Manhã de segunda-feira, greve de ônibus, ressaca de domingo e uma preguiça verdadeira,
legítima mesmo, motivo de sobra prá faltar a labuta. Assalto a geladeira, quilinhos a mais, dor nas costas, dor em todo lugar, do sofá pra cama, da cama pra rede, da rede pro sofá. Triste vida de nada fazer, restando então a doce companhia da TV a cabo e de um dos mais incríveis inventos da humanidade: o controle remoto. Já anoitecendo, entregue a um processo melancólico por me dar conta de que no dia seguinte o trabalho e a realidade me esperavam, um tanto quanto enjoado de ver TV – mesmo a TV a cabo é capaz de ser repetitiva- , faço uma última busca nos canais, pronto a desligar a TV e ir dormir. Num canal qualquer vejo um filme que inicia. Curioso, como que dar a TV sua última oportunidade de me cativar aguardo uma indicação do título do mesmo. Mas ela não vem. Lembro-me por segundos de minha infância quando varava as madrugadas a dentro a ver um filme atrás do outro, sem me importar com os nomes, com os atores e, no cúmulo da ignorância, sem saber que existiam seres chamados “diretores”, personagens míticos, encarregados de dar vida aos roteiros. Enquanto sou assaltado por esses pensamentos percebo que as primeiras imagens da película são belíssimas. Uma paisagem rural, com certeza de algum estado do interior dos EUA seguida do aparecimento dos primeiros personagens. Diálogos curtos e intervalos, absolutamente silenciosos, longos, muito, muito longos. A história me seduz lentamente, tanto quanto a forma como o Diretor a conta. Algo me dá a sensação de familiaridade e então, entre uma cena e outra percebo estar diante de um autêntico e, mea culpa – por mim até então desconhecido -, “David Lynch”. Trata-se de “História Real”, uma produção franco-americano-britânica, de 1999 da qual já havia ouvido falar mas nunca sequer tinha me permitido ver. A história é extremamente simples e, descubro depois, baseada em fatos verídicos ocorridos em 1994 durante a viagem de Alvin Straight, de 73 anos, que partiu da cidade de Laurens, no estado de Iowa, rumo a Mt. Zion, em Wisconsin. A jornada, – e vocês vão entende-la como épica – realizada por Straight em seu pequeno trator de cortar grama da marca John Deere, se estendeu por centenas de quilômetros e levou mais de seis semanas. Straight percorreu o trajeto para fazer as pazes com o irmão Lyle, de 76 anos, que estava gravemente doente. Os dois irmãos não se falavam há mais de dez anos. Tudo tem início em Laurens, uma pequena comunidade rural no centro norte de Iowa, onde o viúvo Alvin Straight vive com a filha Rose. Rose recebe um telefonema com a notícia de que Lyle, irmão de Alvin, sofreu um derrame. A notícia precede uma ida de Alvin ao Hospital local, ele também sofrendo de diversos problemas de saúde. Alvin começa a refletir sobre o derrame do irmão e todas as coisas que aconteceram entre ambos e decide fazer a viagem para encontrá-lo. Mas há obstáculos em seu caminho: sua vista prejudicada e a falta de dinheiro. Como Alvin – em sua independência -, não suportaria ser levado por ninguém, ele arma um plano: decide fazer a viagem sozinho a bordo de sua máquina de cortar grama. Enquanto se prepara para a viagem, Alvin tem de driblar a preocupação de Rose, a vigilância do curioso e cético vizinho e o grupo de frequentadores do bar Ace Hardware. Apesar da perplexidade de Rose, ele põe o pé na estrada arrastando um trailer improvisado que carrega suprimentos como gasolina, café, repelente contra insetos, doces, salsinhas e outros enlatados. Depois de 64 quilômetros percorridos, quando Alvin chegava a West Bend, em Iowa, seu “veículo” morre. Ele tem de pegar carona em um ônibus lotado de mulheres idosas que visitaram a gruta da Redenção, em West Bend. Ele então garante sua volta a Laurens, mais o retorno de seu carro e de seu trailer. Uma vez de volta à cidade, ele rapidamente aperfeiçoa o seu equipamento, adquirindo uma máquina de cortar grama mais poderosa, uma John Deere 66, e volta para a estrada rumo a Wisconsin. Durante o trajeto, Alvin encontra com personagens diversos, como um padre, um grupo de ciclistas de corrida, uma dupla de mecânicos gêmeos tagarelas, um veterano da Segunda Guerra Mundial e até uma mulher com predisposição para atropelar veados na estrada. Com sua jornada de seis semanas chegando ao fim, Alvin desembarca em Mt. Zion e para em uma taverna para saborear a sua primeira cerveja em anos. Entretanto, quando Alvin retoma o volante de seu Deere para a etapa final, ele ouve alguém tossindo e vê fumaça, interrompendo a viagem mais uma vez. Mais tarde, a apenas 1,5 km de distância da casa do irmão, o carro de Alvin morre de novo. Um fazendeiro conduzindo um grande trator John Deere para para ajudá-lo, oferecendo-se para rebocar sua máquina. Em mais uma tentativa, no entanto, Alvin miraculosamente consegue ligar o seu Deere e parte para o quilômetro final até a casa de Lyle, onde o destino de seu irmão – até então desconhecido -, lhe será revelado. A visão deste filme teve o estarrecedor impacto de um terremoto sentimental. Senti-me assim, chacoalhado, remexido e invadido por sensações, pensamentos e reflexões. A beleza das paisagens retratadas, a economia de diálogos praticada por Lynch, entremeados pelos longos e incrivelmente elucidadores intervalos silenciosos, são arrebatadores. E olha que este fim de tarde, início de noite, já nada prometia. “História Real” é um filme “não convencional” por ser um drama sem conflito, um road- movie sem velocidade e, sobretudo, um David Lynch repleto – se é que isso é possível – de normalidade. A trama, ao contrário dos road-movies tradicionais, não proporciona situação adversa alguma – a exceção de uma descida de ladeira quando o personagem central perde o freio de seu cortafor de grama – visto que Alvin tem tudo, absolutamente tudo sob controle. Homem vivido, ex- combatente, tem mais a ensinar do que a aprender. E o faz, com uma simplicidade, com uma falta de empáfia absolutamente humilde. No que diz respeito a técnica o filme é igualmente maravilhoso. Dotado de uma fotografia belíssima com vastos campos de trigo – tão comuns neste EUA que poucos conhecem – e uma trilha sonora como sempre impecável, conhecida marca de Lynch. As atuações por sua vez, são firmes, seguras, com destaque, obviamente para Richard Farnsworth que tragicamente viria a se suicidar pouco tempo após o término do filme. Fiquei também positivamente surpreso ao saber mais tarde que Lynch tomou conhecimento desta história verídica através de um recorte de jornal que o motivou a levar a história de Alvin Straight para as telas. E que história! Não posso deixar de pensar na grandeza da condição humana. Em meio à enormidade das paisagens retratadas no filme, aliadas às fraquezas do frágil corpo do personagem central e à grandiosidade épica do desafio a que o mesmo se propõe, só posso ver Alvin se agigantando, sobrepondo-se a tudo e a todos e, concomitantemente, a permanecer com uma simplicidade e uma humildade tocantes. E tudo isso narrado e filmado com absoluta competência. Uma aula de cinema! Sobretudo isso, uma autêntica aula de cinema! De resto, sinto-me na obrigação de agradecer a Lynch por mais uma obra prima, à Sétima Arte, pelo esplendor que pode proporcionar, mesmo aos mais cansados e desesperançosos seres humanos e, inusitadamente, ao Sindicato dos Rodoviários da cidade do Rio de Janeiro, por sua – legítima ou não -, apropriadíssima paralisação. Sem ela, eu não teria a oportunidade de mais uma vez desfrutar do conceito de sincronicidade de Jung, mas isso… bem, isso é assunto prá outra crônica.