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O controle judicial das políticas públicas como garantia de efetividade dos direitos

fundamentais.
Dra. Adriana Vieira de Castro
Advogada em Goiânia (GO), especialista em Direito Público pelo Axioma
Jurídico/FESURV.

1. Introdução

A Constituição da República Federativa do Brasil é o reflexo da ruptura cada vez mais


crescente com o modelo de sistema liberal no qual o governo mostra-se indiferente aos
anseios da população. Tem-se, dessa forma, aumentado a preocupação dos
administradores públicos em implementar os chamados “direitos fundamentais
positivos”, pautados em uma maior intervenção no domínio econômico e social.
Neste contexto, torna-se cada vez mais importante o estudo das políticas públicas e sua
conseqüente implementação no Estado Democrático de Direito, bem como seu controle
judicial como forma de efetivar a aplicação de princípios basilares que regem o novo
constitucionalismo. Assim sendo, uma Constituição repleta de princípios autoriza a
transferência de um imenso poder político, que sai da esfera do Poder Legislativo para o
Judiciário.

No atual Estado constitucional, baseados nas teses do novo constitucionalismo, a função


fundamental da Pública Administração é a efetivação dos direitos fundamentais
positivos, por meio de políticas públicas criadas pelo Poder Legislativo ou pela própria
Administração, políticas estas regidas pelos princípios e regras dispostos na
Constituição.

A Constituição é a base de atuação do Poder Público, responsável por toda ação do


Estado exigindo a implementação de suas disposições. Desta forma, o Estado posiciona-
se como um executor dos dizeres constitucionais, justificando, assim, a sua existência.

Neste curto ensaio que ora se propõe, não se pretende, obviamente, o esgotamento da
matéria, senão um levantamento crítico sobre a questão das políticas públicas, tema
este, bastante polêmico e divisor de opiniões.

2. Conceito de Políticas Públicas

É ainda embrionário o estudo acerca das políticas públicas, que acompanha as


redefinições da atuação do Poder Judiciário face ao exercício das funções legislativas e
executivas. Ainda assim, pode-se, desde já, definir políticas públicas como a prestação
de serviços que visem garantir a realização dos objetivos fundamentais do Estado,
privilegiando a dignidade da pessoa humana, que incluem a proteção de direitos
individuais, juntamente com condições mínimas de existência.

Pode-se dizer que as políticas públicas representam os instrumentos de ação dos


governos, numa clara substituição dos "governos por leis" (government by law) pelos
"governos por políticas" (government by policies). O fundamento mediato e fonte de
justificação das políticas públicas é o Estado social, marcado pela obrigação de
implemento dos direitos fundamentais positivos, aqueles que exigem uma prestação
positiva do Poder Público. [1]

Maria Paula Dallari Bucci define políticas públicas como sendo "programas de ação
governamental visando a coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades
privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
determinados". [2] 

Rodolfo de Camargo Mancuso assim define políticas públicas: “conduta comissiva ou


omissiva da Administração Pública, em sentido largo, voltada à consecução de
programa ou meta previstos em norma constitucional ou legar, sujeitando-se ao controle
judicional amplo e exauriente, especialmente no tocante a eficiência dos meios
empregados e a avaliação dos resultados alcançados. [3]

As políticas públicas podem ser entendidas como o conjunto de ações governamentais


direcionadas à intervenção no domínio social, por meio das quais são traçadas as metas
a serem implantadas pelo Estado, sobretudo na implementação dos direitos
fundamentais disciplinados na Constituição.

3. A polêmica sobre a judicialidade das políticas públicas

A questão na doutrina e na jurisprudência sobre a judicialidade das políticas públicas é


polêmica. Sob a ótica doutrinária, a discussão se dá com base em duas correntes:
procedimentalista e substancialista. A primeira ampara-se nas idéias de HABERMAS
ao passo que a segunda sustenta-se nas idéias de DWORKIN.

Em síntese a corrente procedimentalista entende que “o incremento do controle judicial


prejudica o exercício da cidadania ativa, pois envolve uma postura paternalista. De tal
sorte, favorece a desagregação social e o individualismo, dado que o indivíduo,
enquanto simples sujeito de direitos, fica totalmente dependente do Estado. Torna-se um
cidadão-cliente e o Judiciário, o seu fornecedor de serviços. Portanto, não representa
situação desejada, mas situação crítica, correlata a uma crise institucional que precisa
ser superada.” [4]

Outrossim, entendem os substancialistas que os cidadãos deixam de ser autores e


tornam-se meros destinatários do direito. Isto porque, para que sejam autores não é
necessária a mediação do Judiciário, mas antes a "criação" ou conquista de canais
comunicativos, que levem o poder democrático do centro para a periferia. Para os
mesmos, dado que a lei não é a vontade direta do povo, este precisa ter meios de
expressar sua própria vontade. Assim, a constituição deve apenas garantir a existência
desses meios ou procedimentos, para que os cidadãos criem seu próprio direito. Os seus
princípios não devem, pois, expressar conteúdo substantivo, mas somente
instrumentalizar os direitos de participação e comunicação democrática. [5]

A doutrina vem se posicionando favorável a justicialidade das políticas públicas,


defendendo a tese de ser possível a intervenção judicial como forma de garantir
condições mínimas necessárias a uma existência digna e essencial a própria
sobrevivência do indivíduo, em observância ao núcleo essencial dos direitos
fundamentais, estando, condicionada, contudo, a reserva do possível, isto é, a
capacidade econômico-financeira do Estado par a sua imediata implementação.
Em que pese a o entendimento jurisprudencial unânime ser no sentido da
impossibilidade de intervenção do judiciário, já existem julgados de posicionamento
favorável à efetividade das políticas públicas via judiciário.

Em decisão proferida pela 2ª Turma do STF, o relator Ministro Celso de Mello através
da ementa abaixo transcrita nos dá ensinamentos preciosos sobre a judicialidade das
políticas públicas:

“E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS


DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO
INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO
CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO
DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA
EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO
(CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa
prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para
efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação
básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa
prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação
social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar
condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de
zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches
e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental,
apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público,
de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação
infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em
seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da
Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.
- Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação
infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional,
juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental
da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-
administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das
crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a
comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a
eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos
Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas
públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em
bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela
própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes,
cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que
sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a
integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A
questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. [6]

Para aqueles que defendem a judicialização das políticas públicas o argumento é que as
mesmas possuem inegáveis contornos jurídicos, havendo um verdadeiro poder-dever do
Judiciário em analisar sua legalidade e constitucionalidade. Para eles a judicialização
das políticas públicas encontra seu fundamento na supremacia da Constituição, norma
de caráter fundamental e superior a todos os poderes estatais. Ao efetuar o juízo de
constitucionalidade de políticas públicas, o Judiciário acaba por desempenhar sua
função precípua, qual seja, garantir a prevalência da Constituição. Desta forma, o Poder
Judiciário garantiria a cidadania participativa, abrindo ao cidadão a possibilidade de
pleitear o implemento de ações governamentais voltadas à efetivação dos direitos
positivos.

Existem outros que não admitem a referida intervenção sob o argumento de que as
políticas públicas seriam assunto pertinente aos Poderes Legislativo e Executivo, vez
que somente os agentes teriam a legitimidade, conferida pelo voto popular, para realizar
o juízo sobre a necessidade e possibilidade de sua implementação, em respeito ao
princípio da separação dos poderes. Para eles permitir que o Poder Judiciário viesse a
interferir em questões de execução política, seria uma afronta direta a tal princípio.
Outro obstáculo que sustenta a tese dos que não acreditam ser possível tal interferência
é a questão da limitação orçamentária e a reserva do possível.

Primeiramente, sustentam que é competência do Poder Legislativo a destinação dos


recursos públicos, mediante a aprovação das leis orçamentárias, estando o Poder
Executivo limitado a realizar gastos públicos de acordo com tais leis.

Outrossim, por força da indigitada limitação de recursos e dando significação a


expressão “reserva do possível”, parcela substancial da doutrina vem defendendo que
apenas o “mínimo existencial” poderia ser garantido, isto é, apenas esse conjunto -
formado pela seleção dos direitos sociais, econômicos e culturais considerados mais
relevantes, por integrarem o núcleo da dignidade da pessoa humana, [7] ou porque
decorrem do direito básico da liberdade – teria validade erga omnes e seria diretamente
sindicável. [8]

4. Conclusão

Em princípio, não se quer aqui desviar a função de criar e implementar políticas


públicas do âmbito dos Poderes Legislativo e Executivo para atribuí-la ao Poder
Judiciário. No entanto, impende observar que é de extrema valia o exercício do controle
jurisdicional em torno de políticas públicas, como forma de compelir os órgãos estatais
a cumprirem efetivamente os encargos relativos aos direitos fundamentais.

Tem-se observado, em razão do fortalecimento de princípios administrativos


fundamentais como o princípio da moralidade e os princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, uma tendência à atenuação da vedação que, tradicionalmente, se
impôs ao Poder Judiciário de controlar determinados aspectos dos atos administrativos,
no que tange ao mérito administrativo.

O Judiciário quando provocado a se manifestar, principalmente através de instrumentos


de ações coletivas, pode e deve garantir o cumprimento dos direitos fundamentais
sociais, não podendo considerar tal posicionamento uma afronta ao princípio da
separação de poderes ou trazer desequilíbrio ao orçamento do Estado.

Entendemos que a escassez orçamentária não se trata de fundamento para afastar a


obrigatoriedade de implementação dos direitos fundamentais sociais. Ainda que os
recursos públicos sejam limitados, o Poder Judiciário não está proibido de determinar ao
Estado o cumprimento de direitos sociais.
O controle das políticas públicas, embora alguns pensem, não afronta o princípio da
separação de poderes, pois encontra seu fundamento diretamente na Constituição que
confere ao Poder Judiciário ampla função jurisdicional.

Outrossim, as questões orçamentárias e a reserva do possível não podem ser tornar


empecilho para a implementação de políticas públicas, devem funcionar como
disciplinadoras da razoabilidade da Administração Pública e auxiliar a efetivação dos
direitos positivos.

Referências Bibliográficas.

BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: O


Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. RJ-SP: Renovar, 2002.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 2ª ed. São Paulo:


Saraiva, 1998.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Malheiros,
2000.

BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o Direito Administrativo. Revista


Trimestral de Direito Público, n. 13, São Paulo: Malheiros, 1996. 

 _____. Direito Administrativo e políticas públicas. São Paulo: Saraiva, 2002.


CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
5ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2001.

COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas


públicas. Revista dos Tribunais, ano 86, n. 737, março, São Paulo, 1997.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A ação civil pública como instrumento de controle


judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação Civil
Pública: Lei 7.347 – 15 anos. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais.

VIANNA, Luiz Verneck, et al. A judicialização da política e das relações sociais no


Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

Notas de Rodapé.
1. BUCCI, Maria Paula Dallari. As políticas públicas e o Direito Administrativo.
Revista Trimestral de Direito Público, n. 13, São Paulo: Malheiros, 1996. p. 241.
2. Idem
3. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A ação civil pública como instrumento de
controle judicial das chamadas políticas públicas. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação
Civil Pública: Lei 7.347 – 15 anos. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2001, p.
730-1.
4. SANTOS, Marília Lourido dos. Políticas públicas (econômicas) e controle . Jus
Navigandi, Teresina, ano 6, n. 58, ago. 2002. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3179>. Acesso em: 16 out. 2006
5. Idem.
6. http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp?s1="políticas
%20públicas"&d=SJUR.
7. BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais, p. 114 e
seguintes.
8. TORRES, Ricardo Lobo. “A cidadania multidimensional na era dos direitos”, in o
mesmo (org), Teoria dos direitos fundamentais, p. 278 e 290.

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