de prova
jurídica, mas representem a possibilidade de garantir uma “fala histórica”, calcada em
sensibilidades jurídicas que adentram a institucionalidade oficial, com a potencialidade que
haja um resgate no “escrever suas histórias”, agora não sem as suas “mãos, bocas e olhos”
(CHAGAS, 2005).
Deste modo, há que enfatizarmos a importância do antropólogo e de sua atuação
profissional no processo de concretização do direito fundamental ao território dessas minorias
étnicas. A produção do Laudo é caracterizada por um esforço crítico e independente
direcionado à captação elementos que o possibilitem atestar a etnicidade de dado grupo. E
através da disponibilização dos conhecimentos sobre esses grupos e sobre a sociedade que os
oprime, os antropólogos têm contribuído para a redução de preconceitos e estereótipos de
ordem racial e étnica, de gênero, de classe e de cultura (OLIVEIRA, 2005).
3 - Proteção do direito ao território das comunidades de quilombos em âmbito
nacional
Como já dito, a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história do Brasil,
reconheceu o direito à terra aos remanescentes das comunidades de quilombo e o fez
observando a relação constitutiva de identidade entre esses povos e o território que
tradicionalmente ocupam. É esta relação que fornece os matizes e configurações dos
elementos caracterizadores destas minorias étnicas.
Com uma simples leitura do artigo 68 do ADCT pode-se concluir que a norma está
apta a produzir todos os seus efeitos, independentemente de lei infraconstitucional. Trata-se
de norma de eficácia plena, uma vez que o constituinte conferiu a este dispositivo
normatividade suficiente para sua incidência imediata. Além disso, ao consagrar a proteção a
direitos culturais e sociais das comunidades remanescentes de quilombos, o artigo 68 reveste-
se de aplicabilidade imediata por tratar de direito fundamental, conforme determina
expressamente o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal2 (SILVA, 2008).
A construção desse novo sujeito de direitos se deu mediante sensível discussão interna
na Assembléia Nacional Constituinte. A categoria tida como representativa das demandas por
regularização fundiária do povo negro foi expressa, inicialmente, por “comunidades negras
rurais”. A série de emendas apresentadas pelos Deputados Constituintes denotou particular
preocupação com o fato de que a titulação das terras não deveria formar guetos e com o dever
do Estado brasileiro em saldar, através da eficácia do dito art. 68, uma dívida histórica.
Não obstante a desnecessidade de norma regulamentadora do Art. 68 do ADCT, foi
editado o Decreto 3912/2001 que foi revogado pelo Decreto 4887/2003. Este último atribui ao
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a competência relativa aos
procedimentos para a titulação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Até 2003, a competência relativa à delimitação das terras dos remanescentes das
comunidades dos quilombos era do Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural
Palmares (FCP). Com o Decreto 4887/2003 que fez a transferência desta competência do
Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, sendo, daí por diante,
de responsabilidade do INCRA a expedição dos respectivos títulos de terras, à Fundação
Cultural Palmares ficou a atribuição de registrar as declarações de autodefinição de

2
Segundo José Afonso da Silva, normas dessa natureza estão aptas a desencadear imediata, plena e
integralmente, os efeitos que justificaram sua edição. Nem mesmo por legislação infraconstitucional será
possível restringir os comandos veiculados por essas normas, pois isso significaria uma afronta ao postulado da
“supremacia da Constituição”. Tais normas não necessitam e nem podem sofrer intermediação pela legislação
ordinária, se isso limitar ou restringir o direito ali veiculado.
remanescência de comunidades de quilombo, através da instituição de um Cadastro Geral, e,
por conseguinte, de fazer o reconhecimento da área como Território Cultural Afro-Brasileiro.

3.1 – O INCRA e a transferência de competência


A transferência da competência relativa à delimitação das terras constituiu um grande
problema para o INCRA de forma geral, que, para atender à nova demanda, viu-se obrigado a
realizar uma adequação na estrutura de suas Superintendências Regionais. O caso específico
do INCRA/PB era (é) bastante crítico.
Em 2007, a Comissão Estadual das Comunidades Negras Quilombolas da Paraíba
dava notícia de que existiam 32 comunidades no Estado, dentre as quais, 22 já certificadas
pela Fundação Cultural Palmares (hoje, já são 29 as que possuem o certificado), perfazendo
um total de 1.868 famílias aguardando a titulação de seus territórios. O Serviço de
Regularização de Territórios Quilombolas da Superintendência Regional do INCRA na
Paraíba (SR-18/PB) tinha 10 processos formalizados, porém, dispondo de apenas uma
antropóloga, não tinha condições de vencer a demanda existente que era agravada pelo fato de
as comunidades negras não possuírem registros ou escrituras das áreas ocupadas por elas
durante décadas. Frente a esta realidade, o INCRA/PB precisaria de mais técnicos com
competência nas áreas de antropologia, etnografia e etnohistória.
Esse déficit levou o INCRA/PB a procurar, ainda em 2007, o Laboratório de Estudos
em Movimentos Étnicos (LEME) – sediado na Universidade Federal de Campina Grande - no
intuito de suprir a deficiência de profissionais com conhecimento e experiência em
levantamentos e estudos antropológicos para promover os trabalhos técnicos
transdisciplinares de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID).
Desta forma, foi firmado contrato entre os pesquisadores do LEME na Área de
Antropologia da Unidade Acadêmica de Sociologia e Antropologia da UFCG e o INCRA/PB,
contrato este que foi intermediado pela Fundação Parque Tecnológico da Paraíba (PaqTcPB).
Foi esse contrato que nos possibilitou a experiência de trabalharmos, na qualidade de
pesquisador-assistente, na produção do RTDI da Comunidade Quilombola de Matão,
localizada numa região limítrofe entre os municípios de Mogeiro e Gurinhém, no Estado da
Paraíba.
3.2 – A constitucionalidade do Decreto 4887/2003
O Decreto nº 4.887/03, que trata da regulamentação das terras de quilombos, está
sendo atacado no Congresso Nacional pela bancada ruralista, representada pelo partido dos
Democratas (DEM), numa Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), onde é defendida a
necessidade de uma lei disciplinando o artigo 68 do ADCT e também representada pelo
Deputado Federal do PMDB de Santa Catarina, Valdir Colatto, que entrou com o Projeto de
Decreto Legislativo propondo a sustação do Decreto 4.887/2003.
Os argumentos utilizados na petição inicial que reclama a inconstitucionalidade do
referido decreto repousam basicamente na refutação do critério de auto-atribuição como meio
legítimo e idôneo de reconhecimento étnico das comunidades de quilombos, vejamos in
verbis o que o advogado da parte proponente defende para fundamentar o pedido:
O Decreto nº 4887/2003 elege como critério essencial para a identificação dos
remanescentes titulares do direito a que se refere o art. 68 do ADCT a auto-atribuição. Em
outras palavras, o texto regulamentar resume a rara característica de remanescente das
comunidades quilombolas numa mera manifestação de vontade do interessado. (...) À toda
evidência, submeter a qualificação constitucional a uma declaração do próprio interessado
nas terras importa radical subversão da lógica constitucional. Segundo a letra da
Constituição, seria necessário e indispensável comprovar a remanescência – e não a
descendência – das comunidades dos quilombos para que fossem emitidos os títulos. (...)
Ainda que se admitisse a extensão do direito aos descendentes – e não remanescentes- não
seria razoável determiná-los mediante critérios de auto-sugestão, sob pena de reconhecer o
direito a mais pessoas do que aqueles efetivamente beneficiados pelo art. 68 do ADCT a
realizar, por vias oblíquas uma reforma agrária sui generis.(Petição Inicial, ADI – 3239).
Do exposto, não é difícil concluirmos pela pouca densidade do argumento. A
convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais
(1989), ratificada pelo Brasil em 19/06/2002 através do Decreto Legislativo 142/2002 e que
entrou em vigor em 25/07/2003, contém os dispositivos mais claros quanto à obrigação de
garantir-se a propriedade das terras que ocupam as comunidades quilombolas, dentre esses
dispositivos está o art. 1º, 2, que consagra a autodefinição, consciência da identidade, étnica
ou tribal, como um critério fundamental para determinar os grupos a que se aplica a
Convenção. A despeito de o mesmo grupo que atualmente reclama a inconstitucionalidade do
Decreto também posicionar-se pela a não aplicabilidade da Convenção 169 da OIT, o Poder
Judiciário, quando instado a decidir demanda envolvendo quilombolas e o território étnico,
entendeu ser a Convenção 169 da OIT:
(...) plenamente aplicável aos quilombolas, porque incluídos estes na disposição do art. 1.1.
“a” como “povos tribais”, no sentido de serem aqueles que, “em todos os países
independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores
da coletividade nacional, e que sejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios
costumes ou tradições ou legislação especial”. Ademais, previu que: a) os governos deverão
“adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos
interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de
propriedade e posse” ( art.14, 2); b) deverão ser “instituídos procedimentos adequados no
âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas
pelos povos interessados” ( art. 14, 3 c/art. 1.3, no tocante ao entendimento de “povos” da
Convenção).” TRF4, de lavra da Des. Rel. MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA, no Agravo de
instrumento nº 2008.04.00.010160-5/PR.
O processo que reclama a inconstitucionalidade do Decreto tramita no Supremo
Tribunal Federal é da relatoria do Ministro Cezar Peluso, e está na iminência de ser levado a
plenário. Tem sido expressivo o esforço da Associação Brasileira de Antropologia e demais
entidades civis no sentido de defender a manutenção da constitucionalidade do Decreto, tendo
havido inclusive audiências entre Ministros daquela Corte e representantes da ABA que têm
reconhecida autoridade no assunto.

4 – A Comunidade Quilombola de Matão


A comunidade rural de Matão se auto-reconhece como uma comunidade de negros,
isto é, como um quilombo. Tal reconhecimento é construído historicamente a partir das
relações sociais que separam os membros da comunidade de todos os outros sujeitos -
vizinhos diretos ou moradores de outros lugares – com quem entram em interação.
A identidade dos membros da comunidade em termos de sua unidade étnica rural
baseia-se em sua origem a partir de um ancestral negro livre que, há cerca de seis gerações, se
estabeleceu na localidade. Essa percepção foi pedra-de-toque para alavancarem um processo
de auto-reconhecimento e encaminhá-lo à Fundação Cultural Palmares, a qual emitiu a
certificação da comunidade quilombola em 17 de novembro de 2004. (GRÜNEWALD,
2009).
Em tal processo, além disso, a criação da Associação da Comunidade Negra do Matão
foi fundamental para a consolidação da noção política de comunidade, hoje introjetada por
muitos dos seus membros. No dizer de Weber, é a comunidade política que costuma
despertar, em primeiro lugar, por toda parte, mesmo quando apresenta estruturas muito
artificiais, a crença na comunhão étnica, sobrevivendo esta geralmente à decadência daquela,
não ser que diferenças drásticas de costumes e de hábito ou, particularmente, de idioma o
impeçam (1991)

4.1 - O primeiro contato com a Comunidade Quilombola de Matão:


Definir? Convencer?
Nosso primeiro contato direto com a comunidade se deu em março de 2008, na
reunião de apresentação da equipe da UFCG (o antropólogo responsável, Dr. Rodrigo
Grünewald, e três estudantes-pesquisadores, entre eles eu) que trabalharia junto à comunidade
nos estudos concernentes à produção do Laudo Antropológico. Nesse primeiro contato, que
deveria corresponder a um momento de apresentações, já nos deparamos com
posicionamentos dos moradores que nos deixou bastante curiosos, mais especificamente a fala
de uma moradora. Eu, na minha ingenuidade de marinheiro de primeira viagem em ocasiões
dessa natureza, não cogitava a possibilidade de haver entre os moradores resistência quanto à
realização do processo, afinal de contas ali estávamos por que a comunidade acionara o
INCRA pra que procedesse a titulação e demarcação do território em conformidade com a
legislação que lhe conferia esse direito.
Pois bem, a fala da dita moradora foi no sentido de questionar a legitimidade do
processo, bem como sua viabilidade: “Pra mim era melhor a gente tudo se juntar e fazer um
empréstimo no Banco. É muito mais fácil e não tem que mexer em terra de ninguém”.
Nesta fala, já estava expressa uma preocupação que mais adiante fomos perceber na
fala de outros moradores, o receio de o processo interferir na propriedade dos fazendeiros
vizinhos. A dita moradora também se mostrou descrente quanto à eficácia e o rigor dos
estudos que seriam realizados; quando a antropóloga do INCRA informou aos presentes de
que uma etapa dos estudos corresponderia a um resgate histórico da comunidade e que a
história oral seria de fundamental importância em tal etapa, a citada moradora posicionou-se
no sentido de desacreditar que a memória da comunidade pudesse de algum modo ajudar no
clareamento de algumas questões: “Essas história é tudo muito antiga, ninguém se lembra
mais de nada não”. Houve, no entanto, discordância de alguns moradores da comunidade
para com este posicionamento, outra moradora retrucou o que fora anteriormente dito: “Se
você não se lembra das história que seu pai e seus avô lhe contava, eu me lembro”.
Nesse primeiro contato, a única manifestação “contrária” ao processo foi a da referida
moradora, com o decorrer do tempo fomos percebendo outros posicionamentos semelhantes.
De início, cogitávamos a possibilidade de tais posicionamentos serem oriundos de mera
desinformação, no entanto, passado o tempo, e feito junto aos moradores uma tentativa de
conscientização no sentido de deixar claros os propósitos e o respaldo legal do trabalho que
fazíamos, vimos que os posicionamentos persistiam.

4.2 - A voz dos “de fora”


Não tardou muito para que o Antropólogo responsável se pusesse convicto quanto ao
caráter de remanescentes de quilombos daquela comunidade, além do auto-reconhecimento,
da memória, que apesar de pouco precisa foi um tanto elucidativa, tivemos a oportunidade de
no início dos trabalhos travarmos contato direto com pessoas de fora da comunidade, e delas
colhermos depoimentos e consultarmos suas opiniões a respeito do processo.
Dirigimo-nos tanto a Mogeiro quanto a Gurinhém (municípios em cuja região
limítrofe se situa a comunidade), e em ambas as cidades encontramos opiniões pacificadas em
relação a serem os moradores de Matão autênticos remanescentes de quilombos. E, quando
informadas sobre o processo, os moradores das citadas cidades mostravam-se plenamente de
acordo, e destacavam a necessidade de sua implementação. Para eles, tendo em vista que as
condições sociais dos moradores daquela localidade são pouco favoráveis à sua reprodução
social, tal iniciativa seria um contributo de grande relevância ao desenvolvimento daquela
comunidade. As pessoas com quem tivemos a oportunidade de conversar mostravam ter
conhecimento da luta quilombola de Matão e a reputavam “justíssima”.

4.3 - Multiplicidade de vozes: aspectos relevantes


Percebemos que estar ou não de acordo com a causa da demarcação dependia de
algumas variáveis, de acordo com as quais podíamos categorizar as pessoas que se mostraram
engajadas na causa, as que se mostraram apáticas e as que se mostraram contra o andamento
dos trabalhos.
O sexo é uma dessas variáveis. Quantitativamente os homens eram maioria nas
reuniões, nas discussões acerca do projeto, etc., no entanto, no que diz respeito ao maior
envolvimento, eram as mulheres, que apesar de estarem em menor número, se sobressaiam.
Prova disso foi o ocorrido no dia marcado para uma visita às terras dos proprietários vizinhos
cujos imóveis foram notificados. Tinha se nomeado uma comissão para acompanhar a equipe
nessa visita em reunião anterior, cuja quase totalidade era formada por homens. No dia, no
entanto, para o qual foi marcada a visita viu-se o antropólogo sozinho com Josinaldo, o
presidente da associação de moradores, e um rapazote de 15 anos, visto que nenhuma das
pessoas que outrora se comprometeram em acompanhá-lo se fez presente. Foi aí que,
inesperadamente, uma senhora de meia idade conhecida por Dona Zefinha deixou seu
afazeres domésticos e se prontificou a acompanhar a equipe na visita.
Outro ponto determinante do comportamento dos moradores quanto ao processo é sua
ocupação e, conseguintemente, se passam ou não a semana na comunidade. Havia um grande
número de moradores de Matão que, em decorrência de trabalharem fora, só vinham à
comunidade semanalmente, ou quinzenalmente, estes não demonstraram interesse na causa,
também não tomaram nenhum tipo de posicionamento radical, eram simplesmente
indiferentes, participam minimamente das reuniões, não faziam uso da palavra, e estavam
sempre de acordo com o que os demais decidiam. Diferente deste segmento, eram os
moradores que passavam a semana na comunidade. Estes, principalmente os que vivem
precipuamente da agricultura, manifestavam sempre sua opinião, e, no mais das vezes, se
prontificavam em contribuir com informações, ou com algum outro tipo de auxílio de que
precisasse os pesquisadores.
O núcleo familiar a que pertence, e, conseqüentemente, a localização geográfica
dentro da comunidade da casa em que reside também é dado indicativo do posicionamento do
morador. Os Maximino, por exemplo, que residem na parte superior-direita da comunidade,
dispensaram certa aceitabilidade para com o processo, e deram sempre sua contribuição para a
viabilização do estudo
Por outro lado, as pessoas que moram nas imediações da casa do Sr. chamado João
Adegisto, sempre se mostraram muito hostis a tudo que dizia respeito ao processo, de modo
que o contato com ele e com seus filhos fora um tanto inviável. Nunca nos foi dito
expressamente por ele, ou por nenhum dos que a ele eram ligados, o motivo porque viam o
processo com maus olhos. O fato é que sempre quando nos propúnhamos a conversar com
eles, eram sempre pouco receptivos. Quando de uma visita que fizemos a uma das casas
daquela região, com o fim de fazermos o levantamento demográfico da comunidade, ao
perguntarmos o nome das pessoas que residiam naquela casa, a senhora que nos recebeu
ergueu a voz e declarou que “se for pra colocar o nome da gente pra entrar em terra de
alguém, a gente não assina não”. Bem sabíamos que nos depararíamos com semelhante
reação, visto que na comunidade havia certo frenesi com relação à notificação do proprietário
vizinho, Júlio Paulo Neto, e há pouco tínhamos sido informados de que o dono da casa era
funcionário da fazenda do tal proprietário.
Essa tendência à homogeneização de posicionamentos em um dado núcleo persistia
também nas localidades que vai do início da comunidade até o centro, sendo que nesse
espaço, esses núcleos são muito mais fragmentados.

4.4 – A imagem de Júlio Paulo Neto e o fortalecimento do dissenso em


Matão
Desde o nosso primeiro contato com a comunidade, quando se cogitou a possibilidade
de o território de Matão ser expandido, constatamos o quão desconfortável ficaram as pessoas
ao tratarem desse assunto.
Com o aprofundamento dos estudos percebemos que três seriam os proprietários
vizinhos que deveriam ter suas terras notificadas para que pudéssemos junto com a
comunidade analisar a viabilidade e a legitimidade de se expandir o território através da
desapropriação das terras vizinhas, entre eles estava Júlio Paulo Neto. Já no primeiro encontro
foi explicado aos moradores pela antropóloga do INCRA que se isso viesse a acontecer teria
respaldo legal, e que os moradores não estariam fazendo nada que contrariasse a legislação. A
despeito de termos trabalhado sempre no sentido de deixar claro o caráter legal do processo,
os assuntos que envolviam a notificação dos proprietários vizinhos sempre foi encarado como
um tabu na comunidade.
O assunto de um modo geral incomodava os moradores, mas a notificação das terras
de Júlio Paulo Neto causava um incômodo particular. Muitos moradores que se colocaram
sempre favoráveis ao processo ao falarmos da notificação dos proprietários, em especial de
Júlio Paulo Neto, titubeavam.
Era claro e notório que as terras que hoje pertencem ao dito proprietário deveriam
estar na órbita do território pretendido, podíamos observar isso pelas memórias de uso que os
moradores tinham, bem como pela localização e estado das terras. Chegávamos a presenciar
posicionamentos flagrantemente paradoxais por parte de alguns moradores que ao nos
responder questões acerca da memória de trabalho dele e de sua família na agricultura
apontavam sempre as terras que hoje pertencem a Júlio Paulo Neto como a localidade onde
mais trabalharam, e, ao serem indagados sobre que proprietários deveriam ser notificados, se
posicionavam sempre contrários à notificação deste proprietário.
Quando da nossa chegada, logo tomamos conhecimento a respeito do currículo do
citado proprietário: Desembargador, ex-presidente do Tribunal de Justiça da Paraíba e atual
Corregedor de Justiça do Estado. Encontramos no currículo do “Dr. Júlio” uma explicação
para o comportamento dos moradores, que, chegado determinado momento, pareceu-nos mais
uma fobia.
A cultura judicial dominante foi em parte a responsável por esse modo de pensar e agir
das pessoas de Matão, visto que, dado o seu caráter eminentemente hierárquico e técnico-
burocrático, impede que os agentes do poder sejam vistos como cidadãos com iguais direitos
e deveres (SANTOS, 2007)
A celeuma criada em volta da notificação das terras de Júlio Paulo Neto, e,
posteriormente, sobre a extensão do território pretendido nas terras daquele proprietário foi
responsável em grande medida pela procrastinação das atividades do processo.

4.5 - Queremos? O que queremos?


O momento em que ficou mais patente o quanto ainda havia resistência na
comunidade em relação ao processo de demarcação e titulação do território foi quando a
reunião que deveria ser realizada em 14 de agosto na sede da associação para definir a questão
territorial foi desmontada depois de uma manifestação incisiva, pra não dizer exaltada, de
Dona Luzia, aquela que já no início mostrara-se contrária aos trabalhos.
Para esse dia, estava marcada também a reunião da associação. O que se pretendia na
conversa que teríamos com os moradores era que eles indicassem até onde iria o território que
por eles seria reclamado e justificassem a escolha. Visto que estávamos em período eleitoral,
estava marcada também para esse dia uma reunião com os moradores de Matão de um
candidato a prefeito da cidade que, diga-se de passagem, já estava presente na associação
quando do episódio que a seguir lhes narrarei.
Encerrada a reunião da associação, Dr. Rodrigo, que há pouco chegara à comunidade,
deu início à conversa que se pretendia ter com os moradores, informando-lhes da importância
de se definir a questão territorial com rapidez, etc. Quando perguntou quais pessoas não
estavam de acordo com o processo, alguns poucos levantaram a mão3, dentre eles, Dona
Luzia, que num salto se pôs no meio do salão e numa atitude de cólera colocou-se a balbuciar
palavras de desaprovação ao processo: “ninguém quer isso aqui não, é teimosia dele

3
É bom que se frise que o número de pessoas que se mostraram contrárias ao processo na dita reunião é pouco
representativo da realidade da comunidade, visto que a maioria das pessoas que se dizem contrárias, ou que se
mostram indiferentes, não freqüentaram as reuniões em que se trataria do assunto.
[dirigindo-se a seu filho Josinaldo], ele só tá nisso ainda por que não escuta o pai e a mãe
dele, se ele escutasse já tinha caído fora disso”.
Frente à inesperada reação de Dona Luzia, os demais moradores esvaziaram o salão da
sede da associação, uma única pessoa tentou rebatê-la, mas de súbito Dona Luzia tomou a
palavra e a impediu de prosseguir, dizendo: “Quem sabe aqui sou eu, por que ele é meu filho,
e eu sei o que estou dizendo, eu falo por ele aqui e em todo canto que eu for”. Estava visível
na fala de Dona Luzia o que ela temia.

4.6 – O consenso entre os que já consentiam


Em decorrência de a reunião onde se deveria definir a questão territorial ter sido
inviabilizada pelo evento que anteriormente descrevemos, foi remarca para o dia 16 de
outubro uma reunião onde se definiria essas questões e logo em seguida já seria procedida a
demarcação dos pontos pelos funcionários do INCRA.
A palavra inicial de Josinaldo, o presidente da Associação, foi no sentido de destacar
para os presentes o caráter decisivo que tinha aquela reunião. O antropólogo, por sua vez,
falou da necessidade e da importância da justificação da escolha do território.
Como das outras vezes, o grande entrave era a indefinição quanto às terras de Júlio
Paulo Neto. Ciente disso, Josinaldo, já em sua fala inicial, fez uma sugestão em relação a que
pedaço de terra pertencente ao dito proprietário deveria ser reivindicado, o fez destacando o
fato de que as terras indicadas são justificadas tanto por questões históricas (de trabalho nas
terras) como por necessidade para reprodução social da comunidade. Biu do Barro, um
senhor de aproximadamente 50 anos, agricultor, que sempre participou ativamente dos
eventos concernentes ao processo, reiterou o que foi dito por Josinaldo, reforçando o fato de
que as terras indicadas são conhecidas por todos do Matão, porque todas essas terras foram
trabalhadas por eles.
Novamente, se pôs a discussão em relação às terras de Júlio Paulo Neto. A reunião
inteira foi tomada por esta discussão, visto que o território pretendido que dizia respeito a
outros proprietários fora definido sem muita objeção.
Em meio a muitas discussões, os moradores chegaram enfim a um consenso. Naquele
momento se decidiu que território seria por eles reivindicado. Aqui há que observarmos que
as decisões que ali foram tomadas e os consensos a que chegaram os moradores, foram
alcançados em meio a uma população que se mostrava de acordo com o processo e não tinha
objeções quanto à realização deste. As pessoas que se mostraram indiferentes ou contrárias ao
processo não se faziam presentes, por vontade própria, ou mesmo por algum tipo de
orientação, como, ao que parece ocorreu com Dona Luzia.
Ao se falar na ausência de alguns moradores naquela ocasião, Josinaldo explicou: “As
pessoas que não querem se juntar a nós é por dois motivos: um é o medo, o outro é que eles
não acreditam na informação que a gente tem”.

5 - Considerações finais
O processo de demarcação e titulação do território quilombola de Matão, em sua fase
de pesquisa de campo, foi antes de tudo controverso. Não que a multiplicidade de vozes e,
sobretudo, de posicionamentos com a qual ali nos deparamos tenha, de per si, legado este
caráter ao processo. O fato é que o processo fora provocado por um pedido da comunidade,
no entanto, ao que parece, quando do pedido essa multiplicidade de vozes não estava em
voga, por falta de espaço, ou por falta de um contexto específico no qual ela tivesse condições
de aflorar. Desse modo, passaram a ser discutidas questões durante a execução do processo
que deveriam ter sido argüidas previamente, entre eles.
Os moradores ainda não tinham bem formulado em mente um conceito do direito de
que eram titulares; o processo, no entanto, não os ajudou a formular tal conceito. A pressa
técnico-burocrática, o frenesi institucional, fez com que eles engolissem seus temores,
indigestos temores!
Tratava-se ali de uma flagrante incompatibilidade de tempo. O tempo institucional
era, de longe, diferente do tempo das pessoas daquele lugar. Se se queria compatibilizar os
tempos, talvez houvesse que se optar por outra metodologia, que fosse mais adequada ao
contexto com que se lidava no momento, uma metodologia que não sufocasse as vozes
dissonantes.
O tempo do qual a equipe usufruiu para dar azo ao processo não lhes permitiu travar
um contato inteiramente dialógico com a comunidade. A multiplicidade de vozes que se pôs
aos nossos olhos na comunidade, talvez fosse uma multiplicidade capenga, despropositada,
mas que deveria ser entendida. Não sufocada, não ignorada.
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