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A Carne

Com as mãos ainda banhadas pelo sangue espesso dos bifes, Valeriano pousou
a carne no óleo quente da frigideira. Uma gota de suor caiu de sua testa bem
em cima da fritura, fazendo micro-bolhas de gordura fervente saltarem no ar,
untando o chão da cozinha. Limpou os pés, disfarçando o brilho do pavimento
ensebado, não queria ver sua mulher aborrecida pelo descuido, não naquela
noite. Era a primeira refeição decente em meses. Ela certamente esqueceria
o passado de penúrias; naquela noite havia carne, finalmente.

Ele ainda podia ouvir o lamento dos três filhos esfomeados, agarrados à
caridade da mãe enquanto improvisavam carrinhos de corrida com os talheres
ainda limpos na mesa da cozinha. Os braços moles da castigada mulher
mexiam abnegados uma rala mistura de água, gordura e sal. Ela chamava-se
como Nossa Senhora, e tinha certeza de que todos os acontecimentos da vida
eram obra da providência divina. Possuía o mesmo olhar penoso e cândido das
santas de gesso que adornavam sua estante. Era devota, mas àquela altura
não sabia mais de quem. A mesa forrada com uma toalha encardida e os
pratos de vidro alinhados com esmero, representavam o último fio de
dignidade daquela família devastada, o único elo que mantinha com um
passado abastado.

Eram seis olhos famintos, todos cor de mel, que babavam silenciosos e
resignados, crendo que a Nossa Senhora — aquela Maria de braços flácidos e
ventre estufado pelo oco vento da fome — operasse um milagre. Seus
pequenos estômagos feridos pela eterna espera, haviam cicatrizado; já não
doíam como antes. A fome ataca de forma violenta porém sutil — produz um
grande vazio nas entranhas de quem a sente, levando ao desespero
instantâneo; o estômago espera ser corroído pelo vazio, pela desesperança.
Porém após algum tempo de jejum, seus sintomas são amainados, o vazio
anestesia o organismo dos famintos, devorando-o lentamente, um ataque
silencioso e tênue. O estômago se acalma, após o conflito violento de sucos
gástricos, o apetite voraz acaba por render-se à situação de miséria e então o
órgão não mais anseia por comida. Abnega-se, dói completamente mudo, não
possui mais forças para desejar. Mas os olhos não perdoam. Dilatam-se,
esbugalham-se, correm à procura de sabores antigos, de migalhas esquecidas
nos pratos empoeirados, admiram até mesmo a carniça que os urubus
disputam, farejando mais do que o próprio olfato, salivando mais do que o
próprio paladar. — Aqueles meninos aprenderam a não mais reclamar, ou pelo
menos a não falar de suas misérias, como se o silêncio ajudasse a diminuir a
dor do corpo, o flagelo do espírito. Antes das duas minguadas refeições do
dia, os esquálidos garotos agarravam-se às suas canequinhas amassadas,
enchendo a barriga de água, ludibriando o apetite, esperando que o estômago
se saciasse com o parco caldo. O contato da água pura com as paredes
estomacais sujas de ar produzia um grande choque térmico em seus
organismos. Sentiam o mesmo efeito da chuva fria caindo no terreno árido de
um deserto. Podiam ver a água evaporar-se de seus poros quentes e famintos.
A idéia de submergir a fome partiu de suas cabecinhas inocentes, um pacto
silencioso entre as três crianças, obrigadas a amadurecer antes do previsto. A
técnica criada por eles pareciam abrandar o negro vão de suas barrigas. As
mãozinhas miúdas, cansadas de agradecer a Deus por aquilo que não tinham,
desistiram de orar antes das refeições, preferindo agarrar diretamente suas
colheres, sem cerimônia, e engolir tudo rapidamente; numa tentativa sôfrega
de não sentir asco pelo único alimento disponível. O pedacinho gordo de carne
foi retirado da caçarola com cuidado, separado em um pote de vidro rachado
e guardado como uma relíquia em cima do fogão ainda quente. Aquele
pequenino osso envolvido pela fina camada de carne e gordura seria fervido
outras tantas vezes, alimentando a imaginação dos comensais, temperada
com os únicos alimentos que os miseráveis possuem: sal e fome.

Valeriano estendeu-se no sofá e descansou o braço na testa. A mesma mão


que batia pregos e apertava parafusos na pequena fábrica artesanal, trouxe
para casa a notícia da demissão. Os calos produzidos pelo martelo e chave de
fenda ainda estavam lá, marcas de um tempo onde cada ferimento significava
comida na mesa. A pele macia da esposa acostumara-se ao toque áspero de
seus dedos, habituara-se à sua pele espinhenta e esponjosa e passou a gostar
daquele contato. Aquelas marcas jamais o deixariam, estavam incrustadas em
sua epiderme, como uma tatuagem que o envolvia cada vez mais, grudando
em suas mãos; lembrando-lhe dia após dia a derrota de não poder adquirir
novos calos. Recusou o jantar, aconselhou a esposa a pegar uma porção extra
de sopa; “mulher parida precisa se alimentar” — Disse em tom baixo.

Os estorvos agora eram quatro. O mais novo chegou no pior período de suas
vidas, seria o mais desgraçado de todos, um autêntico miserável. O moleque
chorava pouco, também comia pouco e desafiava a natureza permanecendo
vivo. Mas na hora do jantar esperneava e chorava alto como se reclamasse do
cheiro enjoativo do caldo de carne e mesmo assim quisesse prová-lo, já
prevendo o futuro de fome e privações que lhe aguardava. Seus lamentos
eram abafados pela voracidade dos irmãos, a fraqueza da mãe e a apatia do
pai. Estavam jantando e mais uma vez não havia carne. Os retraços de pão,
ensopados no caldo salgado sumiam em segundos nas bocas famintas dos
meninos, seus olhos grandes e redondos espelhavam a dura batalha que
travavam contra eles mesmos, divididos entre a fome e o enjôo. A cada prato
cheio de caldo, mesmo nos dias em que parecia menos asqueroso; temperado
com meia cebola; a frustração e o desespero invadiam a casa, distanciando
ainda mais o casal.

O olhar ávido dos filhos passou a ter um aspecto vidrado e não mais
esperavam por comida, mas por alguém que os levasse dali para sempre, a
morte seria bem vinda, mesmo que suas pequeninas almas não soubessem o
significado e a conseqüência daquele desejo. Valeriano por fim desistiu da sua
busca incessante por um emprego e recusou-se a lamentar-se. Não sentiria
pena de si mesmo, nem choraria o fato de aos quarenta anos de idade só
saber bater pregos. Não entregou-se à nenhum vício nem tentou espancar a
mulher (como fazem aqueles que procuram descontar nos outros a própria
incompetência), apenas desistiu dele mesmo e passou a viver deitado no sofá
puído da sala.

Maria era boa e paciente como as santas de que fora devota, mas o amargor
daquele caldo repugnante que se repetia dia após dia e o choro do bebê que
respirava aquele fedor gordurento, minavam a cada segundo seus nervos
calados. Sua voz continuava doce e baixa, foram os adjetivos que mudaram
em sua boca. Nem mesmo Valeriano sabia que ela era tão culta em termos de
impropérios. Escutou calado o “vagabundo e indolente”, recusou-se a refutar
o “preguiçoso, canalha e malandro” e aprendeu o significado de “mequetrefe
e biltre”. Um cretino como ele, um borra-botas, um inútil, um sujeito vil e
mesquinho bem que poderia trazer um pedaço de carne para os filhos e para
ela que estava de resguardo, precisava comer! O cérebro da mulher,
dissolvido pela fome e pela impotência, já não raciocinava; queria apenas
despejar sua fúria no marido reprodutor. Justo ela que não esperava ter todos
aqueles filhos...

Com os nervos ligados por uma espécie de fio condutor ao estômago vazio,
jogou o prato gorduroso no marido. Nem mesmo um pedaço de carne aquele
inútil era capaz de trazer pra casa! Do que viveriam? Daquela água fervente
lambrecada com banha e sal? De pedaços de pães mofados e água da torneira?
Se ele tinha perdido o emprego, não era o único, milhares de homens
passavam pelo mesmo problema e nem por isso faziam a família paadecer
como ele estava fazendo. Não era mais um homem, era um fiasco, um verme!
O bebê seguiu o seu choro faminto, o ar ainda estava impregnado do cheiro da
sopa rala. “Dá logo esse peito pro moleque, Maria!” — Despejou Valeriano sem
levantar do sofá. O choro aumentava à medida que as crianças esperavam do
pai um pedaço de carne.

Enxugou os respingos de óleo do rosto com o pano de prato. Nem fez questão
de limpar o sangue das mãos. Valeriano estava com pressa. Dispôs os pratos
na mesa com o mesmo cuidado que a esposa fazia. O cheiro adocicado de
carne queimada espalhou-se pela cozinha, havia deixado os bifes passarem do
ponto. Não importava, estava feliz, faria felizes os seus filhos. Maria o
beijaria como nos velhos tempos, contente pela refeição. Ajeitou os meninos
nas cadeiras, suas mãozinhas frias caíram ao longo do corpo. Ficariam
contentes com a comida, aqueles anjinhos, os seus anjinhos. Beijou Maria na
testa, sua cabeça pendeu para trás, estava cansada a pobre mulher, agora
poderia repousar. Certamente ficaria satisfeita; o bebê havia parado de
chorar, não choraria nunca mais. Tão fofo, tão tenro, tão macio. Valeriano
limpou o sangue dos pescoços da mulher e dos meninos; queria que eles
estivessem apresentáveis no jantar. Serviu à família a carne infante, fatiada e
frita. Lavou as mãos. Havia carne no jantar. Finalmente.

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