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A
GARGALHADA
DE NIETZSCHE
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porém sabemos que há outros meios de deformar um pensamento, nem que
seja operando uma triagem arbitrária nos papéis de um autor. Conceitos
nietzscheanos como os de “força” ou de “senhor” são bastante complexos
para serem traídos por semelhantes recortes.
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por excelência é Freud, mas é também Nietzsche, de uma outra maneira. A
idéia de Nietzsche é que as coisas e as ações já são interpretações. Então,
interpretar é interpretar interpretações, e com isso já é modificar as coisas,
“mudar a vida”. Para Nietzsche é evidente que a sociedade não pode ser
uma última instância. A última instância é a criação, a arte: ou, antes, a arte
representa a ausência e a impossibilidade de uma última instância. Desde o
início de sua obra, Nietzsche estabelece que há fins “um pouco mais
elevados” que os do Estado, ou da sociedade. Toda sua obra está instalada
numa dimensão que não é a do histórico, mesmo compreendido
dialeticamente, nem a do eterno. Esta nova dimensão, que simultaneamente
está no tempo e age contra o tempo, ele a designa o intempestivo. É aí que a
vida como interpretação toma sua fonte. A razão do “retorno a Nietzsche”
talvez seja a redescoberta desse intempestivo, dessa dimensão a um só
tempo distinta da filosofia clássica em seu empreendimento “eternitário”, e
da filosofia dialética em sua compreensão da história: um elemento
singular de perturbação.
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estetismo, uma certa renúncia à política, um “individualismo” tão
despolitizado quanto despersonalizado? Talvez não. A política também é
questão de interpretação. O intempestivo, do qual falamos há pouco, jamais
se reduz ao elemento político-histórico. Porém ocorre às vezes, em
momentos grandiosos, que eles coincidam. Quando pessoas morrem de
fome na Índia, esse desastre é histórico-político. Mas quando um povo luta
por sua libertação, há sempre coincidência entre atos poéticos e
acontecimentos históricos ou ações políticas, a encarnação gloriosa de algo
sublime ou intempestivo. As grandes coincidências são, por exemplo, a
gargalhada de Nasser nacionalizando o canal de Suez, ou sobretudo os
gestos inspirados de Castro, e essa outra gargalhada, a de Giap entrevistado
pela televisão. Ali, há algo que lembra as injunções de Rimbaud e de
Nietzsche e que vem duplicar Marx – uma alegria artista que coincide com
a luta histórica. Há criadores em política, movimentos criadores, que por
um momento se interpõem na história. Hitler, ao contrário, carecia
singularmente do elemento nietzscheano. Hitler não é Zaratustra; e Trujillo
tampouco. Eles representam antes o que Nietzsche chama de “o macaco de
Zaratustra”. Não basta tomar o poder para ser, como diz Nietzsche, um
“senhor”. Com freqüência são justamente os “escravos” que tomam o
poder, e que o mantêm, e que permanecem escravos ao preserva-lo.
Segundo Nietzsche, os senhores são os Intempestivos, aqueles que
criam, e que destroem para criar, não para conservar. Nietzsche diz que sob
os grandes acontecimentos ruidosos, há pequenos acontecimentos
silenciosos, que são como a formação de novos mundos: também aí é a
presença do poético sob o histórico. Na França mesmo quase não temos
acontecimentos ruidosos. Eles estão longe, e terríveis no Vietnã. Porém,
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restam-nos pequenos acontecimentos imperceptíveis, que talvez anunciem
uma saída para fora do deserto atual. Pode ser que o retorno de Nietzsche
seja um desses “pequenos acontecimentos” e já uma reinterpretação do
mundo.