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Reconhecimento e Titulação.
O Caso da Comunidade Quilombola de Matão – PB
1 - Introdução
A abordagem da questão do direito à terra dos remanescentes de quilombos no Brasil
deve estar, por óbvio, em sintonia com a complexidade da situação fundiária destas
comunidades, bem como deve ter como panorama suas características sócio-culturais e
econômicas.
A Constituição brasileira de 1988 trouxe consigo acalorados debates acerca da
conceitualização do termo quilombo, isto por que, pela primeira vez na história jurídico-
política do país, consagrou, embora de maneira bastante reticente, o direito à terra das
comunidades remanescentes de quilombos. Diz textualmente o artigo 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Assim sendo, os termos quilombos ou remanescente de quilombos mereceram, após
1988, uma ressemantização, visto que era de uso quase exclusivo de historiadores, e se
remetia apenas ao período em que no Brasil a escravidão legal era instituída. Tais termos, que
são utilizados para conferir direitos territoriais, se referem a grupos sociais que, em função de
razões históricas, se organizaram em comunidades onde o grau de parentesco e
relacionamento, as práticas produtivas, religiosas e culturais e o preconceito sofrido
confluíram para criar ou mesmo reforçar um sentimento de identidade étnica que faz com que
se sintam diferentes do restante da sociedade envolvente, sendo por esta assim também
reconhecidos, através de processos de exclusão e inclusão que possibilitam definir os limites
entre os que são considerados de dentro ou de fora. (BARTH, 2000)
Em relação especificamente ao termo remanescente, expressão veiculada pelo
dispositivo constitucional supracitado, podemos dizer que ele introduz um diferencial
importante com relação ao uso do termo quilombo, presente em outros locais da Carta Magna
(arts. 215 e 216). Nele, o que está em jogo são “comunidades”, isto é, organizações sociais,
grupos de pessoas que “estejam ocupando suas terras”, como diz o art. 68 (ARRUTI, 2006).
Deste modo, após 1988, e principalmente depois da expedição do decreto 4887/2003,
colocou-se na agenda política do Brasil a questão da identificação, do reconhecimento e da
titulação dos referidos territórios. Apontaremos, neste trabalho, para o caráter fundamental
deste direito que é conferido às comunidades remanescentes de quilombos e tentaremos
mostrar como ele vem sendo efetivado no Brasil.
Ademais, através da narração e da análise do processo de demarcação e titulação da
Comunidade Quilombola de Matão-PB, pretendemos fazer uma imersão nas diversas
concepções externadas pelos moradores, bem como outros atores envolvidos no processo, a
respeito do trabalho ali desenvolvido, além de refletir sobre o entendimento que se tem acerca
do direito que o trabalho se propunha a efetivar, visto que percebemos durante nossa estada na
comunidade que alguns entraves que se puseram ao bom andamento do trabalho foram
oriundos de alguns posicionamentos específicos no que se refere à legitimidade e à
oportunidade dos estudos que deles resultaria o Laudo Antropológico.
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A utilização da expressão “direito à terra” inclui o conceito de território, o que abrange a totalidade do habitat
das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.
entre populações pobres que dependem do acesso a este recurso para sua sobrevivência e
bem-estar.
A importância universal do direito à terra é clara e inequívoca, assim como também o
é a relação direta que existe entre a questão da terra, o desenvolvimento sustentável, e
possibilidade de gozo de uma ampla gama de direitos.
A dissociação entre a propriedade, cartorialmente comprovada, e a posse, enquanto
animus domini facti, colocou a população afro-descendente situada em uma conjuntura de
interdependência necessária em relação àqueles que dominavam os recursos jurídicos,
principalmente de domínio fundiário. Deste modo, cria-se uma distância, que é legalmente
construída, entre os que possuem “títulos” e os que “ocupam”, configurando-se uma realidade
social baseada na hegemonia dos instrumentos cartoriais que leva a uma espécie de “violência
dos papéis”.
É sob esse panorama que os Laudos Antropológicos têm assumido uma importância
cada vez mais considerável na prática profissional da disciplina no Brasil. O Laudo, longe de
estar relegado a possuir um significado exclusivamente burocrático, coloca-se como
instrumento de defesa das comunidades, de modo a possibilitar-lhes reação frente ao que
anteriormente chamamos de “violência dos papéis”. A divulgação dos laudos vem sendo
particularmente veiculada por membros e lideranças das comunidades, num esforço por
rearranjar um campo de forças no qual os estudos não só se reduzam a instrumento de prova
jurídica, mas representem a possibilidade de garantir uma “fala histórica”, calcada em
sensibilidades jurídicas que adentram a institucionalidade oficial, com a potencialidade que
haja um resgate no “escrever suas histórias”, agora não sem as suas “mãos, bocas e olhos”
(CHAGAS, 2005).
Deste modo, há que enfatizarmos a importância do antropólogo e de sua atuação
profissional no processo de concretização do direito fundamental ao território dessas minorias
étnicas. A produção do Laudo é caracterizada por um esforço crítico e independente
direcionado à captação elementos que o possibilitem atestar a etnicidade de dado grupo. E
através da disponibilização dos conhecimentos sobre esses grupos e sobre a sociedade que os
oprime, os antropólogos têm contribuído para a redução de preconceitos e estereótipos de
ordem racial e étnica, de gênero, de classe e de cultura (OLIVEIRA, 2005).
3 - Proteção do direito ao território das comunidades de quilombos em âmbito
nacional
Como já dito, a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história do Brasil,
reconheceu o direito à terra aos remanescentes das comunidades de quilombo e o fez
observando a relação constitutiva de identidade entre esses povos e o território que
tradicionalmente ocupam. É esta relação que fornece os matizes e configurações dos
elementos caracterizadores destas minorias étnicas.
Com uma simples leitura do artigo 68 do ADCT pode-se concluir que a norma está
apta a produzir todos os seus efeitos, independentemente de lei infraconstitucional. Trata-se
de norma de eficácia plena, uma vez que o constituinte conferiu a este dispositivo
normatividade suficiente para sua incidência imediata. Além disso, ao consagrar a proteção a
direitos culturais e sociais das comunidades remanescentes de quilombos, o artigo 68 reveste-
se de aplicabilidade imediata por tratar de direito fundamental, conforme determina
expressamente o artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal2 (SILVA, 2008).
A construção desse novo sujeito de direitos se deu mediante sensível discussão interna
na Assembléia Nacional Constituinte. A categoria tida como representativa das demandas por
regularização fundiária do povo negro foi expressa, inicialmente, por “comunidades negras
rurais”. A série de emendas apresentadas pelos Deputados Constituintes denotou particular
preocupação com o fato de que a titulação das terras não deveria formar guetos e com o dever
do Estado brasileiro em saldar, através da eficácia do dito art. 68, uma dívida histórica.
Não obstante a desnecessidade de norma regulamentadora do Art. 68 do ADCT, foi
editado o Decreto 3912/2001 que foi revogado pelo Decreto 4887/2003. Este último atribui ao
Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) a competência relativa aos
procedimentos para a titulação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos.
Até 2003, a competência relativa à delimitação das terras dos remanescentes das
comunidades dos quilombos era do Ministério da Cultura, através da Fundação Cultural
Palmares (FCP). Com o Decreto 4887/2003 que fez a transferência desta competência do
Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário, sendo, daí por diante,
de responsabilidade do INCRA a expedição dos respectivos títulos de terras, à Fundação
Cultural Palmares ficou a atribuição de registrar as declarações de autodefinição de
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Segundo José Afonso da Silva, normas dessa natureza estão aptas a desencadear imediata, plena e
integralmente, os efeitos que justificaram sua edição. Nem mesmo por legislação infraconstitucional será
possível restringir os comandos veiculados por essas normas, pois isso significaria uma afronta ao postulado da
“supremacia da Constituição”. Tais normas não necessitam e nem podem sofrer intermediação pela legislação
ordinária, se isso limitar ou restringir o direito ali veiculado.
remanescência de comunidades de quilombo, através da instituição de um Cadastro Geral, e,
por conseguinte, de fazer o reconhecimento da área como Território Cultural Afro-Brasileiro.
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É bom que se frise que o número de pessoas que se mostraram contrárias ao processo na dita reunião é pouco
representativo da realidade da comunidade, visto que a maioria das pessoas que se dizem contrárias, ou que se
mostram indiferentes, não freqüentaram as reuniões em que se trataria do assunto.
[dirigindo-se a seu filho Josinaldo], ele só tá nisso ainda por que não escuta o pai e a mãe
dele, se ele escutasse já tinha caído fora disso”.
Frente à inesperada reação de Dona Luzia, os demais moradores esvaziaram o salão da
sede da associação, uma única pessoa tentou rebatê-la, mas de súbito Dona Luzia tomou a
palavra e a impediu de prosseguir, dizendo: “Quem sabe aqui sou eu, por que ele é meu filho,
e eu sei o que estou dizendo, eu falo por ele aqui e em todo canto que eu for”. Estava visível
na fala de Dona Luzia o que ela temia.
5 - Considerações finais
O processo de demarcação e titulação do território quilombola de Matão, em sua fase
de pesquisa de campo, foi antes de tudo controverso. Não que a multiplicidade de vozes e,
sobretudo, de posicionamentos com a qual ali nos deparamos tenha, de per si, legado este
caráter ao processo. O fato é que o processo fora provocado por um pedido da comunidade,
no entanto, ao que parece, quando do pedido essa multiplicidade de vozes não estava em
voga, por falta de espaço, ou por falta de um contexto específico no qual ela tivesse condições
de aflorar. Desse modo, passaram a ser discutidas questões durante a execução do processo
que deveriam ter sido argüidas previamente, entre eles.
Os moradores ainda não tinham bem formulado em mente um conceito do direito de
que eram titulares; o processo, no entanto, não os ajudou a formular tal conceito. A pressa
técnico-burocrática, o frenesi institucional, fez com que eles engolissem seus temores,
indigestos temores!
Tratava-se ali de uma flagrante incompatibilidade de tempo. O tempo institucional
era, de longe, diferente do tempo das pessoas daquele lugar. Se se queria compatibilizar os
tempos, talvez houvesse que se optar por outra metodologia, que fosse mais adequada ao
contexto com que se lidava no momento, uma metodologia que não sufocasse as vozes
dissonantes.
O tempo do qual a equipe usufruiu para dar azo ao processo não lhes permitiu travar
um contato inteiramente dialógico com a comunidade. A multiplicidade de vozes que se pôs
aos nossos olhos na comunidade, talvez fosse uma multiplicidade capenga, despropositada,
mas que deveria ser entendida. Não sufocada, não ignorada.
Referências Bibliográficas
BARTH, Fredrik. “Os grupos étnicos e suas fronteiras”. In: O guru, o iniciador e outras
variações antropológicas. RJ: Contra Capa Livraria, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo:
Cortez, 2007.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 30ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2008.
WEBER, Max. “Relações Comunitárias Étnicas”. In: Economia e Sociedade Vol. 1. Brasília,
UnB, 1991.