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Li uma, duas, três vezes. A terceira leitura da monografia de Carolina, faço à beira
mar. E o vai e vem das ondas propicia uma movida, os olhos em uma deriva marítima
reorganizam as linhas contagiadas por uma afetividade outra. Nas palavras, um convite
ao pensamento que se desdobra e se rebate na areia. Num vai e vem das ideias,
transbordo.
Texto marítimo, palavra água, parágrafo ondas, capítulo maré.
Uma onda, duas linhas, nova onda, outra linha, ela ia, você vinha. Eu ficava. Lia.
Ia.
O presente não dá folga ao pensamento, ele não cessa de acontecer. Sob os olhos
dos atentos as coisas passam a ser mais e maiores do que momentos antes acreditavam
serem. Ao mesmo tempo, coisas outras rapidamente se esmiúçam e parecem
desaparecer.
A autora, atenta ao presente, se aflige nele e com ele; logo, dele se ocupa.
Nos parágrafos que compõem o seu texto introdutório, nos conta dos lugares que
ocupa e da interpelação dos gestos militantes em quem está nos momentos finais da
graduação. Na tarefa árdua de constituir em texto um chão firme o suficiente para
assentar, dar contornos às ideias, se põe no exercício de delinear questões que
sustentem, frente às experiências, um problema de pesquisa. O que parece inquietar
Carolina é a repetição dos mesmos gestos nas práticas militantes, como se de canto de
olho ela pudesse ver um certo tipo de “mesmo”, que disfarçado de mudança passa a
multiplicar e tomar espaço de tal maneira que já não restaria vaga para a criação. E
decide corajosamente entrar na disputa, enfrentar o “mesmo” que a interpela. Parece
entrar na luta sem vacilar e anuncia:
Há algo do meu encontro com as militâncias que faz com que as políticas identitárias
soem de maneira intempestiva por onde quer que se olhe. Isto também se apresenta de
modo pungente quando assumimos a discussão política de coletivos minoritários em
momentos de formação durante a graduação. Mas, é ainda mais inquietante perceber a
assunção de políticas identitárias que ganham caráter de vetorização unicamente possível
em certos coletivos. Ou seja: uma proposta radical de usar a identidade abrindo mão de
voltar o olhar para a dimensão da subjetividade que é, sobretudo, ancorada na experiência
singular. Isto por si só se faz um grande desafio enquanto psi, uma vez que se aposta na
possibilidade da liberdade de se constituir como sujeito de si ainda que sujeito e social
sejam indissociáveis.
Seria então o espaço da Universidade que Carolina perquire com o olhar, seria
este dentro de uma Universidade que historicamente se posiciona à esquerda, como a
Universidade Federal Fluminense, e mais ainda de dentro do curso de psicologia que se
ocupa marcadamente dos processos de subjetivação em jogo no contemporâneo?
Uma onda, a primeira que me inquieta, e me tira o chão. É preciso, pois, tomar pé.
Há menos de dois anos via cartazes que alardeavam o evento da semana paralela
da Psicologia Preta. Os adjetivos marcam caminhos que até então eu ainda não havia
visto, um caminho paralelo e preto. Veja, eu, também psicóloga já há muito e preta
desde que nasci, julgava até aquele momento estar a trilhar o mesmo caminho e não um
paralelo. O mesmo caminho, mas que só o era por permanecer aterrado nas experiências
singulares; só podia ser o mesmo uma vez que éramos todos, de saída, diferentes.
Para pesquisas futuras, a autora talvez possa dar maior atenção/relevo às narrações
de experiências/experimentações que a interpelam, uma vez que estas vivências
singulares trazem em si força disruptivas e de diferenciação tanto mais quando
articuladas ao arcabouço teórico no qual a autora se apóia.
Considero, por fim, tua monografia um bom texto: que não apenas assenta ideias
nas páginas, mas principalmente convoca a transbordá-las. Por vezes te tiram o chão,
antes de te devolver à areia, nem seca, nem sã, nem salva, talvez um pouco
desorientada, mas ainda sim viva. E faço votos que insista no exercício de pesquisa,
pois, veja, já é outra. Outra idéia, outra estudante, e... Lá vem outra onda.