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Do deserto à praia.

O terreno é arenoso sob o sol escaldante da cidade de Araribóia. Se não


cuidarmos com as passadas, ferimos os pés, queimamos a pele sem nem notar.

O espaço formativo da universidade, espaço de construção de saberes, de novas e


provisórias verdades, espaço de coletivização de afetos, nosso Saara, é também nossa
praia. As salas já não são assépticas, as cores já não são iguais, as ideias mais plurais,
você já quase sorri como criança em dia praia. Mas basta apenas uma onda para algo se
desmanchar. Um raio a mais vira insolação.

Li uma, duas, três vezes. A terceira leitura da monografia de Carolina, faço à beira
mar. E o vai e vem das ondas propicia uma movida, os olhos em uma deriva marítima
reorganizam as linhas contagiadas por uma afetividade outra. Nas palavras, um convite
ao pensamento que se desdobra e se rebate na areia. Num vai e vem das ideias,
transbordo.
Texto marítimo, palavra água, parágrafo ondas, capítulo maré.
Uma onda, duas linhas, nova onda, outra linha, ela ia, você vinha. Eu ficava. Lia.
Ia.

Vaga um: perder o chão é necessário para tomar pé.

O presente não dá folga ao pensamento, ele não cessa de acontecer. Sob os olhos
dos atentos as coisas passam a ser mais e maiores do que momentos antes acreditavam
serem. Ao mesmo tempo, coisas outras rapidamente se esmiúçam e parecem
desaparecer.

Carolina, atenta, reconhece um movimento na formação de coletivos militantes


contemporâneos, movimento este que tendem a se ancorar na valorização daquilo que
comumente temos chamado de identidade. Vigilante aos efeitos de manutenção que
estes passam a performar quando fundeados em nomes, práticas e modos identitários.

A autora, atenta ao presente, se aflige nele e com ele; logo, dele se ocupa.

Nos parágrafos que compõem o seu texto introdutório, nos conta dos lugares que
ocupa e da interpelação dos gestos militantes em quem está nos momentos finais da
graduação. Na tarefa árdua de constituir em texto um chão firme o suficiente para
assentar, dar contornos às ideias, se põe no exercício de delinear questões que
sustentem, frente às experiências, um problema de pesquisa. O que parece inquietar
Carolina é a repetição dos mesmos gestos nas práticas militantes, como se de canto de
olho ela pudesse ver um certo tipo de “mesmo”, que disfarçado de mudança passa a
multiplicar e tomar espaço de tal maneira que já não restaria vaga para a criação. E
decide corajosamente entrar na disputa, enfrentar o “mesmo” que a interpela. Parece
entrar na luta sem vacilar e anuncia:

Há algo do meu encontro com as militâncias que faz com que as políticas identitárias
soem de maneira intempestiva por onde quer que se olhe. Isto também se apresenta de
modo pungente quando assumimos a discussão política de coletivos minoritários em
momentos de formação durante a graduação. Mas, é ainda mais inquietante perceber a
assunção de políticas identitárias que ganham caráter de vetorização unicamente possível
em certos coletivos. Ou seja: uma proposta radical de usar a identidade abrindo mão de
voltar o olhar para a dimensão da subjetividade que é, sobretudo, ancorada na experiência
singular. Isto por si só se faz um grande desafio enquanto psi, uma vez que se aposta na
possibilidade da liberdade de se constituir como sujeito de si ainda que sujeito e social
sejam indissociáveis.

Mas como fazer para desdobrar o misto de incômodo e curiosidade advindos do


cotidiano em perguntas e questões de pesquisa? Uma vez que parece ser a experiência e
experimentação que orienta a mirada da pesquisadora, o leitor tonteia pelas ondulações
do texto, em buscas de pistas que indiquem os vetores que auxiliam Carolina no
exercício de forjar um chão, um platô para assentar as ideias. Às vezes as definições e
delimitações parecem demorar a chegar. Às vezes parece que a autora se empolga no
exercício de forjar um chão firme para enunciar seus argumentos sem se permitir
tropeçar. As inquietações se proliferam nas páginas, as interrogações também. Mas
ainda assim o momento do tropeço, da dúvida que possibilita a transformação da
inquietação e curiosidade em questão de pesquisa, tarda a chegar.

Se os caminhos argumentativos e a aposta ética da autora bem como os parceiros


teóricos que a acompanharão ficam evidentes ainda nos primeiros movimentos do texto,
restam dúvidas sobre os limites do campo de pesquisa. Pequenas lacunas, rachaduras e
pequenos vãos que, como de costume em superfície muito lisas, propiciam um engasgo
na leitura.
Paradoxalmente, se a autora parece firme e certa nas suas assunções, o leitor
tropeça e engasga sem saber bem de onde veio as questões ou para onde caminharão as
argumentações. Tonteia e tomba. No entanto, é do tombo, do caixote, que é possível dar
início à construção de um pedaço de chão para o leitor, pois é a dúvida que faz insistir
na leitura, bem mais do que as certezas.

São as dúvidas que me tomam e me impulsionam a acompanhar o texto, e elas são


muitas: quais seriam os ‘certos coletivos’ de que Carolina fala? Seriam os movimentos
sociais analisados pela autora os pequenos coletivos universitários? De que modo se dá
este ‘abrir mão da dimensão subjetiva ancorada na experiência singular’? Por onde
vagueia o olhar da pesquisadora? Onde está o intolerável? Temos na introdução uma
pista: é aluna, sujeito em formação no curso de psicologia, no entanto carece neste
inicio de texto melhor delimitação dos espaços ocupados pela pesquisadora e suas
implicações. Pois veja, a simples nomeação e elencação dos vetores que a compõe não
dão lastro o suficiente para que o leitor intua os efeitos nas suas práticas de pesquisa.
Afinal, o que implica ser mulher, estudante, cidadã, branca, jovem, pesquisadora,
militante, heterossexual, etc. na contemporaneidade?

Seria então o espaço da Universidade que Carolina perquire com o olhar, seria
este dentro de uma Universidade que historicamente se posiciona à esquerda, como a
Universidade Federal Fluminense, e mais ainda de dentro do curso de psicologia que se
ocupa marcadamente dos processos de subjetivação em jogo no contemporâneo?

Uma onda, a primeira que me inquieta, e me tira o chão. É preciso, pois, tomar pé.

Vaga dois: como cortar juntas a onda baixa.

Recupero o fôlego e sigo. As lacunas do texto me convocam a um exercício de


memória em busca de algo que me faça acompanhar a inquietação da autora, e que
assim possamos juntas enfrentar a onda que açoita o corpo.
Ao recorrer genealogia foucaultiana, a autora pede atenção ao caráter inacabado e
incomeçado das matrizes de pensamento que inflem nas práticas militantes do presente.
Escapando dos determinismos simplistas, intui a descontinuidade das práticas
militantes. Este artifício metodológico nos possibilita encarar as lacunas do texto menos
como uma limitação e mais com um artefato metodológico que impele o leitor a
desacelerar também seus pressupostos e conclusões precipitadas. Se nos ajuda a não
pedir mais por uma origem da questão de pesquisa, passa a pedir delimitação do espaço
que ocupa, onde tece suas articulações.

Tateio lembranças de quem também ocupa este mesmo espaço da Universidade,


pois me parece que a delimitação do espaço ocupado pela autora, o campo empírico de
sua pesquisa, me auxilia enquanto leitora a acompanhá-la mais de perto.
Seu lugar de fala, de onde ela parte para enunciar suas questões, a autora
precavidamente nos indica, – mulher, estudante, cidadã, branca, jovem, pesquisadora,
militante, heterossexual, etc. – já o território, o espaço que ocupa, nem tanto.
Sublinho o espaço de onde enuncia entendendo que este difere do tal do lugar de
fala. Se o primeiro me parece dizer mais sobre os agenciamentos propícios ao ocupar
determinado espaço, o segundo tende a indicar as condições necessárias e suficientes
para que se entre no jogo discursivo. De modo mais simples, podemos dizer que eu e
Carolina podemos ocupar o mesmo espaço performativo, mas nunca o mesmo lugar de
enunciação.
Se não ocupamos o mesmo lugar de fala e se até o presente momento do texto não
sabemos muito bem qual é o território de pesquisa, como fazer para caminhar juntas? A
pergunta me toma de assalto antes de iniciar o primeiro capítulo, e quando me arrebata
noto que talvez seja esta mesma a questão de atravessa o texto de Carolina. Nas suas
interrogações acerca das práticas militantes assentadas em identidades que não cessam
de segmentar e criar distâncias, transversalmente, escutamos como eco uma pergunta
paradoxalmente simples e complexa: como fazer para seguirmos juntas?

Há menos de dois anos via cartazes que alardeavam o evento da semana paralela
da Psicologia Preta. Os adjetivos marcam caminhos que até então eu ainda não havia
visto, um caminho paralelo e preto. Veja, eu, também psicóloga já há muito e preta
desde que nasci, julgava até aquele momento estar a trilhar o mesmo caminho e não um
paralelo. O mesmo caminho, mas que só o era por permanecer aterrado nas experiências
singulares; só podia ser o mesmo uma vez que éramos todos, de saída, diferentes.

As multiplicações de caminhos paralelos que supostamente nos colocam na


mesma direção – no caso supracitado, estaríamos todos caminhando em direção à
construção de um saber psi, ainda que por outra picada, outras vias; uma branca e uma
preta, suponho. Será que ainda caminhamos juntos, então, uma vez que estamos em
outra estrada? Que coletivo é este? Que junto é este que pede distância, que cria
barreiras como condição para seguir caminhando?
Aqui apostamos junto com Carolina quando valoriza os vetores criativos em
detrimento dos identitários, confiando que estes que possibilitariam no fim
caminharmos juntas, cortar juntas a mesma onda baixa... Desde que aceitemos também
que se é preciso reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser, decerto isto não nos
exime de atentar aos modos que operamos tais diferenciações, os modos com os quais
nos engajamos nas lutas sociais e que talvez seja preciso a população minoritária
multiplicar os caminhos paralelos antes de encarar as estradas transversais.

Vaga três: Como aprender a ficar submerso sem, no entanto, se afogar.

Carolina, em um gesto corajoso, interroga os modos de organização e (em última


análise) modos de estar juntos no presente. Como é possível estarmos juntos, e
forjarmos Nós, pequenas coletividades e seguirmos atentos às barreiras e pontes que
criamos? Na aposta de diferenciar-se, a autora firma o pé junto aos seus aliados e de
saída anuncia: há algo da ordem do intolerável na experiência contemporânea de
militância que tem de cair.
Para tal, parece indicar que é preciso reconhecer os atravessamentos múltiplos na
experiência militante, forças e jogos de poder que a circunscreve e que possibilita
ocupar lugares sociais de enunciação sem, no entanto, forjar composições endurecidas.
Gestos estes que também auxiliam a dar um contorno, ainda que provisório e inacabado,
às praticas militantes, convocando desta forma atenção e cuidado aos índices de partilha
e agenciamentos que efetivamos.
Atenção e cuidado para que a entrada nos jogos de poder não vire disputa pelo
poder, para que a criação de condição de enunciação não vire elevação de púlpito para
discursos universais. É preciso coragem para encarar as lutas, para enfrentar as ondas, é
preciso astúcia para saber inclusive a hora de ficar submerso, e se esquivas das disputas
polêmicas.

Astutamente, a autora entende que entre construções e esfarelamentos de modos


de existência, entre os jogos e relações de poder, estamos nós aqui nos ocupando em
viver, e mais ainda, quando implicados na criação de modos que frente ao intolerável do
cotidiano se rebele, devemos em disputa e construir juntos condição de possibilidade
para a emergência de praticas e existências singulares – gesto militante, portanto – que
fazem do exercício de diferir de si mesmo germe produtivo de práticas coletivas mais
libertárias.

O texto monográfico de Carolina rebate em mim colocando em movimentos mais


questões do que respostas, como um bom texto deve ser, ainda que lacunas apareçam. É
preciso destacar a coragem de enfrentar questões tão espinhosas, e a pertinência e
importância dos problemas de pesquisa levantados no decorrer do texto para o campo da
psicologia social contemporânea. Ainda mais em tempos duros de retirada continuadas
de direitos no qual vivemos, toda iniciativa para a construção de arcabouço teórico que
a pensar as práticas militantes contemporâneas é louvável.

Sublinhamos também que os autores escolhidos como companheiros de


caminhada funcionam bem, ajudam a delinear o campo de pesquisa – ainda que por
vezes o uso de citações e de explicações sobre os pormenores conceituais dos autores
pareçam excessivas e desvie o leitor da questão de Carolina.

Para pesquisas futuras, a autora talvez possa dar maior atenção/relevo às narrações
de experiências/experimentações que a interpelam, uma vez que estas vivências
singulares trazem em si força disruptivas e de diferenciação tanto mais quando
articuladas ao arcabouço teórico no qual a autora se apóia.

Destas seqüências de ondas que te ofereço, ficam três indicações. É necessário


apostar em modos de escrita que deixe a ver os titubeios dos teus caminhos – um pouco
mais de dúvidas sempre cai bem àqueles que se ocupam da militância. Ao enfrentar o
mar vá sempre acompanhada – os autores que nos oferta são ótimas companhias, mas
talvez valha cavar espaço em sua embarcação àqueles que de você diferenciam, mais
espaços para os adversários do campo uma vez que já entendemos que não são
necessariamente inimigos e quiçá estamos na mesma rota. E, ainda, é preciso fôlego
para ficar submerso sem, no entanto, se afogar – me parece que as questões levantadas
no decorrer do texto são muitas e densas demais para o trabalho de conclusão de curso,
algumas se afogam no caminho.

Considero, por fim, tua monografia um bom texto: que não apenas assenta ideias
nas páginas, mas principalmente convoca a transbordá-las. Por vezes te tiram o chão,
antes de te devolver à areia, nem seca, nem sã, nem salva, talvez um pouco
desorientada, mas ainda sim viva. E faço votos que insista no exercício de pesquisa,
pois, veja, já é outra. Outra idéia, outra estudante, e... Lá vem outra onda.

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