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Crise económica

Análise de conjuntura política


06 de Março de 2011

José Ferreira
http://falaferreira.wordpress.com

mail@joseferreira.info
RESUMO
Os políticos enfrentam a crise com dois projectos antagónicos. Endividar os Estados
ainda mais para fomentar o crescimento económico para que, a médio prazo, se possa resolver o
problema da dívida. Ou pagar as dívidas a curto prazo para que a economia possa recuperar sem
ajuda do Estado. A estes projectos chamo keynesiano e liberal. Por influência da Alemanha o
projecto liberal se impôs a diversos níveis: no G20, na União Europeia e em Portugal. Durante o
ano de 2010, a dívida foi paga a custa das famílias, sem qualquer participação das empresas. No
ano de 2011, o pagamento da dívida exigirá a redução da despesa do Estado, isto é, a
privatização das reformas (com os planos poupança reforma), dos serviços de saúde, e da
educação. Propõe-se então que os movimentos sociais e partidos de esquerda iniciem uma
campanha pelo direito aos serviços públicos com duas intensões. Por um lado opor-se à forma
injusta como se está resolver a crise, que paga pelas famílias e não pelas empresas. Por outro,
como forma de desgaste das soluções liberais e de modo a recolocar no debate as soluções
keynesianas.

p. 2
SUMÁRIO

Resumo ........................................................................................................................................... 2

Sumário ........................................................................................................................................... 3

1 Apontamento metodológico .................................................................................................... 4

2 G20: actores e história recente................................................................................................. 6

3 A Europa entre o FEEF e a presidência do BCE ..................................................................... 9

4 Contexto nacional: O fracasso do keynesianismo e do liberalismo radical .......................... 10

4.1 Questões em jogo entre dominantes e dominados ..................................................... 12

5 Geração Parva e outros excluídos.......................................................................................... 15

5.1 Contexto económico e social ..................................................................................... 16

5.2 Origem e dinâmica do conflito social actual .............................................................. 18

5.3 Projecto moralista versus keynesianismo radical....................................................... 21

5.4 À beira de uma confluência perversa ......................................................................... 23

6 Cenários e estratégias ............................................................................................................ 24

6.1 Urgente: uma campanha pela qualificação dos serviços públicos ............................. 24

6.2 A fragmentação do movimento “Geração à Rasca”................................................... 25

6.3 O diálogo entre velhas e novas organizações políticas .............................................. 26

p. 3
Os homens fazem a sua própria história, mas não o fazem segundo a sua livre vontade, em
circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias imediatamente
encontradas, dadas e transmitidas. (K. Marx)

A manifestação de 12 de Março é um evento sem precedentes. A população portuguesa,


sem apoio de qualquer estrutura organizada, despertada por uma canção, juntar-se-á em Lisboa e
no Porto para protestar contra a política do governo. Não obstante, o protesto caracteriza-se pela
falta de claridade nos seus objectivos desta manifestação, o que dá azo à confluência de grupos
díspares. Por essas razões senti a necessidade de escrever este documento onde busco expor
algumas considerações sobre a conjuntura política actual. Estas resumem várias outras já
expostas no meu blog falaferreira.
Depois de um breve apontamento metodológico, passo a analisar as soluções para a crise
no contexto nacional e europeu. Isso permitirá entre de forma mais informada na análise do
contexto português. Ao entrar no plano nacional, tentarei mostrar que existe uma desconhecida
divisão entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD). Curiosamente, ou
melhor previsivelmente, existe uma divisão igual entre grupos económicos no país. Esta segunda
explicaria, que explicaria a primeira, é confusa e irei expor as duvidas que ela me levanta. Por
outro lado, a divisão entre os dois partidos é atenuada pelas pressões de Bruxelas que os
aproxima. Finalmente, e tendo o anterior como base, tentarei pensar o papel daqueles que chamo
os excluídos do debate: Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP), Partido
Popular (CDS/PP), e os diversos movimentos populares recém-formados em especial o “Geração
à Rasca” e o “Movimento por 1 milhão na Avenida da Liberdade contra a classe Política”.

1 APONTAMENTO METODOLÓGICO
Esta análise é feita a três níveis: global, tomando como ponto de referencia o G20;
europeia e nacional. Procurei analisar a dinâmica dos debates que aí ocorreram nos últimos
meses e as diversa propostas para uma solução para a crise. Os actores identificados foram
classificados em três tipos. Primeiro tipo: os dominantes, aqueles que defendem a solução em
curso. Segundo tipo: os dominados, portadores de uma solução alternativa. Supus que a cada
nível apenas havia uma solução alternativa. Há razões teóricas que permitem trabalhar com esta
hipótese. Por um lado, entre as soluções alternativas há sempre uma que tem mais força e que
acaba por atrair os esforços daqueles que estão contra a solução dominante. As outras soluções

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alternativas são abandonadas por simples questão de eficácia. Por outro lado, muitas vezes
(embora não neste caso), a soluções alternativas são uma inversão da solução dominante e, por
isso, se encontra apenas de uma solução alternativa. Finalmente, o terceiro tipo: os excluídos.
Entendi por excluídos aqueles que, tendo voz no debate, são obrigados a tomar partido de uma
das soluções previamente colocadas. Isto é, aqueles que por sua fragilidade são incapazes de
formular uma solução própria (ver Figura 1).

FIGURA 1 – DIAGRAMA GENÉRICO DE POSIÇÕES POLÍTICAS

Obviamente, a análise não está completa até ao momento em que é possível explicar a
posição que cada actor assume em função da sua condição e dos seus interesses materiais. Aqui,
obviamente, me aproximo do marxismo mas, ao mesmo tempo, o inverto. Com o marxismo,
estou de acordo em explicar as posições políticas pelas condições socioeconómicas dos actores.
Contra ele, encontro os actores na esfera política e não na esfera económica. Este passo permite
evitar que se adopte actores previamente definidos (capitalistas e operários) que não se adequam
a todos os problemas – pese o esforço de alguns marxistas em adequá-los. É portanto preferível
inverter o caminho, mesmo quando são reencontradas as “velhas” classes 1.
Finalmente definir a estrutura social – os actores, sua hierarquia e relações – da discussão
sobre a crise não é nada. Ela não passa de uma caricatura do processo, uma bengala útil para
explicar a história do debate político. É preciso entender como essa estrutura se “move” no
tempo, como evolui. Ou, mais exactamente, é preciso analisar o curso dos acontecimentos

1
Existem também razões teóricas para esta opção. Como as classes de idade (criança, jovem, adulto, velho), nunca se sabe
exactamente em que momento as classes e fracções de classes sociais começam ou terminam. É muito difícil identificá-las no
plano material. Somente quando se tornam políticas (“ainda és muito jovem para isso”) elas se polarizam e se deixam identificar.

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políticos com ajuda dessa bengala: a identificação dos dominantes, dominados e excluídos e as
razões porque eles ocupam cada uma dessas posições. E isto ainda é só uma etapa do trabalho! É
ainda necessário utilizar essa história, para reconhecer tendências e fazer uma prospectiva do
futuro próximo. E essa prospectiva deve ser feita de forma a orientar a acção política.

2 G20: ACTORES E HISTÓRIA RECENTE


Para o contexto português, interessa regressar à reunião do G20 de Junho de 2010. Os
EUA tentaram propor um rumo keynesiano global à solução da crise (ver Caixa 1). Em poucas
palavras, pese à divida que os Estados Nacionais já tinham contraído, era preciso endividar-se
mais para ajudar as empresas a sair da crise. Com a retoma do crescimento económico as
empresas iriam produzir a riqueza, e pagar os impostos, para reduzir a dívida. Após o fracasso da
reunião de 4 de Junho, o assessor do Obama, Krugman, e o professor deste, Stiglitz, ambos
munidos de um prémio Nobel da economia cada, vieram dar recados à Europa. Stiglitz afirmou
que os problemas da dívida pública não se colocam aos EUA e aos países europeus da mesma
forma que a outros países 2 . Krugman criticou a política de austeridade europeia e, logo de
seguida, a possibilidade de um economista alemão ficar à frente do Banco Central Europeu 3.
Obama associou-se à presidente Kirchner da Argentina e Lula da Silva para fortalecer a sua
posição.
Mas apesar da influência americana nas instâncias internacionais, os resultados da
reunião G20 no dia 28 de Junho contrariaram uma vez mais Obama. A posição alemã instalou-se
definitivamente como dominante. “O controlo do défice vence o duelo com o crescimento
económico”, noticiou o Económico4. A Alemanha impôs ao G20 a tese de que a solução para a
crise deve ser encontrada ao nível dos estados nacionais e que passa por um ajuste fiscal. E a
recomendação saída dessa reunião, para países como Portugal, foi dizer que a solução para a
crise está nas exportações para os países emergentes: a China em particular e, incluindo neles os
países produtores de petróleo5.

2
Ver “El euro puede desaparecer” in El País, disponível em http://www.elpais.com/articulo/economia/euro/puede/desaparecer/
elpepieco/20100418elpepieco_4/Tes
3
Ver “A austeridade” in I (19.06.2010), disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/65286-a-austeridade e “Paulo Krugman
contra presidente do banco central alemão à frente do BCE” in Público (21.06.2010), disponível em http://publico.pt/1442935.
4
Ver “Controlo do défice vence duelo com crescimento no G20” in Economico (28.06.2010), disponível em
http://economico.sapo.pt/noticias/controlo-do-defice-vence-duelo-com-crescimento-no-g20_93091.html.
5
Ver “Não vi oposição à nossa estratégia de consolidação (entrevista com Durão Barroso) ” in Económico (28.06.2010),
disponível em http://economico.sapo.pt/noticias/nao-vi-oposicao-a-nossa-estrategia-de-consolidacao_93090.html.

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A partir de então as discussões no G20 não tiveram mais impacto sobre a crise europeia.
Os Estados Unidos da América iniciaram uma abordagem keynesiana unilateralmente. A
Reserva Federal norte-americana (FED) começou a emitir dólares com vários objectivos. Por um
lado, resolver a curto prazo as restrições da economia americana no acesso ao crédito. Por outro
desvalorizar o dólar. A desvalorização do dólar permitia tanto reduzir o valor da dívida pública,
como aumentar a competitividade das exportações.

CAIXA 1 – SUMÁRIO DA TEORIA KEYNESIANA

A escola keynesiana pode entender-se em base a dois pressupostos. Em primeiro lugar, assume que as teses da
microeconomia (lei da oferta e da procura) não explicam as principais variáveis macroeconómicas: emprego,
investimento, consumo e crescimento económico. Em segundo lugar, busca formular uma explicação para estas
variáveis.
O keynesianismo assumiu que o investimento é o principal motor do crescimento económico:
+ Investimento ⇒ + Emprego ⇒ + Consumo ⇒ + Ganhos das empresas ⇒ + Investimento ⇒ …
Só que o investimento implica o recurso a crédito. (Grandes empresas, como a GALP, distribuem os lucros
pelos associados e investem a crédito). E Keynes teve que romper com a ideia de que o dinheiro investido é o
dinheiro aforrado (não gasto em consumo). Uma ideia lógica somente acreditando que há mais investimento quando
as pessoas consomem menos – o que não há verdade. Pode haver aforro sem investimento. Mas pode haver
investimento acima do aforro existente. Os bancos, ao passar um papel “José deve a João”, criam um dinheiro
fictício. E existe um sistema para gerir esse dinheiro fictício que gera o capital necessário aos investidores: a bolsa.
O problema é que o dinheiro fictício aumenta muito mais rapidamente que o dinheiro real. Em 2008, antes da
crise, o volume de negócios transaccionados em bolsa (fictícios) era o triplo do volume de negócios reais. Chegados
a esse momento, os credores começam a pedir o seu dinheiro de volta. Isto se traduz num aumento da taxa de juros.
Dá-se então um ciclo de desinvestimento:
– Investimento ⇒ – Emprego ⇒ – Consumo ⇒ – Ganhos das empresas ⇒ – Investimento ⇒ …
A inversão do ciclo negativo é menos clara. Kalecki supôs que era produto do crescimento económico derivado
da inovação tecnológica. Quando este crescimento superasse o decrescimento derivado do desinvestimento, se
iniciava um novo ciclo virtuoso. Na prática, ele foi produto da intervenção dos Estados. Já que nenhum investidor
privado tem interesse em investir quando as pessoas não estão a consumir, o Estado deve fazê-lo.
A recuperação dos EUA a partir de 1935 pautou-se por esta política. As grandes obras do Estado geraram o
emprego que gerou o consumo necessário para que surgissem investidores privados. Na falta de crédito, o governo
pode imprimir moeda para financiar os investimentos. A desvalorização da moeda também é aconselhada nestes
casos. Ela torna as exportações mais baratas, por isso mais competitivas, incentivando o investimento com o
consumo em outros países.

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A desvalorização do dólar tem, obviamente, efeitos negativos sobre as economias dos
países emergentes. Desvalorizar o dólar significa a valorização das outras moedas, em particular
das economias emergentes: China, Índia, Brasil, Rússia, Argentina, etc. Resultado, é-lhes mais
difícil exportar: seja porque o principal mercado de exportação, os EUA, têm menor poder de
compra; seja porque os EUA passam a ter maior poder de concorrência porque têm uma moeda
desvalorizada; seja pelos efeitos que derivam das transacções se fazerem em dólares 6.
Como esperado, os outros países tomaram medidas para evitar a valorização das suas
moedas. Os bancos centrais dos outros países comparam o “excesso” de dólares que entrava na
sua economia a fim de impedirem a valorização da sua moeda. A crise do euro encarregou-se de
desvalorizar a moeda europeia, acompanhando o dólar. A China foi mais radical. Desde há anos
que mantém uma taxa de câmbio fixa – determinada por lei – entre o yuan e o dólar. Em
resultado, o yuan acompanhou rigidamente a desvalorização do dólar.
A disputa do G20 passou a partir de então a ser feita entre os EUA e a China. De todas as
medidas tomadas pelos governos anteriormente citados, pelo peso da sua economia e pela rigidez
da medida, é a inexistência de “livre-câmbio” entre o yuan e o dólar que mais contribui para o
insucesso da política monetária de Obama. Daí que a discussão no G20 passou a concentrar-se
em torno da política económica chinesa com os EUA tentando impor, sem sucesso, uma
valorização do yuan face ao dólar. A discussão modificou-se, tornando a China dominante e os
EUA seguiram dominados.
Os excluídos, os outros países emergentes, viram a sua situação piorar. A sua moeda
valorizou não só face ao dólar, mas também face ao yuan, reduzindo a competitividade das suas
exportações. Mas, como excluídos, não têm podido fazer mais que protestar para ver se os dois
grandes, EUA e China, se entendem.
Mas para Portugal esta discussão tem pouco interesse. Por isso, regressemos à anterior.
Que razões explicam as posições da Alemanha e dos Estados Unidos da América? O segundo é
fácil de entender. A sociedade norte-americana é culturalmente adversa ao desemprego. O país
está em disputa pela hegemonia global, com a China que ameaça ser, já em 2020, a maior
economia do mundo. E, finalmente, existe uma determinante ideológica: Obama rodeou-se de

6
Um champô vendido a 8 dólares pelo Brasil à Argentina passa a valer menos reais. Basta lembrar que a exportação gera
emprego e, portanto, dinamiza a economia interna, para perceber que a redução do valor das importações, pelo mesmo processo,
não compensa a desvalorização das exportações.

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assessores keynesianos – veja-se o papel de Krugman – que acreditam numa maior intervenção
do Estado sobre a economia.
As razões da Alemanha são tanto políticas como económicas. Existe, por um lado, a
percepção na população de que a Alemanha está a sustentar os países do sul da Europa. As
supostas concessões que Angela Merkel têm feito aos outros países da União Europeia têm-lhe
custado sucessivas derrotas eleitorais. Por outro lado, a crise não está a ser negativa para a
Alemanha. Cada vez que o euro cai, à custa de uma crise, as exportações da Alemanha sobem.
Ao mesmo tempo, os mercados a quem os países do sul pagam juros da dívida têm nome e
apelido – e uma boa fatia escreve-se em alemão. Não se deve estranhar que a economia
germânica tenha conhecido, em 2010, o maior crescimento desde a II Guerra Mundial 7.

3 A EUROPA ENTRE O FEEF E A PRESIDÊNCIA DO BCE


Com a esperança posta no G20, a escala europeia passou-me desapercebida até há bem
pouco tempo. De qualquer modo, se a Alemanha pôde dominar o G20, mais facilmente dominou
a União Europeia. De facto, olhando a história da criação do Fundo Europeu de Estabilização
Financeira, parece que a ideia alemã de que as crises são um problema nacional só é posta em
causa quando a própria economia obriga a uma intervenção. Entre a crise grega e a criação do
fundo passaram-se cerca de seis meses.
Na época, a oposição à postura alemã não chegou a ter uma oposição organizada. Ela foi,
de alguma maneira, assumida por diversos intelectuais. Em primeiro lugar, as intervenções já
referidas dos norte-americanos Stiglitz e Krugman. Eles visaram influenciar a discussão
europeia. O filósofo alemão Habermas também criticou, em Angela Merkel, a falta de uma visão
europeísta 8 . E em França, foi publicado o Manifesto dos Economistas Aterrorizados, logo
traduzido em várias línguas9.
O fundo será discutido novamente este mês de Março. Esperava-se um alargamento do
fundo, mas ele parece, à partida, inviabilizado. A coligação do governo de Merkel apresentou
uma moção ao congresso alemão que rejeita o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira. Além
disso, surgiu um manifesto de economistas alemães “contra as soluções negociadas em

7
Ver “Economia alemã cresceu mais do dobro da francesa após a maior recessão desde a guerra” in Público (15.02.2010),
disponível em http://publico.pt/1480354.
8
Ver “En el euro se decide el destino de la UE” in El País, disponível em http://www.elpais.com/articulo/internacional/euro/
decide/destino/UE/elpepiint/20100523elpepiint_2/Tes
9
Uma versão deste documento está disponível em http://resistir.info/crise/economistas_aterrorizados.html.

p. 9
Bruxelas” e “a favor da reestruturação de dívida e da criação de um mecanismo que preveja a
falência dos Estados” 10. As vozes em contra mal se fazem ouvir e pouco aparecem nos jornais
portugueses. Vale citar uma exceção importante: as declarações de Dominique Kahn-Strauss,
francês presidente do FMI, possível candidato pelo partido socialista francês à presidência no
final deste ano. Segundo ele, a melhor maneira de pagar a dívida dos Estados é acelerar o
crescimento económico11.
Outro aspecto relacionado é a saída do francês Jean-Claud Trichet da presidência do
Banco Central Europeu. Ele tem alinhado com as posições da Alemanha, exigindo aos países
austeridade. Mas o seu mandato termina no final deste ano. O ex-presidente do Banco Central
Alemão, Alex Weber, era, até há pouco tempo, o candidato mais provável para ocupar o lugar de
Trichet. Mas Nicolas Sarkozy opôs-se a entregar a presidência francesa a um economista que é
contra o fundo de estabilidade 12 . A nomeação do próximo presidente do BCE e as eleições
presidenciais francesas, onde se prevê que Sarkozy dispute com Kahn-Strauss, poderão recolocar
a França em disputa com a Alemanha pelos destinos da UE, isto é, como porta-voz da solução
dominada.

4 CONTEXTO NACIONAL:
O FRACASSO DO KEYNESIANISMO E DO LIBERALISMO RADICAL
Em Portugal a solução dominante e dominada aparecem invertidas. O Primeiro-Ministro
José Sócrates e o Presidente da República Aníbal Cavaco Silva são keynesianos convictos.
Assim que não deve estranhar que as primeiras medidas anunciadas pelo governo no início da
crise fora: construir a linha do TGV, o novo aeroporto de Lisboa e outra ponte sobre o rio Tejo.
De facto, mais do que criar riqueza, estas obras destinavam-se a criar emprego para dar início a
um ciclo virtuoso de crescimento económico. A construção civil é um sector por excelência para
este tipo de investimentos. Por duas razões. Em primeiro lugar é um sector de mão-de-obra
intensiva e, além disso, pouco qualificada – ajustada às qualificações do país. Em segundo lugar,

10
Ver “Coligação de Merkel recusa a compra de dívida pelo fundo europeu” in Publico (22.02.2011), disponível em
http://publico.pt/1481591; e “Dívida: economistas alemães contra soluções de Bruxelas” in Diário de Notícias, disponível em
http://www.dn.pt/Inicio/interior.aspx?content_id=1793001.
11
Ver “FMI pede aos líderes europeus que apresentem solução que convença os mercados” in Negócios Online, disponível em
http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=469395.
12
Ver “El próximo presidente del BCE será…” in El País, disponível em http://www.elpais.com/articulo/primer/plano/proximo
/presidente/BCE/sera/elpepueconeg/20110220elpneglse_2/Tes.

p. 10
por ter sempre sido o sector onde o governo sempre aposta para “aquecer” a economia, é um
poderoso lobby com possibilidade de exigir o governo a contratá-lo.
É claro de que se tratava de uma política arriscada, mas o governo socialista decidiu levá-
la a cabo, com apoio dos partidos à sua esquerda 13 . Para que tivesse sucesso, uma vez que
Portugal não tem o controlo soberano da sua moeda (não pode imprimir notas), era necessário
recorrer ao crédito, para o qual Portugal precisa do aval alemão. Era preciso que os novos
trabalhadores consumissem produtos portugueses e não importados. Isto supõe que países
vizinhos estariam a implementar políticas semelhantes e, com o aumento do consumo interno,
reduzissem as suas exportações para Portugal (já que, tampouco, as importações podem ser
reduzidas com taxas aduaneiras mais elevadas). E era preciso que os investimentos se pagassem
a médio prazo, condição para que o consumo dos trabalhadores contratados gerasse um ciclo
económico virtuoso e não inflação.
Não obstante, em Maio de 2010, a União Europeia obrigou o governo português a seguir
a uma política de austeridade 14 . É plausível que a negociação com Passos Coelho e o
compromisso do Partido Social Democrata com o plano de austeridade (chamado de Plano de
Estabilidade e Crescimento II) tenha sido a moeda de troca exigida por Sócrates para abdicar das
suas convicções. A solução aí encontrada é a que perdura até hoje. Ela é imposta e vigiada por
Bruxelas. E, ao contrário do que desejou Mário Soares, os países do sul não foram capazes de
bater o pé a Merkel.
Nesta situação particular, aquilo que defendia o grupo dominante não se realizou.
Tampouco aquilo que defende o grupo dominado está a realizar-se. A europa, o PSD e alguns
empresários exigem reformas estruturais15. Mas o conteúdo das reformas estruturais permanece
ambíguo. É preciso olhar os números de Medina Carreira para entender do que se trata 16. As
dívidas do Estado cresceram sobretudo devido à despesa com prestações sociais: pensões de
reforma, serviço nacional de saúde e educação pública. Quando se afirma que “privatizar é a

13
Ver “PS, PCP e BE chumbam suspensão do TGV” in Público (28.05.201), disponível em http://publico.pt/1439471.
14
Ver “União Europeia impôs a Sócrates a redução imediata do défice público” in Publico (11.05.2010), disponível em
http://publico.pt/1436544.
15
Ver “Bruxelas exige reformas e consolidação a Sócrates” in Diário de Notícias (14.09.2010), disponível em http://www.dn.pt/
inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1661981 e “O Estado deve repensar as suas funções” in Diário de Notícias
(26.02.2011), disponível em http://www.dn.pt/inicio/economia/interior.aspx?content_id=1793668.
16
No final do programa Plano Inclinado de 05.02.2011, Medina Carreira mostra um gráfico onde aponta as causas do aumento
dos gastos do Estado. Eles devem-se às prestações sociais: reformas, saúde e educação. O vídeo está disponível em
http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/plano-inclinado/2011/2/a-divida-externa-de-portugal---convidado-carlos-monjardino
07-02-2011-163221.htm.

p. 11
solução para a crise”, como o fez recentemente Luís Palha17, membro do concelho directivo do
grupo Jerónimo Martins, está-se a falar em substituir as prestações sociais do Estado por planos
de poupança reforma, seguros de saúde e escolas privadas.
Posto isto, é possível fazer outra leitura de notícias que afirmam que subsidiar alunos no
ensino privado sai mais barato ao Estado que manter escolas públicas ou que versam sobre o
direito de escolha entre público e privado18. O PSD é o promotor desta proposta em Portugal. Ela
estava na moção de Passo Coelho que o levou a presidente do partido. E recentemente, o PSD
pediu um estudo para avaliar o “custo do aluno no ensino público”. Mas, pese às pressões
recebidas, Sócrates se tem oposto a essas reformas estruturais 19.

4.1 Questões em jogo entre dominantes e dominados


Vale notar que a disputa entre os dois partidos políticos do centro levada a cabo em Maio
de 2010, foi repetida em Fevereiro deste ano entre empresários. De um lado, a conferência
organizada pelo Centro de Estudos de Desenvolvimento Económico e Social (presidido por
Campos Cunha) e pelo Diário de Notícias. Esta conferência foi “contratada” pela Caixa Geral de
Depósitos ao CEDES. Nela se defendeu a posição que aqui chamei de dominada: o
emagrecimento do Estado, pela privatização das “prestações sociais”.
Dois dias depois, a Reuters e a TSF organizaram outra conferência com a participação de
diversos banqueiros portugueses. Aqui o discurso foi diferente: optimista. Para Ricardo Salgado,
presidente do Banco Espírito Santo, Portugal vai no bom caminho e as medidas de austeridade
começam a surtir efeito. Além do mais, afirmou que o Fundo de Europeu de Estabilização
Financeira não resolve os problemas da Grécia e da Irlanda, desaconselhando o recurso ao fundo
por parte do governo português. Um ano antes, o mesmo banqueiro tinha defendido ainda

17
Ver “Privatizar é o caminho a seguir” in Diário de Notícias (26.02.2011), disponível em http://www.dn.pt/inicio/economia/
interior.aspx?content_id=1793674.
18
Ver “Estado apoia metade das escolas privadas existentes” in Público (24.02.2011) disponível em http://publico.pt/1481931 e
“O Estado que nos (des)protege” in SIC Reportagem (12.10.2010), vídeo disponível em http://sic.sapo.pt/online/video/
informacao/Reportagem+Especial/2010/10/o-estado-que-nos-desprotege12-10-2010-155431.htm.
19
Ver “PSD quer revisão da Constituição no centenário da República” in Público (14.04.2010), disponível em
http://publico.pt/19189096.htm; “PSD quer estudo independente sobre o custo de um aluno no ensino público” in Público
(06.02.2011), disponível em http://publico.pt/1478870; e “Sócrates avisa PSD que não aceita revisão constitucional para
enfraquecer ‘Estado Social’” in Público (16.04.2010), disponível em http://publico.pt/1432526.

p. 12
medidas mais próximas da posição de José Sócrates: os governos devem ajudar a economia a sair
da crise e as grandes obras públicas, especialmente o TGV, devem avançar 20.
É plausível assumir que PSD e PS se apoiam, respectivamente, nestes dois grupos
económicos – ainda que o façam inconscientemente. A dinâmica dessa relação entre interesses
políticos e interesses económicos está exposto na Caixa 2. Portanto, se coloca a questão do que
divide estes grupos de empresários, em busca da explicação da divisão entre os dois partidos. Há
falta de estudos e tempo para sumarizá-los, sou obrigado a entrar no campo das hipóteses para
responde a esta questão. Não obstante, estas hipóteses são um bom guia de análise da realidade
política portuguesa para os próximos meses. Os acontecimentos que se seguirão confirmarão ou
negarão estas hipóteses.
Do lado da posição dominada, defendendo a redução do Estado e a privatização das
“prestações sociais” estão os empresários voltados para a exportação. Com o Eng.º Henrique
Neto, eles sentem-se a sustentar um país que vive à conta do Estado 21. Não por acaso, Soares dos
Santos, o patrão da Jerónimo Martins, é dos empresários mais críticos do governo de Sócrates. A
Jerónimo Martins é uma empresa que, no ano 2010, viu os seus lucros crescerem 48% devido,
em particular, a investimentos feitos na Polónia22.
Uma conclusão se pode retirar do facto de serem as empresas exportadoras e não as
empresas financeiras a exigirem a privatização das prestações sociais. Não se trata, pois, de
exigir da abertura de um mercado – dos seguros de saúde, de providência, etc. – ao sector
privado, numa esfera que até agora tem sido monopólio do Estado. Esse mercado não parece
atraente para os investidores privados. Trata-se, isso sim, de pretender a redução das despesas do
Estado ou, mas exactamente, dos impostos pagos ao Estado. Ou seja, se exige a retracção do
Estado sem garantir que a esfera privada o vá substituir.

20
Ver “Grécia e Irlanda provam que resgate não dá «bons resultados»” in Agência Financeira (17.02.2011), disponível em
http://www.agenciafinanceira.iol.pt/geral/resgate-fmi-ricardo-salgado-bes-crise-agencia-financeira/1233872-5238.html; “BES
preocupado com queda de depósitos” in Agência Financeira (28.02.2011), disponível em http://www.agenciafinanceira.iol.pt/
economia/ricardo-salgado-bes-crise-resgate-depositos-agencia-financeira/1236108-1730.html e “Salgado apela a decisores para
que não acelerem o fim dos estímulos à economia” in TSF Rádio Notícias (11.12.09), disponível em http://www.tsf.pt/
PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=1444659.
21
Ver as declarações do Eng.º Henrique Neto na edição do programa Plano Inclinado de 12.02.2011. O vídeo encontra-se
disponível em http://sic.sapo.pt/online/video/informacao/plano-inclinado/2011/2/a-economia-e-financas-necessita-de-aumentar-
as-exportacoes-para-o-dobro---convidado-eng-henrique-net.htm.
22
Ver as críticas de Soares dos Santos em “Patrão da Jerónimo Martins classifica políticas de Sócrates como ‘demagógicas’ e
‘intoleráveis’” in Público (11.02.2011), disponível em http://publico.pt/1364782; e a resposta de José Sócrates em “Primeiro-
ministro responde a Soares dos Santos: ‘não basta ser rico para ser bem educado’” in Público (18.02.2011), disponível em
http://publico.pt/1481056. Sobre os lucros da empresa, ver “Lucros da Jerónimo Martins crescem 40% em 2010” in Jornal de
Negócios (18.02.2011), disponível em http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=469173.

p. 13
CAIXA 2 – INFLUÊNCIAS MÚTUAS ENTRE POLÍTICA E ECONOMIA

É necessário deixar claro que não se supõem que a influência cruzada entre política e economia se deva ler
numa espécie de teoria da conspiração, um acto consciente de parte a parte para satisfazer interesses egoístas. Por
outras palavras, não suponho que os empresários influenciem os políticos por via da corrupção ou outras formas que,
ainda que legais, sejam ilegítimas. Reconheço que elas existem, mas não considero que elas tenham a importância
dá.
A questão coloca-se de outra maneira. O governo só pode, com a sua política económica, criar oportunidades
para crescimento económico para interesses económicos reais. Uma iniciativa económica do Estado que não
encontre uma empresa interessada em aproveitá-la está condenada ao fracasso. Por isso, ao elaborar as políticas
económicas os governos tomam em conta os diagnósticos que as empresas fazem da economia.
Mas obviamente, nem todos os empresários têm os mesmos interesses. Eles disputam uns com os outros para
impor problemas prioritários aos governos. E, pelas razões expostas no ponto metodológico do texto principal, é
muito provável que os empresários se dividam em dominantes, dominados e excluídos. Então, é possível postular
que grupo económico dominante colabora com o grupo político dominante. Isto por definição: porque os dominantes
são os grupos por detrás (autores satisfeitos) da política implementada.
Mas não creio que as políticas dominantes, aplicadas, se definam entre o grupo económico e o grupo político
através de um “acertar de agulhas” face-a-face. É antes resultado de um processo de debate cumulativo que se faz
por meio de conferências, comunicados de imprensa, etc. etc. As reuniões face-a-face e o lobby tem a sua
importância, mas são apenas um elemento do processo. Deste modo, é necessário assinalar que a influência não é só
num sentido – da economia para a política –, mas nos dois.
Para distinguir-se, o grupo político dominado tem de fazer sua a estratégia do grupo económico dominado.
Nem é necessário que se trate de um acto consciente. Basta só notar que se o político de oposição propuser o mesmo
que o político de situação, não terá nada a dizer. Se defender posições que não encontrem reconhecimento num
grupo económico o partido não terá apoios. O ajustamento é praticamente inconsciente. O político que não satisfaz
as condições cai; aquele que satisfaz perdura. E isto explica porque um partido do centro, nos primeiros anos de
oposição depois de ter sido governo, tem dificuldade em manter um líder por mais que um ano.
A sobreposição entre grupos económicos e políticos excluídos é mais complexa. Ela acontece porque os seus
discursos, quase sempre, são a crítica da política dominante. Quase não se formulam propostas ou elas permanecem
pouco formuladas. A formulação de propostas pelo contrário tende a pulverizar o grupo, que sendo o maior dos três,
deixa de o ser assim que tem de passar do protesto à proposta.

Contra estas levanta-se as empresas que dependem sobretudo do mercado nacional. Sem
incentivos à economia em crise as suas vendas decrescem. Mais: com o plano de austeridade
exigido por Bruxelas, a recessão ainda é maior e as consequências para estas empresas também.
Isto ainda é mais válido para as empresas que têm como principal cliente o Estado, como as
construtoras civis especializadas em estradas, pontes e outras obras públicas. Então não nos deve

p. 14
surpreender o facto de que o jornal i seja o que mais tem divulgado posições à esquerda do
governo, de entre as quais merece ser destacada a entrevista dada por Boaventura Sousa Santos 23.
Este jornal é propriedade do grupo Lena, cujo sector de actividade mais importante é a
construção civil.
Não é possível compreender porque estas duas posições são apadrinhadas,
respectivamente, por Faria de Oliveira (Presidente da Caixa Geral de Depósitos) e Ricardo
Salgado (Presidente do Banco Espírito Santo). O primeiro “encomendou” ao Centro de Estudos
de Desenvolvimento Económico e Social a conferência onde foi recomendado ao Estado a
privatização dos serviços públicos. Algo semelhante o próprio já tinha defendido numa
conferência organizada pela Reuters e TSF, em Dezembro de 2009 24. A mesma conferência onde
Ricardo Salgado defendeu, como referi, os investimentos no TGV e aeroporto de Lisboa.
Nestes dois casos, tratando-se de pessoas, o seu comportamento divergente pode dever-se
aos mais diversos factores. Formações económicas diferenciadas (mais keynesiana vs mais
liberal) ou mesmo de relações pessoais ou filiações partidárias com um ou outro grupo político.
Isto não deve dispensar uma análise dos clientes dos dois bancos. Mas também não deve
esquecer-se que a Caixa Geral de Depósitos é controlada pelo Estado. Enfim, trata-se de apenas
duas pessoas. Mas é bom lembrar que são duas pessoas com poder suficiente para determinar a
correlação de forças entre dominantes e dominados.

5 GERAÇÃO PARVA E OUTROS EXCLUÍDOS


Os que chamo de excluídos são aqueles que influenciam o processo sem, contudo, ter
condições de formular uma alternativa. Influenciam o processo por boicote, seja na Assembleia
da República, seja em manifestações de rua. Neste grupo estão incluídos partidos sem
possibilidades de vir a ser governo (PCP, BE e CDS/PP); sindicatos, entre os quais darei uma
atenção especial à CGTP; e movimento sociais “espontâneos”. Reconhecendo que estes
movimentos sociais são produto de uma constelação de iniciativas originadas em situações
completamente diversas, tomo como referencia os dois mais conhecidos: a “Geração à Rasca” e
o movimento por “1 milhão na Av. da Liberdade contra a classe política”.

23
Ver “Boaventura Sousa Santos. Os mercados comentem crimes contra a humanidade” in I, disponível em
http://www.ionline.pt/conteudo/96290-boaventura-sousa-santos-os-mercados-cometem-crimes-contra-humanidade.
24
Ver “Portugal precisa de um novo modelo económico” in TSF Radio Notícias, disponível em http://www.tsf.pt/PaginaInicial/
Economia/Interior.aspx?content_id=1444728.

p. 15
A compreensão destes actores deve tomar em conta os efeitos das políticas de austeridade
impostas por Bruxelas ao governo português. Como ficou dito na secção anterior, a tensão entre
keynesianos e liberais em Portugal é dominada pelos primeiros – ao contrário do que acontece na
Europa e no mundo. Mas Bruxelas tem influenciado o equilíbrio interno entre estes dois grupos
impondo uma política de austeridade que nem permite realizar a política keynesiana nem realiza
por completo a política liberal. Outro resultado das pressões de Bruxelas é o facto de que o
programa de austeridade tem sido subscritos pelos dois partidos de centro: PS e PSD. Esta
situação – para a qual pode ser aventada a hipótese de que é a moeda de troca que Sócrates exige
para abdicar do seu programa original – impede o PSD de colocar-se como alternativa política ao
eleitorado português.

5.1 Contexto económico e social


As medidas implementadas por este arranjo político levaram ao agravamento de
problemas já existentes na sociedade portuguesa. Um, a depauperação das condições de trabalho
no país que resultam, entre outras coisas, na falta de independência dos jovens e no
endividamento das famílias. O outro, a desvalorização dos títulos académicos: hoje uma
licenciatura já não confere o mesmo estatuto, materializado com um emprego e uma
remuneração, que conferia há uma geração atrás. Estes dois processos escondem outro mais
profundo que se vem observando desde a década de 1990. Passada a euforia da adesão à
Comunidade Económica Europeia, o país se desindustrializou e tornou-se incapaz de sustentar
uma população cada vez mais próxima – e por isso mais facilmente comparável – dos seus
vizinhos europeus. Nada disto foi resultado da crise; mas tudo isto foi exacerbado por ela.
A desindustrialização, por um lado, e a manutenção das condições de vida à custa do
endividamento, por outro, não é um facto exclusivo de Portugal. Ele é comum a toda Europa e se
estende aos Estados Unidos da América também. Note-se que o endividamento não foi apenas
responsabilidade dos indivíduos, como às vezes se pretende fazer crer. Os Estados desde a
década de 1970 vêm arrecadando menos impostos. Por isso só puderam manter os serviços de
saúde e educação ou pensões de reforça endividando-se. Em 2009, endividaram-se abruptamente,
para evitar a falência de bancos devido às dívidas não pagas da economia privada. Veja-se já em
1998 a dívida pública portuguesa era de 50,4% do PIB. Nos dez anos seguintes, entre 1998 e

p. 16
2008, ela aumentou cerca de 15% do PIB (1,5 pontos percentuais ao ano). E em 2009, num só
anos, ela cresceu mais de 10% do PIB25.
Por pressão da Alemanha, em 2010, a prioridade do G20, da Comissão Europeia e do
governo português, como ficou demonstrado acima, foi reduzir a dívida pública. Os impostos
aumentaram; os salários dos funcionários públicos reduzidos e dos trabalhadores de empresas
privadas cresceram pouco. As taxas moderadoras dos serviços de saúde aumentaram; a educação
enfrentou restrições orçamentais; etc. Estas medidas começaram a aplicar-se em 2010 e
aplicaram-se em força em Janeiro de 2011.
Mas a austeridade não se aplicou de igual modo a todos. Os gestores de empresas
públicas mantiveram os seus gordos salários intocados. Protestos pela redução do número de
deputados e pela redução do “tamanho” do Estado não foram atendidos 26 . Assim foi fácil
propagar-se a ideia que a crise se deveu a uma corrupção generalizada e impune, processo que
foi alimentado por escândalos como a operação Face Oculta ou o caso do Freeport 27.
Mas outras diferenças na aplicação das medidas de austeridade ficaram menos conhecidas
dos portugueses. As empresas privadas puderam antecipar a distribuição de dividendos previstos
para 2011 em Dezembro de 2010. Isto é, foi-lhes permitido distribuir, antes que os impostos
entrassem em vigor, os lucros que ainda não obtiveram 28 . Por outro lado, a contracção da
economia foi mais prejudicial para os trabalhadores que para os empresários. Enquanto empresas
como a GALP, EDP, Jerónimo Martins, etc. continuaram a ter elevados lucros, os salários dos
portugueses foram os que perderam mais em relação ao PIB em toda a União Europeia. Por
exemplo, a GALP negociou com os seus trabalhadores um aumento para 2011 de apenas 0,5%,
enquanto que os seus lucros no ano de 2010 foram de 43%. 29.

25
Os dados disponíveis no Eurostat mostram que em 1998, as dividas acumuladas dos Estados alemão e português eram,
respectivamente 60,3% e 50,4% do PIB. Dez anos depois, esses valores subiram a 66,3% e 65,3% do PIB respectivamente. Em
um ano, de 2008 para 2009, as dívidas públicas subiram para 73,4% e 76,1% do PIB. Dado disponíveis em
http://epp.eurostat.ec.europa.eu/portal/page/portal/eurostat/home/.
26
Ver “PS e PSD chumbam limite aos salários dos gestores” in Económico (18.02.2011), disponível em
http://economico.sapo.pt/noticias/ps-e-psd-chumbam-limite-aos-salarios-dos-gestores_111516.html e “Austeridade ‘não toca na
gordura do Estado e nos interesses da oligarquia’ (Entrevista com Henrique Neto)” in Público, disponível em
http://publico.pt/1459311.
27
Sobre estes aspectos ver “Freeport: Cronologia dos principais acontecimentos” in Diário de Notícias (27.07.2010), disponível
em http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=1627775 e “O ‘polvo’ de Manuel Godinho” in Diário de Notícias
(14.09.2009), disponível em http://www.dn.pt/especiais/interior.aspx?content_id=1420897.
28
Ver “Proposta do PCP chumbada com votos do PS” in Diário de Notícias (02.12.2010), disponível em http://www.dn.pt/inicio/
portugal/interior.aspx?content_id=1725610.
29
Ver “Salários portugueses são os que perdem mais peso no PIB na Europa a 27” in Negócios Online (16.02.2011), disponível
em http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=468669; “GALP vai aumentar o salário dos
trabalhadores” in Negócios Online (23.02.2011), disponível em http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=

p. 17
5.2 Origem e dinâmica do conflito social actual
Ante o cenário descrito, a sensação de injustiça em Portugal cresceu. O primeiro sinal de
desesperança foi dado pela elevada abstenção nas eleições presidenciais de 23 de Janeiro de
2011. A abstenção alcançou os 53% (em 2006 tinha sido de 38,5%). É óbvio que, em boa parte, a
elevação de quinze pontos percentuais na abstenção se deveu à falta de concorrência política que
Cavaco Silva, candidato da direita, enfrentou. O PS apresentou um candidato não consensual,
auto-imposto com apoio do BE… nas palavras de Vital Moreira um bom candidato para perder 30.
De todos os modos, a abstenção foi tomada como uma bandeira, uma prova do descontentamento
dos portugueses face ao rumo político e económico do país.
Mas o ponto de viragem na sociedade portuguesa aconteceu no início de Fevereiro de
2011 quando o grupo Deolinda apresentou no Coliseu do Porto uma música com o título “Que
parva que eu sou”. Com versos como “Sou da geração sem remuneração e não me incomoda esta
condição” e “Que mundo tão parvo que para ser escravo é preciso estudar”, o vídeo (gravado por
um telemóvel) chegou rapidamente ao Youtube e tornou-se um sucesso que surpreendeu os
próprios autores. Em pouco tempo surgiu na rede social Facebook um grupo sob o nome de “1
milhão na Avenida da Liberdade pela demissão da toda a classe política”. Logo de seguida,
através de um blog, três jovens convocam uma manifestação contra a situação vivida em
Portugal31. Se dúvidas houvesse quanto há capacidade de organizar o protesto através de diversas
redes sociais, elas foram dissipadas com a crise do Médio Oriente. Sendo ou não verdade, a
comunicação social apresentou as manifestações que levaram há queda de vários ditadores como
convocadas pelas redes sociais, retirando da discussão nacional a questão da eficácia desse meio
de convocação.
Tal realização e o previsível sucesso da manifestação convocada para 12 de Março,
coloca a questão tentar entender como tal aconteceu. Porque partidos de esquerda, BE e PCP, e a
CGTP não conseguiram organizar algo assim? No entanto, sem relativizar a questão é impossível
entendê-la. Não se pode esquecer que a CGTP e a UGT convocaram para 24 de Novembro de
2010 uma greve geral, a primeira conjunta em anos. E, pese ao pouco impacto no sector privado,

SHOWNEWS_V2&id=469817 e “Lucro da GALP aumentou 43% em 2010” in Jornal de Notícias (11.02.2010), disponível em
http://www.jn.pt/PaginaInicial/Economia/Interior.aspx?content_id=1781613.
30
Ver “Alegre” in Causa Nossa (27.05.2010), disponível em http://causa-nossa.blogspot.com/2010/05/alegre.html.
31
Ver “Um desempregado, um bolseiro e uma estagiária inventaram o Protesto da Geração à Rasca” in Público (26.02.2011),
disponível em http://publico.pt/1482270 e o manifesto de convocatória do protesto disponível em
http://geracaoenrascada.wordpress.com/manifesto/.

p. 18
ela teve um forte impacto nos serviços públicos, nas empresas públicas e no sector dos
transportes32. O impacto desigual da greve permite inferir de que se trata de uma greve contra o
governo em particular e, de modo geral contra a política… assim como as manifestações
convocadas para 12 de Março.
Então, o que tem de especial essa manifestação? O que tem de especial é o espaço que
obteve na comunicação social e o modo como mobilizou a sociedade. As greves e manifestações
dos sindicatos e partidos de esquerda tornaram-se rotineiros e sem a capacidade de marcar a
agenda da comunicação social e chamar a atenção da maioria da população despolitizada. Vindo
de fora dessas organizações a convocatória da manifestação foi uma pedrada no charco que
agitou as águas da política portuguesa.
Vale abrir um parêntesis para avançar com algumas hipóteses sobre esta incapacidade das
organizações tradicionais da esquerda influenciar a agenda política. A novidade do protesto de
12 de Março por oposição à rotina da greve geral de 24 de Novembro oferece uma explicação,
mas não chega. Ela deixa por explicar e levar em contra o fenómeno de despolitização da
população que se traduz por uma desconfiança geral nas organizações tradicionais e pela
necessidade de quebrar a rotina para ter efeitos políticos.
Para encontrar as causas da desconfiança da população em relação aos políticos, é preciso
reconhecer que os políticos são profissionais: indivíduos que vivem da política. Mas é preciso
afastar os preconceitos existentes em relação a este facto. Antes do surgimento dos partidos
políticos e dos políticos profissionais, até meados do séc. XIX, a política estava reservada às
elites financeira e latifundiária, pois só eles, vivendo de juros e rendas, dispunham de tempo e
formação para dedicar-se à política. Ao surgir o “emprego na política” a classe média letrada
passou a ter acesso à política. A profissionalização da política democratizou-a e não o inverso 33.
Mas a profissionalização da política também teve efeitos perversos: a força de um partido
depende do número de votos que obtém. E as discussões políticas dividem as pessoas e limitam o
número daqueles que estão interessados a apoiar determinada política. Quando surgiram os
partidos catch-all – partidos sem ideologia, empenhados em obter votos em todos os quadrantes
da sociedade – a discussão política deu um giro voltando-se para a discussão sobre a
competência e da honestidade dos políticos. Ao contrário da discussão política, a discussão da

32
Ver “Como a greve geral está a afectar o país” in Jornal de Negócios (24.11.2010), disponível em
http://www.jornaldenegocios.pt/home.php?template=SHOWNEWS_V2&id=455535.
33
Para um desenvolvimento deste argumento ver Max Weber, A política como vocação.

p. 19
competência dos políticos não polariza a sociedade. Empresas exportadoras e empresas voltadas
para o mercado interno estão de acordo em que os políticos devem ser competentes; já entram
em desacordo quanto à pertinência de medidas de distribuição de renda, isto é, quanto à utilidade
das prestações sociais.
Os meios de comunicação social reforçaram este processo. Falar de questões
propriamente políticas é dividir a audiência, já que os factos que se seleccionam para dar uma
notícia nunca privilegiam os interesses por igual. Portanto, para não dividir a audiência, os
jornalistas começaram a apresentar a luta política como uma luta entre pessoas e partidos pelos
votos, passando muito por alto as consequências económicas e sociais fracturantes, isto é,
propriamente políticas, dessa luta34.
Assim, transformada a política na discussão sobre quem é competente e não mais sobre o
que é necessário fazer, é fácil entender porque os portugueses não sabem nem querem saber de
política. Daí que quando as políticas não servem a uma maioria só se pode atribuir o seu
“fracasso” à incompetência dos políticos – ou melhor, à corrupção, uma vez que é difícil
considerar que um político é incompetente. Isto leva-me a crer que a corrupção está
sobrevalorizada. As políticas nunca funcionam igualmente para todos: uns recebem, outros
pagam e, sem dúvida, algum dinheiro fica (algum indevidamente, a maioria necessário) para
sustentar a máquina de transmissão.
Quando não se discute quem paga e quem beneficia, nem porquê, os cidadãos não têm
informações para analisar a política. Os eleitores são forçados a chegar à conclusão que os
políticos são todos iguais, já que o esforço para perceber o que os distingue (que venho fazendo
neste documento) é enorme. A forma como a política e a comunicação social está organizada e
nada ajuda. Se exige trabalho – ler jornais, coleccionar artigos sobre determinados temas,
sistematizar análises – que uma pessoa normal não tem tempo para fazer. Mas também é verdade
que se os eleitores não discutem política, não sabemos quem a discute.

34
Para uma análise dos efeitos despolitizantes da comunicação social ver Pierre Bourdieu, Sobre televisão. O meu argumento
sobre o efeito despolitizante dos partidos catch-all é apenas um alargamento daquele sobre a comunicação social. Para verificar a
validade dessa generalização leia-se, por exemplo, o artigo de Ricardo Araújo Pereira “Por um presidente independente e neutral
que nos favoreça” in Visão, disponível em http://aeiou.visao.pt/por-um-presidente-independente-e-neutral-que-nos-
favoreca=f504831. Ou, em alternativa, lembrar que, na campanha eleitoral para Assembleia da República, em 2002, Durão
Barroso, eleito Primeiro-Ministro, afirmou que e “a União Europeia é algo demasiado sério para ser discutido em campanha”.

p. 20
5.3 Projecto moralista versus keynesianismo radical
Regressando à dinâmica do movimento, estaríamos longe da verdade se supuséssemos
que o que estamos a observar é o resultado de uma massa de indivíduos conectado através de
uma rede horizontal e virtual. Pelo contrário, é produto do envolvimento de um largo conjunto de
grupos formais como associações de estudantes, clubes, partidos e grupos informais de amigos,
alguns dos quais estiveram na base das candidaturas independentes às últimas presidenciais. O
projecto político (no sentido gramsciano: um discurso mais o menos elaborado que dá sentido ao
movimento político) a que movimento social pode dar corpo dependerá de quem assuma o
protagonismo dentro dele.
Assim, o futuro do movimento depende do modo como as suas contradições inerentes
forem resolvidas. Em primeiro lugar, existe que denomino de projecto moralista uma oposição
estre os que reduzem a discussão à corrupção dos políticos e ao fracasso do sistema político. O
movimento “1 milhão na Av. da Liberdade pela contra a classe política” é a materialização deste
projecto. A manifestação da “Geração Rasca” foi astuta ao romper com essa radicalidade
moralista, sem no entanto oferecer-se para definir um projecto político. Ao não definir o seu
projecto eles puderam funcionar como catch-all sem, com isso, sofrerem todos preconceitos que
pesam sobre os partidos políticos.
No outro extremo estão movimentos políticos tradicionais, o PCP e a CGTP. Considero
que o BE está, de alguma maneira, entre o movimento “Geração Rasca” e estes, portanto que
tende a colocar-se numa ou noutra posição. Vale a pena então dizer que eles defendem aquilo a
que chamarei o projecto keynesiano radical: um conjunto mais ou menos formulado de propostas
orientadas à distribuição dos rendimentos, como forma a resolver os problemas da crise. Ao
apresentarem propostas eles põem em jogo interesses, limitando assim aqueles que estão
dispostos a apoiá-los. (Isto não quer dizer que é preciso apresentar estes interesses para escapar
ao projecto moralista; basta apresentar um projecto propositivo).
Mas, ao mesmo tempo sofrem do preconceito de que os políticos são todos iguais. Ou,
quando são reconhecidos como diferentes, sofrem o preconceito de que defendem ideias do séc.
XIX, testadas na União Soviética durante o séc. XX e que se demonstraram equivocadas em
1989. Isto impede que, de facto, essas ideias sejam conhecidas. Basta lê-las (ver Caixa 3) para
reconhecer ali a radicalização da política económica keynesiana. Não por acaso, as declarações

p. 21
do prémio Nobel Stiglitz e do presidente do FMI, Khan-Strauss, se aparentam às propostas por
estas organizações35.

CAIXA 3 – PROGRAMA KEYNESIANISTA RADICAL PARA A CRISE

Fazendo um inventário não exaustivo das propostas de algumas pessoas que pertencem aos grupos que chamo
keynesinistas radicais, podem ser identificadas quatro propostas importantes.

1) A justa distribuição dos custos com a dívida pública por todos os sectores da sociedade. Propõem-se medidas
como o fim do off-shore da Madeira e a tributação do sector financeiro a 23%, isto é, igual a qualquer outra
empresa em outro sector da economia.
2) Uma taxa especial e temporária sobre a distribuição de dividendos. A medida é justificada pela observação que
as grandes empresas estão a distribuir os lucros que obtiveram em 2009 e 2010 e a recorrer ao crédito para
investir. Para os keynesianos radicais, este um dos factores que faz subir as taxas de juros aplicadas às
empresas privadas e impede pequenas e médias empresas de recorrerem ao crédito. A taxação da distribuição
dos lucros iria fazer como que as grandes empresas investissem os seus lucros (convertidos em capital próprio),
libertando crédito para outras empresas investir.
3) A subordinação da resolução do problema da dívida pública ao pagamento da dívida total. Ao exigir o enorme
esforço às famílias e às empresas de reduzir a dívida pública, as medidas de austeridade irão levar a um
decrescimento económico que agravará a divida privada – sendo esta última talvez maior que a primeira. Para
os seus proponentes deveria fazer-se o inverso: aumentar a divida pública para combater a dívida total a médio
prazo, com o crescimento económico e criação de emprego. Isto implica que algumas restrições legais sejam
postas aos mercados bolsistas, com vistas a reduzir a especulação de que são alvo os juros da dívida pública.
4) Re-estatização de alguns sectores-chave da economia, a começar pelo sector energético. Eles observam que
56% do lucro da GALP, por exemplo, foi conseguido à custa da especulação com os preços do petróleo. Se a
empresa fosse estatal, podia ter decidido prescindir de tão elevados lucros de curto-prazo de modo a não
agravar ainda mais a crise económica (como fez, por exemplo, a PetroBras, no Brasil).

Estas propostas sintetizam-se bem na campanha lançada pelo PCP “Pôr Portugal a crescer”.

Esta tensão de projectos, entre a moralização da política e o keynesianismo radical, é


acentuada por uma tensão entre formas de organização 36 : entre a democracia espontânea e
meritocracia elitista. Os primeiros põem a ênfase no processo, colocando como principal
35
Sérgio Ribeiro, dirigente comunista, chegou a comentar: “não será de pedir ao presidente do FMI que apoie, pessoalmente, a
campanha do PCP ‘Pôr Portugal a Produzir’?” no seu blog anónimo sec. xxi, disponível em http://anonimosecxxi.blogspot.com/
2011/02/austeridade-de-forma-convincente.html.
36
Ou, segundo o sociólogo Sidney Tarrow, em Poder em Movimento, entre modelo anarquista de organização e o modelo social-
democrata de partido.

p. 22
obstáculo a derrubar o “véu” que separa os políticos do resto dos cidadãos. Os segundos põem
ênfase nos resultados, confiando as decisões àqueles que se preparar para tomá-las. Para entender
o que afirmo basta considerar os dois significados da palavra democracia. Por um lado, aquele
que lhe atribui a esquerda pós-moderna para quem a democracia radical é a utopia do séc. XXI –
por oposição ao socialismo, utopia do séc. XX. Por outro, no sentido que lhe atribui Platão: o
governo dos incompetentes. Nenhum dos grupos se opondo à democracia, uns desconfiam dos
profissionais; outros da falta de profissionalismo. Os primeiros da burocracia; os segundos de, na
falta dela, as decisões serem completamente aleatórias.
Sendo impossível dispensar os especialistas, e tampouco sendo aceitável que a política
seja reservada aos especialistas, parece que estamos condenados a conviver com esta tensão,
mais do que a resolvê-la.

5.4 À beira de uma confluência perversa


De qualquer modo, seria um equívoco acreditar que todos os grupos que defendem a
moralização da política são se esquerda. Exigir o fim da corrupção política é um discurso do tipo
catch-all que pôde juntar aqueles que desejam uma orientação política que altere o rumo da
economia, como aqueles que desejam a restauração da monarquia. O movimento “1 milhão na
Av. da Liberdade contra a classe política” parece ter tido origem nestes últimos. A defesa pela
moralização política tende a juntar gente que teoricamente próxima do PCP e do BE, como do
CDS/PP. Note-se que estes três partidos votaram juntos, contra o bloco central, proposta de criar
limites aos salários dos gestores públicos 37.
Eis porque é justo falar de confluência perversa38. A crítica do Estado incompetente para
resolver os problemas do país (emprego, educação, pobreza…) converge com o grupo dominado
da política nacional (ver página 19) para quem o Estado é uma estrutura demasiado pesada
incapaz de cumprir as suas funções. Não obstante, convergindo no diagnóstico da incompetência
do Estado, fazem-no por interesses divergentes. Os primeiros pedem do Estado soluções de
qualidade, isto é, exigem um Estado competente. Os segundos acreditam que as soluções de

37
Ver “PS e PSD chumbam limite aos salários dos gestores” in Económico (18.02.2011), disponível em
http://economico.sapo.pt/noticias/ps-e-psd-chumbam-limite-aos-salarios-dos-gestores_111516.html.
38
O termo confluência perversa foi cunhado pela cientista política brasileira Evelina Dagnino para referir-se à convergência entre
grupos políticos cujo discurso é aparentemente o mesmo, mas os interesses que movem os grupos são antagónicos. O artigo onde
Dagnino desenvolve a sua tese está disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/grupos/grim_crisis/
11Confluencia.pdf.

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qualidade só podem vir do sector privado e, portanto, exigem que o Estado se retire. Isto explica
porque o CDS/PP oscila entre a posição dominada (ao lado do PSD) e excluída. Este partido
cumpre o papel de articulador entre os excluídos e o grupo dominado do contexto nacional (PSD,
Jerónimo Martins, etc.), portador de um projecto liberal.
A eminência desta convergência perversa acirra a tensão entre o projecto moralista e o
keynesianismo radical referida acima. Os militantes do PCP e da CGTP desconfiam das
intenções destes movimentos, se afastam deles e, na medida das suas possibilidades, lhe
dificultam o caminho. Com essa atitude, eles tornam aquela convergência mais provável.

6 CENÁRIOS E ESTRATÉGIAS
No ano de 2010, a prioridade política, imposta pela Alemanha, foi reduzir a dívida
pública. No ano de 2011 continuará a sê-lo. A diferença significativa é que, neste momento, já
não poderá sê-lo pelo agravamento dos impostos. Terá de sê-lo por via do corte na despesa
pública, isto é, nas despesas do Estado com o serviço nacional de saúde, educação e pensões de
reforma. Ou seja, passando uma vez mais os custos da crise para as famílias, sem distribuir os
custos do ajuste fiscal para as empresas. A única diferença entre cenários para o ano de 2011 é de
grau, dependendo se esta redução da despesa pública será vigiada à distância pela Alemanha e o
BCE; ou de perto pelo FMI; ou será conduzida por uma elite política e económica que acredita
nessas medidas, com um governo chefiado por Passos Coelho.
A convergência perversa que me referi acima poderá facilitar a implantação da solução
liberal, retirando da discussão as opções por um keynesianismo moderado ou radical. Aos
excluídos, seja o movimento “Geração à Rasca”, seja a CGTP, sejam os partidos de esquerda, só
resta oferecer resistência ao projecto liberal para que as soluções alternativas voltem a ser
colocadas em cima da mesa. A questão é: que resistência pode oferecer estes grupos já que no
seu seio se encontrar outros que subscrevem o projecto liberal? – falo dos promotores do
movimento “1 milhão na Av. da Liberdade contra a classe política” e do CDS/PP.

6.1 Urgente: uma campanha pela qualificação dos serviços públicos


As soluções keynesianas só voltaram se os promotores das soluções liberais forem
submetidos a um desgaste que permita aqueles surgir. Portanto, somente se em 2011 o projecto
liberal não conseguir avançar, poderemos esperar que o keynesianismo volte a debate em 2012.

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Deste modo é necessário antecipar as medidas de corte nos serviços públicos por uma campanha
de defesa destes serviços. Mais do que o combate a reduções de orçamento e de qualidade dos
serviços públicos inevitáveis, é preciso levar a cabo uma oposição forte à falsa ideia do direito de
opção entre público e privado em nome do direito a um serviço público de qualidade ao acesso
de todos.
Existem três argumentos que devem ser empregues nesta campanha. Em primeiro lugar, o
de que não se trata de uma verdadeira opção. Basta pensar que de um lado está o bom e caro e,
do outro, o mau e barato para ver que não existe uma verdadeira escolha. Só vai querer o mau
quem não pode pagar caro. Em segundo lugar, a liberdade dos indivíduos não é uma liberdade
apenas negativa: entre dois males eu escolho o menor. Pode ser também uma liberdade positiva:
tenho a liberdade de negociar e renegociar os termos do serviço que me é prestado. Nas palavras
do economista Albert O. Hirschman, face a um serviço de má qualidade, o indivíduo tem sempre
duas opções: abandoná-lo [exit] como um consumidor, ou negociar/protestar [voice] como um
cidadão.
Em terceiro lugar, mais importante, a substituição das prestações sociais pelo mercado de
produtos financeiros (planos poupança reforma e seguros de saúde) e pelas escolas privadas é
incrementar a desigualdade no país, aumentando as injustiças sociais contra as quais a população
se manifestará dia 12 de Março. Este tipo de serviços deixará de ser sustentado pelas famílias e
pelas empresas através de um sistema de redistribuição da riqueza. Ao contrário, passará a ser
pago exclusivamente pelas famílias a empresas que fornecerão estes serviços.

6.2 A fragmentação do movimento “Geração à Rasca”


O movimento “Geração à Rasca” está entre duas opções: desaparecer ou transformar-se
numa estrutura permanente. No segundo caso, deverá optar por se burocratizar – no sentido de
caminhar para um partido político ou movimento do tipo sindical – ou se manter em actividade
permanente organizando de forma recorrente de protestos e outros eventos (hipótese que me
parece possível apenas na teoria). Uma terceira opção, que é uma espécie de ponto intermédio
entre desaparecer e burocratizar-se, é fragmentar-se. Isto é, que a constelação de organizações
que esteve na sua origem, desde as associações de estudantes aos grupos de amigos, assumam
depois do protesto de 12 de Março, de forma independente umas das outras, actividades que
dêem continuidade ao protesto.

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Essas iniciativas devem, no meu entender, pautar-se por dois objectivos:
1) Levar a cabo a campanha pela qualificação dos serviços públicos que propus acima.
2) Ajudar a romper com o véu que separa os políticos dos cidadãos. (Atenção: isto é
diferente de defender a moralização da política).

Se os argumentos que apresentei acima estão correctos, o que separa os políticos dos
cidadãos é o facto da política já não discutir política, mas sim pessoas. Acredito que a única
forma de superar isso é mudar os cidadãos para que exijam dos políticos que falem de política.
Isto só pode acontecer se se realizarem duas coisas: a) surgir uma elite que discuta de igual para
igual com os políticos que, sem interesse em ganhar votos, qualifique o debate; b) se criar, na
população, o hábito de análise crítica da política.
O segundo objectivo é mais difícil de cumprir, e exigirá a criatividade de seus
promotores. O primeiro é aparentemente simples. Basta organizar seminários, palestras, etc. com
pessoas que por suas profissões estão informados (por exemplo, professores universitários), mas
que não aparecem a discutir essas questões em público.

6.3 O diálogo entre velhas e novas organizações políticas


Estabelecer pontes de diálogo entre os movimentos sociais surgidos neste mês de
Fevereiro e os partidos e sindicatos de esquerda é complexo. Sobretudo porque estes já disputam
espaço entre si há muito tempo; e também porque aqueles vão começar a divergir internamente
assim que houver a necessidade de definir um projecto. Assim que o que se pede é, antes de tudo
uma postura anti-preconceituosa ou sistémica: ao invés de que actuar em função do que “o outro
é”, actuar em função na relação entre “nós e eles”. Na prática, deve tomar-se em conta que se os
partidos de esquerda afastarem-se dos movimentos vão “empurra-los” para a direita. Se os
movimentos não procurarem livrar-se do preconceito de que “os políticos são todos iguais”
arriscam-se a ficar atrás do véu que separa o cidadão comum dos políticos profissionais.
Neste caso, tudo resume-se a uma questão de atitudes. Se mantivermos a certeza de que
não há receitas e, por isso é necessário testar novas soluções, entendemos porque os novos
movimentos são necessários para mudar o rumo do país. Se, por outro lado, tivermos claro que
não é tanto o método de luta, mas sobretudo a correlação de forças que determina o sucesso dos
grupos políticos, entendemos porque os partidos ainda não desistiram das suas velhas tácticas.

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Enfim, basta somente resistir a um velho erro: cometer a injustiça de avaliar o nosso
trabalho pelo esforço envolvido e o dos outros pelos resultados obtidos.

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