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ARTIGO ARTICLE
O SUS entre a tradição dos Sistemas Nacionais
e o modo liberal-privado para organizar o cuidado à saúde

Brazilian National Health System


between liberal and public systems traditions

Gastão Wagner de Sousa Campos 1

Abstract This essay analyses some historical ele- Resumo Este ensaio analisa elementos da histó-
ments of the Brazilian National Health System, ria do SUS, buscando compreender os efeitos de
trying to understand the historical effects of two duas fortes tradições sobre o modo para organi-
traditions in healthcare: the liberal and the na- zar o cuidado em saúde: a liberal-privatista e a
tional public way to organize healthcare. Some dos sistemas nacionais e públicos de saúde. Pro-
social actors are also studied, particularly the Bra- cura caracterizar também a atuação de alguns
zilian sanitary reform social movement. atores sociais, com destaque para o movimento
Key words Healthcare policies, National Health sanitário.
System, Sanitary reform Palavras-chave Política de saúde, Sistema Úni-
co de Saúde, Reforma sanitária

1 Departamento de
Medicina Preventiva e
Social, FCM/UNICAMP.
Rua Américo de Campos 93,
Cidade Universitária.
13083-040 Campinas SP.
gastaowagner@mpc.com.br
1866
Campos, G. W. S.

Introdução: O SUS e o movimento sanitário vel a reinvenção de um movimento sanitário ca-


paz de sustentar tanto a institucionalidade do já
Começo este ensaio com uma pergunta. Como em parte realizado – o SUS -, quanto de avançar
decifrar a polissemia política do sistema de saú- rumo à distribuição de renda e democratização
de brasileiro realmente existente e, a partir desta da vida social e do estado brasileiro? Compreen-
compreensão, reconstruir o bloco histórico em der para intervir. O objetivo deste ensaio é refletir
defesa do SUS? sobre as relações entre o Estado brasileiro, o pro-
Há certo consenso entre estudiosos de que o cesso de reforma sanitária e os sujeitos coletivos
Sistema Único de Saúde tem representado uma – atores sociais – que co-construíram esta histó-
política favorável à construção da justiça social e ria. Esse é também o método de investigação que
do bem-estar entre os brasileiros. Estes mesmos permitiu a construção deste ensaio.
autores também apontam para problemas e im-
passes desta política: o SUS seria uma reforma
incompleta, já que sua implantação vem ocor- SUS: que história foi essa?
rendo de maneira heterogênea, pois há desigual-
dade no atendimento às necessidades e na utili- É possível destacar alguns fenômenos históricos
zação de serviços de saúde, há problemas de fi- relevantes ao se tentar compreender o período
nanciamento, da gestão do sistema e do traba- da reforma sanitária. Um deles já foi citado; tra-
lho em saúde, entre outros1, 2. ta-se de que ela ocorreu concomitante a uma cri-
Como teria sido possível a constituição de se das políticas públicas em países capitalistas e à
uma política pública de saúde de caráter univer- derrocada do comunismo. Entretanto, durante
sal, fortemente assentada em organizações esta- esta mesma época, no Brasil logrou-se a cons-
tais, e que vem articulando uma ampla rede de trução de uma política de saúde ampliada, forte-
atenção à saúde, em um contexto histórico des- mente marcada pelo surgimento do SUS2. Ao
favorável? Vale assinalar que os últimos trinta mesmo tempo, observaram-se também impor-
anos foram marcados por uma crise global do tantes mudanças nas condições de vida e de saú-
sistema de bem-estar e do socialismo real e ainda de da população no mundo e no Brasil. Apesar
pela hegemonia, teórica e prática, do que se con- da ampliação do acesso aos serviços de saúde
vencionou denominar de neoliberalismo ou de assegurada pela expansão do SUS ao longo dos
capitalismo mundializado. Sendo assim, como últimos vinte anos, observaram-se também fa-
haveria sido possível uma reforma de caráter tores condicionantes negativos ao bem-estar so-
social no país? Haveria o movimento sanitário e cial e à saúde em particular. No Brasil, há desi-
de outros segmentos da sociedade civil desempe- gualdade social persistente, em função da per-
nhado um papel potente o suficiente para enfra- versa distribuição de renda e da precariedade da
quecer as pressões favoráveis às contra-refor- maioria das políticas públicas. Este quadro de
mas conservadoras e à dinâmica dos interesses desigualdade é crônico, ainda que a recente reor-
privados e corporativos? ganização produtiva e o padrão de crescimento
E ainda outra pergunta sobre o presente e o econômico adotado tenham contribuído para
futuro: a continuidade da reforma sanitária e de manter a desigualdade, senão para aumentá-la3.
sua expressão mais relevante, o SUS, dependeria Soma-se a este fator a urbanização degradada e
da constituição de um autor social com capacida- a ascensão da violência como um componente
de para articular um poderoso consenso sobre a estrutural da sociabilidade brasileira4. Para agra-
necessidade de levar-se a cabo a radical implanta- var este contexto, julgo que poderíamos afirmar
ção de um sistema nacional de saúde, o SUS? que o Estado brasileiro, em geral, apresenta bai-
Como compor trabalhadores de saúde, segmen- xa capacidade de gestão tanto da infra-estrutura
tos populares e das camadas médias, com parti- quanto das políticas sociais.
dos políticos e gestores, possibilitando a eclosão e Nos últimos trinta anos, aconteceram impor-
o fortalecimento de movimentos sociais com for- tantes transformações em ciência e tecnologia
te poder de indução sobre o Estado brasileiro? aplicadas à saúde, dando origem a um fenôme-
Admitindo, em tese, a importância estratégi- no em que aspectos relevantes da atenção à saú-
ca de pressões sociais para a continuidade da re- de foram incorporados às condições básicas de
forma sanitária, caberia ainda outra questão so- sobrevivência. Para milhões de seres humanos, o
bre a possibilidade desta construção; ou seja: Para acesso a alguma forma de tratamento – pessoas
superar os atuais impasses à construção do SUS com AIDS, diabetes, vários tipos de câncer – é
e do bem-estar no Brasil seria, portanto, possí- condição essencial para manutenção da própria
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vida. Ao mesmo tempo, o consumismo aliado projetos políticos articulados a partir de valores e
ao exercício de uma clínica restrita tem ampliado de interesses distintos. Tenho-os utilizado como
a medicalização social5. Inclusive com a medica- recurso metodológico para identificar o modo
lização de conflitos subjetivos e sociais. como funcionam e são co-produzidos os siste-
Este contexto complexo produziu uma sínte- mas de saúde, bem como os modelos de atenção.
se sanitária paradoxal, com resultados negativos No concreto, sempre encontraremos algum de
revelados pela persistência ou até pelo agravamen- seus compósitos, misturas, mesclas hibridadas,
to de problemas crônicos, concomitante à altera- ainda que seja possível assinalar que na Inglater-
ção positiva de importante indicadores do estado ra, ou em Portugal e Cuba predominam a racio-
de saúde. Assim, entre 1980 e 2003, houve, no Bra- nalidade dos sistemas nacionais e públicos; e nos
sil, elevação média de 8,8 anos na esperança de Estados Unidos, a liberal-privatista.
vida ao nascer; os homens ganharam 7,9 anos e Os atores sociais que os bancam costumam
as mulheres, 9,5. No mesmo período, ocorreu ser distintos. Em geral, o modo liberal-privatista
uma queda de 60,2% na mortalidade infantil6. é apoiado pelos prestadores privados, tendo nos
Houve ainda diminuição importante na mortali- médicos, entre outros profissionais, o seu prin-
dade por doenças infecciosas e avanço das cardi- cipal intelectual orgânico, particularmente quan-
ovasculares, do câncer, distúrbios da subjetivida- do se trata de definir as formas concretas de or-
de, aumento da mortalidade por causas internas, ganização da atenção e da oferta de serviços. É
com destaque para a violência. No enfrentamen- evidente que partidos e políticos de tendência
to de epidemias, houve avanço na cobertura vaci- conservadora, bem como economistas, adminis-
nal, com importante diminuição de casos daque- tradores e jornalistas, tendentes a defender o
las doenças suscetíveis à prevenção por vacina- mercado como ordenador das relações sociais,
ção, ocorreu relativo controle da epidemia de AIDS, costumam aderir a este projeto. Já a tradição dos
mas o mesmo não pôde ser constatado em rela- sistemas nacionais foi construída em articulação
ção à tuberculose, leishmaniose e malária7. com a luta dos trabalhadores em prol de políti-
Por último, observou-se a constituição de um cas públicas ou do socialismo, particularmente
pensamento crítico e de uma prática sanitária8 em países europeus durante o século passado.
que se propôs a reconstruir os paradigmas do- Como estas duas tradições vêm se encarnando,
minantes na medicina e na saúde pública. No no concreto, no processo brasileiro de constru-
Brasil, este movimento sanitário tem demons- ção e um sistema de saúde?
trado relativa autonomia do Estado e da racio- Insisto que a descrição de dois modos pola-
nalidade econômica e ideológica dominante. res para a produção do cuidado em saúde reali-
Que relações haveria entre estes fenômenos za-se mediante o recurso da abstração, já que no
sociais? Como funcionaram no caso brasileiro? concreto os discursos e práticas estão mistura-
Que produtos síntese resultaram em decorrên- dos, compondo elementos originários da tradi-
cia do seu entrelaçamento? Como os sujeitos co- ção dos sistemas públicos com outras pró-mer-
letivos reagiram a estes fluxos históricos sociais? cado, o que produz uma tensão permanente en-
Como foram co-produzidos, enfim? tre estatização e privatização da atenção e da ges-
Regulando o foco, diante da variedade de pos- tão à saúde10.
sibilidades de análise que o diagrama de vetores Em meu mestrado, investiguei a influência que
acima sugere, estarei obrigado a privilegiar o ob- os médicos tiveram na constituição da política de
jeto deste ensaio; a saber, caracterizar a impor- saúde brasileira no período imediatamente ante-
tância que os atores sociais tiveram na co-cons- rior ao SUS. A expansão do acesso não dependeu
tituição de políticas de saúde no Brasil. E, com apenas ou principalmente do movimento médi-
base nessa experiência, especular sobre a possi- co, já que sindicatos, partidos políticos e movi-
bilidade de articular-se um novo consenso, ain- mentos de opinião pressionaram o governo com
da mais amplo do que aquele que permitiu a cria- tal finalidade. Os médicos, por meio de suas enti-
ção do SUS. dades e intelectuais orgânicos, foram influentes
Em trabalhos anteriores sobre política de saú- principalmente na eleição dos modos pelos quais
de no Brasil, identifiquei dois grandes projetos se ordenaria esta expansão. No caso, seu discurso
sanitários para o país, além da miríade de combi- a favor da medicina liberal ou autônoma interfe-
nações existentes entre eles. Refiro-me às tradi- riu no desenho do modelo predominante naque-
ções polares dos sistemas nacionais de saúde e da la expansão: contratação de serviços privados de
velha alternativa liberal-privatista9. Vale assinalar hospitais, clínicas e de profissionais semi-autô-
que são dois conceitos abstratos, indicativos de nomos. Esta modalidade de política permitiu uma
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curiosa, para a época, combinação entre inter- sabilidade em buscar, entre os conveniados, o tipo
venção do Estado e expansão dos negócios para de atenção que imagina necessário ou que lhe foi
médicos, prestadores privados e empresários do indicada por algum outro profissional. O SUS
ramo saúde11. Denominei a esta alternativa de haveria modificado este modo de funcionamen-
política liberal-privatista, para distingui-la tanto to? Em que extensão e em que aspectos?
do modelo liberal tradicional, quanto da alterna- A partir dos anos oitenta, no Brasil, criou-se
tiva socialista central aos sistemas nacionais. Nesta uma relação singular entre o nascente movimen-
modalidade, o Estado mantinha suas tradicio- to sanitário e o Estado/governo. De uma manei-
nais atribuições com a saúde pública, mas tam- ra análoga ao papel que o ator social, movimen-
bém entrava como agência financiadora e ainda to médico, teve no desenho da modalidade de
com algum poder de regular o nascente mercado política liberal-privatizante, creio que o movi-
da atenção médico-hospitalar. O Estado, bem mento sanitário foi um dos fatores determinan-
como bancos e empresas de seguros particulares, tes para a criação e implantação do SUS, bem
funcionariam como intermediários entre a maio- como para a constituição de um novo pensa-
ria dos clientes e os profissionais e serviços priva- mento sobre saúde. Foram seus integrantes, ati-
dos de saúde12. Este é o modo de organização do vistas, intelectuais e as entidades que o compu-
cuidado ainda vigente nos Estados Unidos. A ex- nham, quem elaborou, em traços gerais, a políti-
pansão do acesso depende do crescimento da ren- ca, diretrizes e, até mesmo, o modelo operacio-
da da população ou do seguro privado e estatal/ nal do SUS 8,13.
previdenciário. Neste cenário, tende a predomi- Desde o período anterior ao SUS, também se
nar o paradigma biomédico e a lógica dele decor- desenvolveram no país serviços estatais de aten-
rente para pensar o desenho da atenção à saúde. ção à saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Instituto
Observe-se que os médicos não são o único ator Butantã, escolas de Saúde Pública, universidades
social do bloco político-ideológico liberal-priva- e hospitais públicos, departamento de preventi-
tista. Na prática, articulam-se com partidos polí- va, serviços próprios dos Institutos de Previdên-
ticos, prestadores privados e intelectuais de várias cia e depois do INAMPS, além de uma rede de
origens. O SUS haveria contraposto outros mo- centros de saúde, em geral de gestão estadual ou
dos para pensar o processo saúde/doença/inter- do Ministério da Saúde (Fundação SESP); todos
venção ao paradigma biomédico? Em que medi- funcionavam com corpo de servidores públicos e
da o realizou? Em que programas ou em que se- modalidades de gestão típicas de Estado. Este seg-
tores do sistema? mento, em minha opinião, assegurou umas das
Até a inauguração do SUS, a expansão do bases sobre a qual se desenvolveria o projeto de
acesso ao cuidado médico-sanitário no Brasil organizar-se um sistema nacional de saúde no
vinha ocorrendo sem que se invocasse qualquer Brasil. Grande parte dos ativistas do movimento
forma de socialização da atenção. O Estado, por sanitário era profissionais, pesquisadores, docen-
meio da Previdência Social – institutos por cate- tes ou estudantes destas organizações. Estes ato-
goria profissional, depois unificados no MS/ res sociais tiveram papel relevante não somente
INAMPS –, servia como um grande seguro esta- na elaboração do projeto político do que seria o
tal, que mais dinamizava o mercado da saúde do SUS, como também em constituir um “bloco sa-
que o substituía10, 12. A lógica da compra de ser- nitário” com setores populares, sindicais, políti-
viços a consultórios, hospitais privados e filan- cos profissionais e com o poder executivo.
trópicos baseava-se na contabilidade de proce- Alguns de seus integrantes, armados com os
dimentos realizados, funcionando o Estado como conceitos de medicina comunitária14, educação
intermediário entre prestadores privados e o con- popular e atenção primária à saúde, priorizaram
sumidor. Observava-se a preservação da centra- intervenções locais. Desenvolveram a estratégia
lidade da remuneração por procedimento diag- de aproximar-se da base social do país, sindica-
nóstico ou terapêutico presente na racionalidade tos, organizações de bairro e de comunidades ur-
do modelo liberal. Apesar da intermediação do banas e rurais15. Caberia uma investigação mais
Estado, conservou-se, naquele modelo, o estímu- aprofundada sobre os motivos que levaram es-
lo econômico à produção de atos sanitários. tes segmentos profissionais a realizar aquela “ida
Neste desenho, cabe ao Estado um papel de à periferia”, um verdadeiro deslocamento em di-
regulação de caráter genérico: estabelecer con- reção ao povo. Na saúde, trataram de implemen-
tratos ou convênios com prestadores, negociar tar projetos de saúde comunitária na atenção
preço e fiscalizar a adequação entre custos e pro- básica, experimentando modelos de participa-
cedimentos realizados. Ao usuário fica a respon- ção comunitária. Desta vertente, originou-se uma
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das diretrizes originais e inovadoras do SUS em servadora não abaixou sua bandeira e retirou-se
relação a outros sistemas nacionais de saúde: a tímida para seu canto, observando ordeiramen-
gestão participativa com controle social do go- te a gloriosa implementação do SUS pelas forças
verno pela sociedade civil. da reforma sanitária. Nada disto; ao contrário.
O movimento sanitário articulou-se também Pergunto-me se seus intelectuais orgânicos leram
para o “lado” e para “cima”. Ainda durante os Trotsky alguma vez e dele extraíram o conceito
anos oitenta, participantes do movimento apro- de “revolução permanente” para orientar sua es-
ximaram-se de políticos, deputados constituin- tratégia de resistência? Comento isto porque per-
tes e de gestores públicos, influenciando-os quan- dida a luta geral – O SUS passou a lei - trataram
to à legislação e ao ordenamento legal do siste- de armar mil outros cenários de confrontos. A
ma. Com esta estratégia, o movimento conse- resistência ao SUS deslocou-se da discussão de
guiu envolver partidos políticos e autoridades princípios, em torno de grandes diretrizes, para
governamentais com importantes aspectos do elementos pragmáticos da implantação do aces-
projeto de reforma sanitária16. Outros integran- so universal a uma rede “integral” de assistência,
tes do movimento, ao combinar o trabalho com procurando, contudo, sempre, buscar meios para
a militância, realizaram importante ação institu- atendê-los segundo seus interesses corporativos
cional, praticando uma espécie de “entrismo” tanto e valores capitalistas de mercado. Resistência per-
no aparelho estatal que seria embrião do futuro manente a cada programa, a cada projeto e cada
SUS, com em partidos tradicionais e outras or- modelo de gestão ou de atenção sugerido segun-
ganizações sociais. do a tradição vocalizada pela reforma sanitária10.
Vale a pena considerar que, em alguma me- A convivência na democracia é variada e múlti-
dida (haveria que se investigar melhor), a moti- pla: a derrota de atores sociais e de seus projetos
vação de amplo segmento do movimento sani- é situacional e costuma não os eliminar do cená-
tário era política, e o trabalho na saúde era utili- rio político e institucional. Assim os interesses e
zado como uma tática para enfrentamento con- valores derrotados sempre retornam, sempre,
tra a ditadura, de onde, é provável, ganhou rele- ainda que travestidos com a moda conveniente
vância o lema que ajuntava “saúde e democra- em cada conjuntura.
cia”17. Vários entre estes ativistas professavam Entre as diretrizes do SUS, as duas que logra-
credos esquerdistas, da variados matizes, que em ram alcançar maior legitimidade foram exata-
comum valiam-se do trabalho sanitário como mente a do acesso universal e da atenção integral
uma preparação para a revolução social e políti- a todo e qualquer tipo de procedimento conside-
ca. Buscavam além de curar e de prevenir enfer- rado necessário para intervir sobre o processo
midades, também a conscientização e a politiza- saúde e doença. Estas duas diretrizes, em tese,
ção dos populares e dos trabalhadores de saúde. são compatíveis tanto com o desenho sociali-
Considero, contudo, que com o passar do tem- zante da tradição européia dos sistemas nacio-
po, esse movimento, com forte componente “ins- nais, quanto com a tradição norte-americana,
trumental” – muitos o pensavam como um liberal-privatista.
“meio” para fazer política junto ao povo e dentro Em termos hipotéticos, há diferentes modos
de instituições -, encontrou-se com outros sujei- para se assegurar atenção universal e integral aos
tos sociais, gente da universidade, de organis- brasileiros. Em síntese: no Brasil, o concreto real
mos internacionais, dos serviços de saúde, e ope- resultante de toda esta história de conflitos é a
rou-se uma síntese, teórica-prática, que consti- existência de um SUS esgarçado, de um reforma
tuiria o arcabouço do SUS. A VIII Conferência sanitária incompleta. Vale ressaltar que esse con-
Nacional de Saúde, em 1986, e a Constituinte, em flito deu-se entre estes dois blocos sanitários, en-
1988, podem ser considerados o cadinho que tre grupos de interesse restritos. A maioria da
unificou todas estas tendências. sociedade vem assistindo a esta peleja com gran-
Nestas duas décadas de luta pelo SUS, obser- de distanciamento e indiferença. Talvez pudésse-
va-se uma tensão permanente entre o projeto do mos repetir que a maioria da sociedade acompa-
SUS e o derrotado (valeria interrogar-se sobre nha esta peleja “bestificada” (expressão utilizada
esta afirmação) projeto liberal-privatista10. Esta de modo irônico para caracterizar a relativa in-
vitória da concepção pública sobre o modelo de diferença com que o povo acompanhou a luta
mercado ocorreu em um contexto em que o ne- pelo SUS; a utilização original desse termo refe-
oliberalismo era econômica, cultural e politica- ria-se à polêmica entre monarquistas e republi-
mente dominante. Uma vez aprovada a legisla- canos quando da proclamação da república no
ção que sustentava o SUS, a oposição liberal-con- Brasil).
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O SUS é quase um híbrido entre estas duas Esta diretriz pétrea costuma ser flexibilizada
tradições. Resta-nos descobrir se tal “híbrido” fa- na prática em vários países. Na Inglaterra e no
vorece a saúde da maioria ou ao interesse em- Canadá, por exemplo, a atenção primária à saú-
presarial e corporativo. Resta-nos averiguar se de foi organizada de maneira a compor com o
tal hibridez, ainda quando necessária à sobrevi- interesse e a tradição dos médicos. Em vez de cons-
vência do SUS, não lhe retirou potência, não lhe truir-se uma rede de centros de saúde com servi-
retirou a possibilidade de reproduzir-se enquan- dores públicos, optou-se por credenciar médicos
to espécie singular. autônomos, que em seus consultórios atendem a
Meu interesse nesta manobra metodológica é milhar e pouco de pessoas cadastradas em sua
identificar possíveis pontos de desacordo e de con- clientela. Ao contrário, a estratégia brasileira de
flito entre a tradição dos sistemas públicos de saú- Saúde da Família vincula obrigatoriamente cada
de (supostamente encarnada no ator social mo- família à equipe de um território, e organiza-se
vimento sanitário) e a ordem liberal-privatista que segundo rígidos princípios da vigilância sanitária:
se manifesta como resistência permanente ao SUS busca ativa, programas, etc19. Naqueles países,
estando dentro do SUS e, ao mesmo tempo, den- conservou-se relativa liberdade de escolha dos
tro do imaginário dominante dessa nossa época usuários que poderiam eleger seu médico genera-
de globalização do capitalismo. lista em listas de profissionais credenciados ao
sistema. Esta alternativa conservou o modelo tra-
dicional da clínica liberal, adaptando-o ao novo
Abstração contra abstração: contexto. Apesar desta concessão à tradição libe-
sobre como um tipo ideal de política ral da organização da clínica em consultórios, re-
de saúde socialista cruzou com estruturas gistrou-se importante oposição política dos mé-
e imaginários originários do mercado dicos à reforma sanitária inglesa20.
No Brasil, a concessão à corporação médica
Valeria perguntar: há, de fato, confronto entre as e a outros interesses privados, quando da con-
racionalidades conceitual e operativa da tradição cepção do SUS, deu-se no setor hospitalar e
dos sistemas públicos versus a da atenção com especializado. Desde a VIII Conferência até o tex-
base em mercado (cujo arquétipo ainda é o mo- to legal que deu origem ao SUS, optou-se por
delo dos Estados Unidos)? não haver nacionalização ou estatização de hos-
Grande parcela das diretrizes sanitárias e mes- pitais privados ou filantrópicos. Para assegurar
mo do desenho organizacional para assegurar atenção hospitalar e especializada aos usuários,
direito à saúde no SUS tem raiz nas experiências o SUS manteve a política de compra de serviços,
européias de bem-estar social. Ainda que pouco mediante convênios, ao setor privado. Até os dias
enfatizado na ocasião, os intelectuais do movi- de hoje, 60% da capacidade hospitalar utilizada
mento sanitário, ao construírem a plataforma pelo SUS são de hospitais filantrópicos ou priva-
política apresentada à VIII Conferência Nacio- dos21. Este acordo, provavelmente, atenuou a
nal de Saúde (1986), não inventaram a roda. possibilidade, verificada em outras reformas sa-
Foram buscar referências na experiência de qua- nitárias, do setor hospitalar e de parte impor-
se cem anos desenvolvida na Inglaterra, Suécia, tante da categoria médica opor-se ao SUS. No
União Soviética e, mais tarde, em Portugal, Itália, entanto, este arranjo trouxe problemas para a
Canadá, Cuba, Austrália, etc. gestão do sistema. A manutenção da forma pri-
Desta tradição18, recolhemos a concepção de vada de propriedade e o importante grau de au-
constituir-se o direito universal à saúde. E de que tonomia conservado por estes serviços contri-
este direito seria concretizado por meio de uma buíram para a fragmentação do sistema (ainda
política pública, ao estilo bem-estar, executada quando dito “único”), dificultando sua integra-
pelo Estado, mediante a constituição de meca- ção ao sistema. Mesmo a forma de compra de
nismos orçamentários de financiamento públi- serviços não foi ainda totalmente substituída por
co. Estas políticas, em países capitalistas, apoia- formas de relação sistêmicas ou globais, como
vam-se em sistemas que buscavam proteger a seria o caso de contratos de gestão entre SUS e
atenção à saúde da racionalidade de mercado. conveniados.
Para diminuir a possibilidade de mercantilização Este modo de produzir cuidado em saúde
do trabalho em saúde, usava-se nacionalizar e também permitiu a reprodução de uma catego-
estatizar serviços e a prestação da atenção. Foi ria médica com múltiplas inserções de trabalho,
assim na Grã-Bretanha, em Portugal e na União em que o assalariamento se mescla com formas
Soviética. intermediárias de autonomia profissional. Neste
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particular, enquanto a maioria dos países com mação ocorreriam não com base na demanda de
sistemas públicos logrou maior controle sobre clientes por procedimentos e atos sanitários, mas
os serviços hospitalares, admitindo maior auto- com base em necessidades de saúde e nas possi-
nomia na atenção básica, no Brasil vem aconte- bilidades tecnológicas e financeiras para enfren-
cendo o contrário: o SUS tem baixa capacidade tá-las. A remuneração do pessoal de saúde dar-
de gestão da rede hospitalar e é responsável dire- se-ia segundo tradição do serviço público e não
tamente pela quase totalidade da atenção básica. necessariamente com base em procedimentos. O
A nova política pública de saúde implicava financiamento deixaria de basear-se em atos e
ainda uma reforma sanitária. Dependia de reali- procedimentos realizados e utilizaria outros cri-
zar-se uma profunda alteração no modo até en- térios de caráter global. Necessidades de saúde e
tão vigente para organizar a assistência. Os siste- responsabilidade sanitária de cada segmento do
mas nacionais, em decorrência, sugeriram mo- sistema deveriam orientar a gestão segundo o
dos alternativos à tradição liberal para organizar modelo público. Aqui, creio, pode-se localizar um
o cuidado à saúde. Vem dessa tradição o concei- dos calcanhares de Aquiles deste poderoso herói
to operacional de “sistema” ou de rede integrada da justiça social do século XX, que são os siste-
de atenção à saúde. Estes sistemas ou redes de mas nacionais de saúde. Nunca ficou muito bem
cuidado seriam organizados com base na dire- definido o método a ser empregado para se iden-
triz da integração sanitária, mais tarde redefini- tificar estas necessidades, bem como para orde-
da como integralidade22. No modelo liberal-pri- ná-las em ordem de prioridades sociais, sem que
vatista, a assistência individual ou clínica deveria, se recorresse, em alguma medida, à dinâmica da
de preferência, ser oferecida por prestadores pri- demanda das pessoas por saúde.
vados, ainda quando houvesse intermediação de Com base nestes argumentos – planejamento
seguros saúde ou de sistema de previdência do racional de necessidades e ordenação do cuidado
Estado. Caberia, contudo, ao Estado, e esta tra- segundo esta lógica - os sistemas nacionais trata-
dição remonta ao início da revolução industrial ram de regulamentar o acesso e o fluxo de pesso-
na Europa, responsabilizar-se pelos problemas as no sistema. Inventou-se o conceito operacio-
de saúde com repercussão ou interesse coletivo. nal de sistema hierarquizado, bem como os de
Haveria, portanto, uma “medicina administrati- responsabilidade sanitária com base em regiões e
va” realizada pelo Estado. Mais tarde esta ativi- na população daquele território. As pessoas não
dade foi denominada de Saúde Pública23. O que poderiam mais dirigir-se ao serviço ou ao profis-
seria ou não objeto desta intervenção estatal sem- sional que lhes aprouvesse. Com os conceitos de
pre foi definido mais pela política do que pela regionalização, território e população inscrita re-
técnica ou pela racionalidade epidemiológica. Os gulamentaram-se o acesso e o fluxo de usuários
sistemas nacionais de saúde propuseram-se a pelo sistema. Em cada região, haveria oferta de
romper esta separação do cuidado em dois “sis- programas preventivos e clínicos. Com a hierar-
temas”. Trataram de realizar uma integração, no quização, restringiu-se o acesso a especialistas,
mesmo sistema, tanto dos programas preventi- hospitais e exames complexos. Isto dependeria de
vos, ou seja, da Saúde Pública, quanto da aten- um julgamento prévio. O acesso universal ocor-
ção clínica. Houve em decorrência desta diretriz reria pela atenção primária e pronto-socorro18, 22.
uma expansão da ação estatal. Os sistemas naci- Inventou-se a atenção primária à saúde, rede
onais buscaram superar a dicotomia entre pre- de serviços com recursos preventivos e clínicos
venção e clínica. que constituiriam a base de sustentação destes
Na lógica de mercado, cada serviço é um ente sistemas. Recentemente, a OMS/OPAS cunhou a
autônomo, feudo independente, e cabe ao paci- expressão primary care-based health systems ao
ente (ou ao cliente) deslocar-se entre estes servi- constatar as vantagens, em eficiência e eficácia,
ços para garantir a “integralidade” requerida para dos sistemas de saúde que alcançaram montar
seu caso. Na tradição do público, investem-se na rede de equipes de atenção primária com cober-
constituição de um sistema interligado de servi- tura de pelo menos 80% da população e com
ços, com fluxo regular de regras, pessoas e for- capacidade clínica e preventiva para enfrentar
mas necessárias de comunicação. O planejamen- problemas de saúde24.
to e a gestão desta rede sistêmica de serviços fica- Caberia perguntar-nos em que medida a im-
vam a cargo do Estado. Intervenção do Estado plantação do SUS vem apoiando-se nesta tradi-
para assegurar bem-estar, distribuição de renda, ção, ainda quando a modifique em função de
eqüidade e para criar um espaço protegido para características singulares do país, ou em que ex-
o cuidado à saúde. O planejamento e a progra- tensão veio, sob pressão de interesses privados e
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corporativos, conservando aspectos estruturais acumularam condições propícias, experiências


e modos de funcionamento que possuem efeito ousadas que demonstraram a potência do pro-
deletério sobre a saúde da população? jeto de reforma, tornando evidente que parte da-
quelas metas, consideradas utópicas pelo pensa-
mento liberal-privatista, eram factíveis. Ao res-
Singularidade da implantação ponder ao desafio de integrar em um único siste-
de um sistema nacional de saúde no Brasil ma entes federados autônomos – cidades, esta-
dos e União –, criaram-se arranjos organizacio-
O movimento sanitário brasileiro não somente nais inovadores para a secular tradição dos sis-
adaptou conceitos e diretrizes da tradição socia- temas públicos e da gestão do Estado brasileiro.
lista ao SUS. Além disto, três novas diretrizes fo- Inventaram-se formas de co-gestão como são as
ram acrescentadas a esta tradição: a de criar-se comissões tripartite, as bipartites de âmbito es-
um sistema descentralizado; a da gestão partici- tadual e, agora, também regional. Criaram-se
pativa com “controle social” da sociedade sobre ainda os fundos financeiros para repasse trans-
o Estado; e, algo fundamental, ainda que não parente e negociado do orçamento25.
inscrito na lei, a preocupação brasileira em im- Para compatibilizar a dualidade de efeitos pro-
plantar-se um sistema enquanto, ao mesmo tem- duzidos pela gestão, ao mesmo tempo, sistêmica
po, elaborava-se uma crítica teórica e prática do e descentralizada, é fundamental o papel do Minis-
paradigma tradicional da saúde pública e da me- tério da Saúde e das Secretarias de Estado. A eles
dicina. Esta terceira marca é bastante caracterís- caberia a coordenação e integração entre os siste-
tica da reforma sanitária brasileira. Tivemos a mas locais. Apesar da criação desses espaços de
preocupação de repensar a concepção sobre saú- gestão participativa, observou-se, contudo, uma
de e doença e o modo para organizar o cuidado baixa capacidade de articulação sistêmica por par-
para além do que já fazia parte da tradição dos te dos estados e da União. O Ministério da Saúde
sistemas nacionais. A gestão com base em neces- conservou grande parte do modo de gestão da
sidades de saúde, a atenção primária, entre ou- assistência herdado do INAMPS: compra de ser-
tros componentes dessa tradição, todos têm po- viços, cálculo de recursos com base em procedi-
tencial para alterar o modelo de atenção liberal- mentos, auditorias; ainda é muito recente a tenta-
privatista. No entanto, aqui, insistimos também tiva de introduzir-se a metodologia de contratos
em reinventar a saúde pública e a clínica, incor- ou pactos de gestão entre os entes federados.
porando, no cotidiano, conceitos e práticas ori- Pode-se considerar que a integração em rede,
ginárias da saúde coletiva, da promoção, da de- sistêmica, entre os sistemas municipais ainda é
terminação social, da reforma psiquiátrica, da baixa; em decorrência, a gestão regional do siste-
política de humanização, construindo uma con- ma é bastante precária quando não virtual. O
cepção ampliada sobre a saúde e sobre o próprio padrão de gestão do SUS tem estimulado a cons-
trabalho sanitário. tituição de sistemas municipais autárquicos. Pode-
Como a implantação do SUS foi tardia por se considerar que hospitais e serviços especializa-
referência à maioria das reformas sanitárias, dos, em geral, situados em cidades pólo, ainda
pode-se considerar que estas novas diretrizes bus- funcionam isolados, como no modo liberal-pri-
cavam superar problemas identificados no fun- vatista, com mecanismos de regulação precários2.
cionamento concreto daqueles sistemas públicos Além disto, com o amplo grau de autonomia dos
mais antigos. estados e municípios, cada gestor pôde optar pela
A doutrina da descentralização no Brasil as- conveniência de aderir ou não ao SUS, cada mu-
sumiu a forma da municipalização: cada muni- nicípio ou estado pôde eleger quais aspectos do
cípio seria o gestor único do sistema local. Verifi- SUS iriam implementar: se apenas a compra de
cam-se, hoje, alguns problemas decorrentes des- serviços a hospitais privados, ou uma rede de pron-
ta nossa solução. Não refletimos o suficiente so- to-atendimentos, ou somente equipes de saúde
bre a polaridade de efeitos existente entre organi- da família. Estes fatores têm retardado a implan-
zar-se um sistema e ordená-lo de modo descen- tação do SUS, além de acentuarem-se diferenças
tralizado. A orientação para descentralizar o po- de acesso regional. Em conseqüência, o direito à
der produz efeitos tendentes à dispersão dos pon- saúde dos brasileiros ainda varia conforme seu
tos da rede; a noção de sistema ou de rede sanitá- local de residência26, 27.
ria depende de lograr-se a integração entre estes O cruzamento do contexto neoliberal desfa-
pontos. Assim, por um lado, a municipalização vorável às políticas públicas com importante grau
permitiu avançar na implantação, em cidades que de indefinição da responsabilidade sanitária de
1873

Ciência & Saúde Coletiva, 12(Sup):1865-1874, 2007


cada ente federado vem produzindo um proces- ciedade civil e os trabalhadores têm dificuldade
so de municipalização desigual no país, agrava- para ocupar este espaço de co-gestão legalmente
do por relativo retraimento da ação das Secreta- constituído29.
rias de Estados2. A influência das Conferências e dos Conse-
Um outro efeito perverso decorrente deste lhos de Saúde é relevante, mas não tem sido sufi-
quadro refere-se à péssima política de pessoal ciente para indicar rumos e criar os consensos
desenvolvida até agora. Tenho a opinião de que para que prossiga a reforma sanitária e a imple-
os municípios não têm capacidade financeira nem mentação do SUS. Se o SUS dependeu do movi-
de gestão para desenvolverem uma política de mento sanitário para constituir-se, pode-se cons-
pessoal adequada ao SUS. Este tema tem sido tar hoje que, tanto a opinião pública, quanto os
como que interditado pela dominância da cultu- governantes e, até mesmo, mídia e a intelectuali-
ra do ajuste econômico; partilha-se uma sensa- dade não se deram conta da filiação do SUS à
ção de que seria “politicamente incorreto” tratar tradição de políticas públicas de caráter socialis-
do tema de modo sistemático e inventivo. ta. O SUS não parece haver ganhado o “coração e
Dentro ainda das dificuldades do modo de mentes” dos brasileiros, nem para desejá-lo e de-
gestão do SUS, outra dificuldade ao avanço da fendê-lo com paixão, ou tampouco para com-
reforma sanitária tem sido a cultura patrimoni- batê-lo com ódio.
alista predominante na administração pública À guisa de conclusão, poder-se-ia afirmar que
brasileira. O movimento sanitário imaginou que o SUS tem demonstrado empuxe para constituir-
a descentralização, as regras de repasse automá- se e para sobreviver, ainda que seus dois princi-
tico aos Fundos de Saúde, bem como o controle pais adversários – o ideário neocapitalista e a tra-
social da sociedade sobre o SUS seriam suficien- dição degradada dominante na gestão pública
tes para afastar a tendência histórica do Estado brasileira – pareçam cada dia mais fortes e influ-
brasileiro em permitir que as elites se reapropri- entes. O caminho para avançar pela reforma sa-
em de grande parte do orçamento público dirigi- nitária dependeria, a julgar pelo argumento desse
do a políticas sociais. Por meio da corrupção, do ensaio, em se privilegiar, no consenso a ser ins-
corporativismo, do clientelismo, de programas taurado, elementos da tradição dos sistemas pú-
iníquos, de vários modos, as elites têm dificulta- blicos, procurando, com isto, resolver uma série
do a efetiva distribuição de renda no país28. A de ambigüidades discursivas e pragmáticas, que
gestão participativa, a co-gestão do SUS, ainda é tem permitido ao ideário liberal-privatista sobre-
uma potência pouco explorada, parece que a so- viver para além do conveniente e do necessário.
1874
Campos, G. W. S.

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