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ARTIGO ARTICLE
O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais
e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde
Abstract This essay analyses some historical ele- Resumo Este ensaio analisa elementos da histó-
ments of the Brazilian National Health System, ria do SUS, buscando compreender os efeitos de
trying to understand the historical effects of two duas fortes tradições sobre o modo para organi-
traditions in healthcare: the liberal and the na- zar o cuidado em saúde: a liberal-privatista e a
tional public way to organize healthcare. Some dos sistemas nacionais e públicos de saúde. Pro-
social actors are also studied, particularly the Bra- cura caracterizar também a atuação de alguns
zilian sanitary reform social movement. atores sociais, com destaque para o movimento
Key words Healthcare policies, National Health sanitário.
System, Sanitary reform Palavras-chave Política de saúde, Sistema Úni-
co de Saúde, Reforma sanitária
1 Departamento de
Medicina Preventiva e
Social, FCM/UNICAMP.
Rua Américo de Campos 93,
Cidade Universitária.
13083-040 Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
1866
Campos, G. W. S.
curiosa, para a época, combinação entre inter- sabilidade em buscar, entre os conveniados, o tipo
venção do Estado e expansão dos negócios para de atenção que imagina necessário ou que lhe foi
médicos, prestadores privados e empresários do indicada por algum outro profissional. O SUS
ramo saúde11. Denominei a esta alternativa de haveria modificado este modo de funcionamen-
política liberal-privatista, para distingui-la tanto to? Em que extensão e em que aspectos?
do modelo liberal tradicional, quanto da alterna- A partir dos anos oitenta, no Brasil, criou-se
tiva socialista central aos sistemas nacionais. Nesta uma relação singular entre o nascente movimen-
modalidade, o Estado mantinha suas tradicio- to sanitário e o Estado/governo. De uma manei-
nais atribuições com a saúde pública, mas tam- ra análoga ao papel que o ator social, movimen-
bém entrava como agência financiadora e ainda to médico, teve no desenho da modalidade de
com algum poder de regular o nascente mercado política liberal-privatizante, creio que o movi-
da atenção médico-hospitalar. O Estado, bem mento sanitário foi um dos fatores determinan-
como bancos e empresas de seguros particulares, tes para a criação e implantação do SUS, bem
funcionariam como intermediários entre a maio- como para a constituição de um novo pensa-
ria dos clientes e os profissionais e serviços priva- mento sobre saúde. Foram seus integrantes, ati-
dos de saúde12. Este é o modo de organização do vistas, intelectuais e as entidades que o compu-
cuidado ainda vigente nos Estados Unidos. A ex- nham, quem elaborou, em traços gerais, a políti-
pansão do acesso depende do crescimento da ren- ca, diretrizes e, até mesmo, o modelo operacio-
da da população ou do seguro privado e estatal/ nal do SUS 8,13.
previdenciário. Neste cenário, tende a predomi- Desde o período anterior ao SUS, também se
nar o paradigma biomédico e a lógica dele decor- desenvolveram no país serviços estatais de aten-
rente para pensar o desenho da atenção à saúde. ção à saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Instituto
Observe-se que os médicos não são o único ator Butantã, escolas de Saúde Pública, universidades
social do bloco político-ideológico liberal-priva- e hospitais públicos, departamento de preventi-
tista. Na prática, articulam-se com partidos polí- va, serviços próprios dos Institutos de Previdên-
ticos, prestadores privados e intelectuais de várias cia e depois do INAMPS, além de uma rede de
origens. O SUS haveria contraposto outros mo- centros de saúde, em geral de gestão estadual ou
dos para pensar o processo saúde/doença/inter- do Ministério da Saúde (Fundação SESP); todos
venção ao paradigma biomédico? Em que medi- funcionavam com corpo de servidores públicos e
da o realizou? Em que programas ou em que se- modalidades de gestão típicas de Estado. Este seg-
tores do sistema? mento, em minha opinião, assegurou umas das
Até a inauguração do SUS, a expansão do bases sobre a qual se desenvolveria o projeto de
acesso ao cuidado médico-sanitário no Brasil organizar-se um sistema nacional de saúde no
vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer Brasil. Grande parte dos ativistas do movimento
forma de socialização da atenção. O Estado, por sanitário era profissionais, pesquisadores, docen-
meio da Previdência Social – institutos por cate- tes ou estudantes destas organizações. Estes ato-
goria profissional, depois unificados no MS/ res sociais tiveram papel relevante não somente
INAMPS –, servia como um grande seguro esta- na elaboração do projeto político do que seria o
tal, que mais dinamizava o mercado da saúde do SUS, como também em constituir um “bloco sa-
que o substituía10, 12. A lógica da compra de ser- nitário” com setores populares, sindicais, políti-
viços a consultórios, hospitais privados e filan- cos profissionais e com o poder executivo.
trópicos baseava-se na contabilidade de proce- Alguns de seus integrantes, armados com os
dimentos realizados, funcionando o Estado como conceitos de medicina comunitária14, educação
intermediário entre prestadores privados e o con- popular e atenção primária à saúde, priorizaram
sumidor. Observava-se a preservação da centra- intervenções locais. Desenvolveram a estratégia
lidade da remuneração por procedimento diag- de aproximar-se da base social do país, sindica-
nóstico ou terapêutico presente na racionalidade tos, organizações de bairro e de comunidades ur-
do modelo liberal. Apesar da intermediação do banas e rurais15. Caberia uma investigação mais
Estado, conservou-se, naquele modelo, o estímu- aprofundada sobre os motivos que levaram es-
lo econômico à produção de atos sanitários. tes segmentos profissionais a realizar aquela “ida
Neste desenho, cabe ao Estado um papel de à periferia”, um verdadeiro deslocamento em di-
regulação de caráter genérico: estabelecer con- reção ao povo. Na saúde, trataram de implemen-
tratos ou convênios com prestadores, negociar tar projetos de saúde comunitária na atenção
preço e fiscalizar a adequação entre custos e pro- básica, experimentando modelos de participa-
cedimentos realizados. Ao usuário fica a respon- ção comunitária. Desta vertente, originou-se uma
1869
O SUS é quase um híbrido entre estas duas Esta diretriz pétrea costuma ser flexibilizada
tradições. Resta-nos descobrir se tal “híbrido” fa- na prática em vários países. Na Inglaterra e no
vorece a saúde da maioria ou ao interesse em- Canadá, por exemplo, a atenção primária à saú-
presarial e corporativo. Resta-nos averiguar se de foi organizada de maneira a compor com o
tal hibridez, ainda quando necessária à sobrevi- interesse e a tradição dos médicos. Em vez de cons-
vência do SUS, não lhe retirou potência, não lhe truir-se uma rede de centros de saúde com servi-
retirou a possibilidade de reproduzir-se enquan- dores públicos, optou-se por credenciar médicos
to espécie singular. autônomos, que em seus consultórios atendem a
Meu interesse nesta manobra metodológica é milhar e pouco de pessoas cadastradas em sua
identificar possíveis pontos de desacordo e de con- clientela. Ao contrário, a estratégia brasileira de
flito entre a tradição dos sistemas públicos de saú- Saúde da Família vincula obrigatoriamente cada
de (supostamente encarnada no ator social mo- família à equipe de um território, e organiza-se
vimento sanitário) e a ordem liberal-privatista que segundo rígidos princípios da vigilância sanitária:
se manifesta como resistência permanente ao SUS busca ativa, programas, etc19. Naqueles países,
estando dentro do SUS e, ao mesmo tempo, den- conservou-se relativa liberdade de escolha dos
tro do imaginário dominante dessa nossa época usuários que poderiam eleger seu médico genera-
de globalização do capitalismo. lista em listas de profissionais credenciados ao
sistema. Esta alternativa conservou o modelo tra-
dicional da clínica liberal, adaptando-o ao novo
Abstração contra abstração: contexto. Apesar desta concessão à tradição libe-
sobre como um tipo ideal de política ral da organização da clínica em consultórios, re-
de saúde socialista cruzou com estruturas gistrou-se importante oposição política dos mé-
e imaginários originários do mercado dicos à reforma sanitária inglesa20.
No Brasil, a concessão à corporação médica
Valeria perguntar: há, de fato, confronto entre as e a outros interesses privados, quando da con-
racionalidades conceitual e operativa da tradição cepção do SUS, deu-se no setor hospitalar e
dos sistemas públicos versus a da atenção com especializado. Desde a VIII Conferência até o tex-
base em mercado (cujo arquétipo ainda é o mo- to legal que deu origem ao SUS, optou-se por
delo dos Estados Unidos)? não haver nacionalização ou estatização de hos-
Grande parcela das diretrizes sanitárias e mes- pitais privados ou filantrópicos. Para assegurar
mo do desenho organizacional para assegurar atenção hospitalar e especializada aos usuários,
direito à saúde no SUS tem raiz nas experiências o SUS manteve a política de compra de serviços,
européias de bem-estar social. Ainda que pouco mediante convênios, ao setor privado. Até os dias
enfatizado na ocasião, os intelectuais do movi- de hoje, 60% da capacidade hospitalar utilizada
mento sanitário, ao construírem a plataforma pelo SUS são de hospitais filantrópicos ou priva-
política apresentada à VIII Conferência Nacio- dos21. Este acordo, provavelmente, atenuou a
nal de Saúde (1986), não inventaram a roda. possibilidade, verificada em outras reformas sa-
Foram buscar referências na experiência de qua- nitárias, do setor hospitalar e de parte impor-
se cem anos desenvolvida na Inglaterra, Suécia, tante da categoria médica opor-se ao SUS. No
União Soviética e, mais tarde, em Portugal, Itália, entanto, este arranjo trouxe problemas para a
Canadá, Cuba, Austrália, etc. gestão do sistema. A manutenção da forma pri-
Desta tradição18, recolhemos a concepção de vada de propriedade e o importante grau de au-
constituir-se o direito universal à saúde. E de que tonomia conservado por estes serviços contri-
este direito seria concretizado por meio de uma buíram para a fragmentação do sistema (ainda
política pública, ao estilo bem-estar, executada quando dito “único”), dificultando sua integra-
pelo Estado, mediante a constituição de meca- ção ao sistema. Mesmo a forma de compra de
nismos orçamentários de financiamento públi- serviços não foi ainda totalmente substituída por
co. Estas políticas, em países capitalistas, apoia- formas de relação sistêmicas ou globais, como
vam-se em sistemas que buscavam proteger a seria o caso de contratos de gestão entre SUS e
atenção à saúde da racionalidade de mercado. conveniados.
Para diminuir a possibilidade de mercantilização Este modo de produzir cuidado em saúde
do trabalho em saúde, usava-se nacionalizar e também permitiu a reprodução de uma catego-
estatizar serviços e a prestação da atenção. Foi ria médica com múltiplas inserções de trabalho,
assim na Grã-Bretanha, em Portugal e na União em que o assalariamento se mescla com formas
Soviética. intermediárias de autonomia profissional. Neste
1871
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