Você está na página 1de 4

A Linguagem

Guarda-se a concepção de que, à diferença de planta e do animal, o homem é o


ser vivo dotado da linguagem. Essa definição não diz apenas que, dentre muitas outras
faculdades, o homem também possui a de falar. Nela se diz que a linguagem é o que
faculta o homem a ser o ser vivo ele é enquanto homem. Enquanto aquele que fala, o
homem é: homem. Essas palavras são de Wilhelm Vom Humboldt. Mas ainda resta
pensar o que se chama assim: o homem.

A linguagem encontra-se por toda parte, o pensamento busca elaborar uma


representação da linguagem. A linguagem ela mesma é a linguagem. O entendimento
escolado na lógica, habituado a empreender cálculos sobre tudo e isso quase sempre
com arrogância e exaltação, considera essa frase uma tautologia vazia, uma frase que
nada diz. Dizer o mesmo duas vezes: linguagem é linguagem, para onde isso haveria de
nos levar? Não queremos, porém, ir a lugar nenhum. Queremos ao menos uma vez
chegar no lugar em que já estamos.

Pensar desde a linguagem significa: alcançar de tal modo a fala da linguagem


que essa fala aconteça como o que concede e garante uma morada para a essência, para
o modo de ser dos mortais.

O que significa falar? Segundo a opinião corrente: a fala é uma atividade dos
órgãos que servem para a emissão de sons e para a escuta. Fala é expressão e
comunicação sonora de movimentos da alma humana. Esses movimentos são
acompanhados por pensamentos. De acordo com essa caracterização da linguagem
sustentam-se três posições: Fala é expressão, fala é uma atividade humana e que a
expressão do homem é uma representação e apresentação do real e irreal. Isso explica
por que há mais de dois milênios e meio a mesma representação da linguagem sustenta
a lógica e gramática, a filosofia da linguagem e a lingüística, não obstante o
conhecimento sobre a linguagem ter continuamente aumentado e se modificado. Elas
remetem, contudo a uma antiga tradição, deixando inteiramente inobservado o cunho
mais antigo da essência da linguagem.

Se devemos buscar a fala da linguagem no que se diz, faríamos bem em


encontrar um dito que se diz genuinamente e não um dito qualquer, escolhido de
qualquer modo. Dizer genuinamente é dizer de tal maneira que a plenitude do dizer,
própria ao dito, é por sua vez inaugural. O que se diz genuinamente é o poema.

Poder-se-ia descrever ainda mais detalhadamente o conteúdo do poema e


delimitar com maior precisão a sua forma. Fazendo isso permaneceríamos, contudo
presos a uma representação da linguagem há séculos predominante. Mas por que
romper? Em sua essência, a linguagem não é expressão e nem atividade do homem. A
linguagem fala. O que buscamos no poema é o falar da linguagem. O que procuramos se
encontra, portanto, na poética do que se diz.

A linguagem do poema é uma múltipla enunciação. A linguagem prova


indiscutivelmente que é expressão. O que se acaba de provar nega inteiramente a frase:
a linguagem fala, uma vez que essa frase supõe que em sua essência a não é expressão.

A linguagem fala. Isso significa primeiro e antes de mais nada: A linguagem


fala. A linguagem? Não o homem? O que a frase nos acena agora não será ainda mais
provocador? Queremos negar o homem enquanto ser dotado de fala? De modo algum.
Não negamos isso como também não negamos a possibilidade de subordinar os
fenômenos da linguagem à rubrica “expressão”. Perguntamos então: em que medida fala
o homem? Perguntamos: o que é falar? Falar é nomear, e nomear é evocar para a
palavra. Assim a evocação que nomeia as coisas invoca e provoca também a saga do
dizer que nomeia o mundo. O dizer confia o mundo para as coisas, obrigando ao mesmo
tempo as coisas no brilho do mundo. O mundo concede às coisas sua essência. As
coisas são gesto de mundo. O mundo concede coisas.

A intimidade de mundo e coisa vigora no corte do entre, vigora na diferença. A


palavra diferença foge aqui de seu uso habitual e comum. O termo “a di-ferença” não
diz uma categoria genérica para várias espécies de distinção. A diferença aqui nomeada
é só uma. É única. A diferença da suporte ao fazer-se mundo do mundo, ao fazer-se
coisa das coisas. Dando assim suporte, a diferença reporta um ao outro.

A palavra “di-ferença” não significa, portanto, uma distinção entre dois objetos
estabelecida por nossos hábitos representacionais. A diferença tampouco é apenas uma
relação entre mundo e coisa, capaz de ser constatada por uma representação adequada.
A diferença não é distinção nem relação. A diferença é no máximo dimensão para
mundo e coisa.
A evocação e convocação da diferença é quietude no seu duplo sentido. O
chamar recolhedor, ou seja, o chamado, tal como a diferença evoca o mundo e coisa, é a
consonância do quieto. A linguagem fala quando o chamado da diferença evoca e
convoca mundo e coisa para a simplicidade da sua intimidade. A linguagem fala como
consonância do quieto.

A consonância do quieto não é nada humano. Ao contrario. Em sua essência, o


homem é como linguagem. A expressão “como linguagem“ diz aqui: o que se apropria
pela fala da linguagem. O assim se apropria a essência do homem, é trazido pela
linguagem ao seu próprio de maneira a permanecer uma propriedade da essência da
linguagem, ou seja, da consonância do quieto. Essa apropriação se apropria à medida
que a essência da linguagem, a consonância do quieto, faz uso da fala dos mortais, no
intuito de torná-la sonora como consonância do quieto para a escuta dos mortais.

Para os mortais, falar é evocar pelo nome, é chamar, a partir da simplicidade da


diferença, coisa e mundo para vir. Na fala dos mortais, o dito poema é puro chamado. O
que se opõe ao puramente dito, ao poema, não é a prosa.

Quando a atenção se volta exclusivamente para a fala humana, quando se toma a


fala humana como mera emissão sonora da interioridade humana, quando se considera
essa representação da fala como expressão e atividade do homem. Como fala dos
mortais, a fala humana nunca repousa, porém, em si mesma. O falar dos mortais repousa
na relação com o falar da linguagem.

Com o tempo, torna-se inevitável pensar e refletir sobre como a fala dos mortais
e seu emitir de sons acontecem propriamente no falar da linguagem entendido como a
consonância do quieto da diferença. Todo emitir sons, tanto na língua falada como na
escrita, rompe a quietude. Como se rompe a consonância do quieto? Como a quietude
consegue, ao se romper, soar em palavra? Como a quietude rompida configura a o
discurso dos mortais, no discurso que soa em versos e frases?

Admitindo que um dia o pensamento consiga responder a essas perguntas, ele


deve de todo modo cuidar para não assumir a emissão sonora e a expressão como os
elementos paradigmáticos da fala humana.

Os mortais falam à medida que escutam. Os mortais atentam mesmo sem saber à
evocação e ao chamado da quietude da diferença. A escuta extrai do chamado da
diferença o que é levado a soar em palavra. A fala que escuta e extrai é uma
correspondência. Extraindo mediante uma escuta, a correspondência é ao mesmo tempo
uma resposta e um reconhecimento. Correspondendo duplamente à linguagem, ou seja,
extraindo e respondendo, é que os mortais falam. A palavra dos mortais fala à medida
que corresponde, no múltiplo sentido do termo.

A linguagem fala. Sua fala é diferença, a diferença que desapropria mundo e


coisa para a simplicidade de sua intimidade. O homem fala à medida que corresponde à
linguagem. Corresponder é escutar. Ele escuta à medida que pertence ao chamado da
quietude.

Bibliografia:

A caminho da linguagem: A Linguagem - Martin Heidegger

Você também pode gostar