Você está na página 1de 4

Carrinhola

Flavius Silva
*Os contos são de inteira responsabilidade dos escritores. Qualquer semelhança é mera
coincidência.

m uma destas noites vermelhas de neblina espessa que encontro em minha

E
cidade, estava pronto para sair. Alguns amigos haviam me convidado para se
juntar a eles na casa de Lúcia; sem dúvidas iríamos beber algumas cervejas e
passar a noite jogando cartas e conversando sobre todas as inutilidades que
tornam nossas vidas mais alegres.
Aquela noite estava um pouco fria, havia muita neblina e os postes de luz
vermelha, no centro, davam um colorido especial à noite. Como morava no centro, este
espetáculo cor de sangue já era parte do meu cotidiano. Naquele lugar, não se podia ver
nitidamente mais que a uma quadra de distância. Também não via vivalma na rua. Nem
carros, nem pedestres. Nem os jovens estavam nas ruelas apreciando seu garrafão de
vinho.
Iniciei minha caminhada com um suspiro, afinal eram vinte minutos de
caminhada e, na época, ainda não tinha outros meios. Passei por uma praça e contemplei
majestosas araucárias, assim como outras árvores contorcidas e de contornos
ameaçadores que viviam ali. Depois da praça, havia uma grande linha reta que se
estendia por umas três quadras, calculava; Segui-a, cruzando a neblina e imaginando se
todos já haviam chegado à casa de Lúcia.
Nunca fui de desviar minha atenção aos contos e causos que são chamados
“sobrenaturais”, sempre permaneci indiferente. Talvez por nunca ter presenciado algo
que desafiasse a razão ou parecesse ter saído do próprio inferno. Imaginem o que se
passa quando um homem racional é posto frente a frente com uma pura materialização
do sentido mais inconveniente da palavra “bizarro”.
Ao caminhar naquela rua tão silenciosa, não pensava em encontrar um ser vivo, ou
como poderia chamar “aquilo” que apareceu. Andando silenciosamente, escuto um som
estranho, parecido com o rangido de uma porta velha, ou ainda, o som de uma velha
carrinhola enferrujada sendo empurrada a cinqüenta quilômetros por hora. Confesso que
minha cabeça doeu, mas minha curiosidade era maior: “Que diabos se aproximava com
tal som?”, pensava. Interrompi meus passos e esperei imóvel. O que eu vi me paralisou
por absoluto.
Meus pés, plantados no chão. Eu estava suando. Mas nem sabia por quê! Sim...
Sim, lá da neblina, “aquilo” surgiu. Não tinha mais de noventa e cinco centímetros de
altura e se colocava sobre uma espécie de carrinho de rolimã, algo como uma prancha
sobre rodas, que fazia um som infernal enquanto “ele” pegava velocidade se
impulsionando ao colocar as mãos no chão e se empurrar para frente. Aquilo que estava
sobre o carrinho não poderia ser chamado de homem – talvez de pesadelo -, pois não
tinha as pernas. Possuía apenas a parte superior do tronco, com longos braços que
acabavam em mãos que mais pareciam patas e unhas que mais se assemelhavam afiadas
garras sedentas por dor. Suas roupas eram igualmente bizarras. Vestia um sobretudo cor
mostarda, que ficava grande demais, já que não tinha seus membros inferiores – se é
que alguma vez os teve. O sobretudo, notadamente velho, sujo e remendado era
complementado por um chapéu de mesma cor e de mesmo aspecto. Não havia, ainda,
como distinguir feições no maldito, pois sua face era coberta pela longa barba e cabelos
desgrenhados de cor amarela; para ser sincero, pareciam, ambos, mais com palha que
com o cabelo ou a barba de uma pessoa comum. De onde poderia ter saído aquilo? Por
que ninguém aparecia, já que o barulho ensurdecedor chamaria tanta atenção? Teria a
criatura saída de uma palafita maldita sobre algum rio inominável dos mais baixos
círculos do inferno?
E lá, na calçada, paralisado, esperava o ser se aproximar. Quanto mais se
aproximava, em velocidade rápida – mas que parecia algo demorado, tamanho terror
que sentia -, mais alto o ruído daquelas risadas agudas e perturbadoras ficava. E não era
apenas o ruído das rodas que perturbava; aquela monstruosidade emitia, sem parar, uma
risada assustadora. A sua risada era fina, aguda e seria digna de um psicopata do qual
nunca se adivinha o pensamento. Aquele som de rangido cada vez mais alto e sua risada
infernal cada vez mais me faziam tremer.
Quando ele finalmente chegou perto, no meio da rua, enquanto eu estava na
calçada, meu coração dava sinais de que iria parar. Quase não acreditei quando ele
simplesmente passou reto por mim, sem sequer notar minha presença e sem interromper
sua risada um instante sequer. Meu olhar aliviado acompanhou o ser enquanto ele virava
à direita na esquina. Eu escutava o rangido e as risadas, ainda, mas pensava que eles
iriam diminuir até sumir. Pensei logo em seguir até a casa da Lúcia e contar o ocorrido
como se fosse mais uma das coisas que acontecem raramente, mas que não estamos
imunes a presenciar. Logo abandonei todos estes pensamentos ao ouvir um grito
feminino.
O grito interrompeu o rangido e as risadas. Como que por instinto, corri
imediatamente para ver. Não havia como aquela criatura, que andava somente com a
força de seus braços, ter fugido, ainda mais sem fazer barulho. Mas o bizarro ser NÃO
ESTAVA LÁ! A única coisa que lá encontrei foi uma poça de sangue. E um corpo.
Com as mãos tremulas, verifiquei se ainda havia vida naquele corpo que parecia
pertencer a uma mulher de uns trinta anos. Ela havia sido atingida por um único golpe
na jugular. Morte instantânea. Ela ainda sangrava. E, neste momento maldito, quando eu
deixava o local – seguiria sem rumo, estava fora de mim, confuso -, apareceu, pela
primeira vez na noite, outra pessoa viva em minha frente. E agora, como eu explicaria o
bizarro sucedido? Não haveria como! Desorientado, eu corri. Tranquei-me em casa.
Imagino que aquela pessoa, que talvez fosse um desses guardas noturnos, guardou
minhas características para passar à polícia ou me seguiu até o lar.
Na outra manhã, eu estava inquieto, sequer havia dormido. Minha lucidez fugia e
dava voltas no impossível. A razão que já me guiara me abandonou. De tarde, a polícia
bateu em minha porta. Eles só encontraram um louco, um perturbado que insiste no
impossível e não mantém uma conversação sem acabar em gritos histéricos e palavras
incompreensíveis. E, pior, haviam encontrado, em mim, o sangue da vítima e,
inexplicavelmente, uma lâmina com o mesmo sangue... Lâmina enferrujada que eu
jamais tinha sequer visto! Como se sucedeu? Não sei e nem desconfio! E aquela maldita
testemunha que na hora errada apareceu... Disse aos senhores da lei, que não escutou
som algum e sequer viu os contornos sinistros que eu vi desfilarem em forma de
demônio.
Sou mais um que agora chamam de louco e jogam nas masmorras da insanidade.
Mas como explicarei que, às vezes, o termo “bizarro” se encarna em coisas impossíveis,
resultando no abrir de portas que jamais deveriam sequer ser encaradas? Eles nunca
saberão que outras loucuras dormem no fundo da mente de Deus, no seu lado
inconsciente e obscuro que chamam de “Diabo”: Quando compreenderem que, se a luz
for muito forte, a escuridão terá de surgir absoluta em algum lugar do mundo e, aí,
acreditarão em mim e, mais uma vez, o ranger da carrinhola irá soar.
http://calafriosterror.blogspot.com

Você também pode gostar