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CATARINA

Ter, 09 de Junho de 2009 21:24 2 Comentários Literatura - Contos - Ficção

O cabelo de Catarina continuava igual e seus olhos eram aqueles, alguma vez imersos
na inocência do amado. As curvas dos seus seios imprimiam em que os acolhia entre as
pálpebras, o único reflexo real que pode rebater no homem, esse que parem os
instintos, as divisões de paixões e de gêneros; a íntima certeza de conhecer nossos
agravos como nenhuma outra espécie, nossos desejos mais profundos, mais rapaces,
ferramentas naturais da providência e a asseguramento do futuro geral.
As plantas dos pés descalços roçavam a terra que tapizava a praça. Longe do balanço
aguardavam os sapatos de salto alto, símbolos errantes da vida adulta naquela
sociedade de sintéticas algemas, de nós nutridos em buracos pretos do pensamento,
esquivado pela razão.
Apenas alguns passos a separavam das meninas impúberes que reclamavam um lugar
na viagem até o céu próximo, esse que permitia à verdade nos seus olhos, separá-las
momentos do chão.
Catarina abandonou o balanço, não suportou os olhares denunciantes dessas mães tão
mastigadas pela força dos úteros. Caminhou descalças cinco quarteirões até o ponto
de ônibus com o pensamento amuralhado nas covinhas alegres das bochechas das
meninas, brincando na gangorra. "Sorrisos a meio costurar" pensou; pintas
enfadonhas, algum que outro muco subversivo na passagem do narizes ao lábio. Tudo
tão perfeito e mundano como a infância que soube ter tido.
_ Filha! ¡Venha! Venha cá a beleza do papai, a mais bela de todas as meninas do
mundo!
Gritava Cláudio enquanto elevava o infantil corpinho, fazendo-o girar no ar ao tempo
em que as cerdas triguenhas dos cabelos da menina roçavam as luminárias de cristal
penduradas do teto. As bochechas da pequena se enrubesciam sempre que o pai a
balançava nas alturas; sentia se perder em lúcidos iris, decorosas brechas azeviches
que a observavam desde o chão. Glorificada, mergulhava nessa negrura, atordoada
pelo movimento. Já podia se imaginar transformada em mulher digna com o véu
branco, as flores perfumadas e o pai junto dela no altar das paixões.
-¡Olá minha vida! Venha com mamãe!
Disse Graziela com os braços estendidos para a pequena, caminhando em sua direção
desde a porta enquanto toda a força da menina era empregada em não separar-se do
pai.
-¡Vamos menina! Que papai tem que trabalhar. ¡Solta vai!
Ordenava a mãe, sem que ela tivesse nenhuma intenção de obedecer e como sempre
acabava na cerca para crianças atirando brinquedos -aptos para crianças maiores de
quatro anos- em qualquer direção. Cláudio então vestia o casaco de couro, recolhia
chaves e oferecia um beijo rápido para Graziela, dois ou três na filha, quem lhe
devolvia o gesto com uma bolada na testa.
Circunstâncias iguais, nenhuma mudança, anos sucessivos. O tempo que transcorria e
os protagonistas semelhantes em cada circunstância. Nada diferente tudo igual.
Catarina adorava seu pai e não podia evitar sentir-se pelo menos feliz quando Cláudio
e Graziela discutiam em situações que se multiplicavam com freqüência e agora como
antes Graziela não conseguia se aproximar da adolescente. O vínculo mãe e filha se
tornava cada vez mais distante. Em cada nova discussão com o marido, cheirava o ódio
que emanava da jovem, motivo que abalava seu cérebro com perturbadas sensações.
Cláudio, pelo contrário, indolente ante a excessiva atenção que sua filha lhe dava,
adorava perguntar-lhe sobre os colegas meninos da escola,
- Paizinho, você é o mais lindo de todos eles.
Era a resposta dela, cativada y sacudida pela eletricidade do amor, pestanejava sem
parar.
Cláudio podia reconhecer as vezes que sim, sua menina-moça gozava de uma
personalidade picaresca, mas isso representava para ele o êxtase de saber que sua
própria filha o considerasse tanto, fato que o levava a pensar que não havia a menor
anormalidade nas exigências de querer saber se ele gostava mais dela do que da mãe.
O motorista do ônibus pôs atenção nos pés descalços até que encontrou a excitante
sombra do decote. Catarina pagou com troco, procurando não chegar perto daqueles
dedos fálicos e ameaçantes. Depois caminhou até o assento do fundo desde onde
pudesse controlar os movimentos de todos os passageiros. Dali perseguiu as sombras
dos edifícios durante todo o trajeto até sua casa e viu como elas se desenhavam nos
pescoços dos passageiros e reptavam como serpentes no asfalto. Como bumerangues
que se afastavam e voltavam com dermes novas.
Quando esteve a poucas quadras de descer, sua atenção se dividiu entre a procura das
chaves na bolsa enquanto ficava de pé, fechava a bolsa com cuidado para não derribar
nada, apertava a campainha, se aferrava ao cano para não tropeçar e pressionava, com
a mão livre, a saia para baixo para que não se alevantasse com o vento na hora de
abrirem-se as portas.
Seus quatorzes anos entraram no quarto. Essa tarde em particular levava os cabelos
com adornos de pedrinhas no elástico negro e num rabo de cavalo que, erguido sobre
o crânio desenhava uma linha sutil entre a base do cabelo e a nuca. Para quem
olhasse, seu pescoço parecia mais fino e longo do que realmente era. Sobre a nuca
repousava, negrusco pela Hena, uma tatuagem tribal, uma cobra pronta para dar o
bote, tatuagem que Catarina almejava que a mãe lhe permitisse fazer, uma tatuagem
real, se possível para o próximo aniversário, o de número quinze. Preferia esse
presente em lugar da festa. Gostava de imaginá-lo. Uma tatuagem, aquela, ali perto da
nuca e dos pensamentos, o lugar predileto dela. Uma cobra bem perto, quase que
inerente aos desejos, sussurrando segredos ao ouvido de mistérios compartilhados
apenas por ambas. Uma cobra que se desmembrasse de razões para obedecer às
ordens impunes da voz ávida do instinto executor máximo do corpo, como em todas as
fêmeas. Uma cobra ali, perto da hipófise, perto de onde nascem os hormônios... Perto
do desenvolvimento sexual.
Deixou a sacola sobre a cadeira frente à escrivaninha. Olhou-se durante vários
segundos no imenso espelho do móvel. Acariciou os seios que mal propagavam rugas
pela superfície do tecido. Primeiro o direito, depois o esquerdo. Pressionou os vértices
para que se fizessem visíveis. Pouco a pouco os mamilos apareceram debaixo da
camisa branca, quase transparente, do uniforme escolar. Depois mordeu os lábios e
chegou mais perto do espelho. Apertou alguns pontos pretos que tinha sobre o nariz e
limpou a mão num pedaço do algodão esquecido sobre a madeira, resto de alguma
tortura anterior. Baixou persiana, fechou cortinas para evitar que a luz lhe sufocasse o
sonho e deitou na cama sem tirar os tênis.
Menina!, Telefone, é teu pai!
Gritou Graziela desde algum lugar da casa. O chamado comoveu-lhe o sono leve,
ressoando em seu inconsciente. Atendeu atordoada e emocionada.
-¡Olá papai! Senti tua falta, Onde você está?
-Olá princesa!.., eu também sinto tua falta ... trabalhando muito. O colégio?
-¡Ai paizinho... saudades de você ... quero te ver, Você Vêm para meu aniversario, não
vem?
Insistiu Catarina.
- Não... não filha... não posso, os horários lá no serviço andam complicados... tenho
que ficar mais uns meses.
A explicação soou como lengalenga, série de números repetidos sem a menor
importância.
_ ¿Catarina, Catarina você ainda está ai? Filha!
Disse Cláudio antes que a ligação acabasse.
Frustrada cobriu a cabeça com o cobertor e o travesseiro ficou úmido de dor.
_ Quanto ódio você!
Repetiu entre pesadelos conhecidos.
Como em sábados anteriores, Catarina voltava exausta da classe de hokey. Quando
passou pela ponte do lago central, não pôde evitar lembrar-se novamente do seu pai
no lago, a última lembrança feliz que mantinha. Que intenso tinha sido observá-lo
atento a tudo, dono dos destinos d’água, recolhendo a linha, um passo para atrás,
dando a chicotada, soltando o molinete da vara de pesca. E ela fascinada observando
os lambaris nervosos entre as cobras d’água que os devoravam, ali entre os juncos que
penetravam o barro preto e escarlate. Tudo isso, e a luz que se despedia do reino das
cobras devorando os horizontes do lago como uma elipse gigante e intrusa no mundo
humano.
A única que tinha permanecido era Aze, sua cobra d’água, e a convicção de que ambas
se pertenciam.
Já em casa, a mãe estava ausente. Com certeza a mulher passeava com algum amigo
novo ao que dobraria em idade e intenções. Eram essas as horas para ser dona da
casa, dona das opções e do arbítrio. Donas, ela e Aze. Ambas perfeitas. E não perdoou
o relógio. Enquanto se despia, encheu a banheira com água fria, tirou Aze do aquário e
aproximou a sacola plástica com peixes vivos.
Acendeu a luz do corredor e entornou a porta do banheiro. A noite, lá fora, mal pôde
alimentar-se das débeis cargas luminosas que emanavam do corredor. Ela entrou na
banheira, liberou a cobra e aguardou a que os olhos se acostumassem com a
escuridão.
Sentiu cócegas na pélvis cada vez que Aze se deslizava sobre ela. Em alguns momentos
também tinha sentido uma leve contração, quase elétrica, que eriçava seus pêlos mais
do que a temperatura da água fria podia produzir.
Pegou um lambari da sacola e o segurou embaixo d’água à altura do púbis. O peixe se
mexeu frenético, mas, sem conseguir livrar-se o que chamou a atenção de Aze que,
aproximando-se, o observou enquanto o rodeava.
Catarina elevou os quadris uns centímetros sobre o nível d’água até que formasse uma
concha entre o ventre e a vagina. Ali segurou com firmeza à vítima imóvel,
resguardada só pela pouca água que a cobria. Então, a cobra percorreu ao longo das
suas pernas. Reptou sobre o púbis, roçando o clitóris até alcançar à presa. Foi quando
a donzela sentiu mais uma contração forte e num descuido soltou o peixe. Aze com
violência o engoliu de três bocados e ficou descansada sobre o esterno de sua ama.
Meia hora de repouso mais tarde quando os músculos e ossos padeceram cãibras, a
adolescente decidiu sair dágua. Primeiro retirou Aze e a deixou no bidê. Depois,
removeu a tampa da banheira, vestiu uma bata branca e deitou na cama da mãe para
assistir televisão em companhia da cobra que ainda se mantinha relaxada,
reconfortada no repouso e entrelaçada nos cabelos úmidos de sua dona.
Nenhum programa a satisfez, assim, mexeu / bisbilhotou no placar de Graziela, entre
uma grande quantidade de fitas de vídeo, lembranças da família. Escolheu a de rótulo
"Princesa Aniversário Número Dez" e o introduziu no reprodutor que projetou imagens
de uma festa alegre como a de qualquer família, os pais unidos, a torta esponjosa, as
chamas das velas dançando entre os sopros da aniversariante.
Mas, Catarina guardava uma lembrança diferente. Ela sabia o que acontecera quando
a câmara se desligara. Lembrou dos gritos, as reclamações mutuas antes do golpe na
porta da rua e Cláudio fosse absorvido como pai pelas salivas do destino, esse que não
o devolveria por completo nunca mais.
Quando desceu do ônibus estava decidida, observou a seu redor. Caminhou sem
obstruções até o prédio onde morava "Electra II" e subiu até o nono andar. Caminhou
pelo corredor mais relaxada e entrou em seu departamento, o mais afastado desde o
elevador. Outra vez as lágrimas, outra vez a solidão da lembrança mutilada lhe choveu
na memória como um aguaceiro sem escape. Os pés intumescidos se livraram do
esquema, o vestido de mulher acompanhou a sugestão. Deitou sobre o tapete
exuberante, avultado do apartamento, perto da cama e esticou o braço por debaixo do
móvel. Cócegas nas gemas dos dedos devolveram cor a seu corpo albino de afetos.
Hermes respondeu à carícia e começou a mostrar-se seguindo o rumo do braço
estendido. Cinco metros alcançaram a bordear o vazio flácido, fundido com a silhueta
humana. O loiro de suas escamas foi um marco dourado para aquela pele vermelhenta
que se destroçava de solidão. A jovem exalou com soberania. Recolheu Hermes pelos
dois extremos e o elevou junto com ela até o cubículo de paixões. Seus dedos
pressionaram a barriga do píton. Hermes se enredou em si mesmo satisfeito.
Catarina tirou a roupa interior, sabia que a roçadura nos bordados do tecido poderia
ferir o sensível couro do seu amante. Acariciou suave o crânio triangular e deslizou a
língua sobre toda a superfície.
O réptil abriu as mandíbulas amplas. O coração humano avançou em ritmo, entre
excitado e temerário. A prática fez efeito. A língua de Hermes encostou-se ao clitóris
de sua dona, derrubada de escravidão sexual. Depois, o pescoço longo começou a
circundar em torno da fêmea, ao redor do quadril, até que finalmente o rabo
aprisionou a pélvis e ali introduziu o vértice na vagina.
Catarina mordeu docilmente a carne fria de Hermes. Com cada mordida aquele
respondia com estocadas no interior úmido do sexo transbordado e maior pressão
sobre o pescoço, até deixá-la quase sem oxigênio. A panacéia sexual conduziu à
mulher até a beira do desmaio e a beatitude. Seu corpo latiu ao uníssono com as
palpitações vaginais até que as escamas de Hermes ficaram envernizadas pelo humor
que corria pelos lábios erógenos de Catarina.
-Te amo.
Repetiu.
E dormiu sem o opróbrio da consciência.

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